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1 Caindo no Ridículo
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1<br />
Cain<strong>do</strong> no Ridículo
2<br />
S I N O P S E<br />
França, reina<strong>do</strong> <strong>de</strong> Luis XVI. Um jovem nobre da província, Poncelu<strong>do</strong>n<br />
<strong>de</strong> Malavoy, assiste os camponeses <strong>de</strong> suas terras a<strong>do</strong>ecerem e<br />
até mesmo morrerem, vítimas da febre <strong>do</strong>s pântanos. Enquanto engenheiro<br />
hidrólogo, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fazer o saneamento da região <strong>de</strong> La Dombes<br />
e falar com o rei para executar este gran<strong>de</strong> projeto. Chegan<strong>do</strong> em<br />
Versalhes, logo <strong>de</strong>sanima por não conseguir ter acesso ao rei e não<br />
obtém nenhum apoio junto a seus conselheiros.<br />
Mas, ao entrar nos salões <strong>de</strong> Versalhes, Poncelu<strong>do</strong>n chama a atenção<br />
por seu humor espirituoso e por suas respostas rápidas. A partir <strong>de</strong><br />
então, todas as portas <strong>de</strong> abrem, principalmente as <strong>do</strong> Marquês <strong>de</strong><br />
Bellegar<strong>de</strong>, que o hospeda e o inicia na arte <strong>de</strong> brilhar na corte fazen<strong>do</strong><br />
jogos <strong>de</strong> palavras. Este médico também se preocupa com o futuro<br />
<strong>de</strong> sua filha Mathil<strong>de</strong>, uma jovem encanta<strong>do</strong>ra prometida a um senhor<br />
<strong>de</strong> posses.<br />
A sorte <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n em Versalhes está lançada: durante um <strong>de</strong>safio<br />
<strong>de</strong> oratória, <strong>de</strong>safia a feroz e sedutora con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac, fazen<strong>do</strong><br />
com que ela lhe <strong>de</strong>va um favor. Esta lhe abre outras portas e Poncelu<strong>do</strong>n<br />
é escolhi<strong>do</strong> entre vários cortesãos para participar <strong>de</strong> uma cerimônia<br />
oferecida pelo rei. Trata-se <strong>de</strong> outra armadilha planejada pela<br />
con<strong>de</strong>ssa: para frear sua ascensão, ela o expõe ao ridículo – <strong>de</strong>sgraça<br />
sem igual na corte - durante um jantar.<br />
Poncelu<strong>do</strong>n volta à província aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> Mathil<strong>de</strong>, com quem flertava<br />
e já havia admiti<strong>do</strong> que o amava. Mas é a Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac que<br />
o faz voltar à Versalhes: <strong>de</strong>cidida a se tornar amante <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n,<br />
ela arruma seu encontro com o rei. Brilhan<strong>do</strong> sempre mais <strong>do</strong> que<br />
<strong>de</strong>veria, o engenheiro torna-se inimigo <strong>do</strong> responsável pelas operações<br />
militares, que o <strong>de</strong>safia para um duelo. Ele sai vence<strong>do</strong>r, mas em<br />
seguida vai atrás <strong>de</strong> Mathil<strong>de</strong> ao invés da Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac. Esta<br />
lhe prepara uma humilhação ainda mais ofensiva. Ten<strong>do</strong> caí<strong>do</strong> no ridículo,<br />
Poncelu<strong>do</strong>n mantém a cabeça erguida e ridiculariza os hábitos<br />
da Corte antes <strong>de</strong> sair fazen<strong>do</strong> reverência e levan<strong>do</strong> Mathil<strong>de</strong> consigo.
O D I R E T O R<br />
Patrice Leconte, um cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> protótipos<br />
Para enten<strong>de</strong>r Patrice Leconte, é preciso antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> ler<br />
o que escreve Patrice Leconte: o cineasta <strong>de</strong>screveu seu<br />
retrato em um livro altamente recomendável intitula<strong>do</strong> “Sou<br />
um impostor”. O título é apenas uma provocação: ao longo<br />
das lembranças <strong>de</strong> uma carreira revisitada com vivacida<strong>de</strong>,<br />
pre<strong>do</strong>mina um exercício <strong>de</strong> autocrítica surpreen<strong>de</strong>nte.<br />
“Não consigo me consi<strong>de</strong>rar um cineasta importante”, escreve<br />
Leconte. Ou ainda: “Não tenho como objetivo figurar<br />
na história futura <strong>do</strong> cinema, nem que meus filmes fiquem<br />
para a posterida<strong>de</strong>.” O tom não <strong>de</strong>monstra falsa modéstia:<br />
Leconte não parece se guiar por um comprometimento<br />
com a realida<strong>de</strong>. Este comprometimento lembra outra<br />
passagem das confissões <strong>de</strong>ste “impostor”: “Quanto mais<br />
eu volte nas lembranças <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescente, só consigo distinguir<br />
o <strong>de</strong>sejo insistente <strong>de</strong> fazer cinema.” Assim <strong>de</strong>fine<br />
sua paixão categórica. O cinema <strong>de</strong> Leconte se situa, na<br />
realida<strong>de</strong>, entre os <strong>do</strong>is extremos: uma certa mo<strong>de</strong>ração,<br />
<strong>de</strong> forma sutil, é encontrada em suas obras, mas a originalida<strong>de</strong><br />
(da forma, <strong>do</strong> tom), a sensibilida<strong>de</strong> (em relação<br />
aos personagens, a seus intérpretes) e o prazer <strong>de</strong> dirigir,<br />
<strong>de</strong> encontrar o enquadramento i<strong>de</strong>al, estão presentes em<br />
seus filmes <strong>de</strong> forma evi<strong>de</strong>nte.<br />
Aquele que sonha<br />
Nasci<strong>do</strong> em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1947, Patrice Leconte integra<br />
um pequeno casulo on<strong>de</strong> viverá protegi<strong>do</strong>: a casa<br />
<strong>de</strong> sua família em Tours. Seu pai é um médico apaixona<strong>do</strong><br />
pelo cinema. Uma vida normal, quase convencional,<br />
marcada pela imaginação: o pequeno Patrice herda esta<br />
mistura singular. Des<strong>de</strong> pequeno é um artista completo<br />
<strong>de</strong>senhan<strong>do</strong>, filman<strong>do</strong>, escreven<strong>do</strong>, atuan<strong>do</strong>, sonhan<strong>do</strong><br />
sem parar. “De certa forma, vivi em um mun<strong>do</strong> parcialmente<br />
imaginário, escreve Patrice Leconte em seu livro. Sem<br />
fugir da realida<strong>de</strong>, me sinto melhor na imaginação, quer<br />
dizer, nos filmes.” Talvez venha daí o gosto pelos universos<br />
fecha<strong>do</strong>s on<strong>de</strong> ele costuma posicionar sua câmera,<br />
seja em Monsieur Hire (1989) ou em uma comédia <strong>de</strong><br />
costumes, como Meu melhor amigo (2006). Cain<strong>do</strong> no<br />
ridículo também ilustra esta tendência: “É um filme que<br />
<strong>de</strong>screve uma época, mas em um mun<strong>do</strong> totalmente <strong>de</strong>sconecta<strong>do</strong><br />
da vida cotidiana e <strong>do</strong> povo. Remi Waterhouse,<br />
o roteirista, criou este mun<strong>do</strong> à parte e me encontrei completamente<br />
em meu meio”, diz Patrice Leconte.<br />
Aquele que diverte<br />
