O vale da estranheza, notas sobre o realismo das criaturas - ReCiL
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Álvaro Barbosa (Editor)<br />
ARTECH 2008<br />
Proceedings of the 4 th International<br />
Conference on Digital Arts<br />
Research Center for Science and Technology of the Arts (CITAR)<br />
School of Arts, Portuguese Catholic University (EA, UCP)<br />
November 7-8, 2008, Porto, Portugal<br />
Rua Diogo Botelho 1327, 4169-005 Porto, Portugal | tel: +351 226196200 | fax: +351 226196291 | http://artes.ucp.pt/
ARTECH 2008, 4th International Conference on Digital Arts, 7- 8 November, Portuguese Catholic University, Porto<br />
O <strong>vale</strong> <strong>da</strong> <strong>estranheza</strong>, <strong>notas</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>realismo</strong> <strong>da</strong>s <strong>criaturas</strong><br />
ìvivasî nos jogos digitais e a sua relaÁ„o com o jogador<br />
Filipe Luz, Jo„o Abrantes, Manuel Dam·sio e PatrÌcia Gouveia<br />
LaboratÛrio de AnimaÁ„o Digital e Biomec‚nica do Movimento Humano (MOVLAB), Lisboa,<br />
Portugal. Universi<strong>da</strong>de LusÛfona de Humani<strong>da</strong>des e Tecnologias.<br />
Artigo desenvolvido no ‚mbito do projecto de investigaÁ„o PTDC/CCI/74114/2006 (INFOMEDIA ñ Information Acquisition in New<br />
Media) financiado pela Fun<strong>da</strong>Á„o <strong>da</strong> CiÍncia e <strong>da</strong> Tecnologia.<br />
Abstract ó Neste artigo argumenta-se que as simulaÁıes<br />
numÈricas fomentam e exploram relaÁıes complexas entre o<br />
jogador e o sistema cibernÈtico <strong>da</strong> m·quina que com este se<br />
relaciona atravÈs <strong>da</strong> jogabili<strong>da</strong>de, ou seja, <strong>da</strong> real aplicaÁ„o ‡s<br />
regras de jogo de t·cticas e estratÈgias usa<strong>da</strong>s pelo<br />
participante durante o seu trajecto na aplicaÁ„o l˙dica.<br />
Considera-se que o espaÁo m·gico imposto pelo tabuleiro de<br />
jogo È mais do que um espaÁo de confus„o entre real e<br />
artificial mas antes se apresenta como uma cortina ou<br />
interface entre o corpo prÛprio do participante e a simulaÁ„o<br />
digital inerente ao sistema computacional.<br />
Index Terms ó Gameplay, digital games, realism, action,<br />
embodiment.<br />
I. INTRODU« O<br />
Quando estamos em modo ficÁ„o, num brinquedo para<br />
m˙ltiplos participantes como o Second Life, n„o ficamos<br />
baralhados em matÈria sensorial, n„o sentimos a areia <strong>da</strong><br />
praia nem o vento. O nosso corpo est· ìdo lado de c·î <strong>da</strong><br />
janela a sofrer dores nas costas e a persistÍncia retiniana<br />
<strong>da</strong>s imagens em movimento. O jogador regular pode<br />
apresentar tendinites, problemas de m˙sculos e de pele<br />
(Gunther, 2005). Considerar que estamos ìdo outro lado<br />
do espelhoî È renegar a import‚ncia <strong>da</strong> experiÍncia<br />
corporal do jogador e assumir que a experiÍncia corporal<br />
do avatar È o factor mais importante a ter em consideraÁ„o.<br />
Discor<strong>da</strong>mos com algumas entusiastas leituras <strong>da</strong><br />
cibercultura contempor‚nea que advogam a possibili<strong>da</strong>de<br />
de descartar o corpo em experiÍncias desincorpora<strong>da</strong>s e<br />
ìsem carneî. Para alguns autores a relaÁ„o real/virtual nos<br />
jogos digitais È uma relaÁ„o de imers„o e per<strong>da</strong> de<br />
referentes (Ryan, 2001; Castronova, 2005; Meadows,<br />
2008), para outros, este mergulho imersivo È bastante<br />
ineficiente para explicar a relaÁ„o que os jogadores tÍm<br />
com a ficÁ„o com que se deparam (Galloway, 2006; Juul,<br />
2005; Salen & Zimmerman, 2004; Gro<strong>da</strong>l 2003) atravÈs<br />
<strong>da</strong> jogabili<strong>da</strong>de. A experiÍncia imersiva È uma experiÍncia<br />
cinem·tica que muito pouco tem a ver com o movimento<br />
inerente ‡ acÁ„o e reacÁ„o presente nos jogos digitais. O<br />
<strong>realismo</strong> no jogo relaciona-se com a capaci<strong>da</strong>de que o<br />
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mecanismo tem de responder ‡s acÁıes que o jogador<br />
processa no tabuleiro numÈrico. Assim, considera-se que<br />
apenas uma an·lise que tenha em consideraÁ„o a<br />
experiÍncia corporal e espacial do jogador no sistema de<br />
jogo pode ser eficiente na interpretaÁ„o <strong>da</strong>s simulaÁıes<br />
analÛgicas e experienciais. A relaÁ„o humano-m·quina<br />
implica a construÁ„o de representaÁıes esquem·ticas e<br />
simplifica<strong>da</strong>s dos nossos corpos (avatares) mas n„o nos<br />
oferece ain<strong>da</strong> uma passagem para outras dimensıes. As<br />
ficÁıes l˙dicas n„o nos permitem fugir ‡ nossa reali<strong>da</strong>de<br />
de ìcarne e ossoî. Neste contexto, argumenta-se que a<br />
simulaÁ„o È uma representaÁ„o de um sistema fonte<br />
atravÈs de um sistema menos complexo que formata a<br />
compreens„o do jogador acerca do sistema fonte de forma<br />
subjectiva. Nenhuma simulaÁ„o escapa ao contexto<br />
ideolÛgico e a forma sintÈtica (sÌntese) que esta apresenta<br />
est· imersa pela subjectivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiÍncia. Os<br />
videojogos requerem uma interpretaÁ„o crÌtica que faÁa a<br />
moderaÁ„o entre a nossa experiÍncia <strong>da</strong> simulaÁ„o e o<br />
conjunto de valores coerentes e expressivos, respostas ou<br />
entendimentos, que constituem os efeitos do trabalho<br />
(Bogost, 2006). Assim, considera-se que explorar a<br />
manifestaÁ„o <strong>da</strong>s regras de jogo na experiÍncia do jogador<br />
È talvez o mais importante tipo de trabalho que a crÌtica<br />
<strong>sobre</strong> jogos pode fazer. O engenho de jogo 1 (simulaÁ„o)<br />
faz o mapeamento do jogador, actua e reage de acordo<br />
com os seus inputs; premeia a atenÁ„o deste com uma<br />
atenÁ„o prÛpria. AcÁ„o e reacÁ„o. A simulaÁ„o replica a<br />
experiÍncia do jogador e amplia-a atravÈs de mecanismos<br />
inspirados na biologia do corpo humano, embora muito<br />
longe desta pois trata-se do corpo digital <strong>da</strong> m·quina,<br />
sequÍncias booleanas e tiras de software. O jogo em rede<br />
oferece-nos uma simulaÁ„o social: ìO <strong>realismo</strong> no jogo È<br />
<strong>sobre</strong> a extens„o <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social de ca<strong>da</strong> umî (Galloway,<br />
1 O engenho de jogo relaciona-se com a troca de sequÍncias<br />
entre dispositivo l˙dico e jogador, com os milhıes de linhas de<br />
cÛdigo que estruturam e controlam o mundo em jogo onde as<br />
regras s„o os algoritmos que criam o movimento din‚mico e n„o<br />
as regras <strong>da</strong> jogabili<strong>da</strong>de.
