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viajo porque preciso, volto porque te amo um relato intimista ... - pucrs

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VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO<br />

UM RELATO INTIMISTA DE ALGUMAS VIAGENS<br />

Camila Gonzatto da Silva 1<br />

Não poder orientar-se em <strong>um</strong>a cidade não<br />

significa grande coisa. Mas se perder em <strong>um</strong>a<br />

cidade como quem se perde em <strong>um</strong>a floresta<br />

requer toda <strong>um</strong>a educação.<br />

Wal<strong>te</strong>r Benjamin<br />

Começo tomando emprestado o título de <strong>um</strong> filme de Karin Aïnouz e Marcelo<br />

Gomes, lançado em 2009. O filme conta a história de Zé Renato, <strong>um</strong> geólogo de 35<br />

anos, que faz <strong>um</strong>a viagem de inspeção no in<strong>te</strong>rior do Nordes<strong>te</strong> para fazer <strong>um</strong> estudo do<br />

impacto de implantação de <strong>um</strong> canal de água, ligando Xexéu ao Rio das Almas. A<br />

viagem começa no fim e <strong>te</strong>rmina no começo, na garganta do Rio das Almas, onde o<br />

canal hídrico deve <strong>te</strong>r início. Ela é <strong>um</strong>a metáfora do estado emocional do personagem.<br />

Zé Renato <strong>te</strong>nta esquecer a ex-mulher, que <strong>te</strong>rminou o relacionamento com ele. Ao<br />

longo da jornada, ele vai se reencontrando em meio à solidão e melancolia da paisagem,<br />

dos lugares visitados e das pessoas que passam pelo caminho.<br />

Mais do que conhecer novos lugares, novas culturas, viagens proporcionam<br />

reencontros consigo mesmo, permi<strong>te</strong>m desbravar o desconhecido fora e dentro. Viajo<br />

desde que me conheço por gen<strong>te</strong>. Minha primeira grande viagem foi aos dois anos de<br />

idade. Meu vô tinha comprado <strong>um</strong>a Kombi nova e colocou toda a família dentro dela<br />

para <strong>um</strong>a jornada r<strong>um</strong>o à Argentina. Esses foram meus primeiros passos em solo<br />

estrangeiro. Para poder sair, ganhei <strong>um</strong> RG com foto, número e <strong>um</strong> carimbo de “não<br />

alfabetizada”. Ou seja, minha identidade nacional começa a ser fixada a partir de <strong>um</strong><br />

deslocamento, identificar-se para sair. E, claro, voltar.<br />

Se o movimento entre fron<strong>te</strong>iras coloca em evidência a instabilidade da<br />

identidade, é nas próprias linhas de fron<strong>te</strong>ira, nos limiares, nos in<strong>te</strong>rstícios,<br />

que sua precariedade se torna mais visível. Aqui, mais do que a partida ou a<br />

chegada, é cruzar a fron<strong>te</strong>ira, é estar ou permanecer na fron<strong>te</strong>ira, que é o<br />

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.


acon<strong>te</strong>cimento crítico. (...) A possibilidade de “cruzar fron<strong>te</strong>iras” e de “estar<br />

na fron<strong>te</strong>ira”, de <strong>te</strong>r <strong>um</strong>a identidade ambígua, indefinida, é <strong>um</strong>a<br />

demonstração do cará<strong>te</strong>r “artificialmen<strong>te</strong>” imposto das identidades fixas. O<br />

“cruzamento de fron<strong>te</strong>iras” e o cultivo propositado de identidades ambíguas<br />

é, entretanto, ao mesmo <strong>te</strong>mpo <strong>um</strong>a poderosa estratégia política de<br />

questionamento das operações de fixação de identidade. (SILVA, 2004, p.<br />

89).<br />

Da viagem à Argentina lembro pouco. Tenho alg<strong>um</strong>as lembranças do in<strong>te</strong>rior da<br />

