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Renato Viana Boy A heterogeneidade étnica da população ... - ICHS

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DEBATES SOBRE A NATUREZA DO CRISTO NO ORIENTE NO PRIMEIRO<br />

MILÊNIO E SUA RELAÇÃO COM A CRISE ICONOCLASTA<br />

1<br />

<strong>Renato</strong> <strong>Viana</strong> <strong>Boy</strong> *<br />

A <strong>heterogenei<strong>da</strong>de</strong> <strong>étnica</strong> <strong>da</strong> <strong>população</strong> do Império Bizantino, englobando<br />

árabes, gregos, eslavos, entre outros, formava um terreno fértil não só para o surgimento,<br />

mas também para a proliferação e manutenção de pensamentos divergentes aos dogmas<br />

cristãos. Mesmo porque, essa diversi<strong>da</strong>de de etnias se refletia também no campo religioso,<br />

pela presença <strong>da</strong>s três grandes religiões monoteístas em seu território: o ju<strong>da</strong>ísmo, o<br />

cristianismo e o islamismo.<br />

Assim, o que pretendemos demonstrar nessa comunicação é a diferença que<br />

existe entre as definições oficiais por parte <strong>da</strong> Igreja cristã no primeiro milênio e a praxes, a<br />

forma como o cristão vivia sua religião. Como exemplo, estaremos analisando duas formas<br />

de pensamentos considera<strong>da</strong>s heréticas, referentes à natureza do Cristo, e como elas foram<br />

utiliza<strong>da</strong>s, três séculos após sua condenação, para justificar argumentos iconoclastas<br />

durante a crise <strong>da</strong>s imagens, ocorri<strong>da</strong> nos séculos VIII e parte do IX. Para tanto, nosso foco<br />

central de análise será o sínodo iconoclasta convocado pelo imperador Constantino V, em<br />

754, na ci<strong>da</strong>de de Hieria.<br />

É interessante percebermos que, antes de o cristianismo encontrar na expansão<br />

árabe uma ameaça, viu alguns de seus dogmas ameaçados por conten<strong>da</strong>s internas. Como o<br />

Império Oriental tinha uma <strong>população</strong> heterogênea, as heresias encontravam ali um campo<br />

perfeito para a proliferação de suas idéias, particularmente junto às populações asiáticas.<br />

Esses pensamentos questionavam um dogma fun<strong>da</strong>mental do cristianismo: a dupla natureza<br />

de Cristo.<br />

De uma forma geral, as primeiras heresias dentro do cristianismo se referiam à<br />

definição <strong>da</strong> natureza de Cristo, principalmente no que diz respeito à sua relação com Deus-<br />

Pai. A primeira dessas definições heréticas foi o arianismo. Liderado pelo sacerdote e bispo<br />

alexandrino Ário (288-336), esse movimento negava a consubstanciali<strong>da</strong>de do Cristo em<br />

relação a Deus, afirmando ser o Filho, em questão de divin<strong>da</strong>de, inferior ao Pai. Sócrates,<br />

historiador do século V, expõe as doutrinas arianas através de uma carta do bispo de<br />

Alexandria aos fiéis. Nela, diz-se que<br />

(...) o Filho é uma criatura e uma obra. Que ele não é como o Pai no que<br />

respeita a substância nem é o ver<strong>da</strong>deiro e genuíno Verbo Divino, ou a<br />

ver<strong>da</strong>deira Sabedoria, mas certamente uma de suas obras e criaturas,<br />

visto que Ele próprio foi feito pelo Verbo de Deus e pela Sabedoria que<br />

está em Deus (...) (ESPINOSA, 1981, p.58)<br />

Através dessa exposição, fica claro que o arianismo não considerava as Três<br />

Pessoas <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de como iguais, pois via o Pai como não gerado e o Filho como uma<br />

criatura Sua.<br />

No primeiro concílio ecumênico do cristianismo, realizado em 325 na ci<strong>da</strong>de de<br />