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2006: 78). O jogador joga com perfeito conhecimento que<br />
se envolve numa simulaÁ„o e que a vi<strong>da</strong> n„o È t„o<br />
convincentemente organiza<strong>da</strong> como os princÌpios <strong>da</strong><br />
narrativa. No entanto, apenas o real est· aberto a<br />
ver<strong>da</strong>deiras possibili<strong>da</strong>des de acÁ„o e se pode endereÁar ao<br />
nosso aparelho sensorial (Atkins, 2003). … a experiÍncia<br />
do jogador no tabuleiro de jogo que define o ver<strong>da</strong>deiro<br />
grau de <strong>realismo</strong> e este remete-nos para a forma como a<br />
recepÁ„o <strong>da</strong> obra È compreendi<strong>da</strong> pelo participante do<br />
sistema <strong>da</strong> simulaÁ„o. Citando Frederic Jameson em ìThe<br />
Existence of Italyî Alexander Galloway sublinha:<br />
ìîRealismoî È, no entanto, um conceito muito<br />
inst·vel que muito deve aos debates simult‚neos<br />
mas incompatÌveis <strong>da</strong> epistemologia e <strong>da</strong> estÈtica,<br />
como os dois termos do slogan ìrepresentaÁ„o <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>deî sugerem. Estes dois conceitos parecem<br />
contraditÛrios: a Ínfase neste ou naquele tipo de<br />
conte˙do ver<strong>da</strong>deiro ser· sublinhado pela<br />
consciÍncia intensa dos meios tÈcnicos ou do<br />
artifÌcio tÈcnico do prÛprio trabalho. Ao mesmo<br />
tempo a tentativa de reforÁar a vocaÁ„o<br />
epistemolÛgica do trabalho que geralmente envolve<br />
a supress„o <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des formais do ìtextoî<br />
realista e promove uma concepÁ„o ingÈnua e n„o<br />
media<strong>da</strong> ou reflexiva <strong>da</strong> construÁ„o e <strong>da</strong> recepÁ„o<br />
estÈtica. Ent„o, onde a tentativa epistemolÛgica tem<br />
sucesso tambÈm falha; e se o <strong>realismo</strong> vali<strong>da</strong> a sua<br />
tentativa de ser uma representaÁ„o correcta ou<br />
ver<strong>da</strong>deira do mundo ent„o deixa de ser um modo<br />
de representaÁ„o estÈtico e sai fora do ‚mbito <strong>da</strong><br />
arte. (Ö) n„o È possÌvel um conceito vi·vel de<br />
<strong>realismo</strong> a menos que estas duas tentativas ou<br />
debates sejam honrados em simult‚neo,<br />
prolongando e preservando ñ em vez de resolver ñ<br />
esta constante tens„o e incomensurabili<strong>da</strong>deî<br />
(Galloway, 2006: 74).<br />
N„o existem culturas exteriores ‡ atitude realista e todo o<br />
coment·rio est· repleto de ideias formais <strong>sobre</strong> o mundo.<br />
O <strong>realismo</strong> È sempre uma quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> representaÁ„o, i.<br />
e., do que precisamente n„o È real. A representaÁ„o<br />
simbÛlica e a manipulaÁ„o de formas abstractas sÛ È<br />
possÌvel em gÈneros de jogos que apelam ‡ configuraÁ„o e<br />
‡ acÁ„o reflexiva. No entanto, o <strong>realismo</strong> no jogo n„o<br />
pressupıe uma relaÁ„o de causa efeito instrumental entre<br />
as acÁıes dos jogadores nos manÌpulos e botıes <strong>da</strong><br />
consola e as suas consequÍncias no mundo real. Este<br />
argumento levar-nos-ia ‡ rasteira <strong>da</strong> histÛria de<br />
Columbine cuja teoria È bastante conheci<strong>da</strong>: os assassinos<br />
estiveram a jogar jogos electrÛnicos logo, em<br />
consequÍncia destes, a violÍncia foi gera<strong>da</strong>. Advoga-se<br />
que a teoria de Columbine defende o reverso, ou seja, que<br />
Page 151<br />
os jogos podem gerar efeitos realistas. Ora, o facto do<br />
jogador ganhar pontaria e competÍncias de jogo atravÈs<br />
do dispositivo n„o prova que este treino seja usado como<br />
fonte de inspiraÁ„o criminosa.<br />
… necess·rio existir congruÍncia e fideli<strong>da</strong>de de contexto,<br />
que se transfere atravÈs dos sentidos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social<br />
do jogador para o ambiente de jogo. E, finalmente, depois<br />
do jogo, o regresso ‡ reali<strong>da</strong>de do jogador. A congruÍncia<br />
entre a reali<strong>da</strong>de social vivi<strong>da</strong> no jogo e a reali<strong>da</strong>de social<br />
vivi<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> real pelo jogador È fun<strong>da</strong>mental. Neste<br />
sentido, um jogo realista tem de o ser na acÁ„o e n„o tanto<br />
na representaÁ„o. Os jogadores de jogos de acÁ„o por<br />
vezes diminuem o detalhe <strong>da</strong> representaÁ„o para aumentar<br />
a veloci<strong>da</strong>de de resposta. A fideli<strong>da</strong>de ao contexto È a<br />
chave para entendermos o <strong>realismo</strong> nos videojogos pois<br />
estes: ìoferecem o terceiro momento de <strong>realismo</strong>, ou seja,<br />
o <strong>realismo</strong> <strong>da</strong> acÁ„o. Os dois primeiros foram o <strong>realismo</strong><br />
na narrativa (literatura) e o <strong>realismo</strong> <strong>da</strong>s imagens (pintura,<br />
fotografia, filme)î (Galloway, 2006: 72-84).<br />