Kombi, da estrada e dos policiais que pediram a minha identificação. Lembro mais da<br />

minha segunda grande viagem. Esta totalmen<strong>te</strong> em solo nacional. Aqui eu não precisava<br />

me identificar, mas minha identidade – RG – <strong>viajo</strong>u junto. E, minha identidade de<br />

viajan<strong>te</strong>, seguiu tomando forma. Eu tinha cinco anos, meus pais tinham acabado de<br />

trocar o nosso fusca por <strong>um</strong> gol branco, zero quilômetros. Fomos meus pais, eu, minha<br />

vó pa<strong>te</strong>rna, a Dona Miguelina, e meu tio ma<strong>te</strong>rno, o tio Fredo, n<strong>um</strong>a viagem de Passo<br />

Fundo no Rio Grande do Sul, r<strong>um</strong>o a Natal no Rio Grande do Nor<strong>te</strong>. Nunca tinha<br />

pensado nisso, mas essa minha “travessia do Brasil” é ainda mais simbólica do que


parece: sair de <strong>um</strong> Rio Grande no Sul para chegar em no Nor<strong>te</strong>. Viaj<strong>amo</strong>s <strong>um</strong> mês, pelo<br />

litoral brasileiro, parando em várias cidades. Lembro do Carnaval de rua no Rio e em<br />

Vitória. Lembro do garçom baiano que cortava a pizza à xadrez de forma incrivelmen<strong>te</strong><br />

rápida. Lembro das praias do nordes<strong>te</strong>. Lembro da convivência com minha vó e meu tio,<br />

com quem dividia quartos de ho<strong>te</strong>l. Lembro do dia que me perdi no ho<strong>te</strong>l e bati na porta<br />

errada.<br />

Além dessas grandes viagens, minha infância foi marcada com muito<br />

deslocamento. Minha família nunca viveu in<strong>te</strong>ira na mesma cidade e sempre se visitou<br />

muito. Minha lembrança dos meus finais de semana não fogem a pequenas viagens para<br />

a casa dos meus avós ou de tios. Todo verão, também í<strong>amo</strong>s para Santa Catarina, com<br />

exceção de <strong>um</strong> ou dois, que pass<strong>amo</strong>s férias no Rio de Janeiro. Lembro também de <strong>um</strong>a<br />

viagem que fiz com o meu tio, o mesmo Fredo, e meus avós ma<strong>te</strong>rnos, de carro, para<br />

Brasília. Na época, tinha racionamento de combustível e achar <strong>um</strong> posto com gasolina<br />

era <strong>um</strong>a aventura a ser vencida a cada tantos quilômetros.<br />

Já adolescen<strong>te</strong>, fiz minhas primeiras viagens sozinha, com amigas do colégio.<br />

Mas o gosto mesmo pela viagem veio da infância, naquele longínquo 1982, quando fui<br />

para a Argentina e aprendi a gostar dos hermanos, ou em 1985, quando atravessei o<br />

Brasil. Viajar naquela época pode parecer hoje mais fácil, mas talvez não fosse. As<br />

estradas eram tão inseguras quanto hoje, os carros menos equipados, os <strong>te</strong>lefones<br />

celulares ainda não existiam.<br />

Hoje a minha família viaja menos e eu muito mais. Poderia passar páginas e<br />

páginas relatando viagens a diferen<strong>te</strong>s lugares. É possível ver fotos de alg<strong>um</strong>as de<br />

minhas viagens em minha página do Flickr<br />

(http://www.flickr.com/photos/camilagonzatto/). Na verdade, não conheço muitos<br />

lugares. Gosto de voltar para os meus preferidos. Mon<strong>te</strong>video é <strong>um</strong> deles. Há alguns<br />

anos, pelo menos <strong>um</strong>a vez por ano, passo <strong>um</strong> final de semana por lá com meu marido.<br />

Essas viagens de lazer me são muito caras. São elas que permi<strong>te</strong>m o reencontro consigo<br />

mesmo, são elas que permi<strong>te</strong>m o errar sem destino, são elas que permi<strong>te</strong>m o perder-se<br />

sem pressa para encontrar-se. Para elas, há que se <strong>te</strong>r a disposição do viajan<strong>te</strong>, muito<br />

mais do que a do turista, <strong>te</strong>m que se estar aberto para o que encontrar, para o que<br />

acon<strong>te</strong>cer, para o diferen<strong>te</strong>. É nelas que olh<strong>amo</strong>s para o outro de forma <strong>amo</strong>rosa.