Decepciona<strong>do</strong> com os anos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> no IDHEC, gran<strong>de</strong><br />
escola <strong>de</strong> cinema anterior a FEMIS, aquele que sempre<br />
sonhou em “fazer cinema” foi salvo por seus traços e sua<br />
inclinação para o humor: passou cinco anos na revista <strong>de</strong><br />
história em quadrinhos Pilote. Mesmo se tornan<strong>do</strong> autor<br />
<strong>de</strong> HQ, não per<strong>de</strong>u o cinema <strong>de</strong> vista, apren<strong>de</strong>u “a elipse e<br />
a rapi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> enca<strong>de</strong>amento das cenas” e dirigiu spots publicitários<br />
para a Pilote, sob direção <strong>de</strong> Marcel Gotlib, “especialista<br />
em história em quadrinhos e cinéfilo apaixona<strong>do</strong>”.<br />
Os <strong>do</strong>is assinam o roteiro da comédia excêntrica Les<br />
Vécés étaient fermés <strong>de</strong> l’intérieur (1975). Este primeiro<br />
longa-metragem dirigi<strong>do</strong> por Patrice Leconte anuncia<br />
duas gran<strong>de</strong>s marcas <strong>de</strong> sua carreira: é um filme <strong>de</strong> atores<br />
(Jean Rochefort e Coluche, um dueto <strong>de</strong> sonhos) e será<br />
um fracasso absoluto, segui<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sucesso estron<strong>do</strong>so<br />
(alternância que lhe será quase familiar). Este triunfo é<br />
o mesmo <strong>de</strong> Os bronzea<strong>do</strong>s (1978), comédia que virou<br />
cult e foi logo sucedida por Os bronzea<strong>do</strong>s vão esquiar<br />
(1979). Com Josiane Balasko, Michel Blanc, Christian Clavier<br />
e outros, Patrice Leconte encontra o humor mais inova<strong>do</strong>r<br />
da época, uma espécie <strong>de</strong> comédia que se inventa,<br />
mistura <strong>de</strong> paródia suave e sátira afiada da qual o especta<strong>do</strong>r<br />
é cúmplice. Com o apoio <strong>do</strong> produtor Christian Fech-<br />
3
4<br />
ner e com a cumplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Michel Blanc, Patrice Leconte<br />
dirige <strong>de</strong> uma vez três comédias muito populares Viens<br />
chez moi, j’habite chez une copine (1980), Ma femme<br />
s’appelle reviens (1981) e Circulez y’a rien à voir (1982).<br />
Assim torna-se conheci<strong>do</strong> como especialista <strong>do</strong> riso.<br />
Aquele que experimenta<br />
No lugar <strong>de</strong> uma comédia, Patrice Leconte aceita dirigir<br />
um filme <strong>de</strong> ação, Les Spécialistes (1984), com Gérard<br />
Lanvin et Bernard Girau<strong>de</strong>au, uma dupla musculosa. Para<br />
dar continuida<strong>de</strong> a este enorme sucesso, ele filma Tan<strong>de</strong>m<br />
(1987), produção muito mo<strong>de</strong>sta com Jean Rochefort<br />
e Gérard Jugnot interpretan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is lunáticos solitários.<br />
Des<strong>de</strong> então, Patrice Leconte ganha a fama <strong>de</strong> eclético, <strong>de</strong><br />
faz-tu<strong>do</strong>, que ele terá a satisfação <strong>de</strong> confirmar, trazen<strong>do</strong><br />
ora seu cinema obscuro (Monsieur Hire, 1989), ora tons<br />
nostálgicos e sensuais (Le mari <strong>de</strong> La coiffeuse, 1990),<br />
ora hábitos da Corte (Cain<strong>do</strong> no ridículo). A coerência<br />
<strong>de</strong>sta inspiração seria a sua diversida<strong>de</strong>. Patrice Leconte<br />
não cultiva to<strong>do</strong>s os gêneros, mas um só e sempre o<br />
mesmo: dar a um universo particular sua coerência visual,<br />
encontrar o estilo que traduzirá a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s personagens<br />
apresenta<strong>do</strong>s, inventar, em suma, o filme que combina<br />
com cada roteiro. Mesmo comédia em si ele procurou<br />
todas as diferentes combinações possíveis: (Les Grands<br />
Ducs: comédia acelerada por seus atores experientes,<br />
Tango: comédia inocente, <strong>de</strong> riso fácil). Cada filme é um<br />
protótipo, uma “máquina a ser explorada”, um mun<strong>do</strong> a<br />
parte, seja literário (Le Parfum d’Yvonne, 1994, adaptação<br />
interessante <strong>de</strong> Mondiano) ou bem popular (Une<br />
chance sur <strong>de</strong>ux, 1998). “Nunca quis me fechar em nada.<br />
Tenho atração pela liberda<strong>de</strong> presente em mim e também<br />
atração por projetos que não tenho certeza se conseguirei<br />
fazer”, diz Leconte. A propaganda é outro laboratório <strong>de</strong><br />
idéias para o cinema: a direção <strong>de</strong> algumas centenas <strong>de</strong><br />
comerciais ao longo <strong>de</strong> sua carreira lhe permitiu testar <strong>de</strong><br />
tu<strong>do</strong>: “Mesmo que as misturas explodam no seu rosto às<br />
vezes, esta é a única maneira <strong>de</strong> sempre explorar.”<br />
O artista livre<br />
Patrice Leconte cultivou o gosto pela liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
Cain<strong>do</strong> no ridículo: após ser reconheci<strong>do</strong> <strong>de</strong>finitivamente<br />
como cineasta talentoso, lhe são confia<strong>do</strong>s projetos <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> porte (A viúva <strong>de</strong> Saint-Pierre, 1999), e ao mesmo<br />
tempo se <strong>de</strong>dica a filmes mais pessoais, mais secretos<br />
(Confidências muito íntimas, 2003). Com seu novo parceiro,<br />
Daniel Auteil, ele reforça em três filmes (A mulher<br />
e o atira<strong>do</strong>r <strong>de</strong> facas, 1998; A viúva <strong>de</strong> Saint-Pierre,<br />
1999; Meu melhor amigo, 2006) a importância das figuras<br />
masculinas em seu universo cinematográfico. Esta é<br />
uma influência <strong>do</strong>s diretores que admira (Grémillon, Becker,<br />
Yves Allégret, Renoir, Gilles Grangier), cujos filmes<br />
contam essencialmente “histórias <strong>de</strong> caras.”<br />
Para sua satisfação, ele renova em 2005 com a mesma<br />
equipe e dá finalmente continuida<strong>de</strong> às aventuras em Os<br />
bronzea<strong>do</strong>s 3. Apesar <strong>de</strong> ter sempre filma<strong>do</strong> muito, (25<br />
longas-metragens em 28 anos), ele anuncia em 2006 que<br />
encerrará sua carreira <strong>de</strong> cineasta após três filmes. Des<strong>de</strong><br />
então, dirigiu um La Guerre <strong>de</strong>s Miss (2009), e se <strong>de</strong>dicou<br />
ao teatro, outro universo fecha<strong>do</strong> que ele aprecia e no qual<br />
se <strong>de</strong>staca (como ocorreu com a peça Heloïse <strong>de</strong> Patrick<br />
Cauvin). Seu novo projeto para as telas já está <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>:<br />
Patrice Leconte vai dirigir seu primeiro <strong>de</strong>senho anima<strong>do</strong>,<br />
adapta<strong>do</strong> <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Jean Teulé, Le Magasin <strong>de</strong>s suici<strong>de</strong>s.<br />
Um filme protótipo, certamente, que <strong>de</strong>monstra um<br />
<strong>de</strong>sejo ainda vivo <strong>de</strong> continuar a inventar com o cinema.