O <strong>realismo</strong> presente nos videojogos È sensorial. Os<br />
jogadores ficam no mundo do jogo porque a irreali<strong>da</strong>de È<br />
atractiva e forra de forma rechea<strong>da</strong> a imaginaÁ„o destes.<br />
As casas suburbanas dos Sims s„o imunes ao racismo, ao<br />
sexismo e ‡ intoler‚ncia religiosa. Sofrem uma<br />
simplificaÁ„o, abreviaÁ„o e reduÁ„o do mundo em que<br />
tudo È generalizaÁ„o. A naÁ„o Sims È modela<strong>da</strong> a partir do<br />
mundo em que vivemos mas o capitalismo È o ˙nico<br />
modelo que podemos jogar (Atkins, 2003: 129-33).<br />
TambÈm em Second Life a socie<strong>da</strong>de de consumo impera<br />
atravÈs de uma matriz que privilegia essencialmente a<br />
aquisiÁ„o de bens materiais. Em ìRobber, Sailboat, Atom,<br />
Bookî, Shelley Jackson afirma que o virtual se tornou<br />
parte <strong>da</strong> nossa experiÍncia real e <strong>da</strong> nossa experiÍncia<br />
mental ao incorporar as paisagens dos jogos de<br />
computador remisturando-as na forma como sintetizamos<br />
a nossa vi<strong>da</strong>. Os Sims n„o substituÌram a nossa vi<strong>da</strong> mas<br />
alteraram-na: ìO mundo onde vivemos È um mundo que<br />
construÌmos para nÛs mesmos nas nossas cabeÁas a partir<br />
dos nossos sentidos. O mundo real È j· um mundo<br />
imagin·rio. Para ca<strong>da</strong> ·rvore existe uma ·rvore dentro de<br />
nÛs, esquem·tica ou complica<strong>da</strong>. Ent„o aqueles que vivem<br />
melhor s„o aqueles que tÍm uma maior imaginaÁ„oî<br />
(Jackson, 2004: 200).<br />
A ficÁ„o no jogo È ambÌgua, opcional e imagina<strong>da</strong> pelo<br />
jogador de forma incontrol·vel e imprevisÌvel. A Ínfase<br />
nos mundos de ficÁ„o pode ser uma <strong>da</strong>s mais fortes<br />
inovaÁıes dos videojogos. A ficÁ„o aju<strong>da</strong> o jogador a<br />
compreender as regras de jogo. As regras separam o jogo<br />
do resto do mundo ao construÌrem uma ·rea onde s„o<br />
aplica<strong>da</strong>s; a ficÁ„o projecta um mundo diferente do mundo
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real. O espaÁo do jogo faz parte do mundo no qual este È<br />
jogado mas o espaÁo <strong>da</strong> ficÁ„o est· fora do mundo em que<br />
È criado. Adopta-se um cÌrculo m·gico, uma fronteira<br />
entre o contexto em que o jogo È jogado e o que est· fora<br />
desse contexto (Juul; 2005). O mundo ficcional presente<br />
no jogo depende fortemente do mundo real para existir e<br />
aju<strong>da</strong> o jogador a fazer suposiÁıes <strong>sobre</strong> o mundo real no<br />
qual este jogo È jogado.<br />
O envolvimento total do corpo perceptivo faz com que o<br />
jogador se lembre, atravÈs <strong>da</strong> dor, que participa de corpo<br />
inteiro no dispositivo. Assim, afirma um jogador: ìeu<br />
gosto dos jogos de combate pela dose de stress que<br />
contÍm, os dedos colados ‡ manetaÖ s„o sÛ reflexos, n„o<br />
um momento de reflex„oî (Loic de 27 anos citado por<br />
Clais & Roustan, 2003: 41-42). In˙meros movimentos<br />
parasitas, ou seja, movimentos incontrolados que n„o<br />
trazem na<strong>da</strong> ‡ lÛgica de optimizaÁ„o <strong>da</strong>s acÁıes de jogo,<br />
confirmam o envolvimento total do corpo prÛprio do<br />
jogador. Existe um desprendimento (´dÈcrochageª) deste<br />
corpo em relaÁ„o ‡ vontade consciente e alguns jogadores<br />
afirmam mesmo que adormeceram enquanto jogavam. Os<br />
olhos s„o estimulados mas ìimpıem-lhesî uma resistÍncia<br />
<strong>da</strong>s imagens, atravÈs de in˙meros mecanismos de<br />
persistÍncia retiniana, por exemplo. Dores de cabeÁa, de<br />
costas, problemas oculares podem surgir como<br />
consequÍncia directa de uma sess„o de jogo. O jogador È<br />
estimulado tanto ao nÌvel <strong>da</strong> sua atenÁ„o como <strong>da</strong>s suas<br />
percepÁıes e do seu investimento emocional e afectivo.<br />
Alguns jogadores queixam-se de fadiga emocional: ìh·<br />
ver<strong>da</strong>deiramente um momento em que eu chego ao meu<br />
m·ximo de excitaÁ„o e onde eu sinto que depois disso vou<br />
ficar angustiado, que se eu continuar eu n„o vou ficar<br />
bemÖî (Alexandre de 23 anos citado por Clais &<br />
Roustan, 2003: 38).<br />
Existe, no acto de jogar, um adormecimento <strong>da</strong> atenÁ„o<br />
consciente do corpo: ìobservaÁıes com jogadores em<br />
acÁ„o mostram que a partir de determinado nÌvel de<br />
experiÍncia de jogo, o nÌvel de consciÍncia reflexiva<br />
diminui, as m„os s„o mecanicamente activa<strong>da</strong>s fora de<br />
todo o controlo deliberadoî (Clais & Roustan, 2003: 41).<br />
A mestria tÈcnica do jogo pode ser considera<strong>da</strong> como um<br />
processo de incorporaÁ„o semelhante ao que acontece com<br />
os condutores de um automÛvel; s„o adquiridos<br />
estereÛtipos motores ou simplesmente algoritmos motores<br />
que tÍm como resultado uma economia de energia<br />
consequente que permite ao corpo resistir mais tempo sem<br />
fadiga onde:<br />
ìO corpo perceptivo est· no centro deste<br />
