“sangue latino, coração de terra bruta”: a etnomusicalidade nativista ...
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“SANGUE LATINO, CORAÇÃO DE TERRA BRUTA”: A<br />
ETNOMUSICALIDADE NATIVISTA SUL-RIO-GRANDENSE REFLETINDO<br />
IDENTIDADES ATRAVÉS DOS FESTIVAIS.<br />
Ta i n á Se v e ro va l e n z u e l a 1<br />
Mestranda do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação Profissionalizante em Patrimônio Cultural da UFSM<br />
INTRODUÇÃO<br />
O Brasil que assistia o findar do século XIX vivia transformações profundas no seio <strong>de</strong><br />
sua socieda<strong>de</strong>, cultura e política, com gran<strong>de</strong>s mudanças na estruturação do seu Estado. A<br />
Monarquia, sem meios para sustentar seu império sem a mão-<strong>de</strong>-obra escrava e com suas<br />
i<strong>de</strong>ologias fragilizadas, acaba ce<strong>de</strong>ndo ao processo <strong>de</strong> transformação do Estado, que se torna<br />
uma República dirigida, principalmente, pela classe média.<br />
Ao mesmo tempo, no cenário mundial, o século XX chega <strong>de</strong>marcando contendas<br />
comerciais entre potências européias, bem como a aberta rivalida<strong>de</strong> entre Alemanha e<br />
França na disputa territorial. Alianças se formam e a 1ª Guerra Mundial mostra ao fundo a<br />
face mais atroz da disputa pelo po<strong>de</strong>r. Desta guerra, os Estados Unidos da América passam<br />
a mostrar a eficácia ainda não revelada <strong>de</strong> sua organização política e militar, até que vem<br />
se sobressair como a nova gran<strong>de</strong> potência após a 2ª edição da Guerra Mundial, tirando da<br />
Europa sua hegemonia no domínio da socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Os hábitos culturais dos Estados Unidos passam a ditar regras pelo Oci<strong>de</strong>nte: o que<br />
comer, o que vestir, que música escutar, on<strong>de</strong> comprar. Tudo que fosse oriundo na nova<br />
potência se tornara sinônimo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> progresso. O Estado brasileiro do Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Sul, mais especificamente na sua região leste – on<strong>de</strong> fica a capital Porto Alegre<br />
–, sofre transformações que visam inserir o estado no mesmo panorama em que estavam se<br />
organizando não apenas o restante do país, mas como o restante do oci<strong>de</strong>nte.<br />
A doutrina positivista <strong>de</strong> Auguste Comte era a que norteava os valores políticos dos<br />
lí<strong>de</strong>res regionais no início do século XX, representados principalmente pelo PRR, o Partido<br />
Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse, que suce<strong>de</strong>ra seus representantes no po<strong>de</strong>r por cerca <strong>de</strong> 40<br />
anos entre o final do século XIX e início do XX 2 , e tendo como principais ícones Júlio <strong>de</strong><br />
Castilhos e seu seguidor, Borges Me<strong>de</strong>iros (Presi<strong>de</strong>ntes do RS nos anos <strong>de</strong> 1891/1893-1889<br />
e 1898-1908/1914-1928 respectivamente).<br />
É neste início <strong>de</strong> século que Porto Alegre transforma seu espaço urbano com a<br />
1 Historiadora e Licenciada em História pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Maria em 2010. Mestranda do Programa<br />
<strong>de</strong> Pós-Graduação Profissionalizante em Patrimônio Cultural da UFSM. Orientador: Prof.º Dr. Júlio Ricardo Quevedo<br />
dos Santos.<br />
2 A hegemonia do PRR sofreu breves interrupções, sendo elas ainda em 1891, quando Joca Tavares <strong>de</strong>põem Júlio<br />
<strong>de</strong> Castilhos da Presidência do Estado. Castilhos reassume o po<strong>de</strong>r em 1892, auxiliado por uma aliança entre o PRR e<br />
o Exército. Castilhos abdica <strong>de</strong> seu posto também em 1892, mas retorna em 1893 eleito para o cargo. A fase em que<br />
Castilhos não é Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Estado é conhecida por “Governicho”, quando diversos Presi<strong>de</strong>ntes se suce<strong>de</strong>m, sem<br />
sucesso, no governo do RS. Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros tem seu governo interrompido apenas entre 1908 e 1913, quando<br />
Carlos Barbosa fora eleito.<br />
1036
industrialização nascente, com os bon<strong>de</strong>s elétricos, os automóveis, o futebol, o cinema, os<br />
fraques e cartolas, ainda influenciados pela Europa. Já na década <strong>de</strong> 1940, a cultura dos<br />
EUA é a que se sobrepõe, com o jeans, o rock e refrigerantes industrializados. A cida<strong>de</strong><br />
acelera seu <strong>de</strong>senvolvimento e passa a receber pessoas <strong>de</strong> diversas regiões do próprio Estado,<br />
que migram para a capital em busca <strong>de</strong> empregos e/ou <strong>de</strong> estudo. A questão é que o interior<br />
do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, principalmente em direção ao oeste, muito pouco havia recebido estas<br />
influências européias ou norte-americanas do século XX. A socieda<strong>de</strong> do interior vivia uma<br />
realida<strong>de</strong> baseada na cultura rural e fortemente influenciada pela colonização espanhola<br />
empreendida no oeste da América do Sul nos séculos XVII e XVIII.<br />
1 - A IDENTIDADE DO SUL-RIO-GRANDENSE ATRAVÉS DA PROEMINÊNCIA DO<br />
TRADICIONALISMO E DO NATIVISMO<br />
Sobre a formação hispânica que influencia o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, é válido observar a<br />
questão <strong>de</strong> fronteira do RS, uma fronteira dita “móvel” por ter tido seus contornos alterados<br />
diversas vezes ao longo dos séculos XVII e XVIII. Com o movimento das gran<strong>de</strong>s navegações<br />
europeias no início do período mo<strong>de</strong>rno da Europa (final do século XV e início do XVI) e<br />
a consequente conquista <strong>de</strong> novos territórios, principalmente colonizando a região do atual<br />
continente americano, o que hoje se tem como o estado do RS fora ora proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Espanha e ora proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Portugal.<br />
As Coroas dos dois Estados Nacionais citados foram as que empreen<strong>de</strong>ram o processo<br />
<strong>de</strong> conquista no sul da atual América, e formalizaram a disputa das <strong>terra</strong>s novas através <strong>de</strong><br />
Tratados, que <strong>de</strong>terminavam até on<strong>de</strong> iriam os domínios <strong>de</strong> cada país. Em 1494, o Tratado <strong>de</strong><br />
Tor<strong>de</strong>silhas (assinado entre Portugal e Espanha com o aval da Igreja Católica) <strong>de</strong>terminava<br />
que as <strong>terra</strong>s que ficassem até 370 léguas leste da ilha <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong> seriam <strong>de</strong> Portugal<br />
e à oeste seriam <strong>de</strong> Espanha. Mas as contendas entre as duas Coroas ainda não estariam<br />
solucionadas. Portugal passa a <strong>de</strong>sejar ampliar seus domínios neste “Novo Mundo” quando<br />
percebe que o oeste reservava <strong>terra</strong>s em maior quantida<strong>de</strong>, com possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> extração<br />
<strong>de</strong> metais preciosos e com solo e clima propícios ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> diversas culturas<br />
agrícolas. As potências, ao organizarem seu processo <strong>de</strong> colonização da região, passam a<br />
protagonizar disputas que fazem, do atual Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, uma região que fora habitada<br />
por distintos povos e que viveu sob o domínio espanhol por longos anos antes do efetivo<br />