Nicéia especificamente em função do arianismo, Ário foi condenado, sendo expresso o<br />

ponto de vista que acabou por se tornar o ortodoxo a partir desse primeiro concílio. Nele se<br />

* Licenciado e Bacharel em História pela Universi<strong>da</strong>de Federal de Ouro Preto


afirmou que Cristo é consubstancial (homousios – homo ousia, mesma essência) com o Pai,<br />

e não criatura Dele (JEDIN, 1961). Ário foi excomungado e expulso <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />

religiosa. Mesmo tendo sido declarado herético, o movimento não desapareceu logo após<br />

sua condenação em Nicéia, tendo persistido, e em alguns momentos, até recrudescido<br />

durante todo o século IV. Em 381, um novo concílio convocado por Teodósio, em<br />

Constantinopla, não só confirmou as definições nicenas de consubstanciali<strong>da</strong>de do Pai e do<br />

Filho como também afirmou a consubstanciali<strong>da</strong>de do Espírito Santo.<br />

Em Antioquia, após a condenação do arianismo, uma nova doutrina permeou o<br />

pensamento cristão. Segundo ela, Cristo teria duas naturezas distintas, a divina e a humana,<br />

sendo que a humana prevalecia. Sustenta<strong>da</strong> por Nestório, patriarca de Constantinopla, dizia<br />

esse pensamento, chamado de nestorianismo, que Cristo era um homem, no qual o Verbo<br />

teria residido, como num templo. Segundo Lemerle, os nestorianos afirmavam que Cristo<br />

seria “um homem que se tornou Deus”(LEMERLE, 1991, p.33). Percebemos aqui<br />

novamente a questão de se tentar definir a natureza de Cristo.<br />

Tal definição implicava diretamente no dogma do Concílio de Nicéia de 325,<br />

que viria a ser confirmado no Concílio de Éfeso (431), que afirmou ser Maria a “Mãe de<br />

Deus”, a Virgem Theotokos. Segundo o pensamento nestoriano, tendo Cristo nascido<br />

apenas com a natureza humana, Maria teria então sido então mãe <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de de Jesus,<br />

não de sua divin<strong>da</strong>de. Assim sendo, deveria ser chama<strong>da</strong> então de “Mãe de Cristo”(JEDIN,<br />

1961, p.24). Os nestorianos tiveram contra si os bispos <strong>da</strong> poderosa sede patriarcal de<br />

Alexandria, que pretendiam estender sua influência por todo o Oriente. Reunido um<br />

concílio na ci<strong>da</strong>de de Éfeso, em 431, o nestorianismo também foi condenado como heresia.<br />

Nestório foi deposto em Constantinopla e Cirilo, bispo de Alexandria, saiu fortalecido dessa<br />

disputa.<br />

Entretanto, Paul Lemerle e Hubert Jedin nos chamam a atenção para o fato de a<br />

doutrina professa<strong>da</strong> pelos alexandrinos também não ser totalmente ortodoxa. Ao exaltarem<br />

a natureza divina do Cristo, acabaram diminuindo a importância de sua natureza humana. O<br />

resultado foi uma nova heresia que, surgi<strong>da</strong> do combate ao nestorianismo, que só<br />

reconhecia em Cristo a natureza humana, acabou se envere<strong>da</strong>ndo pelo caminho oposto,<br />

reconhecendo nele a divin<strong>da</strong>de, mas restringindo sua condição de homem, que é condição<br />

para a salvação. Essa heresia ficou conheci<strong>da</strong> como monofisismo. Eutiques, abade de um<br />

mosteiro em Constantinopla, justificava o monofisismo, definindo que “(...) depois <strong>da</strong> união<br />

<strong>da</strong>s duas naturezas divina e humana em Cristo, esta foi absorvi<strong>da</strong> por aquela, de maneira<br />

que nessa altura só se pode falar de uma natureza, ou seja, a divina” (JEDIN, 1961, p.29).<br />

