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e cidadania global. Até certo ponto, a história de Bulcsú espelha-se em e atua<br />
como contraponto à de György Korin, o herói do kafkiano romance War and War,<br />
de Krasznahorkai, publicado pela primeira vez em húngaro, no ano de 1999, e<br />
traduzido para o inglês em 2006 por George Szirtes. O romance se divide em oito<br />
capítulos: cada um segmentado em várias seções, que variam em comprimento de<br />
poucas linhas a diversas páginas. Estas seções são compostas de frases únicas<br />
tortuosas, que estabelecem um campo visual caleidoscópico, cada vez mais<br />
aberto, no qual cada ação e pensamento é meticulosamente registrado, imitando<br />
ou reproduzindo, no plano da narrativa, o trabalho arquivístico do protagonista.<br />
Este modo de apresentação é o que Matthew Spellberg chamou de “o sublime<br />
mecanismo de ordenação do universo absurdo e por vezes aterrorizante de<br />
Krasznahorkai”. Mais adiante, ele observa:<br />
suas ricas descrições são refinadas explorações da consciência,<br />
da percepção e da memória. Porém, sem a totalidade momentânea<br />
que alcançam ao final de cada capítulo e, novamente, ao final<br />
do volume, poderiam ser apenas verborrágicas e discursivas.<br />
Elas fazem confluir tempo e espaço, mas em seguida invalidam<br />
as convenções de ambos em prol de algo muito mais belo. Mais<br />
belo que qualquer momento, talvez até mais belo que qualquer<br />
vida”.<br />
O romance principia in media res com Korin numa plataforma de trem, cercado<br />
por uma cruel gangue de pré-adolescentes criminosos que o julgaram patético<br />
demais para atormentar e decidiram, em vez disso, e por razões que eles próprios<br />
não compreendem, sentar-se e ouvi-lo narrar os eventos vivenciais que o trouxeram<br />
até aquele lugar. Dali em diante, o romance começa seu trabalho de engajamento<br />
com questões de memória e história, tanto pessoais quanto nacionais, enquanto<br />
vamos descobrindo que Korin, um funcionário público sem importância, descobriu<br />
um manuscrito no arquivo onde trabalha enquanto folheava e catalogava os<br />
documentos da família Wlassich. O arquivo, aqui figurado como repositório de<br />
memórias nacionais, pode ser interpretado, no contexto da história húngara, como<br />
outro tipo de “mundo de morte” (deathworld). No arquivo, encontram-se registros de<br />
todas as prisões, torturas, confissões forçadas e execuções ocorridas por ocasião<br />
das múltiplas experiências da Hungria com políticas imperiais e autoritárias,<br />
grandes narrativas e outros tipos de sistema ideológico por ela sofridos. Korin,<br />
reagindo à influência de Hermes, a quem encara como uma espécie de divindade<br />
pessoal, encontra-se numa posição em que não consegue ver nada senão<br />
escassez, sofrimento e loucura, e portanto resolve suicidar-se, mas não antes de<br />
disponibilizar on-line o misterioso manuscrito em sua inteireza. Nos primeiros dois<br />
capítulos, o leitor recebe algo como um acesso desconcertantemente privilegiado<br />
aos males psicológicos de Korin. Ficamos a par de seus planos de abandonar<br />
a Hungria e mudar-se para Nova York, que ele acredita ser o “próprio centro do<br />
mundo”. Eventualmente, descobrimos que o título do manuscrito, que é a história<br />
de quatro guerreiros que viajam de volta para casa após longas e sanguinolentas<br />
batalhas, é o próprio título do romance no qual aparece, War and War.<br />
Nos seis capítulos subsequentes, as subseções se alternam entre a história<br />
de Korin e excertos do misterioso manuscrito – donde estamos lendo War and<br />
War enquanto lemos War and War. Independentemente do quanto esta estratégia<br />
geração praça moscou o cinema húngaro contemporâneo<br />
narrativa nos pode mostrar a respeito de práticas de leitura e do potencial da arte<br />
para aprimorar a eficácia do pensamento social crítico, ela também revela o poder<br />
psicológico do necro-político, como o necro-poder separa e segrega não apenas<br />
grupos e populações inteiras, mas também indivíduos através de um processo de<br />
alienação e marginalização. Ao final do romance, Korin consegue disponibilizar<br />
o manuscrito inteiro on-line e, de fato, leva a efeito seus planos de se suicidar.<br />
Uma das práticas estéticas de subversão do necro-político empregadas por<br />
Krasznahorkai em seu romance é uma espécie de expediente lúdico ou dispositivo<br />
narrativo intertextual no qual o romance orienta o leitor ao site de Korin, http://www.<br />
warandwar.com. Uma vez que digitamos esta URL em um navegador, a seguinte<br />
mensagem aparece:<br />
Por favor, esteja informado de que o serviço de home page<br />
foi descontinuado por motivo de atrasos no pagamento. Toda<br />
a correspondência que se tentou enviar ao Sr. G. Korin foi<br />
devolvida ao remetente com a nota: endereço desconhecido.<br />
Consequentemente, todas as informações foram apagadas da<br />
sua home page.<br />
Mais do que a meditação de um romancista pós-moderno sobre teorias<br />
Barthesianas e Foucaultianas de autoria e produção textual, o website de Korin<br />
pode ser lido como um exemplo de como tecnologias incipientes de comércio<br />
e comunicação contêm certo potencial subversivo ou liberatório. Embora a<br />
mensagem postada se refira explicitamente a modelos de teoria literária e<br />
cultural do tipo “morte do autor”, a mera existência do website coloca em questão<br />
abordagens anacrônicas ou superadas do estatuto contemporâneo do livro e<br />
da própria cultura material. Além do mais, o fato de que a edição eletrônica do<br />
War and War de Korin foi apagada pelo provedor de serviços web por falta de<br />
pagamento revela muito acerca das políticas em torno da pesquisa histórica e<br />
a maneira como o arquivo funciona em virtude de sua relação com o passado<br />
nacional e a memória coletiva. Em última instância, a tentativa obsessiva, porém<br />
fútil, por parte de Korin, de transferir, ou “transicionar”, o manuscrito encontrado<br />
para fora do arquivo e para dentro de um website para a humanidade inteira ver é<br />
representativa de como as forças supressoras e sempre presentes do necro-poder<br />
podem interceder de maneira a “resistir à resistência”. O website permanece, no<br />
entanto, como exemplo de como a manipulação e exploração de novas formas de<br />
disseminação textual têm capacidade de participar nas tentativas de subverter o<br />
regime global e transnacional de formações de poder repressoras associadas à<br />
necro-política.<br />
Por vezes sombriamente engraçados e absurdamente tragicômicos, Controle e<br />
War and War são mais do que meditações filosóficas sobre transtornos psicológicos<br />
acarretados por profundas crises existenciais. Os textos de Antal e Krasznahorkai<br />
são afirmações políticas, alegorias da ressurreição e da renovação nacional, e<br />
críticas de estruturas globais de repressão. O retrato, em Controle, do espaço<br />
subterrâneo do sistema de metrô de Budapeste como lugar de uma potencial<br />
resistência contra as múltiplas manifestações do necro-poder, bem como a<br />
descrição empreendida por Krasznahorkai do arquivo de Korin em War and War, é<br />
um ato estético: um momento no qual o texto participa da subversão de formações<br />
de poder político-econômicas hegemônicas. A articulação textual de uma política<br />
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