resenha crítica do livro Mal Comportadas Línguas - Universidade ...
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Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 301-307, Curitiba, mar. 2002<br />
Camillo Ferronato<br />
<strong>Mal</strong>comportadas crônicas<br />
Resenha <strong>crítica</strong> <strong>do</strong> <strong>livro</strong> <strong>Mal</strong> <strong>Comportadas</strong> <strong>Línguas</strong><br />
Camillo Ferronato (Doutor)<br />
Mestra<strong>do</strong> em Comunicações e Linguagens - <strong>Universidade</strong> Tuiuti <strong>do</strong> Paraná<br />
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<strong>Mal</strong>comportadas crônicas<br />
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 301-307 Curitiba, mar. 2002
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 301-307, Curitiba, mar. 2002<br />
Camillo Ferronato<br />
No dia 27 de outubro de 2000, o professor da<br />
UNICAMP Sírio Possenti esteve em Curitiba para lançar<br />
mais um <strong>livro</strong> seu, dessa feita por Criar Edições.<br />
Deu-lhe o original nome de <strong>Mal</strong> <strong>Comportadas</strong> <strong>Línguas</strong>.<br />
Após receber dele dedicatória numa das páginas iniciais,<br />
resolvi debruçar-me sobre as 39 crônicas e devorálas<br />
com meus olhos. Descobri que se trata de uma<br />
leitura para quem gosta <strong>do</strong> gênero cômico ou satírico.<br />
Para quem quer se aprazer com algo leve. Na verdade,<br />
são pitadas <strong>do</strong> dia-a-dia. Por isso, poderíamos<br />
classificá-las como crônicas (<strong>do</strong> grego ‘chronos’ = tempo);<br />
mas elas se mesclam com ane<strong>do</strong>tas, tanto no senti<strong>do</strong><br />
etimológico de ineditismo, quanto no senti<strong>do</strong> de humorístico,<br />
com o fito de levar à graça, à piada. Desses 39 textos<br />
não há um que não contenha um espaçozinho para o<br />
cômico, ou para a ironia, ou para o sarcasmo. Ele<br />
consegue transformar argila em figura eloqüente com<br />
motivos os mais banais.<br />
A tessitura dessas crônicas revela um escritor que<br />
sói dar amplas asas a sua verve satírica em tu<strong>do</strong> o que<br />
escreve. Em suas concorridas e até disputadas confe-<br />
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<strong>Mal</strong>comportadas crônicas<br />
rências, esse pen<strong>do</strong>r se manifesta ainda com maior intensidade,<br />
como se possui<strong>do</strong>r e possuí<strong>do</strong> fossem uma<br />
só realidade. A própria foto ridente na contracapa <strong>do</strong><br />
<strong>livro</strong> é um detalhe da psique desse autor, que parece se<br />
esconder atrás da cortina <strong>do</strong> palco para ver o circo<br />
pegar fogo. Não poderia ser de outra forma.<br />
Em toda a obra, Sírio destila seu veneno. Em Saber<br />
escrever, saber ler (pág. 12), começa com estas palavras,<br />
como quem não quer nada: Até gosto <strong>do</strong>s textos de<br />
Josué Macha<strong>do</strong>, antigo guardião da língua portuguesa da revista<br />
Imprensa. Esse até logo de entrada – como opera<strong>do</strong>r<br />
argumentativo - e guardião são pimenta na língua <strong>do</strong><br />
autor. Diz que prefere um escritor que tem humor a<br />
um que não tem, mesmo que às vezes seja grosso. Mas logo<br />
chega às raias <strong>do</strong> paroxismo ao desferir este petar<strong>do</strong><br />
contra professorinhas <strong>do</strong> Ensino Fundamental: depois<br />
dizem que as crianças é que têm limitações intelectuais (p.13).<br />
Já no texto Chuteiras e Gramáticas (pág. 24), em vez<br />
de dizer que o dita<strong>do</strong> latino - que eu cito no original -<br />
Ne sutor ultra crepidam (‘Não vá o sapateiro além de<br />
suas sandálias’) caiu no esquecimento, ele brinca dizen<strong>do</strong><br />