domínio português. Portugal só firmara sua posse na região, dando ao RS o contorno <strong>de</strong><br />
fronteira política tal qual o vigente, apenas em 1801 quando recebe as <strong>terra</strong>s que haviam sido<br />
dos povoados missioneiros (organizado por padres espanhóis da Companhia <strong>de</strong> Jesus junto<br />
aos Guaranis, um dos povos nativos da América Pré-Colombiana) na assinatura do Tratado<br />
<strong>de</strong> Badajós. Esta situação <strong>de</strong> fronteira móvel fora o que influenciara o RS para alocar, em seu<br />
território, populações cuja i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não é homogênea no tocante à sua origem étnica e à<br />
sua origem espacial (urbana ou rural).<br />
Observando então que Porto Alegre formara sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> baseada na influência<br />
portuguesa, admitindo culturas estrangeiras e num cenário urbano, é natural enten<strong>de</strong>r que<br />
a cida<strong>de</strong> causara estranhamento às pessoas que fossem naturais da interior oeste do Estado.<br />
Conforme a obra “’35 CTG’ Pioneiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho”, <strong>de</strong> Cyro<br />
Dutra Ferreira 3 , em 1947, um grupo <strong>de</strong> estudantes do Colégio Júlio <strong>de</strong> Castilhos (sendo<br />
eles Paixão Côrtes, Cyro Ferreira, Cyro Costa, Antônio Siqueira, Orlando Degrazzia,<br />
Cilço Campos, Fernando Vieira e João Vieira), naturais do oeste do Estado, opta por<br />
organizar um movimento que levasse até a capital os costumes rurais do interior do RS. Este<br />
3 FERREIRA, Cyro Dutra. “35 CTG” O pioneiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Porto Alegre, RS: Editora 35<br />
CTG, n/d.<br />
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movimento será posteriormente conhecido por Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG<br />
(institucionalizado em 1966), e estes 8 estudantes passam a ser consi<strong>de</strong>rados os “Pioneiros<br />
do MTG”. Este mesmo MTG, através <strong>de</strong> seus Conselhos Diretores, acabara por <strong>de</strong>sviar os<br />
princípios iniciais <strong>de</strong> seus geradores e acaba realizando um trabalho <strong>de</strong> preservação cultural<br />
amparado na criação <strong>de</strong> regramentos e na limitação e regularização das manifestações<br />
folclóricas.<br />
Estes <strong>de</strong>svios aconteceram ainda nas concepções i<strong>de</strong>ológicas do Movimento. O pensador<br />
que melhor <strong>de</strong>finiu os i<strong>de</strong>ais do ainda nascente Movimento Tradicionalista, fora João Carlos<br />
Barbosa Lessa, que apresentara, em 1954, a tese “O sentido e o valor do Tradicionalismo”,<br />
on<strong>de</strong> sistematizara o entendimento <strong>de</strong>ste tradicionalismo através <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ologia e das dos<br />
<strong>de</strong>mais consi<strong>de</strong>rados pioneiros <strong>de</strong>ste movimento, falando sobre o sentido do tradicionalismo<br />
como uma<br />
EXPERIÊNCIA do povo rio-gran<strong>de</strong>nse, no sentido <strong>de</strong> auxiliar as forças que pugnam pelo melhor<br />
funcionamento da engrenagem da socieda<strong>de</strong>. Como toda experiência social, não proporciona<br />
efeitos imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é que virá dizer do acerto ou não<br />
<strong>de</strong>sta campanha cultural. De qualquer forma, as gerações do futuro é que po<strong>de</strong>rão indicar, com<br />
intensida<strong>de</strong>, os efeitos <strong>de</strong>sta nossa - por enquanto - pálida experiência. E ao dizermos isso, estamos<br />
acentuando o erro daqueles que acreditam ser o Tradicionalismo uma tentativa estéril <strong>de</strong> “retorno<br />
ao passado”. A realida<strong>de</strong> é justamente o oposto: o Tradicionalismo constrói para o futuro. Feitas<br />
estas consi<strong>de</strong>rações preliminares, po<strong>de</strong>mos tentar um conceito do movimento tradicionalista. E<br />
então diremos: “Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução<br />
do bem coletivo, através <strong>de</strong> ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba <strong>de</strong> tal<br />
finalida<strong>de</strong>) com o fim <strong>de</strong> reforçar o núcleo <strong>de</strong> sua cultura: graças ao que a socieda<strong>de</strong> adquire maior<br />
tranqüilida<strong>de</strong> na vida comum”. 4<br />
Apesar da i<strong>de</strong>ologia e da origem <strong>de</strong>stes Pioneiros e <strong>de</strong> seu principal pensador, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
do “gaúcho” que passa a ser difundida pelo MTG e alimentada pela cultura orientada por<br />
ele, é baseada no entendimento da origem lusitana do RS, entendimento este organizado e<br />
difundido, inicialmente, através do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que,<br />
fundado em 1838, visava compor, através da história e da geografia, um figura brasileira que<br />
se comovesse com menores resistências ao nacionalismo, ainda pouco influente na socieda<strong>de</strong><br />
brasileira. Sobre o IHGB e suas tentativas <strong>de</strong> elaborar uma imagem nacional, observa-se<br />
o texto <strong>de</strong> Manoel Luís Salgado Guimarães (1988), “Nação e Civilização nos Trópicos:<br />
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto <strong>de</strong> uma História Nacional”, na<br />
seguinte passagem:<br />
[...] é no bojo do processo <strong>de</strong> consolidação do Estado Nacional que se viabiliza um projeto <strong>de</strong> pensar<br />
a história brasileira. A criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) vem<br />
apontar em direção à materialização <strong>de</strong>ste empreendimento, que mantém profundas relações<br />
com a proposta i<strong>de</strong>ológica em curso. Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como<br />
tarefa o <strong>de</strong>lineamento <strong>de</strong> um perfil para a “Nação brasileira”, capaz <strong>de</strong> lhe garantir uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
própria no conjunto amplo das “Nações”, <strong>de</strong> acordo com os novos princípios organizadores da<br />
vida social do século XIX. (p. 6).<br />
Uma situação <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> para o IHGB foi incluir neste cenário nacional os espaços <strong>de</strong><br />
fronteira, pois, como no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, negar que parte da sua formação tem influência<br />
espanhola e não apenas portuguesa é <strong>de</strong>sconhecer a realida<strong>de</strong> do Estado, principalmente na<br />
região Oeste. Sobre como foi tratada esta questão pelo IHGB, vê-se que:<br />
4 Disponível em http://www.mtg.org.br/valor.html. Acesso em 4 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2011.<br />
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Se, a princípio, todas as regiões do país são <strong>de</strong>finidas como igualmente importante, o material<br />
publicado revela uma clara orientação em direção às regiões <strong>de</strong> fronteira, <strong>de</strong>vido à necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> integração <strong>de</strong>ssas mesmas regiões ao po<strong>de</strong>r do Estado Nacional, sediado no Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
(GUIMARÃES, 1988, p. 23).<br />
Tem-se então, no IHGB, o difusor da historiografia <strong>de</strong> cunho tradicional trabalhada<br />
no Brasil e que fora utilizada pelo MTG. Mas voltar-se ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul leva ainda à<br />
observação do Instituto Histórico e Geográfico do RS, que manteve a mesma corrente em<br />
seu surgimento, embasado ainda na exaltação <strong>de</strong> figuras particulares na busca <strong>de</strong> uma gênese<br />
