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NARCISISMO - UFSCar

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS<br />

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS<br />

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA<br />

<strong>NARCISISMO</strong><br />

São Carlos<br />

2 º semestre de 2002<br />

Elisângela Barboza Fernandes


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS<br />

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS<br />

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA<br />

<strong>NARCISISMO</strong><br />

Elisângela Barboza Fernandes<br />

Monografia apresentada como conclusão da<br />

disciplina Pesquisa em Psicologia 8, para a<br />

obtenção do título de Bacharel em<br />

Psicologia, sob orientação da Profa.<br />

Georgina Faneco Maniakas.<br />

São Carlos<br />

2 º semestre de 2002<br />

2


Agradeço<br />

A minha mãe<br />

A minha irmã Viviane e meu irmão Leo<br />

Aos meus amigos, presentes mesmo nas madrugadas dos domingos<br />

A professora Georgina pela compreensão e disponibilidade<br />

E a todos os que indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho.<br />

3


Sumário<br />

RESUMO..............................................................................................................5<br />

INTRODUÇÃO...................................................................................................7<br />

1. A PRIMEIRA TÓPICA E O <strong>NARCISISMO</strong>............................................................................................ 11<br />

1.1. Considerações iniciais do conceito......................................................................................................11<br />

1.2. Introdução ao narcisismo (1914)......................................................................................................... 17<br />

1.2.1. As relações do narcisismo com as pulsões e a libido ...................................................................18<br />

1.2.2.. As relações entre autoerotismo, narcisismo e escolha objetal...................................................21<br />

1.2.3. A questão do ideal do ego................................................................................................................. 24<br />

1.2.4. Narcisismo primário e narcisismo secundário...............................................................................27<br />

1.2.5. Comparação entre narcisismo e os estados “normais” e entre narcisismo e as afecções<br />

psíquicas..........................................................................................................................................................29<br />

1.3. O narcisismo nos Artigos metapsicológicos posteriores à introdução do conceito...................34<br />

1.3.1. Pulsões e seus destinos (1915)...........................................................................................................34<br />

1.3.2. Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1915).........................................................36<br />

1.3.3. Luto e melancolia (1917 [1915]).........................................................................................................40<br />

1.3.4. A teoria da libido e o narcisismo - 26ª Conferência (1916-17).....................................................43<br />

1.3.5. As neuroses narcísicas....................................................................................................................... 48<br />

2. A PASSAGEM DA PRIMEIRA PARA A SEGUNDA TÓPICA E O <strong>NARCISISMO</strong>......................54<br />

3. A SEGUNDA TÓPICA E O <strong>NARCISISMO</strong>.............................................................................................59<br />

3.1. Além do princípio de prazer (1920).....................................................................................................59<br />

3.2. Psicologia das massas e análise do ego (1921)...................................................................................72<br />

3.3. O ego e o id (1923)...................................................................................................................................82<br />

3.4. As relações entre narcisismo e complexo de Édipo..........................................................................98<br />

3.5. Esboço de psicanálise (1940 [1938])...................................................................................................104<br />

CONCLUSÃO..................................................................................................111<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................114<br />

4


RESUMO<br />

A teoria do narcisismo, elaborada por Freud, foi de grande importância para o<br />

desenvolvimento de sua teoria psicanalítica. Freud segue um longo caminho, tanto<br />

para o desenvolvimento do conceito, quanto para explicitar as suas conseqüências<br />

para a formulação de conceitos posteriores. O que procuraremos apresentar neste<br />

estudo, rastreando o conceito ao longo da obra, são os textos principais que marcaram<br />

essa caminhada.<br />

A princípio o conceito é investigado à luz dos casos de homossexualidade no<br />

estudo sobre Leonardo da Vinci e na Análise do caso Schreber. Logo é concebido<br />

enquanto fase intermediária entre o autoerotismo e a escolha de objeto, dentro do<br />

campo da normalidade, estando ligado, inclusive - por meio da visão antropológica -<br />

ao sentimento de onipotência dos povos primitivos em Totem e tabu.<br />

Sua introdução produz alterações e começa a abalar a teoria pulsional<br />

formulada nos Três ensaios da teoria sexual, que concebe o conflito psíquico como um<br />

conflito entre pulsões sexuais e pulsões de auto-conservação. Dentro do artigo<br />

Introdução do narcisismo são apresentadas as relações do narcisismo com as diferentes<br />

expressões que se fazem essenciais para seu entendimento, entre elas e de<br />

fundamental importância, estão as noções de identificação e escolha objetal, seguido<br />

de outros artigos metapsicológicos, decisivos para a compreensão da importância do<br />

conceito, como, por exemplo, Luto e melancolia.<br />

Destes textos apreende-se que tanto o narcisismo quanto o investimento objetal<br />

mostram-se fundamentais para a formação do sujeito, uma vez que são os<br />

investimentos narcísicos, oriundos dos cuidados maternos, que confirmarão ou não à<br />

criança o seu lugar como objeto de amor, estando, portanto, na base do que<br />

conhecemos por auto-estima.<br />

São abordadas as questões introduzidas pelo narcisismo para a passagem da<br />

primeira para a segunda divisão tópica do aparelho psíquico e explanadas as<br />

5


alternativas explicativas utilizadas. Entre estas, a principal é a introdução da oposição<br />

entre pulsões de vida e pulsões de morte, mais especificamente tratada em O ego e o id.<br />

Nesse sentido, mais uma vez o narcisismo tem um papel fundamental, tanto<br />

para a consolidação da reestruturação do psiquismo quanto para o advento da<br />

segunda teoria pulsional, pois foi a observação da dissociação entre as pulsões de vida<br />

e de morte, na melancolia, que permitiu a Freud proceder à descrição da segunda<br />

teoria pulsional, ao mesmo tempo em que novas instâncias psíquicas precisaram ser<br />

elaboradas para responder pela gênese psíquica das afecções narcísicas.<br />

6


INTRODUÇÃO<br />

Podemos dividir a obra freudiana em dois grandes momentos do pensamento<br />

de seu autor. O primeiro momento corresponde à primeira divisão tópica do aparelho<br />

psíquico, e compreende os períodos 1885 a 1919, e o segundo momento corresponde à<br />

segunda divisão tópica do aparelho, que compreende o período de 1920 a 1939.<br />

A passagem da primeira para a segunda tópica ocorre por meio da retomada e<br />

da alteração de alguns conceitos, além da introdução de outros, envolvidos no<br />

desenvolvimento e fundamentação da estrutura teórico-explicativa freudiana.<br />