G ê N E S E D O f I l m E<br />
Um roteirista inspira<strong>do</strong><br />
O universo <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo toma forma pelas mãos<br />
<strong>de</strong> Rémi Waterhouse, que assina o roteiro e os diálogos:<br />
“Eu tinha li<strong>do</strong> as memórias da Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Boigne, on<strong>de</strong><br />
ela conta sua infância em Versalhes. (…) O ridículo podia<br />
matar, eu não inventei nada. Quan<strong>do</strong> as meninas estavam<br />
na Corte, o Duque <strong>de</strong> Guines lhes disse: ‘Os vícios não<br />
são preocupantes, já o ridículo po<strong>de</strong> matar.’ Está no livro<br />
<strong>de</strong> Boigne. Eu levei ao pé da letra. (…) Não queria que<br />
o filme se chamasse Os ridículos: o que me interessava<br />
era O ridículo, o ridículo como gás letal. (…) Por isso o<br />
filme começa com a história <strong>do</strong> Marquês <strong>de</strong> Patatras, para<br />
mostrar <strong>do</strong> que se trata. (…) Tu<strong>do</strong> isso é real, está no livro<br />
<strong>de</strong> Boigne.<br />
Rémi Waterhouse queria dirigir seu roteiro, este seria seu<br />
primeiro longa-metragem. Mas os patrocina<strong>do</strong>res hesitaram.<br />
Para conseguir montar o projeto, convidaram um<br />
diretor <strong>de</strong> renome, Patrice Leconte. Rémi Waterhouse só<br />
começará como diretor em 1999 com Je règle mon pas<br />
sur le pas <strong>de</strong> mon père, e assinará também Mille millièmes,<br />
fantaisie immobilière, em 2002.<br />
Um cineasta entusiasma<strong>do</strong><br />
A leitura <strong>do</strong> roteiro <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo entusiasmou<br />
tanto Patrice Leconte que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início ele se envolveu<br />
intensamente neste projeto, o primeiro que não participou<br />
Uma bela história<br />
como roteirista. “Li o roteiro <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo sem<br />
me dar conta que se tratava <strong>de</strong> um filme <strong>de</strong> uma época<br />
diferente da minha”, conta. “Li este roteiro como uma história<br />
com personagens, um enre<strong>do</strong>, jogos emocionais. E<br />
isto funcionava muito bem. Tu<strong>do</strong> estava bem construí<strong>do</strong>,<br />
preciso, to<strong>do</strong>s os personagens estavam perfeitamente representa<strong>do</strong>s<br />
e os diálogos alcançavam seus objetivos <strong>de</strong><br />
maneira precisa. Para retomar uma fórmula <strong>de</strong> Jean Rochefort,<br />
era uma espécie <strong>de</strong> western em Versalhes on<strong>de</strong><br />
as pistolas foram trocadas por jogos <strong>de</strong> palavras. Para mim<br />
era muito estimulante em termos <strong>de</strong> direção. Eu me encontrava<br />
diante <strong>de</strong> um universo totalmente novo, me perguntava<br />
como iria me sair, se saberia como fazer e isto tornava<br />
a aventura muito excitante.”<br />
Patrice Leconte toma as ré<strong>de</strong>as <strong>do</strong> filme, mas <strong>de</strong>ve antes<br />
executar outros projeto já programa<strong>do</strong>: Les Grands Ducs.<br />
Apenas cinco semanas separam o término da filmagem<br />
<strong>de</strong> um e o início da filmagem <strong>do</strong> outro, e os <strong>do</strong>is filmes<br />
foram lança<strong>do</strong>s com apenas alguns meses <strong>de</strong> intervalo:<br />
Les Grands Ducs, em 21 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1996 e Cain<strong>do</strong><br />
no ridículo em 09 <strong>de</strong> maio.<br />
Atores pré-escolhi<strong>do</strong>s<br />
Patrick Leconte faz pessoalmente a escalação <strong>do</strong>s atores<br />
<strong>do</strong> filme: uma prática que não necessariamente é comum<br />
a to<strong>do</strong>s os cineastas (alguns preferem aprovar ou não as<br />
sugestões que lhes são dadas), mas que ele julga essencial:<br />
“Si o diretor não faz o casting, aon<strong>de</strong> ele vai parar?<br />
Eu organizei minha orquestra aos poucos. Sabia que Jean<br />
Rochefort estava disposto a interpretar o marquês <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong>.<br />
Rapidamente, me certifiquei que Fanny Ardant<br />
concordaria em interpretar a Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac. Inicialmente<br />
pensei em Pierre Arditi para fazer o Aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vilecourt,<br />
mas <strong>de</strong>pois achei que seria uma ótima oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> reencontrar Bernard Girau<strong>de</strong>au, que eu havia dirigi<strong>do</strong><br />
em Viens chez moi j’habite chez une copine e Les Spécialistes.<br />
Não obtive nenhuma recusa. Sei que é uma sorte<br />
enorme, mas o roteiro era muito empolgante. Só <strong>de</strong>pois<br />
que juntei toda a orquestra que comecei a me perguntar<br />
quem seria o meu primeiro violino: nenhum ator me parecia<br />
uma boa escolha para interpretar Poncelu<strong>do</strong>n <strong>de</strong> Malavoy.<br />
Entrevistei muitos, fiz testes, o que é muito raro para mim.<br />
Charles Berling não era muito conheci<strong>do</strong>, apesar <strong>de</strong> já ter<br />
si<strong>do</strong> visto em Petits arrangements. Seu talento me convenceu<br />
e me agradava a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> os nobres serem interpreta<strong>do</strong>s<br />
por atores <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> renome e Poncelu<strong>do</strong>n por um<br />
novato: fazia senti<strong>do</strong> para o enre<strong>do</strong>, um jovem nobre que<br />
ninguém conhece chega em Versalhes, on<strong>de</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
tem um sobrenome.”<br />
Um filme muito bem produzi<strong>do</strong> e bem dirigi<strong>do</strong><br />
A filmagem <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo durou 11 semanas,<br />
“mais exatamente 55 dias <strong>de</strong> filmagem com um orçamento<br />
equivalente a 5,4 milhões <strong>de</strong> euros, especifica Patrice<br />
Leconte. No final, este filme que aparenta ser muito luxuoso,<br />
é quase barato compara<strong>do</strong> com os custos habituais.<br />
Há várias explicações para isso. Gosto <strong>de</strong> planejar bem<br />
os gastos, filmo relativamente rápi<strong>do</strong>, sem <strong>de</strong>sperdiçar e<br />
o filme foi muito bem produzi<strong>do</strong>.” Como não tiveram livre<br />
acesso ao Castelo <strong>de</strong> Versalhes, on<strong>de</strong> só foram filmadas<br />
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as cenas nos jardins, a equipe reinventou os interiores<br />
usan<strong>do</strong> vários castelos, encontran<strong>do</strong> um salão aqui, uma<br />
escadaria ali. Este méto<strong>do</strong> foi útil para Patrice Leconte, que<br />
quis colocar a <strong>de</strong>coração <strong>de</strong> época a serviço <strong>do</strong> filme e não<br />
o contrário: “Não queria fazer um filme <strong>de</strong> guia <strong>de</strong> museu,<br />
um filme tão comprometi<strong>do</strong> com a verda<strong>de</strong> histórica que<br />
o tornasse alienante. Filmar uma marquesa <strong>de</strong>scen<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
uma carruagem e entran<strong>do</strong> em um castelo era algo inédito<br />
para mim. Eu po<strong>de</strong>ria me esbaldar. Mas o que era novo<br />
para mim não seria para os especta<strong>do</strong>res: as pessoas estão<br />
cheias das marquesas <strong>do</strong> cinema, já conhecem isso<br />
<strong>de</strong> cor. Eu ia para filmagem repetin<strong>do</strong> para mim mesmo:<br />
‘Não estou fazen<strong>do</strong> um filme <strong>de</strong> época, estou fazen<strong>do</strong> um<br />
filme <strong>de</strong>sta época’. Inclusive, não pesquisei muito sobre<br />
o século XVIII, pois estava cerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> profissionais encarrega<strong>do</strong>s<br />
disso e confiava neles plenamente. Eu me encarregava<br />
<strong>do</strong>s personagens, das situações, da encenação.<br />
Não queria que o alarme <strong>do</strong> século XVIII me <strong>de</strong>sviasse da<br />
minha missão: fazer um bom filme.”<br />
Sem julgar a direção em si <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo, cuja<br />
qualida<strong>de</strong> é claramente perceptível, Patrice Leconte admite<br />
ter ti<strong>do</strong> um cuida<strong>do</strong> especial: “Este roteiro, dirigi<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
forma banal, já teria si<strong>do</strong> um bom filme, mas eu não podia<br />
me contentar com isso. Não tinha a intenção <strong>de</strong> encontrar<br />
boas soluções toda hora, mas tentei questionar constantemente<br />
a minha direção, para que o filme tivesse ritmo,<br />
para que tivesse estilo.”<br />
Uma carreira real<br />
O prólogo <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong> Patrice Leconte (Sou<br />
um impostor, Flammarion, 2000) inicia com uma data: “Segunda-feira,<br />
24 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1997”. Era o dia da cerimônia<br />
<strong>do</strong> Oscar <strong>de</strong>ste ano. Mesmo que Cain<strong>do</strong> no ridículo não<br />
tenha saí<strong>do</strong> vence<strong>do</strong>r (o prólogo <strong>do</strong> livro é intitula<strong>do</strong> “O<br />
trono <strong>de</strong> areia”), sua indicação ao Oscar <strong>de</strong> melhor filme<br />
estrangeiro coroava uma carreira excepcional, que contou<br />
com um gran<strong>de</strong> sucesso <strong>de</strong> público (na França e em<br />
outros países), com uma crítica mais <strong>do</strong> que entusiasta e<br />
pelo menos <strong>do</strong>is gran<strong>de</strong>s momentos. A abertura <strong>do</strong> <strong>Festival</strong><br />
<strong>de</strong> Cannes em 1996 e a cerimônia <strong>do</strong>s Césars <strong>de</strong> 1997,<br />
no qual o filme recebeu nove indicações e recebeu quatro<br />
prêmios: o César <strong>de</strong> melhor figurino (para Christian Gasc)<br />
e <strong>de</strong> melhor direção <strong>de</strong> arte (para Yvan Maussian) e os<br />
prêmios <strong>de</strong> melhor filme e melhor diretor <strong>do</strong> ano. “Nunca<br />
fiz outro filme que fosse merece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> tantos prêmios”,<br />
resume Patrice Leconte.