mecanismo de apropriaÁ„o. Aparece como um<br />
ìel·sticoî na acÁ„o e mais ain<strong>da</strong> na repetiÁ„o <strong>da</strong><br />
acÁ„o. N„o se limita mais ‡s fronteiras <strong>da</strong> pele,<br />
Page 152<br />
junta-se a uma capaci<strong>da</strong>de de extens„o aos objectos<br />
que o circun<strong>da</strong>m e pelos quais se habituou a<br />
desenvolver automatismos de forma a conhecer<br />
to<strong>da</strong>s as suas caracterÌsticas e reacÁıes fÌsicas.<br />
Assim, jogar bem e aceder aos prazeres do domÌnio<br />
tÈcnico implica um ìesquecimentoî do corpo em<br />
acÁ„o, ou na acÁ„o, a tal ponto que esse corpo jogue<br />
mais conforme eu jogo menos.<br />
O h·bito e as suas rotinas devem ser analisados em<br />
termos de acÁ„o, de reacÁ„o, ajustamento e<br />
repetiÁ„o. Depois de Warnier ´fazer corpoª com o<br />
objecto È tÍ-lo incorporado na sua ´din‚micaª, ´a<br />
tÌtulo de prÛtese na sua conduta motora (Ö). Resta<br />
compreender o que pode significar ´incorporarª a<br />
din‚mica do jogo vÌdeoî (Clais & Roustan, 2003:<br />
42-43).<br />
O ecr„ È feito fetiche, desejamo-lo n„o apenas para o ver<br />
mas tambÈm para sermos vistos nele. A visibili<strong>da</strong>de<br />
potencia<strong>da</strong> pelo ecr„ torna-nos mais reais: ìEstar visÌvel<br />
significa ser real. Quando fazemos de nÛs uma reali<strong>da</strong>de no<br />
ecr„, o nosso ìeuî torna-se mais real. A crianÁa torna-se<br />
consciente <strong>da</strong> sua identi<strong>da</strong>de e do seu corpo quando entra<br />
na fase do espelho 2 ñ quando se vÍ a si prÛpria. Hoje, o<br />
espelho È substituÌdo pelo ecr„î (Filiciak, 2003: 100). No<br />
cinema o corpo do espectador nunca aparece reflectido no<br />
ecr„. O avatar funciona como um îeuî e um ìoutroî,<br />
sÌmbolo e Ìndex. Como ìeuî o comportamento deste est·<br />
associado ‡ interface (teclado, rato, joystick) e relaciona-se<br />
com o movimento literal do jogador mas tambÈm com os<br />
triunfos e que<strong>da</strong>s em termos figurativos que resultam <strong>da</strong>s<br />
acÁıes deste. Como ìoutroî porque o comportamento do<br />
avatar È um agenciamento <strong>sobre</strong>natural delegado pelo ìeuî,<br />
do qual È embaixador e representante. Os avatares<br />
diferenciam-se do ìeuî humano pelo sua capaci<strong>da</strong>de de<br />
viver, morrer e viver outra vez, num renascer simbÛlico. Se<br />
consideramos que o avatar È um reflexo do jogador este<br />
reflexo corresponde ‡ reali<strong>da</strong>de corpÛrea, num mapeamento<br />
que n„o È apenas aparÍncia mas tambÈm controlo. O<br />
mesmo gÈnero de situaÁ„o que encontramos nas c‚maras de<br />
vigil‚ncia em que o corpo vÍ reflectido os seus gestos<br />
atravÈs do dispositivo de tempo real num ambiente<br />
reflexivo. O avatar articula no ecr„, por via <strong>da</strong> manipulaÁ„o<br />
<strong>da</strong> interface, uma representaÁ„o obediente do ser corpÛreo.<br />
AtravÈs do jogo os conceitos de avatar e interface ligam-se.<br />
2 Como descrito por Lacan e elaborado por Samuel Weber, o<br />
est·dio do espelho ocorre nas crianÁas entre os seis e os oito<br />
meses, quando pela primeira vez encontram e respondem ao seu<br />
reflexo como um aspecto que deles faz parte. Ao contr·rio dos<br />
animais, que rapi<strong>da</strong>mente perdem o interesse em superfÌcies de<br />
espelho, a crianÁa procede a uma experimentaÁ„o de gestos a<br />
partir dos seus prÛprios reflexos (Rehak, 2003: 103).
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Afirma Rehak: ìSe a fase do espelho inicia uma<br />
quebra/separaÁ„o para a vi<strong>da</strong> inteira entre o eu-enquantoobservador<br />
e o eu-enquanto-observado, e o videojogo<br />
explora esta estrutura, ent„o em certo sentido nÛs j·<br />
existimos numa relaÁ„o de avatares perante nÛs prÛpriosî<br />
(Rehak, 2003: 123).<br />
Neste contexto, considera-se que a nossa experiÍncia do<br />
mundo j· encerra em si uma capaci<strong>da</strong>de para nos<br />
transformar simultaneamente em espectadores e<br />
participantes, numa constante tens„o entre uma ilus„o de<br />
uni<strong>da</strong>de do ìeuî, que a nossa consciÍncia pretende<br />
fornecer, e a multiplici<strong>da</strong>de fragmenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> nossa<br />
percepÁ„o. O ìoutroî que vimos reflectido no espelho È j·<br />
um nosso avatar e os jogos s„o apenas extensıes deste<br />
ìoutroî que o espelho nos ofereceu logo no primeiro ano de<br />
vi<strong>da</strong>. O que est· em causa e aparece reflectido no espelho<br />
n„o È o todo coerente <strong>da</strong> nossa identi<strong>da</strong>de mas a falta de<br />
coerÍncia e uni<strong>da</strong>de desta identi<strong>da</strong>de. Assim: ìos<br />
videojogos parecem oferecer o potencial para uma profun<strong>da</strong><br />
redefiniÁ„o do corpo, <strong>da</strong> mente e do espÌritoî (Rehak, 2003:<br />
123). Existe um contÌnuo entre o jogador e o mundo do<br />
jogo: ìNÛs vemos atravÈs dos olhos do monitor o que o<br />