gloriosa e, principalmente, portuguesa, para a população sul brasileira. Com o findar do<br />
século XIX e início do XX, ambos recebem como propulsoras as idéias então difundidas <strong>de</strong><br />
Auguste Comte, trabalhando a história <strong>de</strong> forma linear <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas concepções intitulada<br />
Positivista. Junto a estes está então o Movimento Tradicionalista Gaúcho, porta-voz das<br />
concepções <strong>de</strong> história vigentes do período, protegido, para sua valida<strong>de</strong>, na idéia <strong>de</strong> gênese<br />
gloriosa ao povo sul-rio-gran<strong>de</strong>nse.<br />
O movimento <strong>nativista</strong>, que ganha força e representativida<strong>de</strong> a partir da década <strong>de</strong> 1970,<br />
eclo<strong>de</strong> justamente por expressar o entendimento que gran<strong>de</strong> parcela da população sul-riogran<strong>de</strong>nse<br />
tinha <strong>de</strong> si mesma, contrariando os princípios ditados pelo MTG e o entendimento<br />
difundido pelos Institutos Históricos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a formação multi-étnica regional,<br />
admitindo uma cultura popular que pu<strong>de</strong>sse ser mais ”flexível”, sem regramentos precisos<br />
(<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tivesse o cuidado com os elementos que caracterizassem os costumes regionais),<br />
não aceitando o “engessamento folclórico” proposto pelo Movimento Tradicionalista<br />
Gaúcho e sem institucionalizar o Nativismo, organizando suas manifestações através da<br />
arte, principalmente a música 5 .<br />
2 - NOÇÕES DE FRONTEIRA E IDENTIDADE NO CASO DA TERTÚLIA MUSICAL NATIVISTA<br />
DE SANTA MARIA.<br />
O nativismo, movimento que po<strong>de</strong> ocorrer em qualquer região do mundo, é relativo<br />
à expressar as afinida<strong>de</strong>s e sentimentos <strong>de</strong> estima do indivíduo com o local <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele é<br />
nato. É um sentimento que existe no RS <strong>de</strong>s<strong>de</strong> antes do surgimento dos festivais <strong>de</strong> música<br />
<strong>nativista</strong>, mas estes festivais foram a ponte para que se passasse a expressar este sentimento<br />
<strong>de</strong> forma mais saliente e com gran<strong>de</strong> incentivo e aceitação popular.<br />
O primeiro festival <strong>de</strong> música <strong>nativista</strong> nasce em 1971 na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Uruguaiana,<br />
justamente em uma cida<strong>de</strong> da região da fronteira oeste do RS. A Califórnia da Canção<br />
Nativa traz à tona as rivalida<strong>de</strong>s entre os <strong>nativista</strong>s e os tradicionalistas. Des<strong>de</strong> já, é<br />
válida a observação <strong>de</strong> que não necessariamente, os indivíduos envolvidos nestes <strong>de</strong>bates<br />
posicionavam-se precisamente contra uma idéia e a favor <strong>de</strong> outra. Muitos entendiam mesclar<br />
ambas as i<strong>de</strong>ologias e acreditavam que os dois movimentos po<strong>de</strong>riam se somar ao invés <strong>de</strong><br />
rivalizarem.<br />
Estas i<strong>de</strong>ologias são relacionadas às noções <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, sobre as quais se observa a obra<br />
<strong>de</strong> Stuart Hall “A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” (2006), on<strong>de</strong> Hall apresenta três<br />
concepções distintas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, sendo elas através do Sujeito do Iluminismo (indivíduo<br />
centrado no seu próprio “eu”, focado na razão e ação); o Sujeito Sociológico (que aceita<br />
que seu “eu” não é auto-suficiente, tendo uma forte interação com a socieda<strong>de</strong>); e o Sujeito<br />
Pós-Mo<strong>de</strong>rno (sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> fixa, moldado a partir do ambiente cultural que o ro<strong>de</strong>ia,<br />
5 Nesse sentido, este artigo procura apresentar composições que <strong>de</strong>notam o entendimento <strong>de</strong> origem hispânica,<br />
pois observarmos que algumas composições <strong>nativista</strong>s também falam sobre o entendimento <strong>de</strong> origem lusitana,<br />
que não é o objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
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permitindo-se não manter-se num mesmo ambiente ao longo <strong>de</strong> sua existência).<br />
Quanto aos <strong>nativista</strong>s e tradicionalistas, é válido percebê-los <strong>de</strong>ntro das concepções do<br />
Sujeito Sociológico, pois os responsáveis pela produção cultural (seja ela a música, danças,<br />
literatura, etc., regradas ou não) têm a percepção da troca no momento em que produzem<br />
algo para ser dividido com um <strong>de</strong>terminado público. Cabe se observar que estes grupos não<br />
se encaixam no Sujeito Pós-Mo<strong>de</strong>rno, pois eles se mantêm fixos às raízes <strong>de</strong> on<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>m<br />
serem natos e a sua produção é voltada especificamente à esta origem que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong> qual seja, precisa da aceitação dos receptores para sua difusão. É o que diz Maria Izilda<br />
Mattos sobre a situação específica da difusão musical:<br />
Se, por um lado, o compositor captava, reproduzia e explorava representações que circulavam<br />
no cotidiano, essencialmente elementos <strong>de</strong> uma experiência social vivida; por outro, seu público<br />
assumia e resistia a certas idéias, sentimentos e ressentimentos expressos pelo compositor [...],<br />
estabelecendo uma troca, uma cumplicida<strong>de</strong>, uma certa sintonia melódica entre público e autor.<br />
(MATOS, 2000, P. 80)<br />
Para este trabalho, veremos como a Tertúlia Musical Nativista <strong>de</strong> Santa Maria <strong>de</strong>notou<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> gênese por parte <strong>de</strong> alguns <strong>nativista</strong>s que tentavam explicitar<br />
seus conceitos. Esta análise foi realizada através das letras <strong>de</strong> algumas composições que<br />
foram selecionadas para compor o festival em suas 6 primeiras edições (1980 -1985).<br />
Quanto ao uso da música como fonte e objeto do estudo em história, temos Marcos<br />
Napolitano em “Fontes audiovisuais: a história <strong>de</strong>pois do papel” (2005), em que o autor<br />
interliga as diversas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fontes e as formas <strong>de</strong> utilizá-las, problematizando-as.<br />
Demonstra ter havido um atraso por parte dos historiadores em usar a música como objeto<br />
<strong>de</strong> pesquisa, já que pesquisadores <strong>de</strong> outras áreas já se valiam da análise musical para seus<br />
estudos. Este uso da música como objeto histórico é uma corrente amparada diretamente<br />
pelos estudos da história cultural 6 . Usar estas fontes como objeto <strong>de</strong> estudo em história faz<br />
com que o pesquisador assuma a condição <strong>de</strong> não buscar apresentar gran<strong>de</strong>s verda<strong>de</strong>s, mas<br />
sim complexificar as relações sociais que, neste caso, foram difundidas através das músicas<br />
<strong>de</strong> festivais, com a Tertúlia. Sandra Jatahy Pesavento enfatiza:<br />
A cultura é uma forma <strong>de</strong> expressão e tradução da realida<strong>de</strong> que se faz <strong>de</strong> forma simbólica. [...] A<br />
realida<strong>de</strong> tornou-se mais complexa. [...]. Não mais a posse dos documentos ou busca <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>finitivas. Não mais uma era <strong>de</strong> certezas normativas, <strong>de</strong> leis e mo<strong>de</strong>los a regerem o social. Uma<br />
