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Porque é que a Identidade Psicofísica de Tipos não resiste ao ...

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Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras<br />

Departamento <strong>de</strong> Filosofia<br />

<strong>Por<strong>que</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>que</strong> a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> psicofísica <strong>de</strong> tipos <strong>não</strong> <strong>resiste</strong><br />

<strong>ao</strong> argumento cartesiano <strong>de</strong> Kripke?<br />

Ana Sofia Vidal Pereira Soares<br />

Aluna nº 21731<br />

Trabalho realizado no âmbito do<br />

Seminário <strong>de</strong> Tópicos <strong>de</strong> Filosofia Analítica<br />

Mestrado em Filosofia<br />

Área <strong>de</strong> especialização Filosofia Analítica


A <strong>que</strong>stão <strong>de</strong> saber qual a relação entre a mente e o corpo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito <strong>que</strong><br />

se tornou objecto previlegiado da reflexão filosófica.<br />

Como mostra Colin McGinn, em The Character of Mind, o chamado “problema<br />

da mente-corpo” surge na sequência da constatação <strong>de</strong> <strong>que</strong> os fenómenos mentais<br />

têm dois conjuntos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s absolutamente distintos, <strong>que</strong> nos conduzem a<br />

perspectivas opostas relativamente <strong>ao</strong> estatuto da mente. O primeiro consiste num tipo<br />

<strong>de</strong> características sui generis do mental (entre as quais se contam a subjectivida<strong>de</strong>, o<br />

auto-conhecimento, a acessibilida<strong>de</strong> incorrigível na primeira pessoa, a consciência, a<br />

intencionalida<strong>de</strong>, etc), <strong>que</strong> nos leva a distingui-lo do físico. São traços específicos dos<br />

fenómenos mentais, sempre ausentes nos fenómenos físicos, <strong>que</strong> nos induzem a<br />

concebê-los como realida<strong>de</strong>s distintas. O segundo conjunto <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s, pelo<br />

contrário, conduz-nos à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>que</strong> o mental está intimamente ligado <strong>ao</strong> mundo<br />

físico, <strong>de</strong> <strong>que</strong> <strong>é</strong> inextirpável <strong>de</strong>ste, uma vez <strong>que</strong> exibe uma inevitável relação espaciotemporal<br />

com o corpo.<br />

Muito genericamente, as duas respostas tradicionais <strong>ao</strong> problema da mentecorpo<br />

optam pela prepon<strong>de</strong>rância <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stes conjuntos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s<br />

relativamente <strong>ao</strong> outro. Por um lado, o dualismo acentua a diferença entre o físico e o<br />

mental . Por outro, o monismo previligia aquilo <strong>que</strong> os aproxima, enten<strong>de</strong>ndo-os como<br />

duas faces <strong>de</strong> uma só realida<strong>de</strong>.<br />

A varieda<strong>de</strong> das teorias monistas <strong>é</strong> gran<strong>de</strong>. Mas o principal alvo contra o qual<br />

se dirige a argumentação <strong>de</strong> Kripke em Naming and Necessity, o texto <strong>que</strong> servirá <strong>de</strong><br />

base <strong>ao</strong> presente ensaio, são duas importantes versões do materialismo (usaremos<br />

indiferenciadamente “monismo” e “materialismo” neste contexto). São elas o monismo<br />

tipo-tipo e o monismo <strong>de</strong> particulares (ou especimen-especimen) e são refutadas<br />

atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> argumentos <strong>de</strong> uma confessa inspiração cartesiana. A <strong>que</strong>stão <strong>que</strong> se nos<br />

coloca <strong>é</strong> da saber se o seu argumento refuta <strong>de</strong> facto a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tipo-tipo.<br />

O monismo <strong>de</strong> tipos procura i<strong>de</strong>ntificar tipos mentais com tipos físicos. Quer<br />

isto dizer <strong>que</strong>, sempre <strong>que</strong> um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> fenómeno mental ocorre, o mesmo<br />

tipo <strong>de</strong> fenómeno físico ocorre tamb<strong>é</strong>m, sendo <strong>que</strong> estes são idênticos entre si. Os<br />

tipos <strong>de</strong> fenómenos <strong>que</strong> ocorrem no c<strong>é</strong>rebro são idênticos <strong>ao</strong>s tipos <strong>de</strong> fenómenos<br />

mentais <strong>que</strong> lhes estão associados. São apenas um. Esta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem como<br />