P E R S O N A G E N S<br />
Grégoire Poncelu<strong>do</strong>n <strong>de</strong> Malavoy<br />
O herói <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo nasceu em Versalhes por<br />
acaso, como ele explica ao Aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vilecourt, que dispara:<br />
“É um cortesão <strong>de</strong> berço!” A alfinetada é assim respondida<br />
por Poncelu<strong>do</strong>n: “É possível nascer em um estábulo e<br />
não ser um cavalo”. Versalhes, um estábulo! Esta comparação<br />
permite afastar Poncelu<strong>do</strong>n <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo ao qual ele<br />
po<strong>de</strong>ria pertencer: o <strong>do</strong> jovem nobre da província leva<strong>do</strong><br />
à Versalhes pela ambição. Poncelu<strong>do</strong>n não é fascina<strong>do</strong><br />
por Versalhes e sua única motivação é uma missão humanitária:<br />
salvar a vida <strong>do</strong>s camponeses <strong>de</strong> La Domes,<br />
conseguin<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> sanear a região <strong>do</strong>s pântanos.<br />
Mas suas armas são frágeis. Sua <strong>de</strong>terminação consiste<br />
<strong>de</strong> uma cegueira inocente. “Versalhes estava cercada <strong>de</strong><br />
pântanos podres que viraram jardins para satisfazer a vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um homem”, diz ele ao padre <strong>de</strong> La Dombes, que<br />
o corrige: “a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um rei”. Poncelu<strong>do</strong>n não enten<strong>de</strong><br />
esta diferença e, antes <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r que tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
da boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Luis XVI, recebe muitas recusas. Ao<br />
apresentar seu belo e nobre projeto nos salões <strong>de</strong> Versalhes,<br />
é ti<strong>do</strong> por um inoportuno: “Eis uma conversa bem<br />
indigesta”, reclama o barão <strong>de</strong> Malenval, que prefere evocar<br />
o humor inglês, “Que conversa lamacenta bem no meu<br />
salão!”, queixa-se a Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac em outra cena.<br />
É a ela que Poncelu<strong>do</strong>n se apresenta em sua chegada,<br />
com um trunfo que vai, como pensa, lhe abrir as portas:<br />
uma carta <strong>de</strong> indicação <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Blayac. “Seu mari<strong>do</strong><br />
era um gran<strong>de</strong> amigo <strong>de</strong> meu pai”, explica à con<strong>de</strong>ssa, que<br />
respon<strong>de</strong> com um sorriso irônico: “<strong>do</strong> meu também”. Rapidamente<br />
exposto ao ridículo, o provinciano <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma<br />
missão ilustre cai no lugar comum: ele aumenta a multidão<br />
<strong>do</strong>s pedintes. Por sorte, seu humor o <strong>de</strong>staca <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais:<br />
no reino <strong>do</strong>s bajula<strong>do</strong>res e <strong>de</strong>bocha<strong>do</strong>s, sua eloquência<br />
será, como ele <strong>de</strong>scobre, sua melhor arma. Ele entra no<br />
jogo, se satisfaz em brilhar ao distribuir alfinetadas, exerce<br />
seus talentos <strong>de</strong> Don Juan com a Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac e<br />
As chaves <strong>de</strong> Versailles<br />
consegue finalmente ser percebi<strong>do</strong> pelo rei. Mas ao se relacionar<br />
com Mathil<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong>, este engenheiro hidrógrafo<br />
<strong>de</strong>monstra que ainda está preso a outros valores,<br />
a outras ambições. Passan<strong>do</strong> das fazendas humil<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
la Dombes aos ricos salões, é o personagem que une os<br />
universos opostos, mas é também um homem com conflitos<br />
internos, com dilemas morais: leva<strong>do</strong> a encarnar ao<br />
mesmo tempo a Corte e a sua crítica, ele reúne to<strong>do</strong>s os<br />
mecanismos <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo.<br />
O marquês <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong><br />
Este velho marquês coberto <strong>de</strong> dívidas (como sua filha<br />
Mathil<strong>de</strong> nos revela) conheceu a fun<strong>do</strong> a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Versalhes: ele aconselha Poncelu<strong>do</strong>n a fugir <strong>do</strong> teatro <strong>do</strong>s<br />
cortesãos, cujo espetáculo lhe assusta. Mas, diante da<br />
insistência <strong>do</strong> provinciano em forçar as portas <strong>do</strong> castelo,<br />
ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ser seu mentor e, por assim dizer, seu treina<strong>do</strong>r.<br />
Explican<strong>do</strong> como classificar os jogos <strong>de</strong> palavras<br />
em diferentes categorias, Bellegar<strong>de</strong> lembra que a mania<br />
<strong>do</strong>s insultos disfarça<strong>do</strong>s que assolou a Corte remonta a<br />
um conhecimento literário nobre. Seus conselhos salvam<br />
7
8<br />
Poncelu<strong>do</strong>n da primeira armadilha que encontra ao apresentar<br />
com serieda<strong>de</strong> o seu projeto <strong>de</strong> saneamento: “Os<br />
assuntos sérios são <strong>de</strong>sagradáveis e <strong>de</strong>vem ser bani<strong>do</strong>s.<br />
Formule tiradas espirituosas, finas, rápidas e assim sua<br />
cida<strong>de</strong> será curada das <strong>do</strong>enças”, diz o Marquês. Ele respeita<br />
as leis <strong>de</strong> Versalhes por interesse: é o homem <strong>do</strong>s<br />
compromissos, contente em casar sua filha com um velho<br />
contanto que seja rico. No entanto, não é um homem <strong>do</strong><br />
comprometimento: seu entusiasmo, sua postura <strong>de</strong>monstram<br />
uma preocupação constante em não se <strong>de</strong>ixar rebaixar.<br />
Ele se caracteriza como um especta<strong>do</strong>r: prezan<strong>do</strong><br />
ou <strong>de</strong>sprezan<strong>do</strong> o espetáculo da Corte, sempre mantém<br />
a distância, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> Poncelu<strong>do</strong>n se expor à gloria ou à<br />
<strong>de</strong>sgraça. Além <strong>de</strong> especta<strong>do</strong>r em Cain<strong>do</strong> no ridículo,<br />
o marquês também é nosso guia, especta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> filme.<br />
Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac<br />
Ela entra no filme usan<strong>do</strong> seu vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> luto como um<br />
traje <strong>de</strong> rainha: imagem soberba que logo <strong>de</strong>monstra seu<br />
po<strong>de</strong>r sedutor e obscuro e também sua imoralida<strong>de</strong>. Em<br />
seguida aparece em uma partida <strong>de</strong> <strong>do</strong>minó em um salão:<br />
a con<strong>de</strong>ssa é uma joga<strong>do</strong>ra. É também uma trapaceira,<br />
como ficamos saben<strong>do</strong> na cena <strong>do</strong> <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> rimas. Ela<br />
possui, em suma, to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>feitos necessários para conquistar<br />
seu lugar no universo impie<strong>do</strong>so <strong>de</strong> Versalhes e<br />
para mantê-lo. Observa<strong>do</strong> Poncelu<strong>do</strong>n cortejá-la, após ter<br />
obti<strong>do</strong> graças a ela seu título <strong>de</strong> nobreza, ela mostra a<br />
vantagem que possui em relação a ele neste tipo <strong>de</strong> jogo:<br />
“Talvez em outras circunstâncias eu ficasse lisonjeada com<br />
suas <strong>do</strong>ces palavras e esta não seria a primeira vez que o<br />
meu quarto leva aos salões <strong>do</strong> rei”. É preciso mais para<br />
que ela se emocione, como po<strong>de</strong>mos ver no jantar on<strong>de</strong><br />
