NAVEGANTES, NAVEGAR É PRECISO VIVER Veridiana ALMEIDA ...
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<strong>ALMEIDA</strong>, V. Navegantes, navegar é preciso viver. Anais do 1º Simpósio de Estudos Linguísticos e Literários da<br />
Universidade Tuiuti do Paraná.<br />
Eletras, vol. 20, n.20, dez.2010.<br />
www.utp.br/eletras<br />
<strong>NAVEGANTES</strong>, <strong>NAVEGAR</strong> <strong>É</strong> <strong>PRECISO</strong> <strong>VIVER</strong><br />
Eletras, vol. 20, n.20, dez.2010<br />
<strong>Veridiana</strong> <strong>ALMEIDA</strong> 1<br />
RESUMO: No presente estudo proponho uma leitura intertextual da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen,<br />
especificamente a terceira seção da obra Dual, intitulada Homenagem a Ricardo Reis, abordando algumas<br />
considerações sobre a Literatura Comparada. Este estudo configura-se na análise de posições conflitantes e<br />
coincidentes entre ambos os autores, de movimentos incessantes em busca da felicidade (ou não), a visão<br />
paradoxal do sentido da vida, que podem ser percebidos e relacionados às obras. Sophia funde a sua voz com a<br />
de Ricardo Reis e, em alguns momentos, incorpora elementos da poética ricardiana, consistindo em recuperar<br />
os temas e as formas utilizadas por ele, mas, concomitantemente, contrastar por completo o pensamento do<br />
autor em questão. A voz que surge, assim, é dual e dialoga com o outro em si. Essas aproximações e dissensões,<br />
levantadas no decorrer do texto, serão linhas especulativas norteadoras desta investigação.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada; Sophia de Mello Breyner Andresen; Ricardo Reis;<br />
Intertextualidade; Poesia.<br />
ABSTRACT: In the present study I propose an intertextual reading of Sophia De Mello Breyner Andresen<br />
writings, more specifically the third section of writing Dual, entitled `Honor to Ricardo Reis`, approaching some<br />
considerations about Comparative Literature. This study presents the analysis of conflictous and coincident<br />
positions between both authors, the incessant movements searching (or not) for happiness, the paradoxical<br />
vision of life sense, which can be noticed and be related to the works. Sophia unites her voice with Ricardo Reis<br />
and, in some moments, incorporates some elements from the ricardian poetic, consisting in recovering some<br />
subjects and forms used by him, but, concomitantly contrasting the thought of the mentioned author. The voice<br />
that appears, thus, is dual and dialogues with itself. These approaches and dissensions, questioned in this text,<br />
will be the speculative lines for this investigation.<br />
KEYWORDS: Comparative Literature; Sophia de Mello Breyner Andresen; Ricardo Reis; Intertextuality;<br />
Poetry.<br />
1. Introdução<br />
Sinto a necessidade de, antes de assumir a primeira pessoa nas páginas que se<br />
sucederão, explicitar, rapidamente, alguns argumentos que esclarecem a importância que<br />
credito a esta exposição. A enunciação teórica que exponho a seguir objetiva tornar a<br />
trajetória, ou melhor, as travessias da autora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen<br />
num leque de possibilidades que se abriu diante dos meus olhos. Ou seja, denúncias e<br />
anúncios que desafiam e convidam para uma reflexão sobre o estudo das relações entre as<br />
1 Doutoranda em Teoria Literária (UFSC). Faculdade Educacional da Lapa – FAEL. veri2004@hotmail.com<br />
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diversas literaturas no que diz respeito à inspiração, ao conteúdo, à forma e ao estilo – numa<br />
visão tão ampla quanto possível das potencialidades do território comparatista.<br />
Concomitantemente, coloca-se um obstáculo: como focalizar uma questão se a experiência de<br />
convívio com ela demonstra a natureza multifacetária de seus problemas? Tratar um tema<br />
multifacetário é sempre um risco. Risco que se apresenta de duas formas: ou bem o<br />