Pero, en<strong>te</strong>ndámonos bien: viajar, si, hay que viajar, habría que viajar, pero<br />

sobre todo no hacer turismo. Esas agencias que cuadriculan la tierra, que La<br />

dividen en recorridos, estadías, en clubes cuidadosamen<strong>te</strong> preservados de<br />

toda proximidad social abusiva, que han hecho de La naturaleza un<br />

“producto”, así como otros quisieran hacerproducto de La li<strong>te</strong>ratura y del<br />

ar<strong>te</strong>, son las primeras responsables de convertir a unos en espectadores y a<br />

otros en espetáculo. Quienes se equivocan de papel, como es sabido, se ven<br />

prontamen<strong>te</strong> estigmatizados y si es posible se los envía de vuelta en char<strong>te</strong>res<br />

a sus lugares de origen. El mundo exis<strong>te</strong> todavia en su diversidad. Pero esa<br />

diversidad poço tiene que ver con El calidoscópio ilusório del turismo. Tal<br />

vez una de nuestras tareas más urgen<strong>te</strong>s sea volver a aprender a viajar, en<br />

todo caso, a lãs regiones más cercanas a nosotros, a fin de aprender<br />

nuevamen<strong>te</strong> a ver. (AUGÉ, 2008, p. 16)<br />

Poder sair, para mim, é sinônimo de poder descansar. Normalmen<strong>te</strong>, não consigo<br />

fazer isso em Porto Alegre. Se estou aqui, estou trabalhando. Então, se consigo sair, sem<br />

levar meu computador, isso já é <strong>um</strong> grande início. Cheguei a fazer alg<strong>um</strong>as viagens sem<br />

celular. Em 2005, passei quase 30 dias na Europa, sem <strong>te</strong>lefone. Mas, hoje em dia, é<br />

impossível. A <strong>te</strong>cnologia já permi<strong>te</strong> levar o <strong>te</strong>lefone e usar mensagem de <strong>te</strong>xtos a preços<br />

módicos. Foi em <strong>um</strong>a viagem a Nova York, em 2008, em que levei o meu <strong>te</strong>lefone, que<br />

recebi <strong>um</strong>a ligação para marcar a entrevista da seleção do mestrado. Estivesse eu sem<br />

celular, talvez esse <strong>te</strong>xto não tivesse sido escrito nesse con<strong>te</strong>xto.<br />

Mon<strong>te</strong>video, 2009


Mas viagens muitas vezes estão bem longe do lazer. A maior par<strong>te</strong> de minhas<br />

viagens estão relacionadas a trabalho, sejam festivais de cinema para acompanhar<br />

filmes ou para apresentar projetos, ou mesmo viagens curtas para reuniões.<br />

Já fiz também alg<strong>um</strong>as viagens de pesquisa para escrever ro<strong>te</strong>iros. Para escrever<br />

histórias sobre lugares específicos é <strong>preciso</strong> conhecê-los. Foi assim que conheci a<br />

fron<strong>te</strong>ira de Jaguarão do Sul e Rio Branco no Uruguai, e revisi<strong>te</strong>i as Missões Jesuíticas<br />

do Rio Grande do Sul. Essas viagens foram base para dois ro<strong>te</strong>iros da série Primeira<br />

Geração (http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/rbstvrs/capa-in<strong>te</strong>rna,0,0,0,0,Primeira-<br />

Geracao.html), da RBS TV. Muito do que vi e fotografei es<strong>te</strong>ve presen<strong>te</strong> na filmagem<br />

dos episódios. Eram histórias ficcionais, com crianças protagonistas, que contavam<br />

com <strong>um</strong> pano de fundo de realidade. Aquelas histórias poderiam <strong>te</strong>r acon<strong>te</strong>cido naqueles<br />

lugares. Outro projeto da RBS TV que me fez viajar foi o 4 Destinos<br />

(http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/4-destinos/home,0,2239,Home.html), que fiz a<br />

pesquisa em Bl<strong>um</strong>enau e Caxias do Sul.<br />

Fron<strong>te</strong>ira Brasil/Uruguai, em Jaguarão/Rio Branco.