Novamente um concílio ecumênico foi reunido, convocado pelo imperador<br />

Teodósio II, Marciano (450-457), na ci<strong>da</strong>de de Calcedônia, em 451. Nesse concílio, uma<br />

profissão de fé definia a natureza de Cristo, combatendo tanto nestorianos quanto<br />

monofisistas. Afirmava que em Cristo existiam duas naturezas, a divina e a humana,<br />

inconfundíveis e inseparáveis, numa única hipóstase (substância). Assim, o Concílio <strong>da</strong><br />

Calcedônia definiu que:<br />

(...) o Filho e Nosso Senhor Jesus Cristo são um só e o mesmo, que Ele é<br />

perfeito na divin<strong>da</strong>de e perfeito na humani<strong>da</strong>de, ver<strong>da</strong>deiro Deus e<br />

ver<strong>da</strong>deiro homem, com uma alma racional e um corpo, consubstancial<br />

com o Pai segundo a sua divin<strong>da</strong>de e consubstancial conosco pela sua<br />

humani<strong>da</strong>de (...) (ESPINOSA, 1981, p.59).<br />

2


Portanto, segundo o Concílio <strong>da</strong> Calcedônia, Cristo possui as duas naturezas, a<br />

humana e a divina, sem que a união anule a diferença. Essa definição ataca o monofisismo,<br />

ao afirmar ter Cristo as duas naturezas. A definição que ataca o nestorianismo se encontra<br />

no seguinte trecho: “(...) nascido do Pai antes de todos os séculos segundo a Sua divin<strong>da</strong>de<br />

(...)” (ESPINOSA, 1981, p.59), onde se afirma que Cristo não nasceu apenas como homem,<br />

sendo só mais tarde habitado pelo Verbo, como afirmava Nestório, mas que já nasceu<br />

divino. Assim, consoli<strong>da</strong>va-se também a Maria o título de Theotokos, Mãe de Deus, e não<br />

mãe apenas <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de do Cristo. “(...) nascido <strong>da</strong> Virgem Maria, Mãe de Deus nestes<br />

últimos dias por causa de nós e <strong>da</strong> nossa salvação, de acordo com a sua<br />

humani<strong>da</strong>de”(ESPINOSA, 1981, p.59). Vê-se por esse trecho a importância <strong>da</strong> condição<br />

humana de Cristo para a salvação.<br />

O texto do concílio finaliza reafirmando a consubstanciali<strong>da</strong>de do Filho, e a<br />

indivisibili<strong>da</strong>de de suas duas naturezas, também iconfundíveis.<br />

Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor Unigênito, em duas naturezas<br />

inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis, (...) concorrendo<br />

numa só pessoa e hipóstase, não separa<strong>da</strong> ou dividi<strong>da</strong> em duas pessoas,<br />

mas um só e o mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus<br />

Cristo, como desde o princípio os profetas anunciaram a seu respeito e<br />

como Jesus Cristo, ele mesmo, nos ensinou, e como credo dos Padres<br />

nos transmitiu. (ESPINOSA, 1981 p.59)<br />

É importante ressaltar ain<strong>da</strong> que foi nesse concílio que houve a confirmação <strong>da</strong><br />

superiori<strong>da</strong>de do papa Leão I (440-461), bispo de Roma, sobre to<strong>da</strong> a Igreja Cristã, além <strong>da</strong><br />

superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sede de Constantinopla sobre os demais bispos do Oriente. Percebe-se<br />

assim que essas definições representaram uma derrota para Alexandria, tanto no que diz<br />

respeito à sua submissão ao patriarca de Constantinopla quanto a suas idéias monofisistas.<br />