Entre as noções consideradas fundamentais para a “virada” dos anos 20, a<br />

noção do narcisismo exerce um papel capital, pois a idéia de investimento do ego pela<br />

libido, que ela introduz, não permite mais a manutenção de um suposto conflito<br />

pulsional entre pulsões sexuais e pulsões egóicas. A partir daí, Freud se vê obrigado a<br />

introduzir um novo dualismo pulsional.<br />

A Primeira tópica distingue três sistemas, inconsciente, pré-consciente e<br />

consciente, cada um com sua função, tipo de processo, tipo de funcionamento e<br />

energia de investimento, e conteúdos representativos específicos. Esses sistemas estão<br />

em conflito entre si de modo que entre eles situam-se censuras que inibem e<br />

controlam a passagem da representação de um sistema para outro. Existe, portanto,<br />

uma sucessão de sistemas mnêmicos constituídos por grupos de representações<br />

caracterizadas por leis de associações distintas.<br />

A passagem de energia de um sistema para outro deveria seguir uma ordem de<br />

sucessão determinada. Os sistemas podem ser percorridos pelos processos de<br />

investimento psíquico numa direção normal, progressiva (do inconsciente ao<br />

consciente), ou num sentido regressivo (do consciente ao inconsciente), como ocorre<br />

nos sonhos - a chamada ‘regressão tópica’. Freud assinala que todo processo psíquico<br />

se situa entre a extremidade perceptiva e a extremidade motora do aparelho. Ele<br />

7


apresenta como função primária do aparelho a descarga completa da excitação, o que<br />

chama de princípio de inércia.<br />

Freud apresenta a idéia de que o funcionamento mental seria regido por dois<br />

processos psíquicos inconscientes: processo primário e processo secundário. O<br />

processo primário obedece ao princípio de prazer, que compreende a evitação do<br />

desprazer e a busca de atos que levem ao prazer. A repressão, como parceira nesta<br />

busca, age sobre as atividades psíquicas que geram desprazer.<br />

Os dois princípios surgiriam antagônicos, na medida que a realização de um<br />

desejo inconsciente não estaria ligada à satisfação das necessidades vitais<br />

correspondentes às pulsões de autoconservação, mas corresponderia a exigências e<br />

funcionaria segundo as leis do princípio de prazer ligado à pulsão sexual - objeto<br />

privilegiado do recalcamento inconsciente O princípio de realidade se estabeleceria<br />

porque o princípio de prazer não pode manter a vida do indivíduo; ele é regido pelo<br />

que é real, ainda que seja desagradável. A derrota do princípio do prazer se dá por<br />

meio do abandono de um prazer fantasístico e momentâneo, em favor da busca de um<br />

prazer futuro, porém real e duradouro. 1.<br />

Antes da introdução do termo narcisismo, o conflito psíquico se reduzia à<br />

oposição, de um lado, entre as pulsões de autoconservação, as forças recalcantes, o<br />

princípio da realidade e o sistema Pcc/Cc; e de outro, entre as pulsões sexuais, as<br />

representações recalcadas, o princípio do prazer e o sistema Icc. As pulsões sexuais<br />

seriam inconciliáveis com o ego e, portanto, geradoras de desprazer, enquanto as<br />

pulsões de autoconservação estariam a serviço do ego, a instância que representaria as<br />

exigências da realidade.<br />

A tentativa de estabelecer uma divisão rígida entre, por um lado, o ego<br />

consciente como agente repressor, e, de outro, o reprimido inconsciente, não se<br />

mantém. A qualidade de consciente mostrou-se insuficiente para abranger os<br />

domínios ego.<br />

1 Freud.Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911), v. 12, pp. 224-31.<br />

8


Com a introdução do conceito de narcisismo as pulsões de autoconservação<br />

permaneceriam opostas às pulsões sexuais, embora estas se encontrassem divididas,<br />

agora, em libido de objeto e libido do ego. O próprio ego aparece investido de libido,<br />

ou seja, a pulsão sexual investe o ego. Como conciliar o ego, representante da<br />

realidade com um investimento sexual no próprio ego? As pulsões egóicas e os<br />

desejos libidinais poderiam manter-se separados? E a libido? Seria ela uma energia<br />

geral e não apenas sexual? Nesse ponto as coisas se complicam e se misturam, pois ao<br />

ego se atribui o investimento sexual.<br />

Até esse momento, o modelo de estruturação do psiquismo de Freud faz<br />

coincidir o recalcado com o sistema Icc e o ego com os sistemas Pcc/Cc. De um lado as<br />

pulsões sexuais e do outro as egóicas. Mas agora o ego tem uma parte icc e também é<br />

investido de libido, o que torna confusa a distinção entre pulsões sexuais e pulsões<br />

egóicas.<br />

Apesar de reconhecer as falhas do antigo dualismo pulsional, Freud só o<br />

abandona quando dispõe de um novo, já presente em Além do princípio de prazer, mas<br />

só realmente explicitado em O ego e o Id.<br />

Com a Segunda tópica, Freud propõe novas instâncias psíquicas para o aparelho,<br />

a saber, o Id (Isso), o Ego (Eu) e o Superego (Supereu). As duas últimas seriam<br />

formadas a partir das primeiras identificações e dos investimentos objetais<br />

correspondentes. Dentro das instâncias são identificadas formações específicas –<br />

ideais e instâncias críticas - como é o caso do ideal do ego.<br />

O autor dá importância às relações entre estas instâncias e entre estas e os<br />

sistemas, bem como para as relações de dependência existentes entre os sistemas. Mas<br />

não estabelece uma correspondência entre sistemas e instâncias, da mesma forma que,<br />

na primeira tópica, não pôde estabelecer uma correspondência entre ego e sistema<br />

Pcc/Cc.<br />

Neste novo modelo de aparelho psíquico, o prazer e o desprazer possuem um<br />

papel essencial. O princípio da constância, formulado por Freud desde o Projeto de<br />

Psicologia (1895), retoma o lugar fundamental para a explicação da dinâmica do<br />

9


aparelho. Freud descreve uma tendência constante do aparelho para redução de<br />

tensão, sendo que dada as exigências de vida a quantidade de energia deve-se manter<br />

constante ou o mais baixa possível.<br />

Uma outra razão para a mudança da primeira para a segunda tópica se dá<br />

devido à consideração, cada vez maior, das defesas inconscientes, o que não permite<br />

coincidir os pólos do conflito com os sistemas definidos, ou seja, não permite que o<br />

recalcado coincida com o Icc e o ego com o Pcc/Cc. Além disso, a descoberta do papel<br />

desempenhado pela escolha objetal e pela identificação na constituição da pessoa e a<br />

consideração das formações permanentes, tornaram necessárias as reformulações e<br />

mudanças introduzidas. A escolha objetal e a identificação, fundamentais para a<br />

formulação do conceito de narcisismo, tornam-se essenciais para explicar a origem do<br />

ego, elevando-o, na segunda tópica, à categoria de instância, e dando origem a uma<br />

terceira instância, o superego, também formada a partir de identificações.<br />

A importância da noção de narcisismo na passagem para um segundo<br />

momento do pensamento freudiano verifica-se pelas lacunas e demandas explicativas<br />

que se apresentam e exigem a retomada de alguns conceitos, como o de ego, e a<br />

introdução de outros, como o de ideal do ego.<br />

A evolução do conceito de narcisismo ocorre paralelamente ao de<br />

autoerotismo. Em um primeiro momento Freud trabalha para distinguir estes dois<br />

conceitos, mas diversas mudanças introduzidas levam ao abandono da distinção entre<br />

narcisismo e autoerotismo na segunda tópica.<br />

As considerações realizadas neste estudo seguem o caminho percorrido por<br />

Freud para conceituar o narcisismo, considerando a vida amorosa das pessoas<br />

normais e sua relação com os estados patológicos, de forma a explicitar a importância<br />

deste conceito para a metapsicologia freudiana. Percorreremos os textos mais<br />

importantes para a formulação do conceito de narcisismo, acompanhando o seu<br />

desenvolvimento inicial, sua introdução nos Artigos metapsicológicos, chegando à<br />

virada, com os textos entre 1920 e 1923 e, por último, abordando o Esboço de psicanálise,<br />

de 1938.<br />

10


1. A PRIMEIRA TÓPICA E O <strong>NARCISISMO</strong><br />

1.1. Considerações iniciais do conceito<br />

Freud faz pela primeira vez referência ao termo narcisismo em uma reunião na<br />