corpo pode sentir e registar. (...) uma prÛtese imagin·ria<br />
que liga o corpo do jogador ao mundo <strong>da</strong> ficÁ„o,<br />
enfatizando um contÌnuo entre o mundo deste e o mundo do<br />
jogoî (Lahti, 2003: 161). As histÛrias presentes nos<br />
videojogos s„o histÛrias para os olhos, para os ouvidos e<br />
para os m˙sculos. Estas histÛrias tÍm a capaci<strong>da</strong>de de<br />
enquadrar a nossa experiÍncia organizando percepÁıes,<br />
emoÁıes, cogniÁıes e acÁıes motoras (pecma). Neste<br />
contexto, n„o podem ser entendi<strong>da</strong>s atravÈs dos modelos<br />
estruturalistas franceses que dominaram a teoria <strong>da</strong><br />
narrativa pois n„o se preocupam com a implementaÁ„o <strong>da</strong><br />
narrativa no cÈrebro e n„o tÍm em consideraÁ„o a relaÁ„o<br />
interna entre percepÁ„o, emoÁ„o e acÁ„o nas estruturas<br />
narrativas (Gro<strong>da</strong>l, 2003).<br />
A experiÍncia proprioceptiva, experiÍncia sensorialafectiva-motora,<br />
permite uma passagem <strong>da</strong> posiÁ„o<br />
passiva ‡ posiÁ„o activa em relaÁ„o aos outros e isso<br />
caracteriza-nos enquanto seres humanos. A quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
primeiras interacÁıes entre o bebÈ e o seu meio ambiente<br />
alimentam uma impress„o geral que confirma a ideia de<br />
universo coerente, ‡ semelhanÁa <strong>da</strong>quilo que se sente em<br />
termos cinestÈsicos. Neste contexto, È necess·ria uma<br />
experiÍncia corporal que confirme a ligaÁ„o do ser com o<br />
mundo. Esta experiÍncia È faculta<strong>da</strong> por via <strong>da</strong><br />
propriocepÁ„o, que permite a aquisiÁ„o <strong>da</strong> certeza de que<br />
somos autores dos nossos prÛprios actos e que atravÈs <strong>da</strong>s<br />
nossas m„os, como prolongamentos naturais do desejo,<br />
realizamos os nossos movimentos. A ìnarraÁ„o sensorialî<br />
remete-nos para as histÛrias ou rÈcitas que o ser humano<br />
Page 153<br />
conta a si mesmo de acordo com as situaÁıes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com<br />
as quais È confrontado. Nestas situaÁıes, a necessi<strong>da</strong>de de<br />
coerÍncia È vital e a ca<strong>da</strong> momento temos necessi<strong>da</strong>de de<br />
um princÌpio, um meio e um fim em que È a repetiÁ„o, esse<br />
ìagir novamenteî, que permite a experiÍncia de ensaio e<br />
erro que possibilita a construÁ„o de um mundo coerente<br />
(Stora, 2003: 53-66).<br />
A coerÍncia proprioceptiva, termo usado pela<br />
fenomenologia que se refere ‡ forma como a fronteira do<br />
nosso corpo È combina<strong>da</strong> com loops de feddback e usos<br />
habituais, È o que possibilita ao jogador de tÈnis sentir a<br />
raqueta como uma extens„o do seu corpo, È o sentido que<br />
nos diz onde est· a fronteira deste. Neste contexto, o<br />
jogador de jogos digitais, sente uma relaÁ„o de<br />
continui<strong>da</strong>de com o teclado, com a superfÌcie do ecr„<br />
como um espaÁo no qual a sua subjectivi<strong>da</strong>de pode fluir<br />
(Hayles, 2001). A enorme diferenÁa entre a forma como a<br />
coerÍncia proprioceptiva trabalha no ecr„ de computador<br />
quando compara<strong>da</strong> com a p·gina impressa È uma <strong>da</strong>s<br />
razıes porque a espaciali<strong>da</strong>de È t„o importante na escrita<br />
topogr·fica presente nas ficÁıes electrÛnicas. A integraÁ„o<br />
corporal e psicolÛgica È evidente:<br />
ìO cÈrebro e o corpo encontram-se<br />
indissociavelmente integrados por circuitos<br />
bioquÌmicos e neurais reciprocamente dirigidos de<br />
um para o outro. (Ö) a corrente sanguÌnea; ela<br />
transporta sinais quÌmicos, como as hormonas, os<br />
neurotransmissores e os neuromoduladores 3 . (Ö) o<br />
cÈrebro pode actuar, atravÈs dos nervos, em to<strong>da</strong>s<br />
as partes do corpo. Os agentes dessas acÁıes s„o o<br />
sistema nervoso autÛnomo (ou visceral) e o sistema<br />
nervoso m˙sculo-esquelÈtico (ou volunt·rio)î<br />
(Dam·sio, 1994: 97).<br />
O real envolve partilha e um sentido de repetiÁ„o em que a<br />
ìpalavra representaÁ„o n„o se refere ao significado exacto<br />
do acto, pelo menos na acepÁ„o e conotaÁıes modernas;<br />
ìrepresentaÁ„oî È de facto identificaÁ„o, a repetiÁ„o<br />
mÌstica ou re-representaÁ„o do evento. O rito produz o<br />
efeito que n„o È tanto mostrar figurativamente ou<br />
reproduzir atravÈs <strong>da</strong> acÁ„o. A funÁ„o do rito est· longe de<br />
ser meramente imitativa; promove uma participaÁ„o no<br />
prÛprio happening sagradoî (Huizinga, 1950; 15). O real<br />
re-apresenta e compreende algo de partilhado. Os termos<br />
repetiÁ„o, partilha, proximi<strong>da</strong>de, inefabili<strong>da</strong>de s„o<br />
pensamentos e palavras recorrentes <strong>da</strong>s narrativas digitais.<br />
3 ìOs neurÛnios moduladores distribuem neurotransmissores<br />
(tais como a dopamina, norepinefrina, serotonina e acetilcolina)<br />
por regiıes vastas do cÛrtex cerebral e n˙cleos subcorticaisî<br />
(Dam·sio, 1994: 120).