Campo de girassóis na região das Missões.<br />

Também fiz alg<strong>um</strong>as viagens para estudar. A primeira foi a minha mudança de<br />

Passo Fundo para Porto Alegre para cursar o curso de Publicidade e Propaganda na<br />

UFRGS. Mais do que <strong>um</strong>a viagem, foi <strong>um</strong>a mudança. A viagem mesmo foi quando vim<br />

fazer o vestibular. Já conhecia a cidade, mas a relação com ela foi de outra forma. Mais<br />

do que visitá-la, comecei a vivenciá-la.<br />

Uma das viagens mais marcan<strong>te</strong>s de estudo foi a ida para Cuba para fazer o<br />

Taller Avanzado de Guión na Escuela In<strong>te</strong>rnacional de Cine y TV em San Antonio de<br />

los Baños. Essa foi <strong>um</strong>a viagem que começou muito an<strong>te</strong>s de entrar no avião. A decisão<br />

de fazer o curso e os preparativos ocuparam alguns meses. Foram cinco semanas<br />

in<strong>te</strong>nsas e marcan<strong>te</strong>s em Cuba. Falo não apenas do curso, que foi excelen<strong>te</strong>, mas<br />

principalmen<strong>te</strong> da vivência em <strong>um</strong> país completamen<strong>te</strong> diferen<strong>te</strong> do nosso e com <strong>um</strong>a<br />

realidade difícil de en<strong>te</strong>nder, difícil de gostar e mais difícil ainda de criticar. O<br />

somatório das experiências educacionais e pessoais foi o grande ganho. Fui para Cuba,<br />

em 2006, em <strong>um</strong>a época de incer<strong>te</strong>zas, quando o então presiden<strong>te</strong> Fidel Castro estava<br />

doen<strong>te</strong>, ninguém sabendo se ele sobreviveria, se os Estados Unidos invadiriam a ilha, o<br />

que acon<strong>te</strong>ceria. Mas esse era o clima an<strong>te</strong>s da viagem, lá o mais impactan<strong>te</strong> foi o


contato com <strong>um</strong>a realidade que foge dos pré-conceitos que podemos <strong>te</strong>r em relação a<br />

lugares que não conhecemos. Foi em Cuba que vi o mais lindo dos céus estrelados e a<br />

água mais cristalina do mar. Mas também foi em Cuba que vi tantas outras coisas que<br />

tornaram a viagem menos fácil.<br />

Mural do Hall da Escola de Cinema e TV de Cuba<br />

Nessa linha de viagem-estudo fiz alg<strong>um</strong>as com o grupo das aulas de ar<strong>te</strong> do<br />

antigo Torreão. Capitaneadas por Jailton Moreira, artista, curador e nosso grande<br />

mestre, conhecemos muitas obras de ar<strong>te</strong> ao vivo e discutimos sobre elas. Com o grupo<br />

fui visitar museus em Nova York (viagem já citada), fui conhecer o Centro de Ar<strong>te</strong><br />

Con<strong>te</strong>mporânea de Inhotim, em Br<strong>um</strong>adinho/MG, e a cidade histórica de Ouro Preto, e<br />

fiz <strong>um</strong>a expedição para o deserto da Bolívia. Agora me preparo para <strong>um</strong>a visita a Paris e<br />

Londres, com o intuito de visitar museus.


Ar<strong>te</strong> de rua no bairro D<strong>um</strong>bo, em Nova York.<br />

Penetrável, de Hélio Oiticica, em Inhotim.


A Bolívia, assim como Cuba e as duas grandes viagens da infância, são <strong>um</strong><br />

capítulo a par<strong>te</strong> de minha história. É a ela que dedico a par<strong>te</strong> final desse <strong>te</strong>xto.<br />

