Mais, ainda - Centro de Comunicação e Expressão - UFSC
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Eu apertei sua mão e não disse nada. Sabia pouco sobre Keats ou sua poesia, mas<br />
achava possível que na sua condição <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo não tivesse querido escrever<br />
precisamente porque a amava tanto. Naqueles dias eu andava pensando que o interesse<br />
da Clarissa por essas supostas cartas tinha algo a ver com a nossa própria história e com<br />
sua convicção <strong>de</strong> que o amor que não encontra expressão numa carta é menos que<br />
perfeito. Nos primeiros meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nos conhecermos e antes <strong>de</strong> comprarmos o<br />
apartamento ela havia me escrito umas coisas lindas, apaixonadamente abstratas em sua<br />
exploração dos modos como nosso amor era diferente e superior a qualquer outro que<br />
jamais existiu. Talvez seja essa a essência <strong>de</strong> uma carta <strong>de</strong> amor, a exaltação do único.<br />
Eu tinha me esforçado para respon<strong>de</strong>r à altura, mas tudo que a sincerida<strong>de</strong> me permitia<br />
eram os fatos, que me pareciam miraculosos o bastante: uma mulher bonita, amada e<br />
disposta a ser amada por um sujeito grandalhão, meio sem jeito, começando a per<strong>de</strong>r o<br />
cabelo e quase incapaz <strong>de</strong> acreditar na própria sorte.<br />
Chegando perto <strong>de</strong> Mai<strong>de</strong>nsgrove, paramos para observar o gavião. O balão<br />
talvez tenha cruzado <strong>de</strong> novo por cima <strong>de</strong> nossa trilha, enquanto passeávamos <strong>de</strong>ntro<br />
dos bosques que cobrem o vale em torno à reserva natural. Pelo início da tar<strong>de</strong>,<br />
chegamos a Ridgeway Path, caminhando rumo ao norte, junto à escarpa. Dali <strong>de</strong>scemos<br />
por uma das pontas largas <strong>de</strong> terra que se projetam a oeste, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os Chilterns até as<br />
plantações viçosas lá embaixo. Do outro lado do vale <strong>de</strong> Oxford dava para distinguir o<br />
perfil dos montes Cotswold e, mais além, talvez, os faróis <strong>de</strong> Brecon, elevando-se no<br />
meio <strong>de</strong> uma massa vagamente azul. Nosso plano era fazer o piquenique bem no fim,<br />
on<strong>de</strong> a vista era a mais bonita, mas o vento a esta altura estava forte <strong>de</strong>mais. Voltamos<br />
atravessando o campo e nos abrigamos entre os carvalhos, no lado norte. E foi por causa<br />
<strong>de</strong>ssas árvores que não vimos a <strong>de</strong>scida do balão. <strong>Mais</strong> tar<strong>de</strong> eu me perguntaria por que<br />
ele não fora carregado milhas adiante. <strong>Mais</strong> tar<strong>de</strong> <strong>ainda</strong>, fiquei sabendo que o vento a<br />
170 metros <strong>de</strong> altura, naquele dia, não era igual ao vento no chão.<br />
O assunto Keats foi morrendo enquanto a gente <strong>de</strong>sempacotava o almoço. A<br />
Clarissa tirou a garrafa da mochila e a passou para mim, segurando pelo fundo. Como já<br />
disse, o gargalo tocava a palma da minha mão quando ouvimos o grito. Era uma voz <strong>de</strong><br />
barítono, num tom ascen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> medo. Marcou um início e, é claro, um fim. Naquele<br />
momento, fechou-se um capítulo - não, um estágio inteiro - da minha vida. Tivesse eu<br />
consciência e um ou dois segundos <strong>de</strong> sobra, po<strong>de</strong>ria ter me permitido um mínimo <strong>de</strong><br />
nostalgia. Estávamos no sétimo ano <strong>de</strong> um casamento apaixonado, sem filhos. Clarissa<br />
Mellon estava apaixonada por outro homem também, mas com o seu bicentenário <strong>de</strong><br />
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