especialista restringe-se ao ponto de vista de sua disciplina, excluindo outros em nome da<br />
conveniência de delimitar a questão, ou bem “corre à rédea solta na multidisciplinaridade e<br />
cai numa deriva que leva frequentemente a deixar o campo de sua disciplina para tudo dizer,<br />
tudo descrever, ser especialista em tudo e de fato nada dizer.” (FALL 1998, p. 14).<br />
Supostamente, a ausência de inquietações ou perturbações da escolha de um foco<br />
poderia ser atingida pela seleção do próprio objeto: um paralelo entre Sophia de Mello<br />
Breyner Andresen e João Cabral de Mello Neto (a autora compartilha com João Cabral o rigor<br />
dos versos, a secura da composição), ou um paralelo entre Sophia e Cecília, ou até mesmo<br />
estudos entre Sophia e Literatura Infantil, já que a autora foi exímia nessa área. Destaco<br />
alguns títulos, como: O Rapaz de Bronze, A Fada Oriana e A Menina do Mar. No entanto,<br />
iluminar minha compreensão acerca da obra de Sophia e construir, a partir daí, alternativas<br />
possíveis de estudo, tomando como foco a própria autora e pensando que desta forma afasto<br />
todos os riscos, é uma ilusão.<br />
Dessa forma, ao escolher o diálogo entre Sophia e Ricardo Reis como posto de<br />
observação para a compreensão das questões, não evito o risco apontado por Fall e tampouco<br />
posso esquecer que a ausência de inquietações e perturbações pode se chocar com a<br />
tranquilidade das respostas de outros especialistas. Assim, temos que compreender que nada<br />
no universo humano guarda estrita fidelidade à mera aparência de realidade e que a<br />
interpretação da realidade se justifica mediante a certeza de se fazer dela uma abordagem que<br />
leve em conta sua absurda e infinita complexidade.<br />
Face ao reconhecimento, tácito ou explícito, de que a questão da Literatura Comparada<br />
permite aos sujeitos compreender o mundo e nele agir; de que ela é ainda a mais usual forma<br />
de encontros, desencontros e confrontos de posições, já que é por ela que estas posições se<br />
tornam públicas, considero crucial dar à literatura o relevo que de fato tem: não se trata<br />
evidentemente de confinar a questão, mas se trata da necessidade de pensá-la à luz de suas<br />
próprias condições de produção, que se fazem no tempo e constroem a história. Escolha-se,<br />
por inevitabilidade, o posto. Escolhido, o posto é movediço. <strong>É</strong> preciso desenhá-lo.<br />
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2. Bastidores<br />
Aqui nesta praia onde/ Não há nenhum vestígio de impureza,<br />
/ Aqui onde há somente /Ondas tombando ininterruptamente,/<br />
Puro espaço e lúcida unidade,/ Aqui o tempo apaixonadamente/<br />
Encontra a própria liberdade.<br />
Sophia de Mello Breyner Andresen<br />
Nesta instigante empreitada, várias podem ser as trilhas pelas quais o comparatista se<br />
aventura: pode optar pela via da tradução literária, pela via da estética da recepção, pela via<br />
dos polissistemas literários, pela via da intertextualidade, entre outras mais.<br />
Preservando o limite de espaço admissível para uma reflexão a respeito de algum<br />
aspecto relacionado aos estudos de Literatura Comparada, pretendo, aqui, registrar, de forma<br />
breve algumas considerações envolvendo as relações entre Literatura Comparada e uma das<br />
trilhas pautadas acima: a intertextualidade. De que forma esta, como mediadora de relações<br />
interculturais, emerge no estudo das influências ou do impacto que as semelhanças ou as<br />
diferenças entre a literatura de Sophia e Ricardo Reis podem revelar?<br />
A Literatura Comparada, como já foi visto, admite definições e mais definições e não<br />
cabe aqui, a exibição de todas devido à vastidão de seu campo e a pluralidade de seus<br />
métodos. Ou seja, o seu ecletismo é indiscutível perante às possibilidades. Nas palavras de<br />
Carvalhal (1986, p.5-7), quando começamos a tomar contato com trabalhos classificados<br />