ARTECH 2008, 4th International Conference on Digital Arts, 7- 8 November, Portuguese Catholic University, Porto<br />
Para verificarmos que algo È real nÛs esperamos poder<br />
experienciar outra vez a ocorrÍncia. A repetiÁ„o È o que<br />
constitui a regulari<strong>da</strong>de que nos permite identificar algo<br />
como real e atravÈs desta encontramos os outros, a<br />
comuni<strong>da</strong>de e a colectivi<strong>da</strong>de. As ficÁıes n„o se<br />
confundem com o real mas antes libertam o humano dos<br />
constrangimentos reais: ìO homem normal, tal como o<br />
comediante, n„o toma como reais situaÁıes imagin·rias<br />
mas, inversamente, liberta-se do corpo real e <strong>da</strong> sua<br />
situaÁ„o vital para o fazer respirar, falar e cheirar no<br />
imagin·rioî (Merleau-Ponty, 1945: 121-122).<br />
O corpo, de acordo com Merleau-Ponty, n„o È mais do que<br />
um elemento no sistema do sujeito e do seu mundo onde o<br />
corpo objectivo pertence ao ìpara o outroî e o corpo<br />
fenomenal ao ìpara mimî. O ìpara mimî e o ìpara o<br />
outroî coexistem no mesmo mundo. A existÍncia espacial<br />
È uma condiÁ„o primordial de to<strong>da</strong> a percepÁ„o viva e a<br />
iniciaÁ„o cinÈtica È para o sujeito uma maneira original de<br />
se relacionar com um objecto. Existe uma diferenÁa entre<br />
movimento abstracto e movimento concreto sendo que a<br />
percepÁ„o e o movimento formam um sistema que se<br />
modifica como um todo e a noÁ„o de real est· intimamente<br />
conecta<strong>da</strong> com a incorporaÁ„o, um corpo prÛprio que<br />
assimila atravÈs dos seus movimentos no espaÁo os <strong>da</strong>dos<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Enquanto o movimento concreto È t·ctil o<br />
movimento abstracto È visual e depende do poder <strong>da</strong><br />
representaÁ„o (Merleau-Ponty, 1945). A noÁ„o de real est·<br />
ain<strong>da</strong> associa<strong>da</strong> ‡ ideia de repetiÁ„o pois È atravÈs desta<br />
regulari<strong>da</strong>de que nos apropriamos <strong>da</strong> existÍncia <strong>da</strong>s coisas.<br />
Para verificarmos que algo È real esperamos poder<br />
experimentar novamente (Coyne, 2001). O corpo executa<br />
o movimento copiando-o atravÈs de uma representaÁ„o<br />
possÌvel. Esta representaÁ„o possÌvel que se d· ‡<br />
consciÍncia È posteriormente devolvi<strong>da</strong> atravÈs de uma<br />
fÛrmula de movimento autom·tico. A consciÍncia opera a<br />
sÌntese <strong>da</strong> infini<strong>da</strong>de de relaÁıes que est„o implÌcitas no<br />
meu corpo.<br />
O real implica uma presenÁa e existem limites para o que<br />
pode ser simulado no computador. Usando um conjunto<br />
particular de algoritmos e um sistema computacional<br />
concebido para li<strong>da</strong>r com um tipo de organizaÁ„o espacial<br />
(uma grelha de colunas, por exemplo) podemos n„o estar<br />
aptos a simular outro tipo de representaÁ„o espacial (uma<br />
corri<strong>da</strong> na montanha). Considera-se que: ìo n˙mero de<br />
pontos e esquinas num objecto e as suas localizaÁıes no<br />
espaÁo mu<strong>da</strong>m de acordo com a forma como escolhemos<br />
olhar para esse objectoî (Coyne, 2001: 75). Jogar, para<br />
uma pessoa normal, implica a capaci<strong>da</strong>de desta em<br />
colocar-se numa situaÁ„o imagin·ria durante um<br />
determinado momento, implica mu<strong>da</strong>r de lugar; para um<br />
doente esta situaÁ„o fictÌcia n„o È possÌvel pois este<br />
Page 154<br />
converte-a em real. O nosso corpo n„o est· no espaÁo e no<br />
tempo mas habita o espaÁo e o tempo sendo a motrici<strong>da</strong>de<br />
a esfera prim·ria onde se engendra o sentido de to<strong>da</strong>s as<br />
significaÁıes no domÌnio do espaÁo representado<br />
(Merleau-Ponty, 1945: 157-66).<br />
A crÌtica fenomenolÛgica assenta na impossibili<strong>da</strong>de de<br />
explicitar a experiÍncia espacial atravÈs <strong>da</strong> descriÁ„o<br />
matem·tica <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>s desta pois, para a<br />
fenomenologia, a representaÁ„o <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>s deriva <strong>da</strong><br />
experiÍncia espacial 4 . Se considerarmos que a chave do<br />
espaÁo reside na sua descriÁ„o matem·tica ent„o podemos<br />
considerar que a reali<strong>da</strong>de virtual e o ciberespaÁo o<br />
contÍm, reproduzem e re-apresentam. A reali<strong>da</strong>de virtual e<br />
o ciberespaÁo n„o desafiam o nosso conceito de reali<strong>da</strong>de<br />
mas antes introduzem novos modos e pr·ticas,<br />
desconectando pr·ticas e modos mais antigos e correntes.<br />
Se, pelo contr·rio, acreditamos que os computadores nos<br />
d„o acesso a novas experiÍncias espaciais subjectivas<br />
ent„o devemos distinguir, com os geÛgrafos, entre espaÁo<br />
e lugar. O espaÁo È reduzÌvel e pode ser descrito<br />
matematicamente em desenhos, planos e mapas enquanto<br />
que o lugar È uma memÛria qualifica<strong>da</strong> e imbuÌ<strong>da</strong> de valor<br />
(Coyne, 2001). A experimentaÁ„o n„o se relaciona com<br />
uma repetiÁ„o imitativa mas antes com esforÁos<br />
preparatÛrios nos quais se adquirem h·bitos e<br />
automatismos. O sujeito que aprende a jogar integra as<br />
teclas e o rato no seu espaÁo corporal sendo que o h·bito<br />
n„o reside nem no pensamento nem no corpo objectivo<br />
mas no corpo como mediador de um mundo. Durante a<br />
repetiÁ„o existe uma valorizaÁ„o emocional provoca<strong>da</strong> por<br />
gestos de consagraÁ„o que acentuam o lado expressivo do<br />
jogo; o h·bito n„o È mais do que um modo fun<strong>da</strong>mental no<br />
qual o corpo se deixa penetrar por uma significaÁ„o nova.<br />
A experiÍncia do corpo prÛprio ensina-nos a enraizar o<br />
espaÁo na existÍncia sendo que a percepÁ„o do espaÁo e a<br />
percepÁ„o <strong>da</strong>s coisas (a espaciali<strong>da</strong>de) n„o s„o actos<br />
distintos (Merleau-Ponty, 1945).<br />
O corpo funciona como um sistema e, de acordo com a<br />
teoria <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de e do caos, certos sistemas podem<br />
4 Afirma Coyne: ìnÛs n„o podemos compreender a forma como<br />
os organismos trabalham simplesmente olhando para a sua<br />
quÌmica. O cÛdigo DNA de um organismo por si sÛ n„o nos diz<br />
como o organismo funciona no seu ambienteî (Coyne, 2001:<br />
152). NÛs n„o acedemos ao design <strong>da</strong>s coisas a partir de<br />
coordena<strong>da</strong>s geogr·ficas. Do ponto de vista <strong>da</strong> fenomenologia a<br />
informaÁ„o n„o pode ter primazia se queremos compreender o<br />
espaÁo a partir do conceito de espaciali<strong>da</strong>de pois compreender<br />
comeÁa com o envolvimento irreflectido. Compreender È praxis<br />
e È este ponto que distingue claramente a vis„o <strong>da</strong><br />
fenomenologia <strong>da</strong>s teorias estruturalistas (Coyne, 2001: 152-54).