Embora condenado pela Igreja, o pensamento monofisista continuou vivo no<br />

Egito e na Síria, duas <strong>da</strong>s mais ricas províncias do Império. Essa falta de uni<strong>da</strong>de do<br />

pensamento cristão verifica<strong>da</strong> entre a capital e as províncias orientais de Bizâncio foi<br />

inclusive um fator facilitador para a conquista desses territórios pelos árabes, no século VII,<br />

visto que os muçulmanos toleravam a existência de outras religiões de Livro (assim<br />

chamados o Cristianismo e o Ju<strong>da</strong>ísmo, por terem seus ensinamentos redigidos em livros<br />

sagrados, respectivamente, a Bíblia e a Torá), mediante pagamento de impostos. Em<br />

contraparti<strong>da</strong>, os ortodoxos de Constantinopla visavam manter, através de sínodos e<br />

concílios, um pensamento cristão uniforme, sem divergências internas. Com isso, os bispos<br />

de Constantinopla procuravam afirmar sua superiori<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong>s demais sedes episcopais<br />

do Oriente ( Alexandria, Antioquia e Jerusalém).<br />

Assim, segundo Lemerle, sírios e egípcios teriam preferido se submeter à<br />

dominação do império árabe, onde poderiam manter livremente seu próprio culto, livres <strong>da</strong>s<br />

intervenções de Constantinopla, à resistirem à expansão islâmica (1991). Concor<strong>da</strong>ndo com<br />

Lemerle, Franz Georg Maier completa essa idéia, afirmando que isso se devia ao fato de os<br />

árabes não obrigarem os povos conquistados a se converterem ao islamismo, tolerando,<br />

mediante pagamento de impostos, a liber<strong>da</strong>de de culto para as chama<strong>da</strong>s “religiões de<br />

livro”(MAIER, 1986, p.284). Nesse acontecimento, embora à primeira vista percebamos<br />

apenas um conflito religioso, podemos detectar sérias conseqüências econômicas e militares<br />

3


para Bizâncio, visto que o império se viu, após as invasões árabes do século VII, destituído<br />

de suas mais ricas províncias.<br />

Apesar dessas definições, Síria e Egito mantiveram ain<strong>da</strong> vivo o pensamento<br />

monofisista, deixando claro as oposições que poderíamos chamar de nacionalistas entre esta<br />

região e a capital do Império, tendo como pano de fundo uma disputa teológica. Essa<br />

oposição, segundo Lemerle, marca a linha de ruptura dessa parte do território bizantino em<br />

relação às demais locali<strong>da</strong>des, ruptura essa que mais tarde facilitou a separação dessa região<br />

quando <strong>da</strong>s invasões árabes no século VII (1991).<br />

Mas, enfim, por que nos remetermos a debates cristológicos dos primeiros<br />

séculos do cristianismo, quando estamos nos referindo a um movimento iniciado quase três<br />

séculos após o Concílio <strong>da</strong> Calcedônia, que teoricamente colocou um ponto final nas<br />

discussões em torno <strong>da</strong> natureza de Cristo?<br />

A importância dos estudos sobre o monofisismo e o nestorianismo, condenados<br />

pela Igreja no século V, para o estudo <strong>da</strong> crise iconoclasta, está no fato de essas duas<br />

heresias justificarem a proibição do culto de imagens no sínodo de Hieria, em 754.<br />

Ressaltamos que esse sínodo não foi o ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> crise <strong>da</strong>s imagens. Seu início se<br />

deu com o imperador Leão III, o Isáurico (assim chamado, embora fosse natural <strong>da</strong><br />

Germanicéia). Na Isáuria, província de onde sua família era natural, o culto de imagens era<br />

rejeitado pelos cristãos. Nessa região <strong>da</strong>. Ásia Menor, o movimento iconoclasta havia<br />

chegado no século VIII e se intensificado no contato com a religião muçulmana, contrária à<br />

representação <strong>da</strong> figura humana. É muito provável que Leão III tenha sido influenciado<br />

pelas opiniões dos bispos dessa região.(KNOWLES, OBOLENSKY, 1974, p.96).<br />

Provavelmente por esse motivo o novo imperador se opunha a esse culto, considerando-o<br />

um ato de idolatria. Pensando em evitar um culto idolátrico às imagens cristãs, Leão III<br />

promulgou em 726 o primeiro edito contra os ícones, ordenando mais tarde (provavelmente<br />

em 730) a sua destruição, onde quer que eles se encontrassem.<br />

Mas foi com Constantino V, Coprônimo (740-775), filho e sucessor de Leão III,<br />

que a política iconoclasta ganhou uma força ain<strong>da</strong> maior. Imperador enérgico e muito culto,<br />

convocou para Hieria, locali<strong>da</strong>de próxima a Calcedônia, um sínodo, o qual deu à destruição<br />

de ícones um teor mais dogmático e teológico. Desse sínodo participaram trezentos e trinta<br />

e oito bispos, a maioria <strong>da</strong> parte oriental do Império. Nem o papa, nem os patriarcas de<br />