como "estudos literários comparados", percebemos que essa denominação acaba por rotular<br />
investigações bem variadas, que adotam diferentes metodologias e que, pela diversificação<br />
dos objetos de análise, concedem à literatura comparada um vasto campo de atuação.<br />
Para o desenredo desta discussão (já que está é infindável, visto a complexidade da<br />
questão, a dificuldade de se chegar a um consenso – não existe apenas uma orientação a ser<br />
seguida) sem, no entanto, cair na generalidade e nem mesmo restringir-me a determinados<br />
aspectos redutores, é claro que literatura comparada não pode ser entendida apenas como<br />
sinônimo de "comparação", encontro respaldo teórico para afirmar estas relações nas ideias de<br />
Leyla Perrone-Moysés, citada por Allegro i , no artigo intitulado Das relações entre a<br />
Literatura Comparada e tradução literária: algumas considerações:<br />
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Estudando relações entre diferentes literaturas nacionais, autores e obras, a literatura<br />
comparada não só admite, mas comprova que a literatura se produz num constante<br />
diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da<br />
literatura; cada obra nova é uma continuação, por consentimento ou contestação, das<br />
obras anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois, dialogar com a<br />
literatura anterior e com a contemporânea.<br />
Desse modo, a presente análise parte do estudo comparativo da obra de Sophia de<br />
Mello Breyner Andresen, especificamente a terceira seção da obra Dual, intitulada<br />
Homenagem a Ricardo Reis, busca o estabelecimento de pontos de contato e de afastamento<br />
não só entre a obra dos autores selecionados, mas também entre o pensamento português do<br />
século XX. O próprio Pessoa teceu a biografia de Ricardo Reis nos seguintes termos: Ricardo<br />
Reis nasceu no Porto, educado em colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919,<br />
pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. <strong>É</strong> latinista por educação alheia, e um<br />
semi-helenista por educação própria. (SEABRA 1974, p. 110). Um dos pontos salientados é o<br />
princípio confuso atribuído a Reis: o Carpe Diem (aproveite o dia). Se Reis parece seguir essa<br />
filosofia do “aproveite o dia”, ao analisar as odes, verifica-se que ele subverte esse estilo de<br />
vida ao cultivar uma obsessão pela passagem do tempo e pela morte inevitável, anulando,<br />
portanto, a necessidade de gozar o dia, ao contrário de Sophia.<br />
Talvez, esta explicação justifique a aparente confusão estilística e sintática atribuída ao<br />
título desse artigo: Navegantes, navegar é preciso viver. Trata-se da sugestão articulatória e<br />
textual que os verbos podem naturalmente desdobrar – navegantes, navegar é preciso;<br />
navegantes, é preciso viver; navegantes, navegar é viver etc. Assim como para Reis o seu<br />
modo de viver demonstra a moderação, a passividade, e paradoxalmente é adepto ao Carpe<br />
Diem; para Sophia, o viver desliza para grandes realizações, ou seja, a própria poesia de<br />
Sophia é também de quem vive. Caberá, então, ao leitor, fazer várias leituras a partir da<br />
desordem de pensamento dos autores em questão e, também, a partir da instigante frase de<br />
Pessoa (2004, p. 841) “Navegar é preciso, viver não é preciso.”<br />
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3. Sobre Sophia<br />
A poesia de Sofia de Melo Breyner Andersen é (…) uma das vozes<br />
mais nobres da poesia portuguesa do nosso tempo. Entendamos, por<br />
sob a música dos seus versos, um apelo generoso, uma comunhão<br />
humana, um calor de vida, uma franqueza rude no amor, um clamor<br />
irredutível de liberdade – aos quais, como o poeta ensina, devemos<br />
erguer-nos sem compromissos nem vacilações.<br />
Jorge de Sena<br />
