O vale da estranheza, notas sobre o realismo das criaturas - ReCiL
O vale da estranheza, notas sobre o realismo das criaturas - ReCiL
O vale da estranheza, notas sobre o realismo das criaturas - ReCiL
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
ARTECH 2008, 4th International Conference on Digital Arts, 7- 8 November, Portuguese Catholic University, Porto<br />
Afirma Rehak: ìSe a fase do espelho inicia uma<br />
quebra/separaÁ„o para a vi<strong>da</strong> inteira entre o eu-enquantoobservador<br />
e o eu-enquanto-observado, e o videojogo<br />
explora esta estrutura, ent„o em certo sentido nÛs j·<br />
existimos numa relaÁ„o de avatares perante nÛs prÛpriosî<br />
(Rehak, 2003: 123).<br />
Neste contexto, considera-se que a nossa experiÍncia do<br />
mundo j· encerra em si uma capaci<strong>da</strong>de para nos<br />
transformar simultaneamente em espectadores e<br />
participantes, numa constante tens„o entre uma ilus„o de<br />
uni<strong>da</strong>de do ìeuî, que a nossa consciÍncia pretende<br />
fornecer, e a multiplici<strong>da</strong>de fragmenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> nossa<br />
percepÁ„o. O ìoutroî que vimos reflectido no espelho È j·<br />
um nosso avatar e os jogos s„o apenas extensıes deste<br />
ìoutroî que o espelho nos ofereceu logo no primeiro ano de<br />
vi<strong>da</strong>. O que est· em causa e aparece reflectido no espelho<br />
n„o È o todo coerente <strong>da</strong> nossa identi<strong>da</strong>de mas a falta de<br />
coerÍncia e uni<strong>da</strong>de desta identi<strong>da</strong>de. Assim: ìos<br />
videojogos parecem oferecer o potencial para uma profun<strong>da</strong><br />
redefiniÁ„o do corpo, <strong>da</strong> mente e do espÌritoî (Rehak, 2003:<br />
123). Existe um contÌnuo entre o jogador e o mundo do<br />
jogo: ìNÛs vemos atravÈs dos olhos do monitor o que o<br />
corpo pode sentir e registar. (...) uma prÛtese imagin·ria<br />
que liga o corpo do jogador ao mundo <strong>da</strong> ficÁ„o,<br />
enfatizando um contÌnuo entre o mundo deste e o mundo do<br />
jogoî (Lahti, 2003: 161). As histÛrias presentes nos<br />
videojogos s„o histÛrias para os olhos, para os ouvidos e<br />
para os m˙sculos. Estas histÛrias tÍm a capaci<strong>da</strong>de de<br />
enquadrar a nossa experiÍncia organizando percepÁıes,<br />
emoÁıes, cogniÁıes e acÁıes motoras (pecma). Neste<br />
contexto, n„o podem ser entendi<strong>da</strong>s atravÈs dos modelos<br />
estruturalistas franceses que dominaram a teoria <strong>da</strong><br />
narrativa pois n„o se preocupam com a implementaÁ„o <strong>da</strong><br />
narrativa no cÈrebro e n„o tÍm em consideraÁ„o a relaÁ„o<br />
interna entre percepÁ„o, emoÁ„o e acÁ„o nas estruturas<br />
narrativas (Gro<strong>da</strong>l, 2003).<br />
A experiÍncia proprioceptiva, experiÍncia sensorialafectiva-motora,<br />
permite uma passagem <strong>da</strong> posiÁ„o<br />
passiva ‡ posiÁ„o activa em relaÁ„o aos outros e isso<br />
caracteriza-nos enquanto seres humanos. A quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
primeiras interacÁıes entre o bebÈ e o seu meio ambiente<br />
alimentam uma impress„o geral que confirma a ideia de<br />
universo coerente, ‡ semelhanÁa <strong>da</strong>quilo que se sente em<br />
termos cinestÈsicos. Neste contexto, È necess·ria uma<br />
experiÍncia corporal que confirme a ligaÁ„o do ser com o<br />
mundo. Esta experiÍncia È faculta<strong>da</strong> por via <strong>da</strong><br />