que caiu em desgraça (pág. 24). É uma forma de dizer<br />
que profissionais de diversas áreas metem o bedelho<br />
onde não devem para falar <strong>do</strong> que não entendem.<br />
Sírio tece sua constelação de crônicas (ainda que<br />
elas não estejam inter-relacionadas) como autor onisciente,<br />
na primeira pessoa <strong>do</strong> singular, fato que confe-<br />
re um caráter muito pessoal a seu estilo. Assim, encontramos<br />
perpassan<strong>do</strong> as crônicas: Acho, pensei, estou dan<strong>do</strong><br />
atenção, anotei, li por aí, não quero discutir, já escrevi, acabei<br />
ven<strong>do</strong>, recebi consulta e por aí vai. Seu estilo é, portanto,<br />
bem personalista, bem eu vi, eu sei, eu tenho as rédeas, o<br />
coman<strong>do</strong>, embora ele tenha momentos de altruísmo também,<br />
levan<strong>do</strong> em consideração o que outros pensam<br />
ou ensinam, como em Consulta (pág. 123): Pela pergunta,<br />
vê-se que não se trata de fornecer regras para corrigir eventuais<br />
problemas de padrão. Trata-se de entender um da<strong>do</strong> que<br />
ocorre regularmente, mas que parece oferecer alguma dificuldade<br />
de análise. Não sei se pode resolver o problema,... Ousaria até<br />
dizer que, nesse trecho, Sírio age de forma meiga, diante<br />
de seu habitual estilo ferino; certamente, foi um<br />
momento de fera em repouso. Não é o que acontece, por<br />
exemplo, no texto da pág. 15, em que ironiza<br />
acerbamente o Prof. Pasquale. Sem medir as palavras,<br />
esclarece e bota ponto final em tom peremptório. Por<br />
vezes, o tom de sarcasmo fica latente, dan<strong>do</strong> margem<br />
a mais interpretações. (Faz parte <strong>do</strong> jogo?) É o que se<br />
nota na última frase da página 17: Mas, pensan<strong>do</strong> bem,<br />
aveia, no caso, até seria uma boa idéia... Será que eu extrapolei<br />
com meus botões, já que aveia é uma planta herbácea<br />
que também se dá aos quadrúpedes?!! Como ler de<br />
outra forma as entrelinhas de Sírio?<br />
Possenti faz graça e ironia brincan<strong>do</strong> com as palavras,<br />
qual se dá em Ser Beócio (pág. 18). Falan<strong>do</strong> de<br />
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FHC, diz: Ele não é beócio em nenhum senti<strong>do</strong> – aliás, nem<br />
capadócio, nem espartano. E vai manipulan<strong>do</strong> as palavras a<br />
seu talante. Na página 34, diz que <strong>Mal</strong>uf foi pródigo (... com<br />
o chapéu alheio). É tanta a necessidade de gozação, que chega<br />
a tirar fruto de auto-ironia: Freqüentemente, os bobos<br />
somos nós (pág. 19). Compara FHC ao Conselheiro Acácio<br />
(pág. 19), dizen<strong>do</strong> que é sociólogo de cartaz, sabe usar garfo e<br />
faca corretamente etc. (ibidem). Vale-se de um artigo de<br />
Tostão (pág. 25) para registrar um conceito lingüístico,<br />
segun<strong>do</strong> o qual nem sempre cada palavra corresponde<br />
a uma coisa, tiradas as frases da gramática que servem de<br />
exemplos escolares. Vai aqui uma <strong>crítica</strong> pouco velada aos<br />
gramáticos.<br />
Intitulei esta <strong>resenha</strong> <strong>crítica</strong> de <strong>Mal</strong>comportadas Crônicas,<br />
primeiro, para retomar a meu mo<strong>do</strong> o título; depois,<br />
pelo fato de elas se comportarem como crianças<br />
travessas e malcriadas, fazen<strong>do</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> rir pelo<br />
la<strong>do</strong> avesso da história; por último, porque o autor brinca<br />
também com o leitor, fazen<strong>do</strong>-o correr ao dicionário<br />
para se certificar da grafia correta das palavras, como a<br />
que fica em evidência no próprio título (registro as formas<br />
dicionarizadas): malcomportadas (conforme Michaelis,<br />
Aurélio, Houaiss). Teria ele feito isso intencionalmente?...<br />