Sophia de Mello Breyner Andresen, filha de uma família aristocrata, nasceu na cidade<br />
do Porto em 6 de novembro de 1919 e faleceu em Lisboa, 2 de julho de 2004. Desde criança<br />
teve contato com a poesia e, antes mesmo de aprender a ler e a escrever, o avô ensinou-lhe a<br />
recitar Camões e Antero de Quental. Aos doze anos escreveu os primeiros poemas e, entre os<br />
dezesseis e os vinte três anos, viveu uma ótima fase na sua produção poética. Sophia foi uma<br />
das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. No entanto, além de poesia,<br />
escreveu contos, contos infantis, obras teatrais, ensaios. Sophia também traduziu para o<br />
português obras de Claudel, Dante, Shakespeare e Eurípedes, tendo sido condecorada pelo<br />
governo italiano pela sua tradução de O Purgatório.<br />
Publicou o primeiro livro Poesia em 1944. A partir dessa data, inicia-se na sua vida<br />
uma grande notoriedade e distinção no contexto literário português, já que do ponto de vista<br />
atual, mais distanciado, parece ser Sophia a autora cuja precoce aparição no mundo de<br />
masculinos e altos combatentes da literatura portuguesa marca de maneira particularmente<br />
enfática, por assim dizer, a “desguetização” da poesia de autoria feminina. (KLOBUCKA<br />
1996, p. 157). Ou seja, o pioneirismo no que diz respeito à emancipação da criação literária<br />
de autoria feminina, na área da poesia, atribui-se a Sophia, cuja posição no contexto literário<br />
português assinalava a diferença de uma época. Vale ressaltar que, Eduardo Lourenço citado<br />
por Coelho (1984, p. 110), situa Sophia num ponto de viragem da poesia contemporânea.<br />
Pode-se verificar a importância e qualidade literária de suas obras pelos diversos<br />
prêmios recebidos. Em 1964, o grande Prêmio de Poesia da Sociedade Portuguesa de<br />
Escritores pelo livro Canto Sexto; em 1977, o Teixeira de Pascoaes pelo livro O nome das<br />
coisas; em 1983, o prêmio da Crítica de Associação Internacional de Críticos Literários pelo<br />
conjunto da obra; em 1989, o prêmio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus pelo livro<br />
Ilhas; em 1990, o de poesia Pen Club pelo livro Ilhas; em 1992, o Caloustre Gulbenkian de<br />
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Literatura para Crianças pelo conjunto da obra; em 1994, o Vida Literária da Associação<br />
Portuguesa de Escritores; em 1995, Placa de Honra do Prêmio Petrarca da Associação de<br />
Editores Italianos; em 1998, o prêmio da Fundação Luís Miguel Nava pelo livro O Búzio de<br />
Cós e outros poemas; e, finalmente, em 1999 o Prêmio Camões (um dos mais importantes<br />
prêmios de Portugal) pelo conjunto da sua obra. ii<br />
Assim, com uma linguagem poética quase transparente e íntima, ao mesmo tempo<br />
firmada nos antigos mitos clássicos, Sophia invoca nos seus versos os objetos, as coisas, os<br />
seres, os tempos, os mares, os dias. A sua obra, várias vezes premiada, como visto, está<br />
traduzida em várias línguas.<br />
4. Sophia e Ricardo Reis no exílio dos deuses<br />
O mundo de Sophia é povoado por deuses e não por homens. Por isso,<br />
é mais fácil encontrá-lo nos vestígios e nos lugares da civilização<br />
grega do que no mundo em que habitamos. Por vezes, esta poesia<br />
chega a ser de uma profunda desumanidade: sonhando com a<br />
perfeição, o equilíbrio e a harmonia erguem-se para além do mal e da<br />
imperfeição que nos são consubstanciais e faz reviver um tempo sem<br />
mácula. <strong>É</strong> aí que a poesia se dá como relação com o Todo, como uma<br />
espécie de linguagem natural que decorre simbolicamente das coisas.<br />
Impossível não sermos tocados pela força bem perceptível desta<br />
positividade. Sophia faz-nos sentir o júbilo de uma poesia que avança<br />
contra ou à margem do sentido negativo da História e atribui ao<br />
poeta a sua missão original de celebração.<br />
António Guerreiro<br />
A terceira seção da obra Dual, intitulada Homenagem a Ricardo Reis, composta por<br />