ela mostra que não guar<strong>do</strong>u suas garras e serve a Poncelu<strong>do</strong>n<br />
um “cozi<strong>do</strong> ridículo”, fazen<strong>do</strong> com que ele aban<strong>do</strong>ne<br />
a mesa e Versalhes. Isso será repeti<strong>do</strong>, <strong>de</strong> outra forma,<br />
na última cena <strong>do</strong> filme, para se vingar <strong>do</strong>s sentimentos<br />
que o engenheiro reserva a Mathil<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong>. Estas<br />
<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong> também são confissões <strong>de</strong><br />
amor. Mas, formada e <strong>de</strong>formada pelas leis <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à<br />
moda <strong>de</strong> Versalhes, a con<strong>de</strong>ssa só conta com essa linguagem<br />
para expressar mesmo os sentimentos mais sinceros,<br />
mais tenros. Este aspecto caracteriza a beleza trágica<br />
<strong>de</strong> sua personagem e <strong>do</strong> último plano em que ela aparece.<br />
Mathil<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong><br />
Dedicada às experiências científicas na casa <strong>do</strong> seu pai,<br />
ela sempre parece estar à parte, em segun<strong>do</strong> plano, no<br />
entanto ocupa um papel <strong>de</strong>cisivo. O único personagem<br />
que não participa <strong>do</strong>s jogos da Corte (só aparece nela<br />
para mostrar sua in<strong>de</strong>pendência e romper o acor<strong>do</strong> com<br />
monsieur <strong>de</strong> Montalieri), Mathil<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong> é a única<br />
a expressar seu ponto <strong>de</strong> vista extremamente crítico<br />
e a situar Poncelu<strong>do</strong>n: “Você está no caminho erra<strong>do</strong>. Os<br />
salões <strong>de</strong> Versalhes não po<strong>de</strong>m salvar crianças, pois uma<br />
árvore podre não po<strong>de</strong> dar bons frutos”. Oposta em tu<strong>do</strong><br />
à Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac, até se tornar sua rival sem parecer<br />
gostar <strong>de</strong>sta situação, elas têm em comum o fato <strong>de</strong> não<br />
po<strong>de</strong>r expressar seus sentimentos. Eles não se escon<strong>de</strong>m,<br />
em seu caso, com cinismo, mas com a racionalização<br />
científica: “É o fogo vital que percorre seus nervos que<br />
fazem com que você se sinta atraí<strong>do</strong> por mim”, analisa ao<br />
receber as carícias <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n. Prova que esta jovem<br />
racional, criada na <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> Iluminismo, po<strong>de</strong>, assim<br />
como to<strong>do</strong>s os personagens, se expor ao ridículo.<br />
Aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vilecourt<br />
Poncelu<strong>do</strong>n teme ter como inimigo este “aba<strong>de</strong> perverso”.<br />
“É uma cobra, diz Bellegar<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong> se cala, hipnotiza.<br />
Quan<strong>do</strong> fala, já é tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais.” Vilecourt é a encarnação<br />
<strong>do</strong> mal em Versalhes: usa a língua como veneno. Não se<br />
abala por cometer sacrilégios, aposta nos da<strong>do</strong>s os segre<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> Clero e se joga no leito da Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac.<br />
Será afeta<strong>do</strong> pelo ridículo por meio da graça divina: ele<br />
revelará sua fragilida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong>sta guilhotina viva que<br />
usa as palavras como lâmina.
O primor antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong><br />
A flui<strong>de</strong>z e a elegância caracterizam a narração <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong><br />
no ridículo, ca<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> por um ritmo ágil: tu<strong>do</strong> se enca<strong>de</strong>ia<br />
e até o final, dança-se mesmo corren<strong>do</strong> o risco <strong>de</strong><br />
cair. As boas maneiras e os tropeços se misturam, quase<br />
se confun<strong>de</strong>m: como Milletail avisan<strong>do</strong> à serviçal que “em<br />
sua euforia, o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Blayac se distraiu”, enquanto na<br />
verda<strong>de</strong> ele o matou com o que po<strong>de</strong> se chamar <strong>de</strong> um<br />
assassinato ao pu<strong>do</strong>r. A narração avança à medida que<br />
as falas se fun<strong>de</strong>m: gradativamente. Esta impressão <strong>de</strong><br />
rapi<strong>de</strong>z é acentuada pela mudança <strong>de</strong> cenários, que po<strong>de</strong>m<br />
duplicar sem fim uma situação que, na verda<strong>de</strong>, é<br />
completamente linear.<br />
Por exemplo, a apresentação da personagem Mathil<strong>de</strong>,<br />
construída em quatro tempos entrelaça<strong>do</strong>s. Trata-se <strong>de</strong><br />
um recurso conheci<strong>do</strong> <strong>de</strong> narração cinematográfica que<br />
Patrice Leconte utiliza com frequencia: assim como a Con<strong>de</strong>ssa<br />
<strong>de</strong> Blayac e o aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vilecourt, cuja menor discussão<br />
mais séria causa um transtorno enorme, o especta<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo tem o privilégio <strong>de</strong> apreciar<br />
apenas o primor. Por trás <strong>de</strong> uma aparência <strong>de</strong> facilida<strong>de</strong>,<br />
a narração requer uma construção <strong>de</strong>talhada.<br />
Um duelo constante<br />
Os <strong>do</strong>is gran<strong>de</strong>s temas <strong>do</strong> filme são mostra<strong>do</strong>s logo <strong>de</strong><br />
início. Primeiramente, o po<strong>de</strong>r louco da linguagem, das palavras<br />
certas que dão o direito <strong>de</strong> existir e executar: tu<strong>do</strong><br />
é dito na primeira sequência, que é uma espécie <strong>de</strong> aviso<br />
ao especta<strong>do</strong>r. O filme inicia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> com a apresentação<br />
<strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n: o saneamento <strong>do</strong> pântano<br />
<strong>de</strong> La Dombes, que não requer apenas o profissionalismo<br />
<strong>de</strong>ste engenheiro hidrólogo, mas também sua lealda<strong>de</strong>.<br />
Sua viagem à Versalhes é também um comprometimento<br />
moral feito junto a uma criança para quem o rei da França<br />
Ardis e ardilosos<br />
D R A m A T U R G I A<br />
é o próprio <strong>de</strong>us: to<strong>do</strong> po<strong>de</strong>roso e misericordioso. Mas <strong>de</strong>pois<br />
disto, estamos (novamente) diante da blasfêmia: em<br />
seu velório, o moribun<strong>do</strong> que pereceu com um jato <strong>de</strong> urina<br />
morre novamente com as palavras venenosas. A oposição<br />
é clara entre as pessoas da Corte e Poncelu<strong>do</strong>n: os primeiros<br />
<strong>de</strong>senvolveram a arte da linguagem para fazerem<br />
<strong>de</strong>la uma arma imoral, o segun<strong>do</strong> possui um espírito nobre<br />
e também retidão, algo que dificilmente encontramos<br />
juntos, como nota o Marquês <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong>. To<strong>do</strong> o filme,<br />
a partir <strong>de</strong> então, vira um duelo e a cena <strong>do</strong> <strong>de</strong>safio <strong>de</strong><br />
rimas é apenas uma <strong>de</strong>monstração clara: presenciamos o<br />
confronto <strong>de</strong> eloquentes trapaceiros e um nobre cheio <strong>de</strong><br />
retórica, <strong>de</strong> honestida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> elegância. Para que ocorra<br />
um verda<strong>de</strong>iro duelo ou um confronto orna<strong>do</strong> <strong>de</strong> máscaras,<br />