Parece que ele tem birra em relação ao uso <strong>do</strong> hífen,<br />
como se pode depreender de bem-sucedi<strong>do</strong> e lugares-comuns<br />
(pág. 25), má-fé (86), mal-acaba<strong>do</strong>s (88), pronto-socorro<br />
(111), palavras registradas sem hífen.<br />
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 301-307, Curitiba, mar. 2002<br />
Camillo Ferronato<br />
Certamente houve cochilo de revisão na página<br />
25, onde se lê: ... independentemente <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> que têm (sic)<br />
cada uma das palavras da expressão. Tenho certeza de que<br />
o Prof. Possenti não escreveria assim, mesmo porque<br />
o verbo vem antes <strong>do</strong> sujeito cada uma, o que força a<br />
concordância no singular. Falo com segurança: o autor<br />
em análise respeita regras gramaticais, pois constantemente<br />
se refere a elas, nomean<strong>do</strong>-as, ainda que<br />
combata as que lhe parecem coisa sem senti<strong>do</strong>. São<br />
princípios gerais que temos que respeitar, quan<strong>do</strong> há<br />
justificativas plausíveis, para o próprio bem da língua.<br />
Mas, se há erros no decorrer <strong>do</strong> <strong>livro</strong>, é de bom senso<br />
indicá-los. É possível que o autor nem tenha percebi<strong>do</strong><br />
(De vez em quan<strong>do</strong> também cochila um bom Homero, lembra<br />
o dita<strong>do</strong> latino) ou tenha confia<strong>do</strong> no serviço de<br />
revisão. Há também situações que indicam anterioridade<br />
na correlação de tempos, como acontece na<br />
página 34: Declarou que fora...; mas, logo adiante: ...indigna<br />
de um grupo ao qual ele pertenceu. Como ele usa o maisque-perfeito<br />
fora, seria de esperar pertencera, que é ação<br />
anterior a declarou.<br />
Há o caso da página 29, em que Possenti pinta e<br />
borda – e com razão - em cima de uma construção<br />
inadmissível na norma culta, fruto da oralidade, ocorrida<br />
como acidente em jornal de renome. Eis a frase:<br />
Fez ele perder. Depois, até admite que ela acabe se consagran<strong>do</strong>,<br />
como corolário <strong>do</strong> inconsciente coletivo. A<br />
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<strong>Mal</strong>comportadas crônicas<br />
propósito de oralidade, percebe-se que o autor vai<br />
deixan<strong>do</strong> seu texto fluir, nem sempre preocupa<strong>do</strong> com<br />
a precisão gramatical. Assim, na página 87, pode-se<br />
ler: “Gostaria ∅<br />
que o problema fosse meu, mas desconfio<br />
que não seja”. Seria de esperar a preposição<br />
DE em ambos os conjuntos vazios. Na página 23,<br />
questões de raciocínio e gramática são ignoradas ao<br />
usar uma oração subordinada independentemente da<br />
sua principal: “Que (sic) esse não é um ‘problema’ de<br />
línguas faladas por povos considera<strong>do</strong>s inferiores.” Na<br />
página 81, atropela a regência <strong>do</strong> verbo lembrar-se:<br />
“Lembro de <strong>crítica</strong> feroz contra...” (por: Lembro-me<br />
de <strong>crítica</strong> feroz contra... Ou: Lembro <strong>crítica</strong> feroz contra...)<br />
A presença de expressões populares empresta a<br />
seus textos uma graça especial, como nas passagens:<br />
Tostão “...deu umas bicadas em psicanálise” (pág. 24);<br />
“A Globo dança feio, como sempre dançou...” (pág.<br />
88); “Outra mancada” (ibidem); “Levan<strong>do</strong> no bico”<br />
(pág. 92); “A idéia [...] continua vivinha da silva” (pág.<br />
94). Poderíamos dizer: o autor é mesmo um abusa<strong>do</strong>.<br />
Sírio tem frases curtas, lapidares, às vezes nominais,<br />
algumas só entendíveis no contexto: “... a escola<br />
gosta de enxugar gelo” (pág. 28); “Na verdade, condenaram-se.<br />
Ou, pelo menos, confessaram. O Ministro<br />