sete poemas, é destinada ao heterônimo (neo)clássico de Fernando Pessoa. O diálogo com a<br />
obra de Ricardo Reis, cuja primeira impressão pareceu uma homenagem (como sugere o<br />
título), denuncia e anuncia posições ideológicas opostas entre si. Porém, é perceptível que,<br />
excepcionalmente, nesta seção, Sophia vale-se de uma rigorosidade formal, semelhante à<br />
utilizada em Reis. Ou seja, no conteúdo ambos configuram-se na divergência e, na forma,<br />
aproximam-se.<br />
Nas palavras de Scramin (2006, p. 50), “tanto Sophia e Reis fizeram parte de um<br />
mundo caótico e fragmentado, onde se vive o exílio dos deuses. Porém, a atitude que cada um<br />
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manifesta frente a essa problemática, consiste na diferença primordial entre os dois.” Dessa<br />
forma, por meio do resgate da obra de Reis e, consequentemente dos seus ideais, Sophia<br />
evidenciou a ideologia que perpassa sua obra, mas não de forma impositiva, ou seja,<br />
permitindo a exposição de Reis, chegando a ceder-lhe completamente a voz no poema IV da<br />
seção Homenagem a Ricardo Reis:<br />
Falamos junto à luz<br />
Lá fora a noite<br />
Imóvel brilha sobre o mar parado<br />
À sombra das palavras o teu rosto<br />
Em mim se inscreve como se durasse.<br />
(ANDRESEN, 1991)<br />
Sabe-se que Reis representa o poeta clássico. Pagão, crê em todos os deuses antigos e<br />
segue uma cosmovisão que alia o epicurismo (o supremo bem está no prazer moderado) e o<br />
estoicismo (com seu alto poder de aceitação e de resignação). Ou seja, a regra é - em tudo<br />
procurar a moderação, quer no prazer, quer na dor. Por isso, há laivos de tristeza em suas<br />
odes – “talvez o disfarce de um esforço lúcido para se adaptar, ou para evitar os piores efeitos<br />
da fatalidade.” (SCRAMIN 2006, p. 50). <strong>É</strong> a procura pelo estado em que a alma, pela<br />
moderação e equilíbrio na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, atinge a<br />
imperturbabilidade. Sophia rejeita tal atitude passiva, não concordando com esta apatia e,<br />
“mesmo consciente da passagem do tempo, acredita que a vida possua uma prioridade, uma<br />
evidência que não pode ser negada, sendo necessário superar a renúncia e aproveitar a vida<br />
ativamente enquanto é possível.” (SCRAMIN 2006, p. 50). Ela procura, assim, nos<br />
pressupostos do mundo grego, o combate à renúncia e à indiferença, de preço elevado à<br />
ideologia de Reis. A claridade grega reconhece a treva e a enfrenta, a exemplo do que ocorria<br />
nas tragédias gregas.<br />
A busca da configuração da hipótese anteriormente levantada, no quesito do aspecto<br />
formal observado nos demais, instaura-se no terceiro poema dessa série, sendo composto por<br />
três estrofes de três versos cada uma, pelos quais a recuperação de Reis passa a dizer-se.<br />
III<br />
Ausentes são os deuses mas presidem.<br />
Nós habitamos nessa<br />
transparência ambígua<br />
Seu pensamento emerge quando tudo<br />
De súbito se torna<br />
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Solenemente exacto.<br />
O seu olhar ensina o nosso olhar:<br />
Nossa atenção ao mundo<br />
<strong>É</strong> o culto que pedem.<br />
(ANDRESEN 1991)<br />
Em relação ao conteúdo, verifica-se que Sophia acredita na atuação dos deuses no<br />
mundo em que o ser humano vive apesar de eles se mostrarem ausentes. Observa-se esse<br />
posicionamento no seguinte trecho: Ausentes são os deuses mas presidem. O eu-lírico, apesar<br />
de não ver os deuses, sugere que estes vivem no mundo e, portanto, acredita que habitamos<br />
em uma transparência ambígua, pois os elementos existentes no mundo e que são claramente<br />
visíveis aos homens têm algo de invisível que neles atua, a saber, a presença dos deuses. Por<br />
isso é que o eu-lírico diz que o olhar dos deuses ensina o olhar humano e o culto que a eles se<br />