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chegar a um estado onde pequenas mu<strong>da</strong>nÁas numa<br />
vari·vel (uma pequena parte do sistema) podem produzir<br />
mu<strong>da</strong>nÁas extraordin·rias no todo. Os sistemas podem ser<br />
imprevisÌveis mas padronizados. A ˙nica forma de fazer<br />
previsıes e planificaÁıes <strong>sobre</strong> aquilo que pode acontecer<br />
È a partir de um programa que gera o acontecimento. Por<br />
um lado, os significantes a<strong>da</strong>ptativos e l˙dicos (Piaget)<br />
dizem-nos que È a repetiÁ„o <strong>da</strong> experiÍncia do mundo<br />
sensorial que fornece a fun<strong>da</strong>Á„o para a compreens„o. Por<br />
outro lado, as repetiÁıes que acontecem ao nÌvel <strong>da</strong><br />
aprendizagem cessam quando o estÌmulo envolvido È<br />
apreendido. Este factor n„o acontece no jogo. No espaÁo<br />
l˙dico as repetiÁıes continuam pelo prazer de excitaÁ„o<br />
associa<strong>da</strong> ao desenrolar dos acontecimentos no tabuleiro e<br />
normalmente n„o desaparecem com o h·bito. Como<br />
afirma Brian Sutton-Smith: ìo jogo n„o È [apenas]<br />
repetitivo È obsessivoî (Sutton-Smith, 1997: 27). A<br />
repetiÁ„o È tudo e o espaÁo onde ela ocorre fornece um<br />
bom teste para examinar a relaÁ„o entre os computadores<br />
e o real:<br />
ìOs discursos que advogam que os computadores<br />
est„o a alterar a nossa concepÁ„o do espaÁo e <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de e atÈ a alterar a prÛpria reali<strong>da</strong>de s„o<br />
mantidos pela proposiÁ„o prosaica que os<br />
computadores, desenhos e modelos s„o<br />
representaÁıes compreendi<strong>da</strong>s como<br />
correspondÍncias entre cÛdigos, palavras e imagens<br />
e alguma reali<strong>da</strong>de para l· dessas representaÁıes<br />
[referenciali<strong>da</strong>de]. Se os computadores nos<br />
permitem modelar, imitar e representar a reali<strong>da</strong>de<br />
ent„o permitem-nos alterar os campos perceptivos,<br />
mu<strong>da</strong>r e distorcer a reali<strong>da</strong>de e criar outras<br />
reali<strong>da</strong>des alternativas. Se o mundo È<br />
essencialmente um conjunto de padrıes, mesmo<br />
que padrıes infinitamente recursivos de caos e<br />
ordem, ent„o estes podem ser substituÌdos ou<br />
animados em sistemas de computadores<br />
interconectados para a criaÁ„o de uma uni<strong>da</strong>de<br />
electrÛnica reconstituÌ<strong>da</strong>. Assim, em vez de se<br />
contrariarem as narrativas rom‚nticas ou do<br />
empirismo fornecem-se as condiÁıes para que as<br />
narrativas tecnorom‚nticas promovam o potencial<br />
transcendente do espaÁo computacionalî (Coyne,<br />
2001: 106).<br />
As frases performativas e as acÁıes sequenciais n„o<br />
podem ser to<strong>da</strong>s formata<strong>da</strong>s pelo positivismo mas antes<br />
apelam ‡ interpretaÁ„o e aos statements <strong>da</strong> criaÁ„o e <strong>da</strong><br />
imaginaÁ„o. O positivismo formatou o pensamento de<br />
muitos dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> inteligÍncia artificial, <strong>da</strong>s<br />
ciÍncias cognitivas e <strong>da</strong> teoria dos sistemas. O teste de<br />
Page 155<br />
inteligÍncia de Turing 5 , ou o ìjogo <strong>da</strong> imitaÁ„oî, parte do<br />
pressuposto que existe uma forma empÌrica de verificaÁ„o<br />
se a m·quina È inteligente (Coyne, 2001). O sentimento<br />
de <strong>estranheza</strong> (uncanny) È inerente ao conceito de<br />
repetiÁ„o e lembra-nos a nossa compuls„o para a<br />
repetiÁ„o enquanto crianÁas. O que nos desperta tantas<br />
suspeiÁıes em relaÁ„o ao computador È precisamente este<br />
movimento autom·tico que nos forÁa a repetir acÁıes e<br />
nos torna autÛmatos mec‚nicos.<br />
O sentimento de <strong>estranheza</strong>, potenciado atravÈs <strong>da</strong><br />
repetiÁ„o, È tambÈm acompanhado, nas experiÍncias ‡<br />
volta <strong>da</strong> mediÁ„o emocional dos seres humanos em relaÁ„o<br />
aos robots, por uma certa avers„o ‡ total semelhanÁa<br />
destes com os humanos. Estas experiÍncias s„o apeli<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
de ìVale <strong>da</strong> Estranhezaî (Uncanny Valley) e foram<br />
introduzi<strong>da</strong>s pelo cientista em robÛtica, Masahiro Mori.<br />
Ao que parece os humanos reagem bem a bonecos<br />
semelhantes a eles prÛprios mas n„o reagem t„o bem<br />
quando a semelhanÁa È demasiado prÛxima. O <strong>realismo</strong> <strong>da</strong><br />
representaÁ„o figurativa È acentuado por uma relaÁ„o<br />
paradoxal na cultura digital. Tendo a cultura numÈrica a<br />
possibili<strong>da</strong>de de prescindir do referente real, ao contr·rio<br />
do cinema e <strong>da</strong> fotografia, vive obceca<strong>da</strong> pela reproduÁ„o<br />
de <strong>da</strong>dos provenientes do mundo fÌsico. A simulaÁ„o<br />
analÛgica onde situamos, por exemplo, a captaÁ„o do tipo<br />
motion capture (mocap) È desta natureza e tenta capturar<br />
as coordena<strong>da</strong>s matem·ticas do corpo fÌsico do figurante<br />
em movimento. No caso dos processos generativos ou <strong>da</strong><br />
simulaÁ„o experiencial o que se pretende capturar È o<br />
processo biolÛgico inerente ‡ produÁ„o de determinado<br />
efeito, e. g., a forma como uma criatura digital interage<br />
com o ambiente onde est· inseri<strong>da</strong>. Ambas as estratÈgias<br />
s„o muitas vezes concerta<strong>da</strong>s e trabalha<strong>da</strong>s em simult‚neo.<br />
De acordo com Mark Stephen Meadows: ìos avatares v„o<br />
tornar-se mais realistas pois instintivamente as pessoas<br />
querem que estes sejam mais realistas e os produtores<br />
envolvidos no desenvolvimento destas personagens<br />
(programadores, designers e construtores de sistemas de<br />
avatares) est„o a tentar fundir reali<strong>da</strong>de e ficÁ„oî<br />
(Meadows, 2008: 112).<br />
Avaliar o movimento e a aparÍncia e perceber porque È<br />
que as personagens antropomÛrficas s„o t„o horrÌveis<br />
quando s„o representa<strong>da</strong>s de forma realista È o fito de<br />
alguns trabalhos na ·rea <strong>da</strong> an·lise <strong>da</strong>s representaÁıes que<br />
se centram na convicÁ„o de que os avatares est„o hoje<br />
5 Os sistemas artÌsticos l˙dicos inteligentes n„o tÍm qualquer<br />
intenÁ„o de convencer o jogador que a m·quina È inteligente e<br />
que pensa ‡ la Turing mas antes tentam traduzir processos<br />
inteligentes que, de acordo com respostas e comportamentos na<br />
interacÁ„o com o computador, se explicitem em artefactos que<br />
geram contextos emergentes (Seaman, 1999).