Sociedade Psicanalítica de Viena em 10 de novembro de 1909, segundo James Strachey<br />

em nota introdutória à Introdução ao narcisismo. A primeira publicação do termo se dá<br />

em uma nota na segunda edição dos Três ensaios da teoria sexual em 1910, onde Freud<br />

desenvolve as opiniões de Sadger quanto à escolha de objeto nos homossexuais. Para<br />

explicar a relação entre narcisismo e homossexualismo, Freud publica, no mesmo ano,<br />

um estudo sobre Leonardo da Vinci e realiza paralelamente a Análise do caso Schreber,<br />

publicado no ano seguinte. É certo dizer que nesse primeiro momento o conceito de<br />

narcisismo é explicado basicamente a partir do estudo de casos de homossexualidade,<br />

mais especificamente a masculina.<br />

Na nota dos Três ensaios da teoria sexual, Freud cita o conceito de narcisismo<br />

relacionando-o aos termos identificação e homossexualismo. São apresentados dois<br />

caminhos para a escolha de objeto: um por apoio em modelos infantis primitivos e<br />

outro, segundo o modelo narcísico, quando o sujeito busca seu próprio ego e por<br />

identificação encontra-o em outro. É o modelo narcísico de escolha objetal que está<br />

relacionado à homossexualidade. A escolha homossexual do objeto se daria no<br />

homem pela fixação e subseqüente identificação com a mãe na infância. A partir da<br />

identificação com a mãe, o homem tomaria a si mesmo como objeto sexual e<br />

posteriormente investiria outros homens parecidos com ele como objeto, segundo o<br />

modelo narcísico de escolha.<br />

...as pessoas invertidas atravessaram nos primeiros anos da infância uma fase muito<br />

intensa, mas também muito breve, de fixação à mulher (quase sempre à mãe), após cuja<br />

superação se identificaram com a mulher e tomaram a si mesmos como objeto sexual, vale<br />

11


dizer, a partir de um narcisismo buscaram homens jovens, e parecidos com sua própria<br />

pessoa, que pudessem amá-los como a mãe os amou. 2<br />

Freud propõe, em seu estudo sobre Leonardo da Vinci (1910), depois na Análise<br />

do caso Schreber (1911), definir o narcisismo a partir de suas observações a respeito de<br />

casos de homossexualidade masculina.<br />

No estudo sobre Leonardo da Vinci (1910), Freud tenta demonstrar a significação<br />

homossexual de uma recordação infantil de Leonardo. Trata-se da recordação de um<br />

abutre introduzindo a calda em sua boca após ter pousado em seu berço. Tal<br />

recordação estaria ligada à excitação da cavidade bucal, num momento do<br />

desenvolvimento em que o prazer sexual apóia-se na necessidade de nutrição. O<br />

abutre é identificado como sendo símbolo da mãe e sua calda com o pênis da mesma.<br />

Essa suposição é fundamentada na teoria sexual infantil de que mulheres também<br />

possuem pênis – fantasia da “mãe fálica” 3 .<br />

Até seus cinco anos Leonardo viveu com a mãe, o que estimulou uma forte<br />

ligação entre ambos. Sua pulsão sexual toma a mãe como objeto de amor e suas<br />

condutas sexuais se ligam a esse amor. Freud assinala que a relação erótica com a mãe<br />

e a ausência ou desprezo paterno no desenvolvimento infantil fornecem a Leonardo<br />

apenas o modelo feminino a seguir de modo que a percebe como igual, toma-a como<br />

objeto e posteriormente substitui esta escolha por identificação. Quando, aos cinco<br />

anos de idade, vai morar com o pai sua madrasta torna-se um substituto da mãe. Ao<br />

identificar-se com a madrasta toma o pai como rival. O amor pela figura materna e as<br />

condutas sexuais ligadas a esse amor são esquecidas frente à ação da repressão, que<br />

age para evitar o desprazer frente à ameaça de castração.<br />

Para Freud, a especificidade da repressão no homossexual é explicada pelo<br />

horror desse frente à descoberta da castração da mãe. Ele não aceita a castração, diante<br />

2 Freud. Três ensaios da teoria sexual (1910), v. 7, p. 132. (grifo nosso)<br />

12


da qual regride e substitui o amor objetal pela identificação com a mãe. Regride<br />

libidinalmente para o estágio do desenvolvimento em que o ego não se distingue do<br />

objeto e, dessa forma, a mãe é preservada em seu aspecto fálico. Um estágio do<br />

desenvolvimento sem castração, sem dor, em que o prazer governa. Seus objetos de<br />

amor seriam escolhidos de acordo com a própria imagem pela via do narcisismo,<br />

constituindo-se substitutos da mãe e de si mesmo.<br />

O menino reprime seu amor pela mãe pondo-se ele mesmo no lugar dela, identificando-se<br />

com ela e tomando a sua própria pessoa como modelo a semelhança do qual escolhe seus<br />

novos objetos de amor. Assim se tornou homossexual; na realidade, tem deslizado para<br />

trás, até o autoerotismo, pois os homens a quem ama agora, já crescido, não são senão<br />

pessoas substitutas e novas versões de sua própria pessoa infantil, e os ama como a mãe o<br />

amou quando era criança. Dizemos que escolhe seus objetos de amor pela via do<br />

narcisismo, pois Narciso, segundo a lenda grega menciona, era um jovem a quem nada<br />

agradava mais do que sua imagem refletida no espelho, e assim foi transformado na bela<br />

flor de mesmo nome. 4<br />

A definição do caráter homossexual de Leonardo se deu, segundo Freud,<br />

somente na puberdade em função da fixação inconsciente na mãe, num momento em<br />

que a identificação com o pai perde toda sua significação erótica. A maior parte da<br />

libido foi sublimada, apenas uma parcela é mantida para fins sexuais. A sublimação<br />

da libido resultou em sua sede de saber e de criar 5.<br />

3 Freud. Sobre as teorias sexuais infantis (1906-08), v. 09, pp. 183-201. Neste texto Freud apresenta o<br />

conjunto das teorias sexuais infantis. Uma delas consiste no fato da criança, inicialmente, atribuir a<br />

todos os seres humanos, ainda às mulheres, um pênis.<br />

4 Freud. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci (1910), v. 11, p. 93.<br />

5 Freud destaca que a capacidade especial para a sublimação, bem como a capacidade de criação de<br />

Leonardo são de cunho biológico.<br />

13


Se nos atrevermos a relacionar a hiperpotente pulsão de saber de Leonardo com a<br />

mutilação de sua vida sexual, dizemos que se limita a homossexualidade chamada ideal<br />