mo<strong>de</strong>lo as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s teóricas, como a<strong>que</strong>las <strong>que</strong> a ciência estabelece em casos<br />

como “A água <strong>é</strong> H2O”. Trata-se da forma mais radical <strong>de</strong> monismo, da tese i<strong>de</strong>ntitativa<br />

mais forte. É tamb<strong>é</strong>m a esta <strong>que</strong> Kripke preten<strong>de</strong> reservar maior atenção, embora a<br />

crítica <strong>que</strong> elabora contra o monismo <strong>de</strong> particulares (a ser eficaz, como preten<strong>de</strong>mos)


seja o suficiente para refutar tamb<strong>é</strong>m o monismo <strong>de</strong> tipos. Isto por<strong>que</strong>, sendo esta a<br />

forma mais forte <strong>de</strong> monismo, <strong>é</strong> condição suficiente para a<strong>que</strong>la outra, mais fraca. A<br />

rejeição do monismo <strong>de</strong> tipos faz-se então por duas vias: atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> uma<br />

argumentação directamente dirigida conta a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> psicofísica <strong>de</strong> tipos e pela<br />

refutação do monismo especimen-especimen.<br />

Para o monismo especimen-especimen, os eventos mentais particulares são<br />

idênticos a eventos físicos particulares, <strong>não</strong> obstante as proprieda<strong>de</strong>s por via das<br />

quais se dizem físicos ou mentais serem distintas. Um único evento exemplifica<br />

aspectos irredutíveis entre si: atributos físicos e atributos mentais. São proprieda<strong>de</strong>s<br />

diferentes, mas <strong>não</strong> eventos distintos. Há i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre cada fenómeno particular,<br />

embora <strong>não</strong> <strong>de</strong> tipos. Uma mesma ocorrência particular po<strong>de</strong> exemplificar tipo<br />

diferentes.<br />

Kripke recupera a permissa cartesiana da possibilida<strong>de</strong> da existência autónoma<br />

da mente relativamente <strong>ao</strong> corpo e propõe-se contruir um argumento <strong>que</strong> consiga<br />

rejeitar as formas <strong>de</strong> monismo acima <strong>de</strong>scritas. Nele são essenciais o princípio<br />

necessida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a tese kripkeana da <strong>de</strong>signação rígida.<br />

O princípio da necessida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, exposto no início <strong>de</strong> Naming and<br />

Necessity, constitui, como diss<strong>é</strong>mos, umas das permissas fulcrais da argumentação.<br />

Em termos meramente informais trata-se do seguinte:<br />

• É uma verda<strong>de</strong> lógica <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r coisa x <strong>é</strong> igual a si mesma.<br />

• Tamb<strong>é</strong>m pela lógica, aquilo <strong>que</strong> <strong>é</strong> verda<strong>de</strong>iro, <strong>é</strong>-o<br />

necessariamente, pelo <strong>que</strong>, se x=x, <strong>é</strong>-o necessariamente.<br />

• Suponhamos <strong>que</strong> y <strong>é</strong> um objecto idêntico a x.<br />

• A indiscirnibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> idênticos or<strong>de</strong>na <strong>que</strong> esta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a<br />

ser verda<strong>de</strong>ira, seja necessária, como em x=x.<br />

• Se isto <strong>é</strong> assim, y <strong>é</strong> necessariamente idêntico a x e <strong>não</strong> po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> o ser. Se for possível <strong>que</strong> y seja diferente <strong>de</strong> x, então, y <strong>é</strong><br />

necessariamente diferente <strong>de</strong> x.<br />

Descartes argumentou, com base neste raciocínio, <strong>que</strong>, po<strong>de</strong>ndo a mente<br />

existir sem o corpo, isto <strong>é</strong>, sendo possível <strong>que</strong> corpo e mente <strong>não</strong> fossem idênticos<br />

(por<strong>que</strong>, se o fossem, <strong>não</strong> haveria possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um existir sem o outro), então <strong>é</strong><br />

por<strong>que</strong> são <strong>de</strong> facto distintos. Aceitando a chamada intuição cartesiana, <strong>não</strong> há<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negar a esta conclusão.<br />

É a partir <strong>de</strong>ste argumento <strong>que</strong> Kripke <strong>de</strong>senvolve a sua refutação das teorias<br />

i<strong>de</strong>ntitativas da mente. Iremos aqui concentrar a nossa atenção na crítica <strong>ao</strong> monismo<br />

tipo-tipo, a tese mais forte, <strong>que</strong> procura i<strong>de</strong>ntificar mais radicalmente estados mentais<br />

com estados físicos.