é preciso saber se a moral <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n e sua honra<br />
serão solúveis ou não pela moral <strong>de</strong> Versalhes. Somente<br />
o texto explicativo no final será capaz <strong>de</strong> nos esclarecer:<br />
“A primeira tentativa <strong>de</strong> saneamento <strong>de</strong> la Dombes foi feita<br />
em 1793 pela Convenção, por iniciativa <strong>do</strong> cidadão Grégoire<br />
Poncelu<strong>do</strong>n, engenheiro hidrólogo <strong>de</strong> caráter civil”.<br />
Jogos <strong>de</strong> amor e po<strong>de</strong>r<br />
Intriga principal <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo, a nobre missão <strong>de</strong><br />
Poncelu<strong>do</strong>n sofre os tropismos da Corte e <strong>de</strong>ve se adaptar,<br />
se reformular: “Sanear la Dombes” vira “Ver o rei” e ser<br />
visto. E assim passa-se para o la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s intriguistas, <strong>do</strong>s<br />
golpes que vão se multiplicar como a trapaça no <strong>de</strong>safio<br />
<strong>de</strong> rimas, as armadilhas no jantar ou no baile, a emboscada<br />
ao pé da cama (contra Poncelu<strong>do</strong>n) ou nos jardins <strong>de</strong><br />
Versalhes (a seu favor). Um teatro <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r que é ilustra<strong>do</strong><br />
pelos os olhos <strong>do</strong> rei escondi<strong>do</strong>s atrás <strong>de</strong> um quadro e que<br />
se alimenta <strong>do</strong>s beijos no salão, <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s <strong>de</strong> alcova.<br />
De to<strong>do</strong>s estes jogos, elucubra<strong>do</strong>s por ambiciosos, a Morte,<br />
bastante real, <strong>de</strong>strói a vaida<strong>de</strong> terrível e o discurso<br />
<strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n ressoa como um alerta. Ao mesmo tempo<br />
toda Versalhes <strong>de</strong>saparece, seu ouro e falsos valores são<br />
leva<strong>do</strong>s pela História, como um chapéu ao vento.<br />
9
10<br />
Com Rémi Waterhouse<br />
Em Cain<strong>do</strong> no ridículo, Patrice Leconte levou pela primeira<br />
vez às telas um roteiro no qual ele não havia trabalha<strong>do</strong>,<br />
nem mesmo como colabora<strong>do</strong>r. Mas ao dirigir o que Rémi<br />
Waterhouse havia escrito, Patrice Leconte assinou um<br />
filme pessoal, que lhe valeu um reconhecimento pessoal<br />
enorme. Devemos nos perguntar o que permitiu um sucesso<br />
como este: entre a pena <strong>de</strong> Rémi Waterhouse e o olhar<br />
<strong>de</strong> Leconte, a compatibilida<strong>de</strong>, como em um transplante<br />
<strong>de</strong> um órgão, consiste <strong>de</strong> aspectos específicos.<br />
Primeiramente há o gosto por filmes que dão vida, simultaneamente,<br />
a vários personagens: Patrice Leconte o expressa<br />
em seu livro <strong>de</strong> memórias, ao mencionar sua admiração<br />
por Robert Altman (mestre <strong>do</strong> gênero) e como o<br />
universo <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo lhe traz um <strong>material</strong> i<strong>de</strong>al<br />
para esse tipo <strong>de</strong> exercício. O roteiro lhe permite também,<br />
através <strong>de</strong> seus vários personagens, tirar proveito <strong>de</strong> seu<br />
talento <strong>de</strong> cineasta retratista e <strong>de</strong> diretor <strong>de</strong> atores. Outro<br />
elemento <strong>de</strong>terminante: a relação <strong>do</strong> roteiro com a História.<br />
“O filme <strong>de</strong> passa em 1788. Não precisava ser 1789<br />
menos 1. (…) Poncelu<strong>do</strong>n é um reformista, um humanista,<br />
mas não queria fazer <strong>de</strong>le um porta-estandarte <strong>de</strong> uma<br />
revolução que ele não sabia que estava por vir. Apenas<br />
Mathil<strong>de</strong>, como ela diz, vê que a árvore está podre”, explica<br />
Rémi Waterhouse. Esta abordagem é muito conveniente<br />
a Patrice Leconte, que explica não gostar <strong>de</strong> abordar um<br />
filme <strong>de</strong> forma temática, preferin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ter-se mais em personagens<br />
<strong>do</strong> que em um discurso. O roteiro <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no<br />
ridículo lhe permite mais <strong>do</strong> que uma guia para a leitura<br />
histórica: uma relação <strong>de</strong> estreitamento com as figuras <strong>de</strong><br />
época.<br />
De forma ainda mais <strong>de</strong>cisiva, o tom geral <strong>do</strong> universo <strong>de</strong><br />
Cain<strong>do</strong> no ridículo vai <strong>de</strong> encontro ao espírito <strong>do</strong> cineasta.<br />
No mesmo livro <strong>de</strong> memórias, Patrice Leconte conta<br />
a bela aventura <strong>do</strong> filme Os bronzea<strong>do</strong>s (1978) com a<br />
trupe <strong>de</strong> teatro Splendid, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> o que ele po<strong>de</strong>ria<br />
acrescentar a estes atores/autores cômicos: “Antes <strong>de</strong><br />
tu<strong>do</strong>, algo que é um traço constante da minha natureza e<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os meus filmes, eliminar toda a vulgarida<strong>de</strong>”. Ele<br />
Um excelente cenário<br />
E N C E N A Ç Ã O<br />
trabalha em seguida no roteiro, com três integrantes <strong>do</strong><br />
Splendid, <strong>do</strong> filme seguinte, Os bronzea<strong>do</strong>s vão esquiar<br />
(1979): a princípio era uma “roteiro extremamente cruel<br />
(…) Nós estávamos cobertos <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong> e isso nos<br />
agradava.” Notemos aqui duas inclinações fortes: elegância<br />
<strong>de</strong> uma la<strong>do</strong> e impertinência <strong>do</strong> outro.<br />
Atração pelo tempero, repulsa pelo humor cru: o roteiro<br />
<strong>de</strong> Rémi Waterhouse é um perfeito exemplo <strong>de</strong>sta receita.<br />
Simultaneamente excessivo e mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, esta temporada<br />
na Corte <strong>de</strong> Luis XVI tem como objetivo misturar bons mo<strong>do</strong>s<br />
e grosserias, graça e cruelda<strong>de</strong>. Assim como Leconte.<br />
Um filme além da época<br />
Para se apropriar <strong>do</strong> universo <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo, Patrice<br />
Leconte o rejeitou em parte: aí entra a sua <strong>de</strong>cisão<br />
<strong>de</strong> não fazer uma reconstituição histórica e nem um filme<br />
<strong>de</strong> época.<br />
Esta escolha justifica as opções feitas na direção, principalmente<br />
nas primeiras cenas <strong>do</strong> filme, pois faz questão<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar claro logo <strong>de</strong> início, apesar <strong>do</strong> pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> século XVIII, a diferença <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo. Já na<br />
sequência <strong>de</strong> abertura surge o pênis <strong>do</strong> Cavaleiro <strong>de</strong> Milletail.<br />
A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar o órgão, que seria fácil <strong>de</strong> omitir,<br />
não é gratuita, como explica Patrice Leconte: “Rémi Waterhouse<br />
começava o roteiro com esta cena. Pensei que<br />
<strong>de</strong>veria ser um pouco provocante logo <strong>de</strong> início para pren<strong>de</strong>r<br />
os especta<strong>do</strong>res: entramos no filme com alguns planos<br />
simples, <strong>de</strong>pois há o jogo <strong>de</strong> luz e sombra para dar uma<br />
idéia <strong>de</strong> perigo, e logo aparece, em primeiro plano, o sexo<br />
<strong>de</strong> um homem. É um pequeno eletro choque: indica que<br />
não se <strong>de</strong>ve esperar um filme <strong>de</strong> época como os outros.”