(sublimada). 6<br />

O narcisismo aparece como o modo de escolha de objeto da fase autoerótica. O<br />

indivíduo deslizaria para o autoerotismo pela via narcísica de escolha. Freud faz<br />

referência, embora não explicitamente, à distinção entre narcisismo e autoerotismo ao<br />

assinalar que o que distingue a satisfação autoerótica da objetal é a constituição do ego<br />

como imagem de si. Tal constituição, como aparece na próxima aparição do termo, no<br />

Caso Schreber, se daria no estádio do narcisismo.<br />

Portanto, no Caso Schreber Freud começa a separar o narcisismo enquanto fase<br />

de desenvolvimento e recorre a ele para explicar o papel do desejo homossexual na<br />

aquisição da paranóia, porque, até então, as explicações sobre o narcisismo estavam<br />

ligadas à escolha de objeto do homossexual.<br />

Na secção III Freud começa separar o narcisismo enquanto fase do<br />

desenvolvimento entre o autoerotismo e o amor objetal, ao falar de uma fixação em<br />

uma fase narcísica. O narcisismo passa a ser entendido como uma fase do<br />

desenvolvimento humano normal.<br />

Indagações recentes nos tem chamado a atenção sobre um estádio na história evolutiva da<br />

libido, estádio pelo qual se atravessa o caminho que vai do autoerotismo ao mor de objeto.<br />

Tem-se designado Narzissismus; prefiro a designação Narzissmus, não tão correta<br />

talvez, mas mais breve e que soa menos mal. Consiste no indivíduo empenhado no<br />

desenvolvimento e que sintetiza em uma unidade suas pulsões sexuais de atividade<br />

autoerótica, para ganhar um objeto de amor toma primeiro a si mesmo, a seu próprio<br />

corpo, antes de passar deste à eleição em uma pessoa alheia. Uma fase assim, mediadora<br />

entre autoerotismo e eleição de objeto, é talvez de rigor no caso normal; parece que<br />

6 Freud. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci (1910), v. 11, p. 75.<br />

14


algumas pessoas demoram nela um tempo insolitamente longo, e que desse estado é muito<br />

do que fica pendente para fases posteriores do desenvolvimento. 7<br />

Schreber, como Leonardo da Vinci, teria se fixado em sua infância numa<br />

mulher – a mãe – e posteriormente se identificado com ela. A identificação com a mãe<br />

leva Schreber a tomar a si mesmo como objeto sexual, com base em seu narcisismo e,<br />

posteriormente, toma como objetos homens parecidos com ele mesmo. Assim, os<br />

sintomas paranóicos (os delírios persecutórios, a crença na onipotência dos<br />

pensamentos etc), a exemplo de Schreber, surgem como uma negação ou defesa<br />

contra desejos homossexuais. O mecanismo de projeção também mostra sua<br />

importância na gênese dos sintomas paranóicos, colaborando na mudança do amor<br />

em ódio:<br />

Na formação do sintoma do paranóia é chamativo, sobretudo, aquele traço que merece o<br />

título de projeção. Uma percepção interna é sufocada, e como substituto dela advém à<br />

consciência seu conteúdo, logo que experimenta certa desfiguração, como uma percepção<br />

de fora. No delírio de persecução, a desfiguração consiste numa mudança de afeto; o que<br />

estava destinado a ser sentido dentro como amor é percebido como ódio do que está fora. 8<br />

Freud conclui que os sintomas são de um lado o desejo disfarçado e de outro, a<br />

resistência do ego. A introversão da libido leva a um investimento do ego, e por esta<br />

via se produz o efeito de perda da realidade. Ocorre uma supervalorização do ego<br />

como objeto sexual, na medida em que a libido liberada liga-se ao ego e o engrandece,<br />

o que compreende um retorno ao estádio do narcisismo. Para Freud, ocorreria no<br />

paranóico uma sublimação do homossexualismo e retrocesso do mesmo ao<br />

narcisismo.<br />

7 Freud. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia autobiograficamente descrito (1911 [1910]), v. 12,<br />

p. 56.<br />

8 Idem ibid, p. 61.<br />

15


...inferimos que na paranóia a libido liberada se volta ao ego, se aplica ao<br />

engrandecimento do ego. Assim volta a alcançar o estádio do narcisismo, conhecido pelo<br />

desenvolvimento da libdo, estádio no qual o ego próprio era o único objeto sexual. Em<br />

virtude desse enunciado clínico supomos que os paranóicos levam a uma fixação no<br />

narcisismo, e declaramos que o retrocesso da homossexualidade sublimada até o<br />

narcisismo indica o montante de regressão característica da paranóia. 9<br />

O homossexualismo se daria pela fixação do sujeito numa fase em que não<br />

havia tomado conhecimento da diferenciação anatômica entre os sexos. A fixação na<br />

fase narcísica explica a paranóia de Schreber resultante da luta do ego – visto até esse<br />

momento como agente da censura, do recalque, do princípio da realidade, dos<br />

processos secundários sob o domínio da consciência – contra os desejos de natureza<br />

homossexual.<br />

Portanto, agora o narcisismo explica o papel do desejo homossexual na<br />

aquisição da paranóia e distingue-se do autoerotismo enquanto fase do<br />

desenvolvimento psicossocial normal, deixando de ser utilizado apenas no campo das<br />

psicopatologias. O narcisismo caracteriza a síntese das pulsões parciais em uma<br />

unidade e o momento em que o ego torna-se o primeiro objeto de amor.<br />

Em Totem e tabu (1912-14) Freud oferece o mesmo ponto de vista expresso no<br />

Caso Schreber ao colocar o narcisismo como uma fase intermediária entre o<br />

autoerotismo e o amor de objeto. Considera que os neuróticos assumem em nível<br />

individual as mesmas atitudes primitivas que os povos primitivos.<br />

É sugestivo relacionar agora com o narcisismo, e conceber como uma peça essencial deste<br />

ultimo, a elevada estima – a chamamos ‘sobrestimação’ a partir de nosso ponto de vista –<br />

9 Idem ibid, p. 67.<br />

16


em que os primitivos e os neuróticos tem às ações psíquicas. ...Os neuróticos tem recebido<br />

em sua constituição própria um considerável fragmento dessa atitude primitiva. 10<br />