Para tanto, <strong>é</strong> necessário termos presente o <strong>que</strong> <strong>é</strong> um <strong>de</strong>signador rígido e o <strong>que</strong><br />

implica a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre <strong>de</strong>signadores rígidos.<br />

Diz-se <strong>de</strong> um termo singular <strong>que</strong> <strong>é</strong> um <strong>de</strong>signador rígido <strong>de</strong> uma coisa quando<br />

<strong>de</strong>signa essa coisa, e nunca outra, em todos os mundos possíveis em <strong>que</strong> ela exista.<br />

A relação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>que</strong> se estabelece entre dois <strong>de</strong>signadores rígidos, <strong>é</strong>, se<br />

verda<strong>de</strong>ira, uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> necessariamente verda<strong>de</strong>ira. Isto por<strong>que</strong>, se cada um dos<br />

termos <strong>é</strong> rígido, <strong>de</strong>signa, cada um <strong>de</strong>les, o mesmo objecto em todos os mundos<br />

possíveis em <strong>que</strong> esse objecto exista. Se <strong>é</strong> verda<strong>de</strong> <strong>que</strong> há i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre os dois<br />

termos, então estes são co-referenciais e referem o mesmo objecto em qual<strong>que</strong>r<br />

mundo em <strong>que</strong> ele exista. Se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>é</strong> verda<strong>de</strong>ira em relação a uma situação em<br />

<strong>que</strong> o objecto em causa exista, então, <strong>é</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> necessariamente verda<strong>de</strong>ira,<br />

verda<strong>de</strong>ira em qual<strong>que</strong>r mundo possível.<br />

O monismo tipo-tipo preten<strong>de</strong> estabelecer relações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre tipos <strong>de</strong><br />

estados mentais e tipos <strong>de</strong> estados físicos, do mesmo g<strong>é</strong>nero das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

teóricas. Tomemos o exemplo clássico <strong>de</strong> estado mental “dor” e consi<strong>de</strong>remos <strong>que</strong><br />

“estimulação das fibras-C” <strong>de</strong>signa correctamente o fenómeno cerebral associado à<br />

dor. O monista <strong>de</strong> tipos afirma <strong>que</strong> “Dor <strong>é</strong> a estimulação das fibras-C”. “Dor” e<br />

“estimulação das fibras-C” são <strong>de</strong>signadores rígidos. Como tal, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>que</strong> se<br />

estabelece entre eles <strong>é</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> necessariamente verda<strong>de</strong>ira. Isto traduz-se<br />

numa relação <strong>de</strong> equivalência lógica <strong>que</strong> correspon<strong>de</strong> à afirmação <strong>de</strong> <strong>que</strong> tudo aquilo<br />

<strong>que</strong> <strong>é</strong> uma dor <strong>é</strong> uma estimulação das fibras–C e tudo aquilo <strong>que</strong> <strong>é</strong> uma estimulação<br />

das fibras-C <strong>é</strong> uma dor.<br />

As teorias i<strong>de</strong>ntitativas <strong>de</strong>ste g<strong>é</strong>nero estão comprometidas com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>que</strong><br />

<strong>não</strong> há dores sem a estimulação das fibras-C e vice-versa 1 , o <strong>que</strong> representa a<br />

negação da intuição cartesiana. Tal como Kripke a apresenta, esta consiste na<br />

constatação <strong>de</strong> <strong>que</strong> <strong>é</strong> possível, pelo menos logicamente, <strong>que</strong> a uma estimulação das<br />

fibras-C <strong>não</strong> corresponda qual<strong>que</strong>r dor. A premissa cartesiana <strong>é</strong> <strong>de</strong> facto uma intuição<br />

e <strong>não</strong> po<strong>de</strong> ser facilmente <strong>de</strong>scartada. O monista <strong>de</strong> tipos vê-se obrigado a explicar<br />

1<br />

É verda<strong>de</strong> <strong>que</strong> uma parte dos pensadores materialistas <strong>não</strong> enten<strong>de</strong> esta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como necessária,<br />

conferindo-lhe o estatuto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> contigente. Referimo-nos, por exemplo, às posições <strong>de</strong> Armstrong<br />

e Lewis. A dor <strong>é</strong> a estimulação das fibras-C mas po<strong>de</strong>ria ser outra coisa qual<strong>que</strong>r e continuar a ser dor.<br />