Nas cenas <strong>de</strong> apresentação que suce<strong>de</strong>m a abertura,<br />
Patrice Leconte se apóia nos diálogos para contrariar as<br />
convenções <strong>de</strong> um filme <strong>de</strong> época. No momento em que<br />
sai <strong>de</strong> la Dombes enfureci<strong>do</strong>, Poncelu<strong>do</strong>n se ajoelha diante<br />
<strong>do</strong> padre que, prestes a dar a bênção <strong>de</strong>scobre que<br />
ele ainda está com seu chapéu <strong>de</strong> três pontas, exclama:<br />
“Você não tira o chapéu!” Pouco <strong>de</strong>pois, quan<strong>do</strong> o Marquês<br />
<strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong> encontra o Cavaleiro <strong>de</strong> Milletail diante<br />
<strong>do</strong> cadáver <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Blayac, ele se veste e propõe:<br />
“Vamos jantar? Preferia estar diante <strong>de</strong> uma ave.” Estas falas<br />
não são usadas para ilustrar o jogo <strong>de</strong> palavras cria<strong>do</strong>s<br />
na Corte: elas surgem, simplesmente, em tom <strong>de</strong> comédia.<br />
A comédia irreverente que Patrice Leconte aprecia. E<br />
as palavras, aqui, têm como função tirar <strong>do</strong> filme <strong>de</strong> época<br />
o que po<strong>de</strong> parecer engoma<strong>do</strong>.<br />
O temperamento <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo se impõe rapidamente:<br />
enérgico, quase bruto (como o andar <strong>do</strong> cavaleiro<br />
<strong>de</strong> Milletail e da serviçal, no primeiro plano), estiloso sem<br />
ser afeta<strong>do</strong>. Dentre as escolhas <strong>de</strong> direção para instaurar<br />
este clima, é preciso <strong>de</strong>stacar o movimento fugaz da<br />
câmera que acompanha Poncelu<strong>do</strong>n em sua cavalgada<br />
até Versalhes. A vivacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste plano contrasta com a<br />
tradição mais contemplativa <strong>do</strong>s filmes <strong>de</strong> época. Patrice<br />
Leconte conta como escolheu esta abordagem: “Hesitei<br />
em como mostrar o trajeto <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n até Versalhes.<br />
Normalmente mostraríamos muitas paisagens da França<br />
para <strong>de</strong>ixar claro que é uma longa viagem, que Poncelu<strong>do</strong>n<br />
pára, <strong>de</strong>pois continua. Convenci-me que já havíamos<br />
visto isso muitas vezes. Decidi transformar este trajeto em<br />
um plano único, gran<strong>de</strong> o suficiente para que a música<br />
cresça, intenso o suficiente para que reflitamos sobre esta<br />
viagem para Versalhes, que não é uma viagem <strong>de</strong> lazer.<br />
Pesquisei se era viável seguir o cavalo <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n <strong>de</strong><br />
um helicóptero que voaria a 50 centímetros <strong>do</strong> chão. E era<br />
possível. Quis passar a sensação que a câmera estava voan<strong>do</strong><br />
atrás <strong>do</strong> cavalo e não havia outro meio <strong>de</strong> fazer isso<br />
sem ser com o helicóptero.”<br />
Patrice Leconte se recusa a repetir os clichês <strong>do</strong>s filmes<br />
<strong>de</strong> época e se <strong>de</strong>ter nos figurinos. Ele não questiona seu<br />
charme (sensível a isso, o figurinista, Christian Gasc, recebeu<br />
um César por suas criações), mas se contenta em<br />
usá-los como quaisquer roupas. Neste aspecto, ele se<br />
aproxima <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n que, pouco preocupa<strong>do</strong> com as<br />
afetações da Corte, chega a Versalhes com sapatos gastos<br />
e só permite ser vesti<strong>do</strong> pelo Signore Panella (interpreta<strong>do</strong><br />
pelo próprio Christian Gasc), o alfaiate italiano da<br />
Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Blayac, na esperança <strong>de</strong> levar a cabo seu<br />
plano <strong>de</strong> ser atendi<strong>do</strong> pelo rei. No momento <strong>de</strong>, possivelmente,<br />
<strong>de</strong>spedir-se da vida antes <strong>do</strong> duelo, ele escreverá<br />
à Con<strong>de</strong>ssa: “Se eu morrer, entregue minha capa e minha<br />
espada à minha mãe, dê o resto para os pobres, exceto<br />
as roupas da corte, que ridicularizariam ainda mais sua<br />
miséria.” Duas cenas são exceções. A <strong>do</strong> baile <strong>de</strong> máscaras<br />
<strong>do</strong> final, on<strong>de</strong> os figurinos representam o po<strong>de</strong>r, neste<br />
caso como fantasias, revelan<strong>do</strong> as hipocrisias da Corte. E<br />
na que Mathil<strong>de</strong>, conversan<strong>do</strong> com Poncelu<strong>do</strong>n, usa seu<br />
vesti<strong>do</strong> para colher pólen: o contato <strong>do</strong> forro com as flores<br />
antecipa o momento em que Poncelu<strong>do</strong>n colocará a mão<br />
na perna <strong>de</strong> Mathil<strong>de</strong>. Há um belo enca<strong>de</strong>amento, no qual<br />
o figurino vira a linguagem da sensualida<strong>de</strong>.<br />
11
12<br />
No espírito <strong>do</strong> século XVIII<br />
Cain<strong>do</strong> no ridículo se passa às vésperas<br />
da Revolução francesa e fornece<br />
um amplo painel <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s que<br />
reflete, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da linguagem,<br />
a mentalida<strong>de</strong> e o comportamento<br />
<strong>do</strong> Século das Luzes, mesmo<br />
que já no final.<br />
A linguagem e os jogos <strong>de</strong> palavra<br />
“Classifico to<strong>do</strong>s os jogos <strong>de</strong> palavras<br />
neste ca<strong>de</strong>rno”, diz Bellegar<strong>de</strong>.<br />
E quan<strong>do</strong> o rei <strong>de</strong>sce uma escadaria<br />
externa <strong>do</strong> castelo, um cortesão lhe<br />
acalma confirman<strong>do</strong>: “Não, majesta<strong>de</strong>,<br />
isto é um jogo <strong>de</strong> palavras” . Pois,<br />
como Bellegar<strong>de</strong> preveniu: “Nunca<br />
faça trocadilhos, eles são <strong>de</strong>spreza<strong>do</strong>s<br />
em Versalhes, ‘trocadilho é estreitar<br />
a mente”. Então, Poncelu<strong>do</strong>n<br />
respon<strong>de</strong>: “Votaire, meu livro <strong>de</strong> cabeceira”.<br />
Certamente não surgiu no<br />
século XVIII a arte <strong>de</strong> cultivar a linguagem.<br />
Des<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong> se usa<br />
o jogo <strong>de</strong> palavras para efeito cômico<br />
e também com o intuito <strong>de</strong> alfinetar<br />
alguém.<br />
Este artifício será encontra<strong>do</strong> <strong>de</strong>zoito<br />
séculos mais tar<strong>de</strong> em Voltaire, rei da<br />
epigrama e símbolo <strong>do</strong> espírito sofistica<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s Iluministas. O erro seria<br />
dissociar esta prática – mesmo se ao<br />
longo <strong>do</strong>s séculos a linguagem seria<br />
uma das facetas da Corte, <strong>de</strong>sconectada<br />
da realida<strong>de</strong>, como mostra o filme<br />
– <strong>do</strong> Iluminismo que, partin<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
um fun<strong>do</strong> comum <strong>de</strong> questionamentos<br />
filosóficos, afeta concretamente a<br />
literatura, a ciência, as artes, o contexto<br />
político (que acabou levan<strong>do</strong> à<br />
Revolução).<br />
Na arte da linguagem, o que marca<br />
a conversa <strong>do</strong> século XVIII, em inúmeros<br />
salões e clubes que brotam<br />
na corte à exaustão, é a instauração<br />
<strong>do</strong> uso intenso <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong> palavras<br />
inerente a um comportamento específico:<br />
o escárnio.<br />
O turbilhão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias<br />
“Vocês invejam a essência questiona<strong>do</strong>ra<br />
<strong>de</strong> Voltaire. O gran<strong>de</strong> homem<br />
teria chora<strong>do</strong>, pois ele era <strong>de</strong> um ridiculamente<br />
sensível à malda<strong>de</strong> humana”,<br />
diz Poncelu<strong>do</strong>n em Cain<strong>do</strong><br />
no ridículo após ser ridiculariza<strong>do</strong>.<br />
Sabe-se <strong>de</strong> fato que Voltaire (1694-<br />
1778) sempre tomou parti<strong>do</strong> contra<br />
a intolerância e a injustiça. Seus<br />
contos filosóficos como Cândi<strong>do</strong>,<br />
seu engajamento nos erros judiciais<br />
no caso Calas, sua colaboração na<br />
Enciclopédia, fazem <strong>de</strong>le um personagem<br />
