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Apesar de não buscar a “explicação órfica da terra”, ele buscava sim uma síntese<br />
(aberta) do seu universo pessoal, uma polifonia da série de vozes que, para ele,<br />
davam conta do seu “estar no mundo” (não é a toa que “repertório” é um nome<br />
utilizado com freqüência por Hélio para batizar alguns de seus textos). Essa busca,<br />
porém, era feita através dos prazeres do dia, das descobertas de “comportamento–<br />
fenômeno” e não a partir da suspensão plena desses. O Livro de Mallarmé, caso<br />
fosse escrito, demandaria do escritor a pura e total fruição de uma linguagem cujo<br />
poeta só estaria apto a captar em seu total – e sagrado – contato com a linguagem da<br />
natureza. Enquanto Mallarmé gerava um livro da ausência (onde nem o autor, nem o<br />
leitor, teriam um lugar para reivindicar), Oiticica gerava um livro do excesso. Para o<br />
escritor que cria a partir da ausência, faltam-lhe forças, falta-lhe tempo, falta-lhe a<br />
própria presença (excessiva em demasia) do autor. Para o que escreve a partir do<br />
excesso, sobra-lhe idéias, sobram-lhe caminhos, sobram-lhe circunstâncias, sobram-<br />
lhe vozes.<br />
É claro que um livro a partir da ausência é pleno de excessos e vice-versa,<br />
não há uma rigidez binária nessa colocação. O que vale demarcar como diferença<br />
nesse caso é o tratamento dado pelos autores à sua missão: Mallarmé queria instaurar<br />
o silêncio pleno das palavras, fazer delas sutis vibrações de seus sentidos, em uma<br />
melodia única, definindo um espaço eterno de fruição do poético. Oiticica, por sua<br />
vez, queria instaurar a propagação das falas, o fim dos silêncios, a expansão das<br />
vozes, em um espaço plural e interdisciplinar. Quem vibrava era o corpo, não a<br />
palavra. Em uma época plena de silêncios forçados por torturas de Estado e<br />
repressões sociais, pelo auto-exílio em um espaço como Manhattan, não seria<br />
Oiticica que buscaria o silêncio mallarmaico através da linguagem da natureza. A<br />
linguagem agora, em Babylon, eram as muitas línguas da rua, dos Stones, de Dylan,<br />
da prima, dos porto-riquenhos, das peças do Living Theather. Havia informação<br />
demais para almejar uma poética cujo papel incondicional do autor é a sua morte em<br />
favor da linguagem plena. Hélio estava vivo e seu livro era a testemunha dessa vida.<br />
Sua escrita, muitas vezes, era o fruto desse joy.<br />
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