da Educação, por exemplo” (pág. 35); “O jovem,<br />
por exemplo” (81); “Coisa que, aliás, to<strong>do</strong>s fazemos”<br />
(120). Mas também se dá a perío<strong>do</strong>s longos e com-<br />
plexos, que exigem leitura acurada: “É evidente que<br />
crianças que mal podem comprar comida e em cujas<br />
casas a dedicação a alguma atividade de tipo intelectual<br />
é no mínimo precária só podem ter desempenho<br />
medíocre em provas que avaliam exatamente o que<br />
elas não têm” (pág. 54).<br />
O vocabulário em <strong>Mal</strong> <strong>Comportadas</strong> <strong>Línguas</strong> aproxima,<br />
com freqüência, o autor da oralidade, o que o<br />
torna certamente mais leve e mais próximo <strong>do</strong> dia-adia,<br />
conseqüentemente, sem o rigor gramatical. Assim:<br />
“Mas, quan<strong>do</strong> se trata da língua viva, a coisa não<br />
é tão fácil como parece e pode se complicar ainda<br />
mais se se leva em conta o processo de mudança”<br />
(pág. 64). Temos coisa (palavra polivalente no uso popular)<br />
e leva, por levar, que comprovam isso. Mais: “Às<br />
vezes, você discorda <strong>do</strong> que alguém escreveu ou disse.<br />
Pode ouvir, como resposta, que você não entendeu<br />
direito” (58). O você também pode ser marca de<br />
oralidade. Nem por isso se pode descurar de uma<br />
revisão acurada; como justificar a redundância em: “...<br />
pequenas questiúnculas gramaticais”? (pág. 55). Com a<br />
formação latina que tem, ele esqueceu que questiúncula<br />
já significa pequena questão, não me parecen<strong>do</strong> que a<br />
diacronia tenha afeta<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> original. É bem verdade<br />
que o Prof. Possenti reza em outra cartilha, o que<br />
ele deixa entrever no texto Uma Redação (p.114), onde<br />
diz: Meus leitores sabem que penso que não basta escrever corre-<br />
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 301-307 Curitiba, mar. 2002
tamente, e que os chama<strong>do</strong>s erros se explicam muito bem. E que<br />
acho que deveríamos ser menos conserva<strong>do</strong>res no que se refere à<br />
língua. Quero mostrar que não adianta escrever corretamente,<br />
se isso não servir para nada. A propósito, na página 69 –<br />
Gafes – ele levanta exatamente questões gramaticais,<br />
quan<strong>do</strong> faz o recorte de uma fala de novela, cujo final<br />
era assim: ...está enfrentan<strong>do</strong> o Wal<strong>do</strong>miro de frente. E dispara:<br />
Ainda bem que era de frente, porque por trás não dá. E,<br />
se os diretores e roteiristas não apurarem os ouvi<strong>do</strong>s, daqui a<br />
pouco vão falar ‘subir pra cima’, descer pra baixo.<br />
Outra característica <strong>do</strong> autor é o abuso <strong>do</strong> recurso<br />
parentético: ... que não entendem que o dinheiro <strong>do</strong> Proer é <strong>do</strong>s<br />
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 301-307, Curitiba, mar. 2002<br />
Camillo Ferronato<br />
bancos e não <strong>do</strong> tesouro (explica de novo, etc), que ele não queria<br />
ser reeleito (pensa que somos bobos) (p. 58); ... já não agüentam<br />
mais os deslizes nos textos da novela das oito (mas ela assiste?)”<br />
(p. 71); Mas a pergunta incômoda volta (repito):... (118); Em<br />
primeiro lugar, é óbvio que se trata de um pedi<strong>do</strong> (ou de uma<br />
ordem) mais ou menos informal (123).<br />
Críticas à parte, o <strong>livro</strong> analisa<strong>do</strong> é de uma leitura<br />
muito leve e agradável. Quase não se percebe o tempo<br />
passar. Pode-se também ler uma crônica hoje, outra,<br />
amanhã, já que não existe uma relação seqüencial<br />
entre os episódios relata<strong>do</strong>s. Avaliação: altamente recomendável<br />
como lazer.<br />
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