Antioquia, Jerusalém ou Alexandria participaram desse sínodo. Por isso ficou conhecido<br />

como sínodo “acéfalo”, visto que além <strong>da</strong>s ausências cita<strong>da</strong>s, o patriarcado de<br />

Constantinopla estava vago. A presidência dos trabalhos ficou a cargo de Teodósio de<br />

Éfeso.<br />

Constantino V apresentou aos bispos um tratado teológico no qual afirmava que<br />

a veneração dos ícones não era idolatria, mas sim heresia. A diferença desses dois conceitos<br />

é sutil. Segundo Alain Besançon, idolatria é o culto de ídolos, ou seja, de uma representação<br />

de uma divin<strong>da</strong>de falsa (BESNAÇON, 1997, pp109-110). Já heresia seria uma doutrina que<br />

contradiz diretamente os dogmas propostos pela Igreja Católica a seus fiéis acerca do<br />

ver<strong>da</strong>deiro Deus. 1<br />

É precisamente nesse ponto que reside o nosso interesse em expor os<br />

fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>s heresias cristológicas, tal como acabamos de fazer, pois o sínodo<br />

1 A Enciclopédia Espasa-Calpe assim define Heresia: “doctrina que se opone imediatamente á uma ver<strong>da</strong>d<br />

defini<strong>da</strong> por la Iglesia como revela<strong>da</strong> por Dios.” ENCICLOPÉDIA ESPASA-CALPE. Vol. 27. pp. 1166-<br />

1167. verbete Heresia.<br />

4


considerou a representação pictórica do Cristo como elemento contrário às decisões do<br />

Concílio Ecumênico <strong>da</strong> Calcedônia, reunido em 451 (ou seja, uma heresia). Nele ficou<br />

definido que no Cristo existiam as duas naturezas, a humana e a divina, sem confusão, sem<br />

mu<strong>da</strong>nça, sem divisão e nem separação. 2<br />

Cyril Mango afirma que o culto aos ícones assumiu uma importância crescente<br />

na devoção cristã desde o século VI, eclodindo como movimento oficial do Estado com o<br />

imperador Leão III, com já dissemos anteriormente. Mango nos chama ain<strong>da</strong> a atenção para<br />

dois importantes pontos sobre a política iconoclasta. Primeiramente, ele nos mostra que o<br />

iconoclasmo não foi um fenômeno puramente bizantino, tendo suas origens na Síria,<br />

estendendo-se à região do Cáucaso e ao mundo semita. Outro ponto é que a política de<br />

destruição de ícones foi coloca<strong>da</strong> em vigor num momento em que, no plano externo, os<br />

árabes pressionavam seu território, conquistando as já menciona<strong>da</strong>s províncias bizantinas<br />

no Oriente (Egito, Síria e Palestina). Tanto o imperador quanto seus conselheiros atribuíam<br />

os fracassos militares diante dos árabes à ira divina, devido ao crescimento <strong>da</strong> idolatria<br />

pratica<strong>da</strong> em relação às imagens na Igreja cristã (1993).<br />

No concílio de Hieria, Constantino V proibiu a representação pictórica e o culto<br />

de divin<strong>da</strong>des dentro do cristianismo. A justificativa para a proibição do culto às imagens<br />

possuía duas vertentes: ou se admitia que o Verbo tivesse sido circunscrito com a carne, e<br />

assim sua representação fosse digna de culto, ou então se admitia que o que foi representado<br />

na pintura teria sido apenas a natureza humana do Cristo, separa<strong>da</strong> do Verbo divino. Em<br />