Os muitos desertos da Bolívia<br />

O Jailton me convidou para ir para a Bolívia. Normalmen<strong>te</strong>, ele propõe as<br />

viagens e as pessoas se inscrevem. Essa era a <strong>te</strong>rceira vez que ele levava <strong>um</strong> grupo para<br />

a Bolívia e quarta vez que ele próprio ía. Esse <strong>te</strong>rceiro grupo foi <strong>um</strong>a curadoria. Ele<br />

convidou <strong>um</strong> a <strong>um</strong> dos alunos. Todos aceitaram. Eu demorei <strong>um</strong> pouco a decidir. Já<br />

n<strong>amo</strong>rava essa viagem desde sua primeira edição. Mas não é <strong>um</strong>a viagem fácil. Tem<br />

que se estar disposto a passar mal. Ninguém passa por aquela altitude sem senti-la. Tem<br />

que se estar disposto a passar alguns dias sem banho. Tem que se estar disposto a fazer<br />

alg<strong>um</strong> trabalho artístico. Essa não é <strong>um</strong>a viagem para ver ar<strong>te</strong> e sim <strong>um</strong> desafio de<br />

produzir algo em relação a <strong>um</strong>a paisagem extrema. Extrema em beleza, extrema em<br />

diferença, extrema em tamanho, extrema em altitude.<br />

Eu acei<strong>te</strong>i a empreitada. Para mim, essa parecia a maior aventura a qual tinha me<br />

disposto. Mais do que viajar de Kombi para a Argentina, mais do que atravessar o<br />

Brasil, mais do que qualquer outra viagem que eu já tivesse feito sozinha ou<br />

acompanhada. Decidi, então, que o meu trabalho seria <strong>um</strong> diário. Escolhi <strong>um</strong> Moleskine<br />

vermelho e o coloquei na mochila junto com três canetas – <strong>um</strong>a roxa, <strong>um</strong>a verde e <strong>um</strong>a<br />

azul – e <strong>um</strong> conjunto de canetinhas hidrográficas coloridas. Também levei <strong>um</strong>a câmera<br />

fotográfica analógica, com cinco rolos de filme 35mm, asa 400 (infelizmen<strong>te</strong> não<br />

encontrei para vender nem asa 100, nem 200), e <strong>um</strong>a câmera digital simples, de 7<br />

megapixels. A câmera digital tinha o objetivo de ser doc<strong>um</strong>ental, registrar o grupo, a<br />

viagem. A câmera analógica era para produzir imagens escolhidas. Essas seriam as<br />

minhas ferramentas de trabalho.


Caderno de anotações<br />

A viagem começou no dia 7 de outubro. Fomos de Porto Alegre para Buenos<br />

Aires. Mas o diário só começou mesmo no dia 8, quando vo<strong>amo</strong>s de Buenos Aires para<br />

Jujuy, no nor<strong>te</strong> da Argentina. A ideia é que a subida r<strong>um</strong>o à altitude fosse gradual. A<br />

cidade não é nada demais, mas a pousada era confortável. Acabei comprando <strong>um</strong>a<br />

canequinha de ma<strong>te</strong>, erva e bomba no Carrefour. Já tinha levado <strong>um</strong>a mini garrafa<br />

térmica para fazer chás no frio do deserto. O chimarrão parecia que traria <strong>um</strong> certo calor<br />

e conforto. Lembro que era <strong>um</strong> Carrefour bacana, cheio de coisas, mas acab<strong>amo</strong>s<br />

comprando quase nada. A ideia era não ir preparados demais para o deserto. Já<br />

tính<strong>amo</strong>s várias amenidades que lev<strong>amo</strong>s de Porto Alegre: remédios, lenços<br />

<strong>um</strong>edecidos, barrinhas de cereal, castanhas, damascos e afins. Ali a sensação ainda era<br />

de preparação, a viagem ainda não tinha de fato começado. E assim foram os próximos<br />

dias.<br />

No dia seguin<strong>te</strong>, fomos de van até a divisa com a Bolívia. A paisagem do nor<strong>te</strong><br />

da Argentina é bonita, principalmen<strong>te</strong> o Sierro de Los Sie<strong>te</strong> Colores e as montanhas<br />

com os primeiros cactos. Na fron<strong>te</strong>ira, <strong>um</strong> ônibus estava nos esperando e nos levaria até<br />