Freud apresenta ainda o sentimento de onipotência dos povos primitivos como<br />

correspondente à crença das crianças na onipotência de seus pensamentos e<br />

sentimentos, ou seja, como correspondente ao narcisismo infantil. Assinala que o<br />

narcisismo originário na criança tem influência sobre seu desenvolvimento e permite<br />

que ela não tenha sentimentos de inferioridade, ou seja, funciona como forma da<br />

criança garantir-se contra danos. Similarmente, quando investe objetos externos o<br />

indivíduo permanece até certo ponto narcisista para não adoecer.<br />

1.2. Introdução ao narcisismo (1914)<br />

Com a introdução do conceito de narcisismo uma série de mudanças se<br />

processa na teoria psicanalítica. Alguns conceitos, como o de ego, são retomados,<br />

outros surgem, como os conceitos de libido egóica ou narcísica e libido objetal. Freud<br />

assinala que muitas formas de doenças (ex: paranóia, megalomania etc.) estão ligadas<br />

a inibições e fixações muito primitivas e assim, a disposição deve ser procurada num<br />

estágio de desenvolvimento libidinal anterior à escolha de objetos externos, isto é, na<br />

fase do auto-erotismo e do narcisismo. Sua introdução começa a abalar a teoria<br />

formulada nos Três ensaios da teoria sexual, que aponta o conflito psíquico como<br />

resultado da luta entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação.<br />

É em 1914, com o texto Introdução ao narcisismo, que Freud introduz<br />

formalmente o conceito narcisismo e examina o lugar ocupado por ele no<br />

desenvolvimento sexual normal. As diferenças entre narcisismo e autoerotismo, são<br />

estudadas e explicadas fazendo-se referência aos conceitos, agora introduzidos, de<br />

narcisismo primário e narcisismo secundário. Nas explicações sobre narcisismo, Freud<br />

passa a considerar os investimentos libidinais, com a introdução dos termos libido<br />

10 Freud. Totem e tabu (1912-14), p.92.<br />

17


egóica ou narcísica e libido de objeto. Freud introduz também os conceitos de ideal de<br />

ego e da instância de observação de si, os quais serviriam de base para o que depois<br />

veio a designar-se como superego – uma das novas instâncias da personalidade da<br />

segunda tópica.<br />

A distinção entre narcisismo e autoerotismo se encontra no fato de, no<br />

narcisismo, a libido investir o ego como objeto, enquanto que o autoerotismo<br />

caracteriza um estádio anobjetal.<br />

1.2.1. As relações do narcisismo com as pulsões e a libido<br />

Freud descreve a forma alucinatória pela qual as primeiras experiências de<br />

satisfação se dão, num momento em que as pulsões sexuais se apóiam nas de pulsões<br />

de autoconservação ou egóicas 11. Por conta desse apoio, o seio materno, que tem a<br />

priori a função de nutrição, torna-se o primeiro objeto de amor da criança. O apoio das<br />

pulsões sexuais nas pulsões de autoconservação implica que as pessoas ligadas à<br />

alimentação, aos cuidados, à proteção da criança fornecem o protótipo do objeto de<br />

amor procurado - escolha de objeto por apoio. 12<br />

O autoerotismo se inicia enquanto fase no momento em que a pulsão sexual se<br />

separa da pulsão de autoconservação, a qual oferece sua meta e seu objeto, ou seja, se<br />

separa de seu objeto natural - o seio materno - e se entrega à fantasia. O auto-erotismo<br />

caracterizaria o comportamento sexual em que o sujeito obtém prazer através da<br />

estimulação de seu próprio corpo, num momento que precede a convergência das<br />

pulsões parciais 13 para um objeto comum. Esta fragmentação pulsional implica a<br />

ausência do ego ou pessoa como objeto total, sem referência a uma imagem unificada<br />

11 As sucessivas reformulações na teoria das pulsões obrigam Freud a situar as pulsões de<br />

autoconservação de maneira diferente, não mais em correspondência ao conceito de pulsões do ego, o<br />

qual desaparece na segunda tópica.<br />

12 A descrição do tipo de escolha de objeto por apoio foi apresentada nos Três ensaios da teoria sexual<br />

(1905). Em Introdução ao narcisismo (1914) Freud apresenta o tipo de escolha narcísica de objeto, opondoa<br />

a escolha por apoio.<br />

13 A pulsão é chamada parcial porque, segundo Freud, cada uma delas encontra satisfação pela<br />

excitação de um órgão – o chamado prazer de órgão.<br />

18


do corpo, a um primeiro esboço de ego, mas não a ausência de um objeto parcial na<br />

fantasia da criança 14 . Caracterizaria, portanto, um estádio anobjetal.<br />

O narcisismo é compreendido como o estágio no qual as pulsões parciais, até<br />

então isoladas reuniram-se numa unidade e simultaneamente acharam o ego como<br />

objeto. Segundo Freud:<br />

A este estado da libido deveria aplicar-se com exclusividade a expressão que Jung usa<br />

indiscriminadamente: introversão da libido. 15<br />

A constituição do ego permite à libido tomar essa imagem como objeto total, ou<br />

seja, o ego seria o primeiro objeto da libido narcísica 16 . Posteriormente, a pulsão sexual<br />

busca uma pessoa para se satisfazer. Desta forma, as atividades sexuais infantis<br />

caminhariam para a escolha de objeto. Seguindo este caminho a libido desinveste o<br />

ego e investe objetos externos.<br />

Nos formamos a imagem de um originário investimento libidinal originário do ego,<br />

cedido depois aos objetos; mas considerado em seu fundo, ele persiste, e é para os<br />

investimentos como o corpo de uma ameba é para os pseudópodes que emite. (...) As<br />

emanações desta libido, aos investimentos de objeto, que podem ser emitidas e retiradas de<br />

novo, foram as únicas que nos saltaram à vista. Vemos também grandes expressões da<br />

oposição entre a libido do ego e a libido de objeto. 17<br />

Freud introduz os conceitos de libido egóica e libido objetal, supondo uma<br />

relação de complementaridade entre elas; uma relação inversamente proporcional,<br />

14 Desde o Projeto (1895) Freud trata do surgimento da pulsão sexual apoiada nas pulsões de<br />

autoconservação.<br />

15 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 72.<br />

17 Idem ibid, p. 73. (grifo nosso)<br />

19


pois na medida em que aumenta os investimentos do ego pela libido, ou seja, na<br />

medida que aumentam as condutas narcísicas, diminui-se a libido de objeto. Esta se<br />

transpõe em libido egóica e fica impedida de fazer o caminho regresso até os objetos.<br />

A oposição entre libido do ego e libido de objeto entra no lugar do conflito entre<br />

pulsões sexuais e pulsões egóicas, dado as dificuldades explicativas levantadas pelo<br />

investimento do ego pela libido. A dualidade pulsional era correspondente a uma<br />

oposição entre as exigências da sexualidade e as do ego, mas se o ego também é<br />

investido de libido, se também há sexualidade no ego, as coisas se complicam.<br />