ambos os casos, o sínodo enquadrava o culto de imagens não no pecado <strong>da</strong> idolatria, mas o<br />

encarava como uma heresia, contrariando um dogma <strong>da</strong> Igreja. No primeiro caso,<br />

condenava-se o cristão por prática do monofisismo, que se opunha à doutrina <strong>da</strong>s duas<br />

naturezas do Cristo, admitindo Nele apenas a natureza divina separa<strong>da</strong> <strong>da</strong> humana. No<br />

segundo, haveria uma distinção clara entre as duas naturezas, representando-se apenas a<br />

humana. Essa heresia ficou conheci<strong>da</strong> como nestorianismo, que afirmava que o Cristo era<br />

portador de duas naturezas distintas.<br />

Cyril Mango nos apresenta uma tradução para o inglês do Horos (definição)<br />

desse sínodo, extraído <strong>da</strong> monumental coleção de atas dos concílios, de Mansi, do qual<br />

retiramos o seguinte trecho que relaciona a iconofilia às heresias cristológicas dos primeiros<br />

séculos:<br />

... we have found that illicit craft of the painter was injurious to the crucial<br />

doctrine of our salvation, i. e., the incarnation of Christ, and that it<br />

subverted the six ecumenical concils that had been convened by God,<br />

while upholding Nestorius who divided into two sons the one Son and<br />

Logos of God who became man for our sake; yea 3 [sic], and Arius, too,<br />

and Dioscorus and Eutyches and Severus who taught the confusion and<br />

mixture of the one Christ’s two natures (MANGO, 1993, p.165). 4<br />

2 CALCEDÔNIA. In: Enciclopédia Espasa-Calpe. Vol. 10. pp. 574-575.<br />

3 Embora tenhamos encontrado uma tradução para o termo yea como uma forma arcaica e formal de sim<br />

(Illustrated Oxford Dictinary, p. 967), acreditamos que esse caso possa se tratar de um erro de tradução <strong>da</strong><br />

versão de Cyril Mango. Por esse motivo, na tradução para o português apresenta<strong>da</strong> nesse trabalho, optamos<br />

por trancrevê-lo como ele.<br />

4 “Nós temos estabelecido que a ilícita arte do pintor era injuriosa para a crucial doutrina <strong>da</strong> nossa salvação, i.<br />

e., a encarnação de Cristo, e que ela subverte o sexto concílio ecumênico que tinha sido convocado por Deus,<br />

enquanto defendendo Nestório que dividiu em dois filhos o único Filho e Logos de Deus que tornou-se<br />

5


O texto do concílio condena tanto o pintor de imagens, por tentar representar o<br />

“inacessível”, quando o fiel que as reverencia: “How senseless is the notion of the painter<br />

who from sordid love of gain purses the unattainable (...). So also, he who reveres [images]<br />

is guilty of the same blasphemes” (MANGO, 1993, p.166) 5 .<br />

O argumento iconófilo de que a pintura representa a Encarnação de Cristo, o<br />

qual pôde ser vista e toca<strong>da</strong>, foi rebati<strong>da</strong> habilmente por Constantino V, que considerou essa<br />

atitude como prática herética do nestorianismo. Afirma-se no concílio a respeito desse<br />

pensamento:<br />

which is an impiety and an invention of the evil genious of Nestorius. (…)<br />

Granted, therefore, that at the Passion the Godhead remained inseparable<br />

from these [i.e., Christ’s body and soul], how is it that these senseless<br />

men… divide the flash that had been fused with the Godhead and [itself]<br />

deifield, and attempt to paint a picture as if it were that of a mere man?<br />

(MANGO, 1993, p.166.)<br />

A Igreja já havia condenado, ain<strong>da</strong> no século V, esses dois pensamentos sobre a<br />

natureza do Cristo, o nestorianismo e o monofisismo, através dos concílios ecumênicos de<br />

Éfeso (431) e <strong>da</strong> Calcedônia (451), proclamando Cristo como “único em duas naturezas”<br />