era da dúvida, talvez, <strong>de</strong> suspeita, por certo, no qual tudo é posto em interrogação, pondo em<br />
causa a coerência do mundo. (2003, p. 15-16)<br />
Curioso observarmos, como a história da Tertúlia Musical Nativista explicita bem, que<br />
os tradicionalistas tentam se inserir no nativismo <strong>de</strong> forma a pregar, subliminarmente, que<br />
os princípios <strong>de</strong> ambos movimentos, na realida<strong>de</strong>, eram os mesmos. Os princípios do MTG,<br />
expressos na “Carta <strong>de</strong> Princípios” (elaborada por Glaucus Saraiva em 1961 e que hoje é<br />
cláusula pétrea do MTG através da Coletânea da Legislação Tradicionalista), são os mesmos<br />
princípios que os <strong>nativista</strong>s expressam através da música, porém com concepções diferentes<br />
no tocante à sua origem e suas compreensões da história. Ao mesmo tempo, o nativismo<br />
também oferece espaço às concepções que divergem da suas idéias, sendo que a música<br />
oferece espaço para a manifestação das mais diversas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s (cada compositor canta<br />
sua gênese conforme ele se i<strong>de</strong>ntifica com ela, sejam as figuras Farroupilhas, os “heróis<br />
anônimos” do RS – muitas vezes também do Movimento Farroupilha –, ainda os que se<br />
6 Autores como José Geraldo Vinci <strong>de</strong> Moraes, Maria Izilda Mattos, Theodor Adorno, Sandra Jatahy Pesavento e<br />
Marcos Napolitano são alguns dos que abordam a teoria do uso da música como fonte e objeto <strong>de</strong> história, cujo<br />
estudo teórico mais <strong>de</strong>talhado <strong>de</strong>ve ficar para outra oportunida<strong>de</strong>.<br />
1040
i<strong>de</strong>ntificam com o imigrante, o nativo, o guarani-missioneiro, com o gaucho p<strong>latino</strong>, com o<br />
gaúcho lusitano, etc.).<br />
O gran<strong>de</strong> paradoxo <strong>de</strong>ste estudo foi a observação <strong>de</strong> que, os <strong>nativista</strong>s, mesmo com<br />
idéias, em seu discurso, opostas às pregadas pelo MTG, precisaram do espaço adquirido<br />
por ele em termos <strong>de</strong> valorização do que fosse regional, para conquistar espaço para seus<br />
festivais. Quando os festivais surgem, já existe na população sul rio-gran<strong>de</strong>nse, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
cantar a si mesma e sua história, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qual fosse a concepção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
assumida, e esse <strong>de</strong>sejo e esta aceitação fora alimentada pelo movimento tradicionalista<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1947 7 .<br />
Este paradoxo se apresenta, por exemplo, no livreto da 1ª Tertúlia Musical Nativista,<br />
on<strong>de</strong> há um texto sob responsabilida<strong>de</strong> da ATEM – uma entida<strong>de</strong> tradicionalista – e assinado<br />
por Antônio Carlos Machado, que diz o seguinte acerca dos objetivos da Tertúlia:<br />
[...] a Estância do Minuano, entida<strong>de</strong> maior da cultura nativa em Santa Maria, numa promoção <strong>de</strong><br />
envergadura sem par, fará realizar, durante a Semana <strong>de</strong> Santa Maria, paralelamente ao Ro<strong>de</strong>io<br />
Crioulo, uma Tertúlia Musica, que será o primeiro gran<strong>de</strong> passo para colocar a cida<strong>de</strong> entre os<br />
gran<strong>de</strong>s centros <strong>de</strong> estudos e pesquisas das tradições do Rio Gran<strong>de</strong>, para que se busque nossas<br />
verda<strong>de</strong>iras origens culturais e se preserve das agressões vazias e sem sentido que se vêm<br />
praticando contra ela, em nome <strong>de</strong> uma falsa idéia <strong>de</strong> tradição gaúcha. (1980, p.7, grifo<br />
nosso)<br />
Estas músicas vêm então refletir diferentes i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s rio-gran<strong>de</strong>nses, que são<br />
fundamentadas no entendimento <strong>de</strong> fronteira com que cada indivíduo se i<strong>de</strong>ntifica e as formas<br />
como se confrontaram e tentaram se difundir. Cabe observarmos que a fundamentação da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não necessariamente nasce <strong>de</strong> uma elaboração racional. Ela muitas vezes é<br />
subjetiva e se justifica através <strong>de</strong> sentimentos que sustentam o sujeito em seu sentimento<br />
<strong>nativista</strong>. Conforme José Geraldo Vinci <strong>de</strong> Moraes, “[...] a música, além do seu estado <strong>de</strong><br />
imaterialida<strong>de</strong>, atinge os sentidos do receptor, estando, portanto, fundamentalmente no<br />
universo da sensibilida<strong>de</strong>” (2000, p. 211).<br />
Ainda observando esta subjetivida<strong>de</strong> na escolha <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> 8 , são válidas as<br />
observações acerca do imaginário e da representação que circunda a figura do rio-gran<strong>de</strong>nse.<br />
Sandra Jatahy Pesavento (1993), em “A invenção da Socieda<strong>de</strong> Gaúcha”, trabalha esta questão<br />
<strong>de</strong>monstrando inicialmente que o imaginário se constrói entre a realida<strong>de</strong> e representações<br />
atribuídas à ela. Ou seja, este imaginário alimenta a questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong>, ligada<br />
sempre às noções <strong>de</strong> nação e/ou <strong>de</strong> região, é elaborada <strong>de</strong> forma on<strong>de</strong> não necessariamente<br />
tenha uma ligação direta com um evento real, mas também <strong>de</strong> anseios e utopias, e estes, por<br />
sua vez, fazem parte <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>.<br />
2.1 - A Tertúlia Musical Nativista <strong>de</strong> Santa Maria<br />
A Gare da Estação <strong>de</strong> Santa Maria festejou, em novembro <strong>de</strong> 2011, a edição <strong>de</strong> número<br />
7 Esta passagem não se refere ao Movimento Tradicionalista Gaúcho como instituição, até mesmo por este<br />
ter sido institucionalizado apenas na década <strong>de</strong> 1960, mas sim àqueles que se assumiram na condição <strong>de</strong> serem<br />
tradicionalistas e que organizaram um movimento em prol da divulgação <strong>de</strong>sta adoção. Fala-se aqui <strong>de</strong> um<br />
movimento tradicionalista tal qual se fala <strong>de</strong> um movimento <strong>nativista</strong>.<br />
8 Terry Eagleton (2005) em “A idéia <strong>de</strong> Cultura”, diz que “essa preferência por uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural em vez <strong>de</strong><br />
outra é arracional, no sentido <strong>de</strong> que optar por ser parte <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>mocracia no lugar <strong>de</strong> uma ditadura não é. [...] Mas<br />
o fato <strong>de</strong> que uma escolha <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural é arracional não é um argumento contra ela. [...] De qualquer modo,<br />
nossas fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>s culturais, seja àqueles <strong>de</strong> nosso próprio grupo ou a outros, não são necessariamente irracionais<br />
pelo fato <strong>de</strong> serem a-racionais.” (p. 89-90).<br />
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XIX da Tertúlia Musical Nativista <strong>de</strong> Santa Maria. É a 19ª edição <strong>de</strong> um Festival que não<br />
nascera há apenas 19 anos atrás. A história da Tertúlia percorre os meados da década <strong>de</strong> 80,<br />
sendo o 2º festival <strong>de</strong> música <strong>nativista</strong> surgido no RS. A 1ª Tertúlia Musical <strong>de</strong> Santa Maria<br />