O ego, que era visto como agente que recalcava, defendia o interesse da<br />

autoconservação e do equilíbrio psíquico, passa por uma divisão: uma parte icc e<br />

outra pcc/cc. Uma parte do ego é inconsciente, o que significa que, por um lado<br />

recalca e, por outro, tem as mesmas propriedades do recalcado. Ele deixa de ser visto<br />

como aquele que coloca o psiquismo frente ao princípio da realidade, tornando-se<br />

cúmplice do princípio do prazer, da realização alucinatória do desejo. Com o<br />

narcisismo o ego, agora narcísico, passa a objeto da sexualidade - confunde-se a<br />

finalidade do ego e da libido. Como manter a hipótese de uma pulsão egóica não<br />

sexual se o ego também é investido pela libido? Esta não poderia ser entendida como<br />

a energia psíquica geral e não apenas sexual?<br />

Nesse momento a primeira teoria das pulsões começa a demonstrar suas falhas,<br />

mas Freud tenta mantê-la, pois o conflito psíquico é explicado por ela. O conflito não é<br />

mais definido pelas relações entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação, mas<br />

entre libido egóica e libido objetal, ambas da alçada das pulsões sexuais. Na verdade<br />

não se tem mais um conflito entre pulsões.<br />

Segundo Laplanche e Pontalis, entre 1915 e 1920 Freud realiza uma<br />

aproximação com os conceitos de Jung e é tentado a adotar um monoteísmo pulsional,<br />

de modo que “as pulsões de autoconservação tendem a ser consideradas como um caso<br />

particular de amor por si mesmo ou libido do ego” 18. Ou seja, as pulsões de<br />

autoconservação aparecem como uma parte narcísica das pulsões sexuais. Mas apenas<br />

posteriormente, quando Freud apresenta o novo dualismo pulsional entre pulsão de<br />

20


vida e pulsão de morte, é que ele vai colocar a libido egóica do mesmo lado que a<br />

pulsão de autoconservação, dentro das pulsões de vida.<br />

1.2.2.. As relações entre autoerotismo, narcisismo e escolha objetal<br />

Freud introduz o conceito narcisismo a partir de sua diferenciação do<br />

autoerotismo. O início do autoerotismo se daria no momento em que a pulsão sexual<br />

se separa das de autoconservação nas quais se apoiava, separando-se assim, do objeto<br />

natural – o seio materno – e entregando-se à fantasia. Caracteriza a fase em que ainda<br />

não houve a convergência das pulsões parciais para um objeto comum, quando a<br />

pulsão sexual se satisfaz no próprio corpo, sem referência a um objeto “total”, ou seja,<br />

sem referência a uma imagem de corpo unificada, a um primeiro esboço de ego.<br />

Entende-se aqui como “total” o objeto plenamente constituído, investido a partir da<br />

constituição do ego como imagem de si mesmo.<br />

... não está presente desde o começo no indivíduo uma unidade comparável ao ego; o ego<br />

tem que ser desenvolvido. Agora bem, as pulsões autoeróticas são iniciais, primordiais;<br />

portanto, algo tem que acrescentar-se ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para<br />

que o narcisismo se constitua. 19<br />

Na visão de Freud, seria necessária uma nova ação psíquica para a composição<br />

do narcisismo. Tal ação consiste na constituição do ego, o que permite ao sujeito<br />

formar uma imagem dele próprio, a imagem de um objeto “total”. Na passagem do<br />

autoerotismo para o narcisismo as pulsões sexuais parciais se unificam e tomam o ego<br />

como primeiro objeto.<br />

Durante seu desenvolvimento o ego se distanciaria do narcisismo primário de<br />

modo a desinvestir a si mesmo e investir objetos exteriores, empobrecendo-se em<br />

18 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 406.<br />

19 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 74. (grifo nosso)<br />

21


favor desses investimentos. Essa proposição ocasiona uma dúvida: porque a libido se<br />

vê compelida a desinvestir o ego e investir outros objetos? Freud assinala que um<br />

forte egoísmo 20 preserva de ficar doente, mas o indivíduo tem que amar, pois<br />

adoeceria frente à frustração caso não viesse a amar. Além disso, uma parcela de<br />

narcisismo sempre estaria presente no indivíduo mesmo quando investe um objeto<br />

externo.<br />

Os objetos de amor seriam eleitos, segundo Freud, de duas maneiras que se<br />

contrapõem entre si: a escolha narcísica de objeto e a escolha de objeto por apoio.<br />

Freud assinala que as primeiras satisfações sexuais da criança se dariam pelo apoio<br />

das pulsões sexuais nas pulsões de autoconservação, as quais indicam à sexualidade<br />

seu primeiro objeto. Este seria o tipo de escolha de objeto, que ocorre apoiando-se nas<br />

imagens parentais enquanto que na escolha narcísica o objeto de amor seria eleito a<br />

partir do modelo de si mesmo. Freud apresenta os caminhos para a eleição do objeto<br />

da escolha narcísica:<br />

Se ama segundo o tipo narcisista: a) o que se é (a si mesmo); b) o que se foi; c) o que se<br />

queria ser; d) a uma pessoa que foi uma parte de si próprio. 21<br />

Para Freud, a escolha homossexual está mais próxima do narcisismo do que a<br />

heterossexual, porque elege um objeto a partir da própria imagem.<br />

Temos descoberto que certas pessoas, especificamente aqueles cujo desenvolvimento<br />

libidinal experimentou uma perturbação (como é o caso dos perversos e dos<br />

homossexuais), não elegem seu posterior objeto de amor segundo o modelo da mãe, mas<br />

20 Freud cita algumas vezes o termo egoísmo no texto Introdução ao narcisismo, mas não apresenta sua<br />

distinção com relação ao narcisismo. É no texto Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos que esta<br />

distinção é apresentada.<br />

21 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 87. (grifo nosso)<br />

22


sim segundo o da sua própria pessoa. Manifestadamente buscam a si mesmos como objeto<br />

de amor, exibem o tipo de eleição que tem de se chamar narcisista. 22<br />

Freud considera que esta é a hipótese mais forte para a concepção do<br />

narcisismo. Ele considera que para obter a satisfação o ego exige muito dos objetos,<br />

mas a censura vê uma parte desta satisfação como inconciliável, por isso a libido<br />

regressa ao ego - tomado como o agradável - em busca do ideal narcísico de<br />

onipotência da infância.<br />

Na análise das psicoses Freud percebe a possibilidade da libido desinvestir os<br />

objetos e investir o ego. Assinala que a conduta narcísica é comum a todas as pessoas,<br />

pois está ligada à pulsão de autoconservação, aparecendo nos sonhos bem como em<br />

muitas doenças mentais, sendo neste caso em grau patológico. A conduta narcísica da<br />

psicose se daria porque a libido após investir os objetos externos volta a investir o ego<br />

– introversão da libido. O vínculo com a realidade exterior (coisas e pessoas) é<br />

resignado. Os objetos reais são substituídos por imaginários, criados a partir dos<br />

protótipos infantis e do contato com os objetos investidos e abandonados. O indivíduo<br />

retém apenas o que é agradável nesses objetos e em si mesmo para formar um objeto<br />

idealizado em sua fantasia.<br />

Para Freud, o objetivo da idealização seria fazer com que o indivíduo voltasse<br />

ao estado de onipotência do narcisismo infantil. O ideal narcísico de onipotência - ego<br />

ideal - seria criado com o propósito de restaurar o contentamento consigo mesmo,<br />

próprio do narcisismo primário, o qual foi perturbado durante a infância. 23 A<br />

identificação com o objeto idealizado contribuiria para a formação tanto do ego ideal<br />

quanto do ideal do ego.<br />

22 Idem ibid, p. 85.<br />

23 Freud. A teoria da libido e o narcisismo (26 a Conferência) (1916-17), v.16, p. 379.<br />

23


1.2.3. A questão do ideal do ego<br />

Esta questão é tratada na secção III de Introdução ao narcisismo, onde o termo<br />