(LEMERLE, 1991, p.35), “Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, em duas<br />

naturezas inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis (...)”(ESPINOSA, 1981,<br />

p.59). Ou seja, Jesus possuiria as naturezas humana e divina, inseparáveis e inconfundíveis,<br />

em uma só pessoa. Nesse ponto reside para nós a importância do estudo dos debates em<br />

torno <strong>da</strong>s naturezas de Cristo ain<strong>da</strong> nos primeiros séculos do cristianismo, pois eles<br />

serviram, mais tarde, como base <strong>da</strong> argumentação iconoclasta para a destruição de ícones.<br />

Assim, pretendemos chamar a atenção para o fato de as discussões cristológicas<br />

dos primeiros séculos do cristianismo não terem cessado simplesmente com a sua<br />

condenação na Calcedônia em 451. Ao contrário, elas permaneceram vivas no pensamento<br />

cristão oriental, ameaçando a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong>de ortodoxa e serviram como argumento<br />

sutilmente convincente para justificar o fenômeno <strong>da</strong> iconoclastia cerca de trezentos anos<br />

mais tarde. Mas um <strong>da</strong>do particularmente complexo reside no seguinte fato: os iconoclastas<br />

utilizaram <strong>da</strong> teologia precedente não para justificar sua concepção, como se poderia supor<br />

a primeira vista, mas sim para confundir os iconófilos, num típico exercício de retórica e<br />

sofística.<br />

O argumento apresentado em Hieria foi tão bem formulado que reapareceu para<br />

justificar o iconoclasmo em sua segun<strong>da</strong> fase no século IX, com a dinastia amórica.<br />

homem por nossa causa; ele, e Ário também e Dióscurus e Eutiques e Severus que ensinaram a confusão e<br />

mistura do único Cristo em duas naturezas.”<br />

5 “Que insensata é a noção do pintor de sórdido amor de alcançar o inatingível (...). Então também, quem<br />

reverencia [imagens] é culpado <strong>da</strong> mesma blasfêmia”.<br />

6


Referências bibliográficas:<br />

Fontes:<br />

ESPINOSA, Fernan<strong>da</strong>. Antologia de textos históricos medievais. 3ª edição. Lisboa: Sá <strong>da</strong><br />

Costa Editora, 1981. 346 p.<br />

MANGO, Cyril. The art of the Byzantine Empire, 312-1453: Sources and Documents.<br />

Toronto: University of Toronto Press, 1993. 272 p.<br />

Obra de referência:<br />

ENCICLOPÉDIA UNIVERSAL ILUSTRADA EUROPEO-AMERICANA. Espasa-calpe<br />

S.A. Madrid: Ríos Rosas, 1926.<br />

Bibliografia geral:<br />

BESANÇON, Alain. A Iconoclastia: o Ciclo Antigo. In: A imagem proibi<strong>da</strong>; uma história<br />

intelectual <strong>da</strong> iconoclastia. Tradução de Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,<br />

1997. pp.23-238.<br />

JEDIN, Hubert. Concílios Ecumênicos; história e doutrina. Tradução de Nicolas Bóer. São<br />

Paulo: Editora Herder, 1961 . 191 p.<br />

KNOWLES, David; OBOLENSKY, Dimitri. A Igreja Bizantina. In: Nova história <strong>da</strong><br />

Igreja. Vol. II. A I<strong>da</strong>de Média. Tradução de João Fagundes Hanck. Petrópolis: Vozes,<br />

1974. pp. 89-113.<br />

LEMERLE, PAUL. História de Bizâncio. Tradução de Marilene Pinto Machado. São<br />

Paulo: Martins Fontes, 1991. (Universi<strong>da</strong>de Hoje). 121 p.<br />

MAIER, Franz Georg. Bizâncio. Vol. 13. México: Siglo Veinteuno Editores, 1986.<br />

(História Universal Siglo Veinteuno).<br />

____________ Las transformaciones del mundo mediterráneo, siglos III-VIII. México:<br />

Siglo Veinteuno editores, 1986. 413 p.<br />

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