aconteceu em março <strong>de</strong> 1980, na Associação Tradicionalista Estância do Minuano (ATEM),<br />
após ter sido i<strong>de</strong>alizada por José Figueiredo Vasseur (mais conhecido como “Xirú Vasseur”),<br />
apoiado por Amaury Dalla Porta, patrão da Estância do Minuano da época. O festival<br />
nasce do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Vasseur que, acompanhando como radialista da Rádio Universida<strong>de</strong> as<br />
edições da Califórnia da Canção <strong>de</strong> Uruguaiana <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu surgimento em 1971, acreditava<br />
ser possível um evento <strong>de</strong>ste porte em Santa Maria. Os <strong>de</strong>mais envolvidos com a produção<br />
musical da década <strong>de</strong> 1970, viam em Santa Maria uma região chave para a criação <strong>de</strong> um<br />
novo festival <strong>nativista</strong>, por ser no centro do Estado e <strong>de</strong> fácil acesso para músicos <strong>de</strong> diversas<br />
localida<strong>de</strong>s.<br />
Vasseur elaborou o projeto da Tertúlia e passou às mãos <strong>de</strong> Dalla Porta, quando<br />
optaram por realizar o festival junto ao Ro<strong>de</strong>io Campeiro já tradicional da entida<strong>de</strong>. O<br />
nome “Tertúlia” fora escolhido também por Vasseur, o que gerou muita polêmica, por ser<br />
um palavra “castelhana”. Em entrevista realizada com Vasseur, ele conta da dificulda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> explicar que a cultura hispânica também era parte da cultura gaúcha, por isso o termo<br />
<strong>de</strong>veria ser mais bem quisto coletivamente. Isso <strong>de</strong>monstra que, se músicos e compositores<br />
conseguiam alimentar com certa sobrieda<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong>sta origem hispânica, isto não quer<br />
dizer que estas idéias fossem comuns à socieda<strong>de</strong> em geral, nem mesmo entre aqueles que<br />
vieram se tornar organizadores do evento. Se Vasseur era um dos que tinham clareza quanto<br />
sua origem platina, muitos tiveram <strong>de</strong> ser convencidos por ele <strong>de</strong>sta situação.<br />
No livreto da 4ª edição da Tertúlia, em 1983, consta um texto <strong>de</strong> Bicca Larré explicando<br />
o termo e os motivos que fazem com que ele se encaixe perfeitamente nos objetivos do festival,<br />
dizendo que “nos séculos XVII e XVIII ‘tertúlia’ na Espanha, significou mais restritamente<br />
uma reunião <strong>de</strong> pessoas que se reuniam para discorrer sobre matéria literária, ou para simples<br />
conversa amigável ou passatempo honesto e proveitoso”. Encerra seu texto dizendo que<br />
“não há palavra que diga tudo isso do que essa que o vocabulário riogran<strong>de</strong>nse foi tomar <strong>de</strong><br />
empréstimo à cultura hispânica que, <strong>de</strong> resto, tanto influenciou as nossas tradições gaúchas”.<br />
Assim, o próprio nome escolhido por Vasseur para o festival <strong>de</strong>ixa em voga o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
relacionar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Sul Rio-Gran<strong>de</strong>nse com a formação espanhola.<br />
A primeira edição acontece com o objetivo <strong>de</strong> encontrar até mesmo um hino para a<br />
Estância do Minuano, entida<strong>de</strong> que aceitou a proposta da realização do evento. Assim,<br />
todas as composições concorrentes <strong>de</strong>veriam apresentar músicas com temáticas relativas à<br />
Minuano, fosse o vento Minuano, o índio Minuano ou a Estância do Minuano. O sucesso<br />
<strong>de</strong>sta primeira edição po<strong>de</strong> ser dito em seus números, pois mais <strong>de</strong> 100 composições foram<br />
inscritas para o festival. Estas dimensões fizeram com que a 2ª edição em 1981 expandisse<br />
o festival, que adquiria porte <strong>de</strong> um evento que podia acontecer isoladamente (já que fora<br />
criado para “anexar-se” à festa campeira da entida<strong>de</strong>). Josseny Nunes, artista plástico, fora<br />
chamado para trabalhar aspectos teatrais na 3ª Tertúlia, <strong>de</strong> forma que envolvesse o público<br />
ainda mais com as composições que seriam apresentadas. Foi aí que o costume <strong>de</strong> haver<br />
uma payada antes que a composição subisse ao palco nasceu. Era uma forma <strong>de</strong> envolver o<br />
público com a temática da música e, até mesmo, explicar o que ela viria a dizer, caso o tema<br />
não fosse confortavelmente conhecido pelo público.<br />
A divisão do Festival da Festa Campeira da ATEM acontecera na 3ª edição, em 1982,<br />
acontecendo em maio e não mais no mês <strong>de</strong> março. Durante o mês do evento, era montado<br />
um escritório na Praça Saldanha Marinho, no centro <strong>de</strong> Santa Maria, com informações e<br />
materiais exclusivos da Tertúlia. Em palavras <strong>de</strong> Dinara Paixão 9 , “Santa Maria respirava a<br />
Tertúlia Musical Nativista todo mês <strong>de</strong> Maio”! Neste escritório, se reuniam músicos, poetas,<br />
9 Dinara fora radialista <strong>de</strong> cobertura dos eventos, vindo a se tornar membro da comissão organizadora na 8ª<br />
edição.<br />
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organizadores e admiradores do festival, para saberem <strong>de</strong> todas as novida<strong>de</strong>s sobre o evento<br />
que estaria por acontecer.<br />
Conforme relatado por Paixão, nestes anos iniciais, os <strong>de</strong>bates sobre Nativismo versus<br />
Tradicionalismo eram ferrenhos. O fato <strong>de</strong> que todo tradicionalista é, essencialmente, um<br />
<strong>nativista</strong>, não fazia sentido se dito ao inverso. Os <strong>nativista</strong>s, em gran<strong>de</strong> número, não se<br />
sentiam tradicionalistas. Rejeitavam a idéia <strong>de</strong> possíveis regramentos e limitações em sua<br />
arte, mesmo que estas dissessem ter o intuito <strong>de</strong> zelar pelos nossos costumes <strong>de</strong> forma que<br />
não per<strong>de</strong>ssem a legitimida<strong>de</strong>. Os <strong>de</strong>bates anuais foram alterando alguns panoramas, até que<br />
a 7ª edição do Festival traz em seu livreto, a Carta <strong>de</strong> Princípios do MTG logo em sua 2ª<br />
página. Aí já resi<strong>de</strong> uma das formas como o MTG estava tentando ligar seus princípios aos<br />
princípios dos <strong>nativista</strong>s, conforme dito anteriormente.<br />
As ligações passaram a ser constantes, mesmo que não fossem aceitas por ambos<br />
os grupos integralmente. Dinara Paixão é umas das porta-vozes que fizera frente à uma<br />
i<strong>de</strong>ologia que aceitava as manifestações <strong>nativista</strong>s em todo o seu entendimento e, ao mesmo<br />
tempo, era militante do MTG. Porém, contrariava as <strong>de</strong>terminações da gran<strong>de</strong> maioria dos<br />
representantes e diretores do MTG, e pregava que o Movimento era quem <strong>de</strong>veria se abrir<br />
às idéias tão bem estruturadas e embasadas dos <strong>nativista</strong>s para que, finalmente, recebesse<br />
a legitimida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria ter e fizesse jus às propostas <strong>de</strong> seus pioneiros i<strong>de</strong>alizadores.<br />
Esta corrente ainda é viva entre diversos militantes do tradicionalismo que ainda aguardam<br />
alterações nas diretrizes do MTG, objetivando que este continue a ser um porta-voz <strong>de</strong><br />
manifestações culturais do gaúcho rio-gran<strong>de</strong>nse, porém com uma maior abertura em seu<br />
entendimento <strong>de</strong> história, cultura e folclore.<br />
A 8ª edição da Tertúlia teve algumas características especiais. Com o passar dos anos, o<br />