propriocepÁ„o, que permite a aquisiÁ„o <strong>da</strong> certeza de que<br />
somos autores dos nossos prÛprios actos e que atravÈs <strong>da</strong>s<br />
nossas m„os, como prolongamentos naturais do desejo,<br />
realizamos os nossos movimentos. A ìnarraÁ„o sensorialî<br />
remete-nos para as histÛrias ou rÈcitas que o ser humano<br />
Page 153<br />
conta a si mesmo de acordo com as situaÁıes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com<br />
as quais È confrontado. Nestas situaÁıes, a necessi<strong>da</strong>de de<br />
coerÍncia È vital e a ca<strong>da</strong> momento temos necessi<strong>da</strong>de de<br />
um princÌpio, um meio e um fim em que È a repetiÁ„o, esse<br />
ìagir novamenteî, que permite a experiÍncia de ensaio e<br />
erro que possibilita a construÁ„o de um mundo coerente<br />
(Stora, 2003: 53-66).<br />
A coerÍncia proprioceptiva, termo usado pela<br />
fenomenologia que se refere ‡ forma como a fronteira do<br />
nosso corpo È combina<strong>da</strong> com loops de feddback e usos<br />
habituais, È o que possibilita ao jogador de tÈnis sentir a<br />
raqueta como uma extens„o do seu corpo, È o sentido que<br />
nos diz onde est· a fronteira deste. Neste contexto, o<br />
jogador de jogos digitais, sente uma relaÁ„o de<br />
continui<strong>da</strong>de com o teclado, com a superfÌcie do ecr„<br />
como um espaÁo no qual a sua subjectivi<strong>da</strong>de pode fluir<br />
(Hayles, 2001). A enorme diferenÁa entre a forma como a<br />
coerÍncia proprioceptiva trabalha no ecr„ de computador<br />
quando compara<strong>da</strong> com a p·gina impressa È uma <strong>da</strong>s<br />
razıes porque a espaciali<strong>da</strong>de È t„o importante na escrita<br />
topogr·fica presente nas ficÁıes electrÛnicas. A integraÁ„o<br />
corporal e psicolÛgica È evidente:<br />
ìO cÈrebro e o corpo encontram-se<br />
indissociavelmente integrados por circuitos<br />
bioquÌmicos e neurais reciprocamente dirigidos de<br />
um para o outro. (Ö) a corrente sanguÌnea; ela<br />
transporta sinais quÌmicos, como as hormonas, os<br />
neurotransmissores e os neuromoduladores 3 . (Ö) o<br />
cÈrebro pode actuar, atravÈs dos nervos, em to<strong>da</strong>s<br />
as partes do corpo. Os agentes dessas acÁıes s„o o<br />
sistema nervoso autÛnomo (ou visceral) e o sistema<br />
nervoso m˙sculo-esquelÈtico (ou volunt·rio)î<br />
(Dam·sio, 1994: 97).<br />
O real envolve partilha e um sentido de repetiÁ„o em que a<br />
ìpalavra representaÁ„o n„o se refere ao significado exacto<br />
do acto, pelo menos na acepÁ„o e conotaÁıes modernas;<br />
ìrepresentaÁ„oî È de facto identificaÁ„o, a repetiÁ„o<br />
mÌstica ou re-representaÁ„o do evento. O rito produz o<br />
efeito que n„o È tanto mostrar figurativamente ou<br />
reproduzir atravÈs <strong>da</strong> acÁ„o. A funÁ„o do rito est· longe de<br />
ser meramente imitativa; promove uma participaÁ„o no<br />
prÛprio happening sagradoî (Huizinga, 1950; 15). O real<br />
re-apresenta e compreende algo de partilhado. Os termos<br />
repetiÁ„o, partilha, proximi<strong>da</strong>de, inefabili<strong>da</strong>de s„o<br />
pensamentos e palavras recorrentes <strong>da</strong>s narrativas digitais.<br />
3 ìOs neurÛnios moduladores distribuem neurotransmissores<br />
(tais como a dopamina, norepinefrina, serotonina e acetilcolina)<br />
por regiıes vastas do cÛrtex cerebral e n˙cleos subcorticaisî<br />
(Dam·sio, 1994: 120).