Tupiza, a nossa cidade de adaptação, na qual dormirí<strong>amo</strong>s três noi<strong>te</strong>s. A fron<strong>te</strong>ira foi <strong>um</strong>


choque de realidade: muita sujeira e muita pobreza, n<strong>um</strong>a paisagem devastada debaixo<br />

de <strong>um</strong> sol ardido. Os pneus do ônibus foram outro choque de realidade – melhor que<br />

não precisassem frear de última hora. Foi na fron<strong>te</strong>ira que percebi que o conforto estava<br />

pres<strong>te</strong>s a acabar e que nos próximos dias tudo seria bem diferen<strong>te</strong>. Não <strong>te</strong>nho nenh<strong>um</strong>a<br />

anotação fresca da fron<strong>te</strong>ira no meu caderno, apenas anotações a pos<strong>te</strong>riori. A última<br />

que <strong>te</strong>nho é ainda da Argentina e marca <strong>um</strong>a altitude de 2200m. Estáv<strong>amo</strong>s começando<br />

a subir. Talvez esse fosse o real início da viagem, mas para mim, esse início só veio dar<br />

as caras bastan<strong>te</strong> <strong>te</strong>mpo depois.<br />

A viagem da fron<strong>te</strong>ira até Tupiza, de acordo com o diário, foi “quase dersértica<br />

em todos os sentidos”. Chacoalh<strong>amo</strong>s por <strong>um</strong>a estrada de <strong>te</strong>rra quase o <strong>te</strong>mpo todo.<br />

Tupiza me surpreendeu positivamen<strong>te</strong>. Parece, de certa maneira, alg<strong>um</strong>as cidades do<br />

in<strong>te</strong>rior do nordes<strong>te</strong>. Mas <strong>um</strong>a cidade ajeitadinha, com asfalto e <strong>um</strong>a única sinaleira.<br />

Nas três noi<strong>te</strong>s que jant<strong>amo</strong>s em Tupiza, comemos pizza, em restauran<strong>te</strong>s de <strong>um</strong>a<br />

mesma franquia, se é que se pode falar em franquia no in<strong>te</strong>rior da Bolívia... O ho<strong>te</strong>l era<br />

bem bom, com banheiro nos quartos, chuveiro e cama confortável. Os móveis eram<br />

feitos de madeira de cactos, em <strong>um</strong> tom clarinho. Um lugar simpático.


Nos dois dias in<strong>te</strong>iros que fic<strong>amo</strong>s em Tupiza, fizemos tours ao redor da cidade.<br />

A paisagem é exuberan<strong>te</strong>, com montanhas esculpidas pelo vento. Foi nesse período que<br />

me permiti <strong>te</strong>ntar desenhar. Nunca desenhei na minha vida, além dos traços infantis.<br />

Mas me entreguei à empreitada, saísse o que saísse, sem censura. Foi a minha primeira<br />

grande disponibilidade da viagem, fora a disponibilidade maior de tê-la aceitado fazer.


Mas ao mesmo <strong>te</strong>mpo em que me permiti desenhar, começaram os<br />

questionamentos sobre o que seria escrever <strong>um</strong> diário e quais os limi<strong>te</strong>s do registro<br />

<strong>te</strong>xtual. Relendo as anotações para escrever esse <strong>te</strong>xto, parece que agora elas fazem<br />

mais sentido. Duran<strong>te</strong> aqueles três dias não pareciam fazer. Eu já nem sabia mais o que<br />

escrever. Qualquer coisa parecia banal, fosse <strong>um</strong>a descrição do que estáv<strong>amo</strong>s fazendo,<br />

fosse o registro de <strong>um</strong> sentimento. O que eu achava que seria <strong>um</strong>a aventura, no dia a<br />

dia, estava muito tranquilo, ainda não parecia <strong>um</strong>a aventura. Mas o que é <strong>um</strong>a aventura?<br />

Achei que eu fosse descobrir isso quando começasse o tour pelo deserto.


Página do diário do segundo dia de tour em Tupiza: <strong>um</strong> questionamento sobre a<br />

solidão.<br />

Paisagem do almoço, citado nas páginas do caderno, na foto acima.