Contudo, esta perspectiva tem um preço <strong>de</strong>masiado alto, um vez <strong>que</strong> <strong>é</strong> inconsistente com a tese da<br />

<strong>de</strong>signação rígida e com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>que</strong> esta gera i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s necessariamente verda<strong>de</strong>iras, i<strong>de</strong>ias das<br />

quais <strong>não</strong> estamos dispostos a abdicar. Concentremo-nos, então, na tese <strong>que</strong> afirma a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

psicofísica <strong>de</strong> tipos como necessariamente verda<strong>de</strong>iras.


por<strong>que</strong> <strong>é</strong> <strong>que</strong>, se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre o físico e o mental <strong>é</strong> necessária, parece<br />

contingente.<br />

A explicação <strong>de</strong>sta ilusão <strong>de</strong> contingência <strong>é</strong> feita atrav<strong>é</strong>s do recurso <strong>ao</strong> <strong>que</strong><br />

acontece com outras i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> teóricas (necessárias a posteriori). Trata-se <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstrar <strong>que</strong> essas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s são erroneamente confundidas com outras, estas<br />

sim contingentes. Argumentando neste sentido, o <strong>de</strong>fensor da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos<br />

torna a permissa cartesiana plausível mas falsa. Consi<strong>de</strong>re-se, por exemplo, o caso da<br />

“água g<strong>é</strong>mea” <strong>de</strong> Putnam. Neste caso, em situações epist<strong>é</strong>micas qualitativamente<br />

idênticas, isto <strong>é</strong>, indiscirníveis, somos levados a usar o termo “água” equivocamente,<br />

sem <strong>que</strong> isso tenha quais<strong>que</strong>r consequências. Estamos perante a hipótese <strong>que</strong> relata<br />

a existência <strong>de</strong> um planeta análogo <strong>ao</strong> nosso (a Terra G<strong>é</strong>mea) no qual <strong>não</strong> existe H2O,<br />

mas um líquido com características superficiais absolutamente idênticas, servindo<br />

exactamente para o mesmo <strong>que</strong> a água, mas cuja composição química <strong>é</strong> XYZ. Uma<br />

vez <strong>que</strong> a referência <strong>é</strong> fixada tendo em conta as qualida<strong>de</strong>s sensíveis do objecto em<br />

causa, o <strong>de</strong>signador flexível “líquido aquoso” <strong>de</strong>screve tanto a substância H2O como a<br />

substância XYZ. Isto faz com pareça possível a água <strong>não</strong> ser H2O, uma vez <strong>que</strong> a<br />

“água” da Terra G<strong>é</strong>mea <strong>não</strong> <strong>é</strong>. Mas “água” <strong>é</strong> um <strong>de</strong>signador rígido, isto <strong>é</strong>, <strong>de</strong>signa o<br />

mesmo em qual<strong>que</strong>r mundo possível. E <strong>é</strong> rígido acerca do composto químico H2O, o<br />

<strong>que</strong> torna necessário <strong>que</strong> a água seja H2O. A única razão pela qual parece aceitável<br />

<strong>que</strong> a água possa ser XYZ <strong>é</strong> por<strong>que</strong> a <strong>de</strong>scrição (<strong>não</strong> rígida) <strong>que</strong> fixa a referência do<br />

termo água, fixa tamb<strong>é</strong>m a referência da “água g<strong>é</strong>mea”. A ilusão <strong>de</strong> contingência<br />

<strong>de</strong>ve-se a uma confusão entre “água po<strong>de</strong> <strong>não</strong> ser H2O” (sendo <strong>que</strong> ser H2O <strong>é</strong> a sua<br />

proprieda<strong>de</strong> essencial) e “o líquido aquoso po<strong>de</strong> <strong>não</strong> ser H2O” (sendo “líquido aquoso”<br />

a mera <strong>de</strong>scrição qualitativa <strong>que</strong> ajuda a fixar a referência). Esta última <strong>é</strong> verda<strong>de</strong>ira,<br />

traduz uma realida<strong>de</strong> perfeitamente possível, mas a primeira <strong>não</strong>. “Água <strong>é</strong> H2O” <strong>é</strong> uma<br />

verda<strong>de</strong> metafísica. A água <strong>é</strong> H2O e <strong>não</strong> po<strong>de</strong>ria <strong>não</strong> ser.<br />