deve prestar é a observação atenta do mundo. (SCRAMIM 2006, p.50).<br />
Como se analisou, Sophia defende que os deuses, aparentemente ausentes estão mais<br />
próximos dos seres humanos do que se conjectura, basta que se olhe atentamente para o<br />
mundo para perceber esse fato, e à medida que isso ocorre, instaura-se a adoração a esses<br />
deuses. Reis também acredita na existência dos deuses e no dever dos homens de prestarem-<br />
lhes culto, pois se encontram acima da verdade, contudo não aduz a interferência dos mesmos<br />
no mundo. O eu-lírico em Reis crê na ideia de que os deuses sabem que há o universo, mas<br />
por serem de outra natureza não atuam no mundo. Observa-se essa referência nos seguintes<br />
trechos:<br />
Acima da verdade estão os deuses<br />
A nossa ciência é uma falhada cópia<br />
Da certeza com que eles<br />
Sabem com que há o Universo (...)<br />
E no seu calmo Olimpo<br />
São de outra Natureza.<br />
(PESSOA 2000)<br />
No constante diálogo, tanto Reis como Sophia acreditam nos deuses e no culto de<br />
adoração aos mesmos por parte dos seres humanos, todavia o eu-lírico em Sophia,<br />
diferentemente do eu-lírico em Reis, crê na atuação dessas divindades no mundo. Essa<br />
disparidade é estabelecida no uso dos verbos pelos dois poetas. Se, em Sophia, tem-se a<br />
utilização profusa de verbos que exprimem ação e comunicação quando se refere à atitude dos<br />
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deuses, como por exemplo, presidir, emergir, ensinar, pedir, em Reis tem-se verbos estáticos<br />
para designar a ação dos deuses, como por exemplo, saber e ser.<br />
Outro ponto que merece destaque é o fato de que, no primeiro poema, sem título, já no<br />
primeiro verso, a intertextualidade é trazida à baila com Reis por meio de um interlocutor<br />
comum às duas obras, a saber: Lídia – que é uma companheira do eu-lírico, a qual escuta<br />
todos os seus ideais e pensamentos.<br />
I<br />
Não creias, Lídia, que nenhum estilo<br />
Por nós perdido possa regressar<br />
Oferecendo a flor<br />
Que adiámos colher.<br />
Cada dia te é dado uma só vez<br />
E no redondo círculo da noite<br />
Não existe piedade<br />
Para aquele que hesita.<br />
Mais tarde será tarde e já é tarde.<br />
O tempo apaga tudo menos esse<br />
Longo indelével rasto<br />
Que o não-vivido deixa.<br />
Não creias na demora em que te medes.<br />
Jamais se detém Kronos cujo passo<br />
Vai sempre mais à frente<br />
Do que o teu próprio passo<br />
(ANDRESEN 1991)<br />
Assim, se Reis resgatou a interlocutora Lídia de Horácio, Sophia resgatou a de Reis,<br />
corroborando para que a intertextualidade efetue-se entre essas obras, como se percebe nos<br />
versos de Reis e de Sophia, respectivamente.<br />
Não queiras, Lídia, edificar no espaço<br />
Que figuras futuro, ou prometer-te<br />
Amanhã. Cumpre-te hoje não esperando.<br />
Tu mesma és tua vida<br />
(PESSOA 2000)<br />
Não creias, Lídia, que nenhum estilo<br />
Por nós perdido possa regressar<br />
Oferecendo a flor<br />
Que adiamos colher<br />
(ANDRESEN 1991)<br />
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<strong>É</strong> pertinente reportar, também, a estrutura do poema, já que há similaridade entre os<br />
autores em estudo. Sophia utiliza estrofes regulares de versos decassílabos alternados ou não<br />
com hexassílabo, do mesmo modo com que Reis os emprega. Cabe ressaltar que na poética de<br />
Sophia, em geral, não encontramos a regularidade métrica e, nesse poema, por se tratar de<br />
uma intertextualidade com um poeta que sofreu forte influência clássica (como já foi<br />
mencionado), principalmente de Horácio - o estilo configura-se com aquele utilizado pelos<br />
clássicos, a ode, o epigrama e a elegia.<br />
Em semelhante proporção, tanto Sophia como Ricardo Reis discorrem sobre a<br />
temática Fatum (destino), a irreversibilidade da morte e da efemeridade da vida e do tempo.<br />