festival acabara se tornando elitizado. Para cobrir os custos sem recursos que hoje existem,<br />
como a LIC, por exemplo, e arcar com as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> som, shows, premiação, ajuda <strong>de</strong> custo,<br />
gravação <strong>de</strong> disco, etc., era necessário que o ingresso para participar da Tertúlia fosse muito<br />
caro. A forma encontrada pela organização para que o evento adquirisse um caráter popular<br />
(popular assim como seu principal produto: a música) fora organizar, para a 8ª Tertúlia, 3<br />
palcos: um palco no antigo cinema da cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> ficariam os avaliadores (Amaury Dalla<br />
Porta, Edson Otto, Rose Marie Reis Garcia, Hugo Ramirez e Luiz Carlos Barbosa Lessa) e<br />
on<strong>de</strong> seria a gravação do disco, outro palco no Centro Desportivo Municipal, o “Farrezão”,<br />
com preços mais acessíveis e um 3º palco na Estância do Minuano, para todos os que<br />
<strong>de</strong>sejassem acampar e acompanhar o festival na entida<strong>de</strong>.<br />
Para tanto, os músicos assinaram um termo <strong>de</strong> compromisso <strong>de</strong> se apresentarem<br />
nos 3 palcos, e só recebiam a ajuda <strong>de</strong> custo após as 3 apresentações. Ao término da 1ª<br />
apresentação, em um dos palcos, uma Komb da organização do festival os aguardava para<br />
levá-los ao outro palco. Os músicos voltavam para Komb para realizarem a 3ª apresentação.<br />
A coesão da organização fora tanta que o evento começara e terminara ao mesmo tempo nos<br />
3 palcos. Nenhuma outra edição conseguira repetir o formato da Tertúlia <strong>de</strong> 1987.<br />
As dificulda<strong>de</strong>s na realização da Tertúlia começaram a aparecer lentamente. No ano <strong>de</strong><br />
1995 não fora possível realizar o festival, que chegaria em sua 15ª edição. Um ano <strong>de</strong>pois o<br />
festival foi retomado, e segundo Zoé Dalmora, Presi<strong>de</strong>nte da XV Tertúlia 10 , mesmo que o<br />
Festival já tivesse se realizado com sucesso em diversos locais da cida<strong>de</strong> (a 14ª fora no Cine<br />
In<strong>de</strong>pendência), foi na 15ª edição que se <strong>de</strong>cidiu por realizá-lo novamente na Estância do<br />
Minuano. Não apenas pela conhecida beleza do local, mas também por sua representativida<strong>de</strong><br />
no tocante à Tertúlia. Ali era nascera e ali <strong>de</strong>veria viver, em um “lonão” montado na própria<br />
Estância para abrigar o Festival que gerara.<br />
Mas novas dificulda<strong>de</strong>s apareceram. Muito em função dos gastos obtidos com os shows<br />
10 Ver ví<strong>de</strong>o institucional elaborado na 18ª edição da Tertúlia. Disponível em http://www.youtube.com/<br />
watch?v=AyQlTAX0a6U<br />
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nacionais e internacionais que eram contratados. A Tertúlia parou novamente nos anos <strong>de</strong><br />
1996 e 1997. Em 1998 e 1999, ainda aconteceram as 16ª e 17ª edições, respectivamente.<br />
Porém, <strong>de</strong>vido a soma dos problemas gerados nas más gestões financeiras, o festival fora<br />
finalmente paralisado para conseguir ser retomado apenas no ano <strong>de</strong> 2010. A 18ª edição<br />
selou então o retorno da Tertúlia Musical Nativista <strong>de</strong> Santa Maria. Vinte composições<br />
subiram ao palco na Gare da Estação nos dias 12 e 13 <strong>de</strong> novembro, até que “Escuta o Rio”<br />
se tornou a gran<strong>de</strong> vencedora no dia 14, com letra <strong>de</strong> Vinícius Brum e música <strong>de</strong> Tuny Brum.<br />
Agora está sendo promovida pela Prefeitura Municipal, em acordo firmado com a Estância<br />
do Minuano que ce<strong>de</strong>ra à esta o festival, conforme nos contou o senhor Lauro Bittencourt 11 ,<br />
atual Patrão da ATEM. Assim, o <strong>de</strong>stino da Tertúlia ainda é incerto. Depen<strong>de</strong> agora da<br />
sucessão na Administração Municipal que tenha interesse em promover a Tertúlia e que<br />
também tenha o aval da ATEM para promovê-la.<br />
Este breve histórico da Tertúlia Musical Nativista é o que dá embasamento para a breve<br />
análise que será traçada a seguir sobre algumas composições das 6 primeiras edições (quando<br />
as rivalida<strong>de</strong>s entre <strong>nativista</strong>s e tradicionalistas foram explicitadas 12 ).<br />
2.2 - As noções <strong>de</strong> fronteira e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do gaúcho sul-rio-gran<strong>de</strong>nse através<br />
<strong>de</strong> algumas composições da Tertúlia Musical Nativista <strong>de</strong> Santa Maria em suas 6<br />
primeiras edições (<strong>de</strong> 1980 a 1985).<br />
No item 2 <strong>de</strong>ste trabalho, observaremos então, <strong>de</strong> forma breve, que as noções <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do gaúcho sul Rio-Gran<strong>de</strong>nse foram explicitadas em trechos <strong>de</strong> letras <strong>de</strong><br />
composições que foram selecionadas para compor a Tertúlia em suas 6 primeiras edições.<br />
É válido ainda pontuarmos que a poesia <strong>de</strong>stas composições, ou seja, as letras, compostas<br />
junto à subjetivida<strong>de</strong> e ao sentimentalismo do seu autor, são diretamente relacionadas com a<br />
memória. Percebemos aqui que memória e sentimento convergem juntos para a elaboração<br />
musical, e conforme diz Jacy Seixas, “lembramos não apenas para conhecer e reconhecer,<br />
mas também para agir e criar” [(2003, p. 165.) Grifo itálico do autor. Grifo negrito nosso].<br />
Vamos então aos trechos das composições observadas:<br />
•<br />
1ª edição, 1980 – Música fonte: “Mensagem ao Vento”, letra e música <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong><br />
Sarturi (ver anexo 1). Trecho em <strong>de</strong>staque:<br />
“O vento bate com raiva<br />
Fortemente nas taquaras<br />
revivendo os tapejaras<br />
e os atabaques guerreiros<br />
que nos pagos missioneiro<br />
fizeram a história brava<br />
cantando e jogando a tava<br />
nos folguedos domingueiros”.<br />
Mesmo com a limitação da temática na 1ª edição do festival, Ataí<strong>de</strong> Sarturi trabalhou,<br />
através do vento minuano, parte da formação hispânica do RS, ao citar os povos missioneiros<br />
em “Mensagem ao Vento” e assumi-los como componentes da história estadual. Po<strong>de</strong> parecer<br />
11 Entrevista concedida para a autora do presente artigo em 27 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2011, na Associação<br />
Tradicionalista Estância do Minuano.<br />
12 Percebe-se que, apesar <strong>de</strong> os grupos manterem uma aceitação um tanto quanto maior um com o outro,<br />
as rivalida<strong>de</strong>s ainda fazem parte do contexto atual.<br />
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a alguns que seja algo muito sutil para ser consi<strong>de</strong>rada uma alusão à formação hispânica do<br />
RS, porém, ainda há pouco tempo (ainda neste século...), se assistia “historiadores” afirmando<br />
que a história do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul iniciava apenas em 1737, com a fundação do Forte Jesus-<br />
Maria-José e da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>, tudo organizado pelos portugueses. Sendo assim,<br />
trazer as Missões para integrar a história regional <strong>de</strong>monstra um entendimento diferenciado<br />
acerca da história e da gênese da população sul-rio-gran<strong>de</strong>nse, pois aceita, além da figura<br />
do espanhol, a figura do indígena. O autor articula características culturais <strong>de</strong> distintas<br />
origens, permitindo ao RS viver e exaltar sua formação multi-étnica e, consequentemente,<br />