“ideal do ego” aparece pela primeira vez, sendo designado como uma formação<br />

intrapsíquica que serve de referência ao ego atual, como um o modelo ao qual o<br />

indivíduo procura conformar-se. Para Freud, o ideal do ego tem origem narcísica, pois<br />

o sujeito projeta como seu ideal o substituto do narcisismo infantil.<br />

O desenvolvimento do ego consiste, segundo Freud, num distanciamento do<br />

narcisismo primário em razão da crítica que os pais exercem com relação à criança,<br />

seguido pelo deslocamento da libido a um ideal de ego. Freud, afirma, que não<br />

consideraria estranho se encontrasse uma instância distinta do ideal do ego,<br />

interiorizada como uma instância de censura e de auto-observação.<br />

Não nos assombraria que tivéssemos deparado achar uma instância psíquica particular<br />

cuja função fosse velar pela segurança da satisfação narcisista proveniente do ideal do<br />

ego, e com esse propósito observar de maneira contínua o ego atual medindo-o com o<br />

ideal. 24<br />

Podemos dizer que o indivíduo tem erigido no seu interior um ideal pelo qual mede o ego<br />

atual, enquanto que no outro falta essa formação ideal. A formação do ideal seria, de<br />

parte do ego, a condição para a repressão. 25<br />

O ideal do ego funcionaria como condição para a repressão, pois sua formação<br />

se daria sob a influência dos pais, educadores e outros. 26 Sendo, portanto, resultante<br />

da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais,<br />

seus substitutos e os ideais coletivos 27. A formação do ideal é vista como o mais forte<br />

favorecedor da repressão porque aumenta as exigências do ego. A sublimação surgiria<br />

24 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 92. (grifo nosso)<br />

25 Idem ibid, p. 90.<br />

26 Esta colocação serve de alusão à criação de do superego na segunda tópica.<br />

24


como forma de escapar dessa exigência e, ao mesmo tempo, da repressão. A<br />

sublimação compreende o processo pelo qual a pulsão se lança para outra meta,<br />

distante da satisfação sexual.<br />

Para Freud, a transformação de uma atividade sexual em atividade sublimada,<br />

também dirigida a objetos externos, necessitaria de um tempo intermediário para a<br />

retirada da libido ao ego, o que tornaria possível a dessexualização.<br />

A sublimação é um processo que pertence à libido de objeto e consiste em que a pulsão se<br />

lança para outra meta, distante da satisfação sexual...<br />

...a idealização envolve um processo que ocorre com o objeto; sem variar a natureza, este<br />

é engrandecido e realçado psiquicamente. A idealização é possível tanto no campo da<br />

libido egóica quanto no da libido do objeto.<br />

...a sublimação descreve algo que ocorre com a pulsão, e a idealização algo que ocorre com<br />

o objeto. 28<br />

Freud faz considerações sobre os dois processos – sublimação e idealização –<br />

porque ambos são importantes quando se fala de ideal do ego. A idealização participa<br />

na formação do ideal do ego e a sublimação é reivindicada pelo ideal do ego, mas ela<br />

acontece por si mesma.<br />

O ideal do ego reivindica por certo essa sublimação, mas não pode força-la; a<br />

sublimação segue sendo um processo especial cuja iniciação pode ser incitada pelo ideal,<br />

mas cuja execução é certamente de tal incitação. 29<br />

27 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 222.<br />

28 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 91. (grifo nosso)<br />

29 Idem ibid, p. 91. (grifo nosso)<br />

25


A pulsão sexual é sublimada na medida em que é enviada para um novo<br />

objetivo não sexual pelo qual visa objetos socialmente valorizados. O ideal do ego,<br />

embora não possa forçar a sublimação, parece influenciá-la no que diz respeito ao<br />

objeto de sua busca.<br />

Freud assinala que o narcisismo da infância apresenta-se na vida adulta por<br />

devoção a um ideal de ego que se forma em seu interior.<br />

O desenvolvimento do ego consiste em um distanciamento a respeito do narcisismo<br />

primário e produz uma intensa aspiração de retomá-lo. Este distanciamento ocorre por<br />

meio do deslocamento da libido a um ideal do ego imposto desde fora; a satisfação se<br />

obtém mediante o cumprimento do ideal do ego. 30<br />

Segundo Freud, o ego emite investimentos libidinais aos objetos e se empobrece<br />

em favor desses investimentos e do ideal do ego. A satisfação da libido do objeto. É<br />

obtida pelo cumprimento deste ideal.<br />

Contudo, muitas vezes, em função de suas exigências, o ideal do ego impõe<br />

difíceis condições para a satisfação libidinal dos objetos e não pode ser cumprido. Tal<br />

o nível de suas exigências, que a censura vê uma parte dessa satisfação como<br />

inconciliável. Exige-se muito desses objetos e por isso o indivíduo busca formar<br />

objetos imaginários agradáveis introjetando o que tem de bom nesses objetos e<br />

projetando o que é tido como ruim em si mesmo para os objetos, através do<br />

mecanismo de projeção. Forma um objeto idealizado, tomando seu próprio ego como<br />

o agradável e o externo, anteriormente indiferenciado, como desagradável. Assim, o<br />

ego realidade se transforma em ego prazer. O sujeito passa a coincidir com todo o<br />

agradável – “ego prazer purificado” – e todo o desagradável está fora, ou seja,<br />

coincide com o mundo exterior. Freud dá ênfase à oposição entre ego e objeto externo,<br />

30 Idem ibid, p. 96. (grifo nosso)<br />

26


ou seja, prazer e desprazer. 31 A libido retorna ao ego em busca do ideal narcísico de<br />

onipotência da infância e recai sobre o ego ideal – narcisismo secundário.<br />

O mecanismo de introjeção do que há de “bom” no objeto e de projeção do que<br />

há de “ruim” no ego para os objetos, com a transformação do ego-realidade em ego-<br />

prazer, ocorre durante a fase puramente narcisista, que cede lugar à fase objetal. Se o<br />

objeto torna-se fonte de sensações agradáveis, o sujeito o incorpora e diz que o ama.<br />

Se o objeto causa desprazer, o ego afasta-o e diz que o odeia. O odiar estaria ligado à<br />

busca de preservação por parte do ego, segundo a necessidade de autoconservação. 32<br />