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ca<strong>da</strong> vez mais prÛximos dos humanos. A noÁ„o de<br />
<strong>realismo</strong> reside na tactili<strong>da</strong>de do jogo e na real experiÍncia<br />
corporal do jogador. Este <strong>realismo</strong> n„o È entendido no<br />
sentido <strong>da</strong> verosimilhanÁa <strong>da</strong> representaÁ„o no ecr„ mas na<br />
capaci<strong>da</strong>de tecnolÛgica do dispositivo imprimir prazeres<br />
reais no corpo fÌsico do participante (Lahti, 2003). Assim,<br />
o jogador rende-se ‡ tecnologia, ‡ m·quina, que, em troca,<br />
libera o corpo dos seus constrangimentos de movimento na<br />
vi<strong>da</strong> real. O corpo mu<strong>da</strong> de pele e È esteticizado como<br />
varie<strong>da</strong>de em si prÛprio, um brinquedo com o qual<br />
podemos jogar. Diz-nos Martti Lahti citando Julian<br />
Stallabrass: ìos jogos de computador forÁam uma<br />
mecanizaÁ„o do corpo dos jogadores na qual os<br />
movimentos destes e a imagem do seu alter-ego fornecem<br />
uma imagem fÌsica e simula<strong>da</strong> do ìeuîî. O jogador inicia,<br />
por via do jogo, um processo de mecanizaÁ„o<br />
(taylorizaÁ„o) do corpo e do trabalho que se transforma<br />
numa experiÍncia gratificanteî (Lahti, 2003: 166-67).<br />
Existe no jogo uma imposiÁ„o de disciplina corporal que È<br />
real onde o corpo se a<strong>da</strong>pta ‡ m·quina por via dos<br />
automatismos que esta impıe.<br />
Adquirir a experiÍncia t·ctil inerente ‡ relaÁ„o com a<br />
imagem interactiva n„o È mais do que aceitar a interacÁ„o<br />
com o objecto, actuar mu<strong>da</strong> a situaÁ„o existente entre o<br />
objecto e o ìeuî sendo que neste impulso n„o h· separaÁ„o<br />
entre o resultado teÛrico <strong>da</strong> informaÁ„o e o<br />
comportamento pr·tico que nele È baseado. Este aspecto,<br />
contr·rio ao que acontece no caso <strong>da</strong> vis„o, mostra bem a<br />
diferenÁa entre os nossos sentidos e a forma como esta<br />
diferenÁa se inscreve nas nossas acÁıes. A distinÁ„o entre<br />
a nossa audiÁ„o e a nossa vis„o diz-nos que enquanto na<br />
segun<strong>da</strong> h· uma dist‚ncia entre a percepÁ„o <strong>da</strong> imagem<br />
(simultanei<strong>da</strong>de na apresentaÁ„o de uma varie<strong>da</strong>de,<br />
neutralizaÁ„o <strong>da</strong> causa <strong>da</strong> afecÁ„o do sentido e dist‚ncia<br />
no sentido espacial e espiritual) na primeira ìa duraÁ„o do<br />
som ouvido È igual ‡ duraÁ„o do ouvirî. Assim, no caso <strong>da</strong><br />
nossa audiÁ„o: ìa extens„o do objecto e a extens„o <strong>da</strong> sua<br />
percepÁ„o coincidemî (Jonas; 2004: 161). Da mesma<br />
forma o tacto, tal como o ouvido, implica a ocorrÍncia de<br />
uma percepÁ„o sucessiva mas, como a vis„o, impıe uma<br />
sÌntese de <strong>da</strong>dos na presenÁa est·tica do objecto.<br />
No toque o sujeito e o objecto actuam um <strong>sobre</strong> o outro no<br />
mesmo acto em que o objecto se torna, est·, em presenÁa.<br />
No caso <strong>da</strong> vis„o, eu vejo sem ter que fazer na<strong>da</strong> para ver<br />
e sem que o objecto tenha que sair <strong>da</strong> sua imobili<strong>da</strong>de para<br />
que eu o possa ver. Neste contexto, embora a vis„o seja o<br />
mais livre dos sentidos, pois impıe a dist‚ncia perceptiva,<br />
È tambÈm o menos ìrealistaî. Afirma Jonas: ìo tacto È o<br />
sentido onde ocorre o encontro original com a reali<strong>da</strong>de<br />
como reali<strong>da</strong>de. O apalpar traz consigo a reali<strong>da</strong>de do seu<br />
objecto para dentro <strong>da</strong> experiÍncia sensorial, e isto graÁas<br />
Page 156<br />
‡quilo que supera a pura sensaÁ„o, isto È, a componente de<br />
forÁa presente na sua composiÁ„o original. (Ö) O tacto È a<br />
ver<strong>da</strong>deira prova de reali<strong>da</strong>deî (Jonas; 2004: 171). A<br />
experiÍncia <strong>da</strong> vis„o ou a perspectiva Ûptica È dependente<br />
<strong>da</strong> locomoÁ„o e o auto movimento È um princÌpio de<br />
organizaÁ„o dos sentidos mas tambÈm o meio <strong>da</strong> sÌntese<br />
de todos eles numa objectivi<strong>da</strong>de comum.<br />
II. Conclus„o<br />
Podemos concluir que o <strong>realismo</strong> nos jogos digitais se<br />
relaciona acima de tudo com a experiÍncia corporal<br />
inerente ‡ acÁ„o repetitiva e que o <strong>realismo</strong> imagÈtico È<br />
um factor menos importante do que a veraci<strong>da</strong>de do<br />
movimento. O dispositivo l˙dico forÁa o corpo do jogador<br />
a adquirir automatismos e a experiÍncia ficcional no<br />
tabuleiro ou espaÁo m·gico que È o jogo È essencialmente<br />
uma experiÍncia incorpora<strong>da</strong>.<br />
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