A ilusão <strong>de</strong> contingência das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s teóricas, explicável atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong><br />

situações epist<strong>é</strong>micas indiscirníveis, <strong>não</strong> <strong>é</strong>, por<strong>é</strong>m, equivalente <strong>ao</strong> caso das<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s entre os tipos mentais e os tipos físicos. O facto <strong>de</strong> dores po<strong>de</strong>rem <strong>não</strong> ser<br />

idênticas a estimulações das fibras-C <strong>não</strong> po<strong>de</strong> ser reduzido a uma mera ilusão <strong>de</strong><br />

contingência. No caso mental, <strong>não</strong> há situações epist<strong>é</strong>micas equivalentes a dores <strong>que</strong><br />

<strong>não</strong> sejam dores. Estar na mesma situação epist<strong>é</strong>mica <strong>de</strong> <strong>que</strong>m tem uma dor <strong>é</strong> ter<br />

uma dor. Não há nada <strong>que</strong> pareça ser uma dor e <strong>não</strong> seja. Não há equívoco possível,<br />

como no caso da água, ou no caso do calor, exemplo explorado por Kripke. <strong>Por<strong>que</strong></strong><br />

tamb<strong>é</strong>m neste, como na<strong>que</strong>le, há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver situações em <strong>que</strong> outras<br />

condições, <strong>que</strong> <strong>não</strong> a agitação <strong>de</strong> mol<strong>é</strong>culas, provo<strong>que</strong>m a sensação <strong>de</strong> calor. Isto<br />

acontece por<strong>que</strong> o calor tem origem nesse movimento molecular, mas <strong>não</strong> <strong>é</strong> ele


próprio o movimento das mol<strong>é</strong>culas. Entre a realida<strong>de</strong> física <strong>que</strong> <strong>é</strong> o fenómeno <strong>de</strong><br />

calor e a sensação por ele provocada em nós há uma distância, um hiato, inexistente<br />

no caso mental. Entre o fenómeno <strong>de</strong> dor e a sensação <strong>de</strong> dor <strong>não</strong> há qual<strong>que</strong>r<br />

distância. A dor <strong>é</strong> o fenómeno e a experiência <strong>de</strong>sse fenómeno em simultâneo. A água<br />

tem aparência <strong>de</strong> água, mesmo <strong>que</strong> ningu<strong>é</strong>m tenha a percepção disso. O calor <strong>é</strong><br />

produzido, ainda <strong>que</strong> ningu<strong>é</strong>m tenha a sensação <strong>de</strong> calor. Mas a dor <strong>não</strong> po<strong>de</strong> existir<br />

sem ser sentida. Uma situação epist<strong>é</strong>mica equivalente à <strong>de</strong> dor, se <strong>não</strong> for realmente<br />

uma dor (=estimulação das fibras-C), põe em causa a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da dor com estado<br />

físico correspon<strong>de</strong>nte, <strong>que</strong> o monisto tipo-tipo preten<strong>de</strong>, uma vez <strong>que</strong> seria uma<br />

sensação <strong>de</strong> dor na ausência da estimulação das fibras-C. Conceber uma situação<br />

epist<strong>é</strong>mica equivalente à dor, <strong>é</strong> imaginar uma dor na ausência da estimulação das<br />

fibras-C e, conse<strong>que</strong>ntemente, negar a relação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre esta e a dor, <strong>que</strong>, a<br />

ser verda<strong>de</strong>ira, <strong>é</strong> necessariamente verda<strong>de</strong>ira. No caso da dor, aquilo <strong>que</strong> fixa a<br />

referência do termo <strong>não</strong> <strong>é</strong> nenhuma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s aci<strong>de</strong>ntais aparentes<br />

(como líquido aquoso, por exemplo). A própria referência do termo “dor” <strong>é</strong> fixada<br />

atrav<strong>é</strong>s da proprieda<strong>de</strong> essencial das dores: serem dores e serem sentidas como tal.<br />

A dor <strong>é</strong> uma proprieda<strong>de</strong> fenomenológica imediata. É ela mesma a sua proprieda<strong>de</strong><br />

fenomenológica essencial. Ao contrário do calor, <strong>que</strong> po<strong>de</strong> <strong>não</strong> ser sentido, a dor <strong>não</strong><br />

existe sem doer.<br />

Da argumentação kripkeana passa então a fazer parte uma tese <strong>de</strong> carácter<br />

essencialista <strong>que</strong> torna a dor um fenómeno inconcebível sem a fenomenologia<br />

associada: Se uma coisa <strong>é</strong> uma dor, então, se essa coisa existe, essa coisa <strong>é</strong> sentida<br />

como dor.<br />

A intuição cartesiana <strong>não</strong> po<strong>de</strong> ser afastada como simples ilusão <strong>de</strong><br />

contingência explicável nos termos em <strong>que</strong> <strong>de</strong>screvemos. E, se a intuição cartesiana<br />