multicultural (tava, atabaque, palavras como folguedos, tapejaras...).<br />
Aproxima ainda o RS e a região platina com peculiarida<strong>de</strong>s culturais semelhantes,<br />
representadas principalmente pelas características edafoclimáticas. De forma poética e<br />
musical, se po<strong>de</strong> observar que em 1980, havia pessoas que trabalhavam com questões culturais<br />
no RS, porém com um diálogo muito diferente com sua própria gênese.<br />
•<br />
2ª edição, 1981 – Música fonte: “Canto Alegretense”, letra <strong>de</strong> Antônio Augusto<br />
“Nico” Fagun<strong>de</strong>s e música <strong>de</strong> Bagre Fagun<strong>de</strong>s (ver anexo 2). Trecho em <strong>de</strong>staque:<br />
“Não me perguntes on<strong>de</strong> fica o Alegrete<br />
segue o rumo do teu próprio <strong>coração</strong><br />
cruzarás pela estrada algum ginete<br />
e ouvirás toque <strong>de</strong> gaita e <strong>de</strong> violão<br />
Pra quem chega <strong>de</strong> Rosário ao fim da tar<strong>de</strong><br />
ou quem vem <strong>de</strong> Uruguaiana <strong>de</strong> manhã<br />
tem o sol como uma brasa que ainda ar<strong>de</strong><br />
mergulhado no rio Ibirapuitan<br />
Ouve o canto gauchesco e brasileiro<br />
<strong>de</strong>sta <strong>terra</strong> que eu amei <strong>de</strong>s<strong>de</strong> guri...”.<br />
Antônio Augusto Fagun<strong>de</strong>s diz, em Canto Alegretense, que “os corações” convergem<br />
naturalmente à região oeste do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, e que nesta região existem gaitas e<br />
violões. Admitir ainda que a região sofre influência musical do violão é registrar o alcance da<br />
cultura hispânica no Estado, já que este é um instrumento originário da guitarra espanhola.<br />
A composição ainda cita outras cida<strong>de</strong>s da mesma região, Rosário do Sul e Uruguaiana,<br />
fazendo enten<strong>de</strong>r que a i<strong>de</strong>ntificação cultural <strong>de</strong> todas é a mesma, sendo estas cida<strong>de</strong>s da<br />
região do pampa cuja influência da colonização espanhola é bastante evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
biótipo da população até o linguajar, com muita participação do popular “portunhol”. As<br />
características o local cantado, como o Rio Ibirapuitan, além <strong>de</strong> posicionar a composição<br />
geograficamente, também faz sua alusão aos povos autóctones, já que a toponímia do rio em<br />
questão é do tronco linguístico tupi-guarani.<br />
O autor também diz que este canto é gauchesco e também é brasileiro, o que nos<br />
permite interpretar que o autor se sente integrado ao restante do país, mas ao ser “gauchesco<br />
e brasileiro”, se admite também que há a influência platina e ela <strong>de</strong>ve ser entendida como<br />
componente da cultura popular brasileira através do estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />
•<br />
3ª edição, 1982 – Música fonte: “Penas”, letra <strong>de</strong> Knelmo Amado Alves e música <strong>de</strong><br />
Francisco Alves. Trecho em <strong>de</strong>staque:<br />
“Uma estampa da pampa vai <strong>de</strong>saparecer<br />
não tem liberda<strong>de</strong> e não po<strong>de</strong> correr<br />
A máquina e o homem cortaram distâncias<br />
e léguas <strong>de</strong> estância não existem mais<br />
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Inhandu tuas penas, são penas que chegam<br />
nas tar<strong>de</strong>s amenas as lembranças <strong>de</strong> um piá<br />
(...)<br />
O avestruz do meu pago vai <strong>de</strong>sparecer<br />
São penas que trago e nada posso fazer<br />
a falta <strong>de</strong> espaço encurtou o seu passo<br />
e sem liberda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> viver.”<br />
Knelmo Alves elaborou a composição “Penas” para alertar quanto aos riscos <strong>de</strong> extinção<br />
da fauna da pampa em função do uso das penas <strong>de</strong> animais (neste caso o Inhandú) para fins<br />
vulgares. O autor utiliza na composição, as palavras “pampa” ou “pago” para se referir ao<br />
habitat do animal, sem <strong>de</strong>limitar a extensão <strong>de</strong>sta pampa/<strong>de</strong>ste pago. Enten<strong>de</strong>-se assim que<br />
o autor relaciona, através da fauna, as semelhanças da região platina.<br />
•<br />
4ª edição, 1983 – Música fonte: “Martin Fierro”, letra <strong>de</strong> Jayme Caetano Braun e<br />
música <strong>de</strong> Talo Pereyra (ver anexo 3). Trecho em <strong>de</strong>staque:<br />
“As entida<strong>de</strong>s divinas<br />
criando homens libertos<br />
nos horizontes abertos<br />
nas pátrias continentinas<br />
sem ter duas Argentinas<br />
dois Rio Gran<strong>de</strong>s<br />
sentindo no além dos An<strong>de</strong>s<br />
o drama dos Martins Fierros<br />
uniram pampas e cerros<br />
nas ‘Cordilheiras <strong>de</strong> Hernan<strong>de</strong>z’”.<br />
Este é o caso <strong>de</strong> composição que se explica por si. Braun, já no título <strong>de</strong> sua obra,<br />
traz a vivência platina na cultura do RS, pois Martin Fierro é uma obra chave que fala do<br />
gaucho acima das limitações <strong>de</strong> fronteira. É o que Braun explicita em sua obra, chamando<br />
<strong>de</strong> iguais (<strong>de</strong> “Martins Fierros”) os homens <strong>de</strong> Argentina, Uruguai e Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />
Martin Fierro, originalmente, é um poema do argentino José Hernán<strong>de</strong>z publicado em 1872.<br />
Narra o gaúcho com um caráter heroico e sacrificado, escrito com a linguagem coloquial<br />
da Argentina à época. Na composição <strong>de</strong> Jayme Caetano Braun, ele apresenta o Sul-Rio-<br />
Gran<strong>de</strong>nse brasileiro como um Martin Fierro, uma figura tal qual aquela que vive do outro<br />
lado da fronteira. Enten<strong>de</strong> que fazem parte <strong>de</strong> uma mesma pátria – seu continente – que, por<br />
sua vez, é a “pampa” e seus cerros, que não admitem fronteiras nem outros tipos <strong>de</strong> divisão.<br />
É um espaço que engloba, que abarca, que une, que abriga a iguais.<br />
Como nosso objetivo neste trabalho é <strong>de</strong>monstrar trechos das composições com as<br />
revelações acerca do entendimento dos compositores <strong>nativista</strong>s quanto à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma gênese<br />
platina (vistos eles como propagadores <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia bastante forte entre a população em<br />
geral), <strong>de</strong>ixamos ao leitor o interesse em observar a obra em sua íntegra, junto aos anexos<br />
<strong>de</strong>ste trabalho.<br />
•<br />
5ª edição, 1984 – Música fonte: “Orelhano”, letra e música <strong>de</strong> Mário Eleú Silva (ver<br />
anexo 4). Trecho em <strong>de</strong>staque:<br />
“Orelhano<br />
<strong>de</strong> marca e sinal<br />
fulano <strong>de</strong> tal<br />
<strong>de</strong> charlas campeiras<br />
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mesclando fronteiras<br />
retrata na estampa<br />
rigores do pampa<br />
e serenas maneiras<br />
Orelhano<br />
brasileiro ou argentino<br />
castelhano, campesino<br />
gaúcho <strong>de</strong> nascimento<br />
são tranças <strong>de</strong> um mesmo tento<br />
sustentando um i<strong>de</strong>al<br />
sem sentir a marca quente<br />
nem o peso do buçal<br />
Orelhano<br />
ao paisano <strong>de</strong> tua estampa<br />
não se pe<strong>de</strong> passaporte<br />
nestes caminhos do pampa.”<br />
Eleú fez <strong>de</strong> “Orelhano” um clássico da música Nativista justamente na voz do uruguaio<br />
Dante Ramon Le<strong>de</strong>sma. A escolha do intérprete que imortalizou a composição já <strong>de</strong>nota a<br />