Cholita em alg<strong>um</strong> lugar ao nor<strong>te</strong> de Tupiza.<br />

O nosso tour pelo deserto da Bolívia começou mesmo no dia 12 de outubro.<br />

Tupiza já é deserto, mas ali tính<strong>amo</strong>s a praticidade de toda noi<strong>te</strong> voltar ao ho<strong>te</strong>l e nos<br />

acomodarmos em nossos quartos. Levant<strong>amo</strong>s cedo, carreg<strong>amo</strong>s os jipes. No total eram<br />

três carros (Santos, David e Martín, os motoristas), que nos levavam, além de <strong>um</strong>a<br />

cozinheira, a Delmira. A ideia era viajar em torno de 12h por dia, recorrendo <strong>um</strong><br />

caminho pré-estabelecido duran<strong>te</strong> cinco dias, até chegar em La Paz. Esse foi o início da<br />

viagem para mim. E iniciou super bem, com <strong>um</strong>a paisagem belíssima de campos de<br />

capim dourado a mais de 4000m de altitude. Eles pareciam muito com os Campos de<br />

Cima da Serra, só que muito mais altos e áridos. Uma paisagem confortável.


O início da viagem.<br />

Depois disso há <strong>um</strong> buraco no diário. Só <strong>volto</strong> a escrever no dia 15. No diário<br />

está explicado que foi <strong>porque</strong> passei mal. E, realmen<strong>te</strong> passei mal. No dia que cheg<strong>amo</strong>s<br />

a 5000m de altitude, tive o mal de altura: a dor de cabeça mais for<strong>te</strong> que já senti na<br />

minha vida, <strong>um</strong> pouco de falta de ar, ânimo nenh<strong>um</strong> para nada. Nesse momento, me<br />

questionei o que tinha ido fazer naquele fim de mundo, naquela altura toda... Mas era só<br />

olhar para o lado e havia sempre <strong>um</strong>a surpresa para ver, mais uns quilômetros para<br />

andar e o <strong>te</strong>mpo foi passando e a dor de cabeça, à base de muito remédio, foi passando<br />

também. Sem dúvida, o cansaço da altitude, os dias chacoalhando dentro do carro e as<br />

noi<strong>te</strong>s sem luz, me fizeram não escrever. Mas, também a dúvida sobre o que e por que<br />

escrever me paralisou.<br />

Desses dias sem anotação, vale lembrar das hospedarias simples, das cidades<br />

desertas e, principalmen<strong>te</strong>, do deserto que não é <strong>um</strong> só. Essa foi <strong>um</strong>a grande lição<br />

boliviana: não exis<strong>te</strong> <strong>um</strong> deserto, são vários. A cada dia ví<strong>amo</strong>s <strong>um</strong>a paisagem<br />

diferen<strong>te</strong>, lagos coloridos – azul, vermelho, verde e amarelo –, deserto com pedras,<br />

montanhas, capim dourado. Apenas <strong>um</strong>a vez pass<strong>amo</strong>s no deserto clássicos dos filmes<br />

que todos assistimos: <strong>um</strong> areião. Vale lembrar também dos colegas de grupo. A medida


em que o <strong>te</strong>mpo foi passando e que o mal de altura foi pegando <strong>um</strong> aqui outro ali, o<br />

grupo ficou mais coeso, mais amigo, mais companheiro. E, por fim, não há como<br />

esquecer da música boliviana, sempre alegre, que se repetia sem parar,<br />

independen<strong>te</strong>men<strong>te</strong> do jipe em que se estava. As pausas eram proporcionadas pelos i-<br />

pods dos companheiros de viagem. Mas quando acabava a ba<strong>te</strong>ria, lá voltavam os<br />

embalos bolivianos.<br />

Laguna Esmeralda com flamingos<br />

Mas o mais esperado ainda estava por vir: o Salar de Uyuni, o maior deserto de<br />

sal do mundo. An<strong>te</strong>s dele, porém, o jipe em que eu estava estragou. Fic<strong>amo</strong>s, eu, Fred,<br />

Jailton, Guilherme e Es<strong>te</strong>vão, no meio de <strong>um</strong> deserto de areia, enquanto os outros jipes<br />

seguiram para a nossa próxima parada: <strong>um</strong> ho<strong>te</strong>l de sal, na entrada do Salar, com<br />

chuveiro (!). Fic<strong>amo</strong>s mais de duas horas na função do carro, com <strong>um</strong>a certa apreensão<br />

com a possível chegada da noi<strong>te</strong> (os motoristas se orientam pelas montanhas e sem luz,<br />

já viu...) e ganh<strong>amo</strong>s <strong>um</strong> presen<strong>te</strong>. Quando nos aproxim<strong>amo</strong>s para cruzar <strong>um</strong> trilho de