Porém, as obras dissentem entre si precisamente na incidência da visão de mundo e da<br />
inclinação que cada um tem a respeito dessa temática. Estas ideias contrastantes, em aparente<br />
conflito indiciam os seguintes versos, respectivamente, de Reis e Sophia:<br />
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.<br />
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.<br />
Mais vale saber passar silenciosamente<br />
E sem desassossegos grandes<br />
(PESSOA 2000)<br />
Cada dia te é dado uma só vez<br />
E no redondo círculo da noite<br />
Não existe piedade<br />
Para aquele que hesita<br />
(ANDRESEN 1991)<br />
Enfim, a homenagem a Ricardo Reis, prestada por Sophia, na obra Dual, (essa<br />
coletânea apresenta-se dividida em seis seções, a saber: A casa, Delphica, Homenagem a<br />
Ricardo Reis, Dual, Arquipélago e Em memória), consiste em recuperar os temas e as formas<br />
utilizadas por ele mas, concomitantemente, contrasta por completo o pensamento do autor em<br />
questão. <strong>É</strong> sólido afirmar que, enquanto Sophia é poeta que se ocupa das coisas concretas,<br />
Reis é poeta da imaginação e do não-ser. A poesia de Ricardo Reis vem de um profundo pesar<br />
pela consciência da finitude e do sentimento de falta de sentido da vida, o que gera uma<br />
recusa de envolvimento com as coisas do mundo e com os homens. Já a poesia de Sophia<br />
insurge de uma atenção especial ao mundo exterior, de um inexorável amor à vida e da crença<br />
numa unidade primordial de todas as coisas.<br />
Para encerrar, vejo Sophia como mulher, nascida na história e constrangida pela<br />
história, que foi construindo soluções (que a cada vez não se querem paliativas), consciente de<br />
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<strong>ALMEIDA</strong>, V. Navegantes, navegar é preciso viver. Anais do 1º Simpósio de Estudos Linguísticos e Literários da<br />
Universidade Tuiuti do Paraná.<br />
Eletras, vol. 20, n.20, dez.2010.<br />
www.utp.br/eletras<br />
que o que se vai tecendo, a pouco e pouco, em cada ponto, em cada nó, é uma resposta<br />
marcada pela eleição de postos de observação possíveis que somente uma sociologia do<br />
conhecimento e uma história do conhecimento poderão explicar. Para ela, diferentemente de<br />
Ricardo Reis, o lema é - navegantes, navegar é preciso viver. Nossos roteiros de viagens<br />
dirão de nós o que fomos: de qualquer forma estamos sempre definindo rotas – os focos de<br />
nossas compreensões.<br />
Referências<br />
ALLEGRO, Alzira. Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas<br />
considerações. Disponível em http://unibero.edu.br/download/revista<br />
eletronica/Mar04Artigos/ Alzira%20Allegro.pdf. Acesso em 10/11/2007.<br />
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1998, p. 14.<br />
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LOURENÇO, Eduardo. Pessoa Revisitado. Lisboa: Gradiva, 2000.<br />
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______. Ricardo Reis: poesias. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />
RIBEIRETE, João. Encontro de Sophia com Ricardo Reis: a sombra das palavras. IV<br />
Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Maio, 2001.<br />
SEABRA, José Augusto. O heterônimo Pessoano. Lisboa: Dinalivro, 1985.<br />
SCRAMIN, Camila Garcia. A presença do helenismo de Ricardo Reis e da visão do mundo<br />
grego clássico na poesia de Sophia de Mello Andresen. 2006, 200 f. Dissertação de Mestrado.<br />
(Dissertação em Letras). Universidade Estadual de Maringá, Maringá.<br />
i ALLEGRO, A. Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas considerações. Disponível<br />
em http://unibero.edu.br/download/revistaeletronica/Mar04Artigos/ Alzira%20Allegro.pdf. Acesso em<br />
10/11/2007.<br />
ii Devo as informações aos vários sítios sobre Literatura Portuguesa. Entre eles está http://www.mulheresps20.ipp.pt/SophiaMBreyner.htm.<br />
Acesso em 10/11/2007.<br />
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