central <strong>do</strong> século. Persona<br />
non grata na Corte, on<strong>de</strong> chegou a<br />
dizer a sua amiga Madame du Châtelet<br />
que per<strong>de</strong>u to<strong>do</strong> seu dinheiro nos<br />
jogos: “Você joga com trapaceiros”,<br />
ele freqüentava o Café Procope, <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> surgiram Fontenelle e Di<strong>de</strong>rot.<br />
Aí, como antes nos salões frequenta<strong>do</strong>s<br />
pelos enciclopedistas, as i<strong>de</strong>ias<br />
avançam.<br />
O século das luzes – cujas premissas<br />
têm como raízes tanto o espírito<br />
florentino da corte <strong>do</strong>s Médicis bem<br />
como Rabelais, Montaigne e Spinoza<br />
– se revela como um to<strong>do</strong> em movimento,<br />
que <strong>de</strong>nuncia o mun<strong>do</strong> antigo.<br />
A eclosão <strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iro espírito<br />
crítico filosófico vai romper os i<strong>de</strong>ais<br />
sobre o po<strong>de</strong>r político e sobre a soberania<br />
religiosa e abre as perspectivas<br />
para outra socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direito.<br />
O espírito científico<br />
A fé no progresso científico se situa<br />
na fé na razão, que é o cre<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Iluministas.<br />
“É preciso examinar tu<strong>do</strong>,<br />
fuçar tu<strong>do</strong>, sem exceções”, escreveu<br />
Alembert no Discurso Preliminar à<br />
Enciclopédia, cuja aparição ocorreu<br />
<strong>de</strong> 1751 a 1772. O reino da revelação<br />
acabou, <strong>de</strong>u lugar à observação e aos<br />
experimentos críticos, ao empirismo,<br />
à reflexão. Em Cain<strong>do</strong> no ridículo, o<br />
discurso <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n correspon<strong>de</strong><br />
ao espírito novo. O Marquês <strong>de</strong><br />
Bellegar<strong>de</strong> não é um médico comum,<br />
mas mo<strong>de</strong>rno que instalou em casa<br />
um laboratório on<strong>de</strong> faz experimentos.<br />
Sua filha Mathil<strong>de</strong> também é<br />
fruto <strong>de</strong> seu tempo. Ela nasceu no<br />
ano em que “Rousseau lançou Émile”,<br />
(como diz Bellegar<strong>de</strong>), logo em<br />
1762, e o marquês a criou para que<br />
fosse livre para fazer suas escolhas,<br />
sem dúvida influencia<strong>do</strong> pela leitura<br />
da filosofia. A jovem chega a usar um<br />
“traje hidrostratégico”, com o qual faz<br />
testes com Poncelu<strong>do</strong>n. Esta palavra<br />
é um <strong>do</strong>s vários neologismos <strong>do</strong> século<br />
XVIII que não vingou. Em outro<br />
momento <strong>de</strong> Cain<strong>do</strong> no ridículo, assistimos<br />
o resulta<strong>do</strong> das pesquisas<br />
<strong>do</strong> Aba<strong>de</strong> l’Epée (1712-1789) sobre<br />
a linguagem <strong>de</strong> sinais, através <strong>de</strong><br />
uma <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> jovens sur<strong>do</strong>s-mu<strong>do</strong>s<br />
que, por ironia <strong>do</strong> filme,<br />
literalmente cala a platéia rui<strong>do</strong>sa (e<br />
consequentemente ridícula) composta<br />
<strong>de</strong> cortesãos <strong>de</strong>bocha<strong>do</strong>s.<br />
P A S S A R E l A S
Título original<br />
Produção<br />
Produtores<br />
Direção<br />
Roteiro e diálogos<br />
Diretor <strong>de</strong> fotografia<br />
Engenheiro <strong>de</strong> som<br />
Edição<br />
Música<br />
Figurino<br />
Direção <strong>de</strong> Arte<br />
Elenco<br />
País<br />
Filme<br />
Formato<br />
Duração<br />
Distribui<strong>do</strong>r<br />
Lançamento na França<br />
Lançamento nos EUA<br />
Prêmios (1997)<br />
C R é D I T O S<br />
Ridicule<br />
Epithète Films, Cinéa, France 3 Cinéma, Le Studio Canal +, CNC<br />
Philippe Carcassonne, Frédéric Brillion<br />
Patrice Leconte<br />
Rémi Waterhouse, com colaboração <strong>de</strong> Michel Fessler e Eric Vicaut<br />
Thierry Arbogast<br />
Paul Lainé<br />
Joëlle Hache<br />
Antoine Duhamel<br />
Christian Gasc<br />
Ivan Maussion<br />
Barão Grégoire Poncelu<strong>do</strong>n <strong>de</strong> Malavoy (Charles Berling)<br />
Marquês Louis <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong> (Jean Rochefort)<br />
Madame <strong>de</strong> Blayac (Fanny Ardant)<br />
Mathil<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong> (Judith Godrèche)<br />
Aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vilecourt (Bernard Girau<strong>de</strong>au)<br />
Monsieur <strong>de</strong> Montalieri (Bernard Dhéran)<br />
Cavaleiro <strong>de</strong> Milletail (Carlo Brandt)<br />
Aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> l’Épée (Jacques Mathou)<br />
Luis XVI (Urbain Cancelier)<br />
Barão <strong>de</strong> Guéret (Albert Delpy)<br />
França<br />
Cores<br />
2.35, Cinémascope<br />
1h 42’<br />
Polygram Film International<br />
09 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1996<br />
22 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1996<br />
Melhor filme estrangeiro (British Aca<strong>de</strong>my of Film and Television Arts)<br />
Melhor filme francês (Césars du <strong>Cinema</strong> Français)<br />
Melhor filme (Les Lumières)<br />
Melhor filme estrangeiro (National Board of Review)<br />
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S U G E S T Ã O D E T R A B A l H O<br />
DRAmATURGIA<br />
PASSARElAS<br />
Máscaras e flui<strong>de</strong>z<br />
• Atente para o número <strong>de</strong> mudanças <strong>de</strong> cenários, <strong>de</strong> cenas e relacione com a lógica e a<br />
linearida<strong>de</strong> da narração.<br />
• Procure cenas que passam <strong>de</strong> um lugar a outro sem interromper o diálogo. Defina a<br />
noção <strong>de</strong> “flui<strong>de</strong>z” na narração.<br />
• Detalhe as informações passadas nas primeiras sequências e mostre como elas<br />
constituem um <strong>do</strong>s fios condutores da narração: a traição da linguagem sincera e justa<br />
pelas palavras corretas e vazias da corte em oposição à retidão <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n apesar <strong>de</strong><br />
sua habilida<strong>de</strong> em usar as palavras.<br />
• Como se transforma o projeto inicial e sincero <strong>de</strong> Poncelu<strong>do</strong>n?<br />
“O século das luzes”<br />
• Cain<strong>do</strong> no ridículo não é mostra<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>cumentário ou filme pedagógico, mas<br />
oferece um plano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> século das luzes, on<strong>de</strong>, entre outras coisas, a linguagem<br />
<strong>de</strong>sempenha um papel fundamental. Procure as diversas formas <strong>de</strong> linguagem e jogos <strong>de</strong><br />
palavras evoca<strong>do</strong>s no filme. Estes ainda são usa<strong>do</strong>s até hoje?<br />
• É possível estabelecer uma relação com certas práticas <strong>de</strong> linguagem nos dias <strong>de</strong> hoje?<br />
• Porque o filme faz referência ao Aba<strong>de</strong> l’Épée e à linguagem <strong>de</strong> sinais?<br />
• Este é o tempo das invenções técnicas. Procure aquelas que são mencionadas no filme.<br />
• Os novos i<strong>de</strong>ais efervescem no tempo <strong>do</strong> Iluminismo: aponte os que são evoca<strong>do</strong>s<br />
verbalmente ou pelo comportamento <strong>do</strong>s personagens. Explique a importância da razão<br />
para este momento histórico.<br />
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PERSONAGENS<br />
Retratos<br />
• Patrice Leconte pratica a arte <strong>do</strong> retrato, típico da literatura <strong>de</strong>sta época. I<strong>de</strong>ntifique<br />
alguns retratos que se <strong>de</strong>stacam no filme: retrato <strong>do</strong> tipo pictórico, comportamentos,<br />
discursos ou o olhar a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelos outros.<br />
• Faça o retrato literário <strong>de</strong> alguns <strong>do</strong>s personagens (começan<strong>do</strong> por Poncelu<strong>do</strong>n). Distinga<br />
os retratos autênticos das caricaturas.<br />
• Defina as relações entre Poncelu<strong>do</strong>n e Bellegar<strong>de</strong>. Semelhanças, diferenças, o que cada<br />
um busca na relação com o outro.<br />
• Qual a função <strong>de</strong> Bellegar<strong>de</strong> na narração e na estrutura <strong>do</strong> filme?<br />
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