trem no meio do nada, lá vinha <strong>um</strong>. Fic<strong>amo</strong>s eufóricos, descemos do carro e corremos<br />

para registrar o momento.<br />

O deserto de sal, afinal, era tudo o que a gen<strong>te</strong> esperava e mais <strong>um</strong> pouco. A<br />

paisagem é realmen<strong>te</strong> exuberan<strong>te</strong>. O céu azul tocando o chão branco é <strong>um</strong>a imagem<br />

difícil de esquecer. Fic<strong>amo</strong>s apenas <strong>um</strong> dia e meio nele. Mas a vontade era de ficar<br />

mais. A sensação daquele lugar é de puro deslocamento. Não dá para en<strong>te</strong>nder essa<br />

paisagem. Ela é muito diferen<strong>te</strong> de tudo o que conhecemos. As fotos não conseguem<br />

registrar a plenitude da experiência. As fotos, na verdade, não registraram o deserto,<br />

assim como o diário também não o fez. As fotos registraram as pequenas experiências<br />

artísticas, que <strong>te</strong>n<strong>te</strong>i fazer – sozinha ou em grupo – na imensidão branca. Foram<br />

experiências singelas, não há como competir com o deserto.


Experiências com <strong>um</strong>a bola vermelha no branco e azul do Salar


Experiências vestida com <strong>um</strong> saco azul no branco e azul do Salar<br />

Experiências com balões brancos azul no branco e azul do Salar


O Salar foi formado por sais de derramamento vulcânico e <strong>te</strong>m abaixo dele a<br />

maior reserva de lítio do planeta. O motorista Martín nos contou que há <strong>um</strong>a lenda em<br />

torno da formação do Salar. Segundo ele, havia <strong>um</strong>a mãe que tinha dois filhos. Um<br />

deles morreu e o lei<strong>te</strong> do peito dela derr<strong>amo</strong>u e se transformou em sal, formando o salar.<br />

A mãe é o grande Tulupa, o vulcão que guia a todos os motoristas no Salar.<br />

Vulcão Tulupa às margens do Salar<br />

Relendo anotações como essa, parece que a ideia de diário faz mais sentido.<br />

Tem coisas que só lembrei por meio das anotações e das fotos. Na memória, ficaram<br />

apenas as lembranças mais marcan<strong>te</strong>s, os detalhes mais inusitados, como o sabor<br />

simples da comida de Delmira, que toda a noi<strong>te</strong> era <strong>um</strong> alento a nossa dura jornada.<br />

A viagem não <strong>te</strong>rminou no Salar. Ainda fomos para La Paz, <strong>um</strong>a cidade muito<br />

colorida e pobre. Mais <strong>um</strong>a vez, a realidade foi for<strong>te</strong>. Entre <strong>te</strong>cidos, lãs e muitos objetos<br />

religiosos, ach<strong>amo</strong>s escondida em <strong>um</strong>a galeria, <strong>um</strong>a pequena loja, que vendia e trocava<br />

livros. Era de <strong>um</strong> americano que <strong>viajo</strong>u toda a America Latina e resolveu ficar na<br />

Bolívia. Compr<strong>amo</strong>s <strong>um</strong> café orgânico e quase deix<strong>amo</strong>s o nosso Lonely Planet da


Bolívia. Mas valia a pena trazê-lo de volta, para olhar os mapas e quem sabe <strong>um</strong> dia<br />

voltar.<br />

O diário ficou inacabado. Foi <strong>um</strong>a pena. Talvez ele valha muito mais para o<br />

depois. A aventura existiu, com todas as suas vicissitudes. Foi <strong>um</strong>a aventura boliviana.<br />

Não sei que aventura eu esperava. Mas as viagens são sempre diferen<strong>te</strong>s daquilo que a<br />

gen<strong>te</strong> espera. Esse é o barato de viajar.<br />

Referências<br />

Viajo <strong>porque</strong> <strong>preciso</strong>, <strong>volto</strong> <strong>porque</strong> gosto daqui.<br />

AUGÉ, Marc. El viaje imposible. Barcelona: Gedisa, 2008.<br />

SILVA, Tomaz T. (org). Identidade e Diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais.<br />

Petrópolis: Vozes, 2004.

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