existência <strong>de</strong> um diálogo aberto com a região do Prata, sendo que um artista uruguaio pô<strong>de</strong><br />
cantar, com maestria, um tema que fala do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Evi<strong>de</strong>ntemente que este<br />
Rio Gran<strong>de</strong> do Sul trabalhado por Eleú é um local <strong>de</strong> mescla e hibridismo cultural. É uma<br />
composição que fala em fronteiras mescladas <strong>de</strong>vido à inexistência <strong>de</strong> uma diferenciação<br />
entre os habitantes da região do Prata <strong>de</strong>terminada pela fronteira política que os divi<strong>de</strong> (as<br />
“tranças <strong>de</strong> um mesmo tento”). Para o compositor, qualquer tentativa <strong>de</strong> diferenciar ou<br />
separar o Rio-Gran<strong>de</strong>nse dos <strong>de</strong>mais que vivem tão próximos à sua fronteira, é uma tentativa<br />
vão, pois as relações são evi<strong>de</strong>ntes e perpassam muitos anos <strong>de</strong> história e <strong>de</strong> entendimento<br />
<strong>de</strong> um com o outro.<br />
Acreditamos também que o i<strong>de</strong>al que o autor enfatiza que <strong>de</strong>ve ser sustentado, esteja<br />
ligado à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> autonomia da região do Prata, realida<strong>de</strong> esta que sofre influência direta<br />
da <strong>de</strong>marcação dos limites da Fronteira, contextualizada com a atuação da Monarquia no<br />
Brasil. A influência platina no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Pedro e a força existente nos chefes da<br />
fronteira, alicerçadas em suas milícias, é reflexo direto da força do po<strong>de</strong>r privado na região<br />
(GUAZELLI, 2004). Eleú avisa ao “Orelhano” que, nos caminhos do pampa, não se pe<strong>de</strong><br />
passaporte à quem lhe for igual (“paisano <strong>de</strong> tua estampa”), enfatizando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
trânsito livre entre as fronteiras platinas (“caminhos do pampa”). Mário Eleú também fala<br />
sobre uma aproximação dos anônimos como “soldados”, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da região que<br />
habitem, que lutariam por i<strong>de</strong>ais comuns, dadas as suas influências platinas semelhantes.<br />
•<br />
6ª edição, 1985 – Música fonte: “Pampa do amanhã”, letra e música <strong>de</strong> Dante<br />
Ramon Le<strong>de</strong>sma (ver anexo 5). Trecho em <strong>de</strong>staque:<br />
“Irmanando céu e <strong>terra</strong>,<br />
a pampa aqui nos gerou<br />
sem marcar-nos com ban<strong>de</strong>iras<br />
com sotaque, ou religião<br />
entrelaçando querências<br />
por rios <strong>de</strong> tradição<br />
<strong>de</strong>u luz a uma raça,<br />
hoje uma gran<strong>de</strong> nação.<br />
(...)<br />
Ninguém vai nos separar<br />
sob a ilusão das fronteiras<br />
só temos uma ban<strong>de</strong>ira<br />
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e o mesmo céu pra cantar.<br />
Ninguém po<strong>de</strong>rá impedir<br />
que formemos uma pátria,<br />
se a pampa irmana estas <strong>terra</strong>s<br />
e o gaúcho é uma raça.”<br />
O mesmo cantor uruguaio que firmava uma carreira <strong>de</strong> sucesso cantando motivos<br />
p<strong>latino</strong>s, volta à 6ª Tertúlia com uma composição <strong>de</strong> sua autoria. A letra da música já fala<br />
por si, dos i<strong>de</strong>ais do compositor em unir a região platina (in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> fronteiras<br />
e ban<strong>de</strong>iras) conforme seus costumes e <strong>de</strong> alimentar a idéia <strong>de</strong> aceitação <strong>de</strong> serem todos<br />
her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> ancestrais comuns.<br />
Desta forma, estas composições revelam um sentimento que permeara gran<strong>de</strong> parcela<br />
da população Rio-Gran<strong>de</strong>nse no início da década <strong>de</strong> 1980 acerca <strong>de</strong> seus entendimentos<br />
quanto à própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, esta relacionada com a situação <strong>de</strong> fronteira e expressa por<br />
compositores <strong>nativista</strong>s através, por exemplo, da Tertúlia Musical Nativista <strong>de</strong> Santa Maria,<br />
conforme o apresentado neste estudo. A licença poética do qual o autor po<strong>de</strong> se valer não<br />
traz, no caso <strong>de</strong>sta composição, nenhum tipo <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> quanto àquilo que se <strong>de</strong>seja<br />
ser transmitido. Le<strong>de</strong>sma <strong>de</strong>ixa claro e explícito <strong>de</strong> que há uma tentativa constante <strong>de</strong> dividir<br />
o Rio-Gran<strong>de</strong>nse do p<strong>latino</strong>, e que tal concepção é, no mínimo, uma tolice. As fronteiras<br />
são consi<strong>de</strong>radas uma “ilusão”, e ele <strong>de</strong>monstra que esta ilusão é incapaz <strong>de</strong> fazer com que<br />
o “gaúcho” se separe dos seus iguais. São todos filhos <strong>de</strong> uma mesma pampa, na visão <strong>de</strong><br />
Le<strong>de</strong>sma.<br />
Ainda, o fato <strong>de</strong> o autor <strong>de</strong> elaborado esta composição para o festival <strong>de</strong> 1985,<br />
<strong>de</strong>monstra que o <strong>de</strong>bate ainda estava em aberto, que ainda se insistia na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> dividir<br />
culturalmente (já que politicamente já o estava) os habitantes <strong>de</strong>sta pampa que, por sua vez,<br />
são tão semelhantes.<br />
CONCLUSÃO<br />
Este trabalho quis <strong>de</strong>monstrar que as noções <strong>de</strong> fronteira e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do gaúcho<br />
Sul Rio-Gran<strong>de</strong>nse foram explicitadas através <strong>de</strong> músicas, principalmente com o surgimento<br />
dos Festivais <strong>de</strong> Música Nativista no RS. Neste artigo <strong>de</strong>monstrou-se que os movimentos<br />
tradicionalista e <strong>nativista</strong> rivalizaram (e ainda rivalizam) em muito <strong>de</strong>vido à concepção<br />
<strong>de</strong> gênese que cada um <strong>de</strong>stes grupos tem <strong>de</strong> si e do outro, utilizando como exemplo a<br />
Tertúlia Musical Nativista da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Maria, o 2º festival do gênero do RS. Desejouse<br />
também comprovar as potencialida<strong>de</strong>s da música como fonte e objeto <strong>de</strong> história, por<br />
carregar concepções <strong>de</strong> história, memória e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma população, que ou compõem<br />
músicas ou que as aceitam e expan<strong>de</strong>m sua difusão. Muitos <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>bates estão explicitados<br />
nos livretos dos festivais, que falam abertamente sobre estas rivalida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sentendimentos e<br />
entendimentos <strong>de</strong> origem, porém nossa proposta é observar como estas questões se alojam<br />
nas composições musicais e se popularizam.<br />
Afinal a música não admite fronteiras. Em seu cerne, são carregadas as mais diversas<br />
i<strong>de</strong>ologias, cujas barreiras que possam querer <strong>de</strong>tê-las são infimamente menores do que os<br />
domínios que envolvem sua difusão.<br />
1048
REFERÊNCIAS<br />
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Maria, RS, 2011. 2 arquivos em mp4. Entrevista concedida ao Departamento Jovem Regional da13ª Região<br />
Tradicionalista.<br />
Páginas dos livretos com as composições na íntegra.<br />
ANEXOS<br />
1050
Anexo 1<br />
1051
Anexo 2<br />
1052
Anexo 3<br />
1053
Anexo 4<br />
1054
Anexo 5<br />
1055