<strong>não</strong> <strong>é</strong> afastada, <strong>não</strong> po<strong>de</strong>mos aceitar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> psicofísica <strong>de</strong> tipos, <strong>que</strong> se<br />

preten<strong>de</strong> necessária e, por isso inconsistente com ela.<br />

O argumento <strong>de</strong> Kripke contra a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> psicofísica <strong>de</strong> tipos po<strong>de</strong> resumir-se<br />

no seguinte: Todas as dores são necessariamente sentidas como dores. É<br />

metafisicamente possível <strong>que</strong> existam estimulações das fibras-C <strong>que</strong> <strong>não</strong> têm a<br />

fenomenologia da dor. Há, então, um mundo possível em <strong>que</strong> existem coisas tais <strong>que</strong><br />

são estimulações das fibras-C e <strong>que</strong> <strong>não</strong> são dores. Isto torna possível <strong>que</strong> dores <strong>não</strong><br />

sejam idênticas a estimulações das fibras-C, o <strong>que</strong>, pela necessida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />

tem como consequência <strong>que</strong> dores e estimulações das fibras-C sejam<br />

necessariamente distintas.<br />

Relativamente à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> particulares, o argumento usado em Naming<br />

and Necessity para o refutar <strong>é</strong> muito próximo <strong>de</strong>ste e baseia-se tamb<strong>é</strong>m no mesmo


pressuposto essencialista e na intuição cartesiana. Apesar <strong>de</strong> todo o cepticismo <strong>que</strong><br />

tem gerado, parece-nos ser <strong>de</strong> igual modo eficaz. Por<strong>é</strong>m, <strong>não</strong> o analisaremos aqui,<br />

pois limitámos o nosso objectivo à crítica do monismo <strong>de</strong> tipos.<br />

A resposta à <strong>que</strong>stão <strong>que</strong> dá o mote a este trabalho está dada, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

(como já referimos) da aceitação da tese <strong>de</strong> <strong>que</strong> as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s psicofísicas <strong>de</strong> tipos, a<br />

existirem, têm <strong>de</strong> ser necessárias. Esta posição, embora <strong>não</strong> consensual, parece-nos<br />

a mais plausível, se <strong>não</strong> <strong>que</strong>remos abdicar da tese da <strong>de</strong>signação rígida ou do<br />

princípio essencialista, como <strong>é</strong> o caso. Excluímos, então, alternativas como o<br />

Funcionalismo Analítico <strong>de</strong> David Lewis, <strong>que</strong>, i<strong>de</strong>ntificando estados mentais com<br />

pap<strong>é</strong>is causais, faz <strong>de</strong>stes proprieda<strong>de</strong>s contingentes dos estados neurofisiológicos<br />

correspon<strong>de</strong>ntes, ou seja, são funções <strong>de</strong>sempenhadas por um <strong>de</strong>terminado estado<br />

físico, mas po<strong>de</strong>riam ser <strong>de</strong>sempenhadas por qual<strong>que</strong>r outro.<br />

Deste ponto <strong>de</strong> vista, aquilo <strong>que</strong> Kripke mostra <strong>é</strong> <strong>que</strong> a relação entre tipos <strong>de</strong><br />

estados físicos e tipos <strong>de</strong> estados mentais <strong>não</strong> po<strong>de</strong> ser a <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, por<strong>que</strong>, a<br />

sê-lo, seria <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> necessária e o monismo <strong>não</strong> consegue dissipar o evi<strong>de</strong>nte<br />

elemento <strong>de</strong> contigência <strong>que</strong> há entre estas duas realida<strong>de</strong>s. Não obstante, esta<br />

perspectiva, <strong>não</strong> afasta a hipótese da Sobreveniência. Esta po<strong>de</strong>, então, constituir a<br />

resposta <strong>que</strong> o monismo <strong>de</strong> tipos <strong>não</strong> consegue dar <strong>ao</strong> problema da mente-corpo.


Bibliografia<br />

• Kripke, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Blackwell, 1980<br />

• McGinn, Colin, The Character of Mind, Oxford, OUP, 1996

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