1.2.4. Narcisismo primário e narcisismo secundário<br />

O narcisismo primário seria o momento em que as pulsões parciais autoeróticas<br />

se unificam sob o primado da zona genital. Contudo, poderia ocorrer o primado de<br />

outra zona, que não a genital, mas teria-se neste caso uma perversão. Isso permitiria<br />

ao sujeito formar uma imagem dele próprio, a imagem de um objeto em sua<br />

plenitude, não mais em suas partes. Seria, portanto, uma fase intermediária entre o<br />

autoerotismo e o amor de objeto, e coincidiria com os momentos formadores do ego<br />

quando o próprio ego é tomado como primeiro objeto da libido narcísica. Designaria o<br />

primeiro narcisismo em correspondência com a “onipotência dos pensamentos” -<br />

superestimação dos desejos e atos psíquicos - quando a criança toma a si mesma como<br />

objeto sexual, antes de escolher objetos exteriores. O narcisismo primário seria,<br />

portanto, um momento normal do desenvolvimento que serviria como ponto de<br />

fixação para onde regride libido no caso em que o indivíduo desenvolve, por exemplo,<br />

uma esquizofrenia.<br />

O narcisismo secundário designaria um retorno da libido ao ego após ter<br />

investido objetos externos. A conduta narcísica se daria porque os investimentos<br />

31 Freud, S. (1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. Obras Completas .Buenos<br />

Aires: Editora Amorrortu, 12, 229-31. Em Pulsões e seus destinos Freud reapresenta a questão do ego<br />

prazer e do ego realidade e os mecanismos de introjeção e projeção fazendo considerações aos<br />

sentimentos de amor e ódio.<br />

32 Freud, S. (1915). Pulsões e seus destinos. Obras Completas .Buenos Aires: Editora Amorrortu, 14, pp.<br />

154-60.<br />

27


libidinais são retirados do mundo exterior e reconduzidos ao ego -introversão da<br />

libido. 33<br />

Assim, nos vemos levado a conceber o narcisismo que nasce por retorno dos<br />

investimentos de objeto como um narcisismo secundário que se edifica sobre a base do<br />

outro, o primário, obscurecido por múltiplas influências. 34<br />

Neste momento, as explicações fornecidas por Freud sobre narcisismo<br />

secundário fazem referência a certos estados extremos de regressão da libido, tal como<br />

ocorre na esquizofrenia:<br />

O delírio de grandeza... nasceu às custas da libido de objeto. A libido subtraída do mundo<br />

exterior foi conduzida ao ego, e assim surgiu uma conduta que podemos chamar<br />

narcisismo. 35<br />

Contudo, ele assinala que o narcisismo designa também uma estrutura<br />

permanente do indivíduo normal. Permanente porque uma “dose” de narcisismo<br />

sempre estaria presente no sujeito, devido à ligação entre narcisismo e pulsão de<br />

autoconservação. A admissão desta ligação faz menção ao ponto de vista assumido<br />

por Freud na segunda tópica quando coloca a libido e a pulsão de autoconservação do<br />

mesmo lado como pulsões de vida.<br />

33 Esse termo, adotado por Freud, foi introduzido por Jung.<br />

34 Freud. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia autobiograficamente descrito (1911 [1910])), v.<br />

12, p. 73. (grifo nosso)<br />

35 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 72.<br />

28


1.2.5. Comparação entre narcisismo e os estados “normais” e entre narcisismo e as<br />

afecções psíquicas<br />

Mais especificamente na secção II de Introdução ao narcisismo Freud faz<br />

considerações sobre os caminhos pelos quais o narcisismo pode ser estudado: 1) as<br />

afecções orgânicas; 2) as afecções psíquicas (hipocondria e a psicose); 3) a vida<br />

amorosa das pessoas normais e 4) o estado de dormir.<br />

a) Narcisismo nas afecções orgânicas<br />

Freud aponta para semelhanças entre os comportamentos dos que sofrem de<br />

afecções orgânicas e os que sofrem de afecções narcísicas 36.<br />

É sabido – e nos parece um fato trivial – que a pessoa afligida por uma dor orgânica e por<br />

sensações dolorosas resigna seus interesses por todas as coisas do mundo que não se<br />

relacionam com seu sofrimento. Uma observação mais precisa nos ensina que, enquanto<br />

sofre, também retira de seus objetos de amor o interesse libidinal, para de amar. (...)<br />

Libido e interesse egóico têm aqui o mesmo destino e se mostram outra vez<br />

indiscerníveis... 37<br />

Assim, as afecções orgânicas, da mesma forma que as psíquicas, têm influência<br />

sobre a distribuição da libido. A pessoa doente retira seu interesse do mundo exterior,<br />

pois se volta ao seu sofrimento. Retiram sua libido dos objetos de amor e deixamde<br />

amar. Sua libido e seu interesse egóico recaem sobre seu próprio sofrimento, sobre o<br />

próprio ego e mostram-se indiscerníveis. Quando a cura vem, o indivíduo volta “o<br />

investimento do ego com libido tem ultrapassado certa medida” se torna necessária<br />

36 Esta comparação é retomada, de um perspectiva ligeiramente diferente, em Além do princípio de prazer<br />

(1920).<br />

29


esta volta até o objeto porque o sujeito pode adoecer se por conseqüência de “uma<br />

frustração não pode amar.” 38<br />

b) Narcisismo nas afecções psíquicas<br />

Freud reconhece a hipocondria como um dos caminhos para o estudo do<br />

narcisismo. A primeira aproximação entre hipocondria e neuroses narcísicas é<br />

apresentada no Caso Schreber, mas é em Introdução ao narcisismo que Freud explica<br />

melhor essa relação reconhecendo a hipocondria como um dos caminhos para o<br />

estudo do narcisismo. Esta doença leva a sensações corporais dolorosas, contudo se<br />

diferencia das doenças orgânicas, pois não há necessariamente alterações orgânicas.<br />

A hipocondria se exterioriza, como na enfermidade orgânica, em sensações corporais<br />

penosas e dolorosas, e coincide também com ela por seu efeito sobre a distribuição da<br />

libido. 39<br />

O hipocondríaco comporta-se da mesma forma que um indivíduo com doença<br />

orgânica ao retirar seu interesse egóico e sua libido dos objetos e concentrá-los em seu<br />

sofrimento.<br />

Condutas narcísicas, segundo Freud, estariam presentes em várias afecções<br />

mentais. Na esquizofrenia tem-se o delírio de grandeza e o afastamento do interesse<br />

pelo mundo exterior (pessoas ou coisas). O delírio de grandeza envolve uma<br />

sobrestimação do poder de seus desejos e atos psíquicos, a onipotência dos<br />

pensamentos.<br />

Freud nota que também o histérico e o neurótico obsessivo resignam até onde<br />

afeta sua doença o vínculo com a realidade. Com relação ao investimento dos objetos<br />

37 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 79.<br />

38 Idem ibid, p. 83.<br />

30


observa-se uma diferença fundamental entre o neurótico e o psicótico. O primeiro<br />

retira parcialmente a libido dos objetos, os mescla e substitui na fantasia, enquanto o<br />

segundo desinveste totalmente os objetos e não os substitui em sua fantasia.<br />

...a formação de sintoma nas neuroses de transferência (a passagem da introversão à<br />

regressão) tem de contentar-se com uma estase da libido de objeto, podemos nos<br />

aproximar também à idéia de uma estase da libido egóica, vinculando-a com os fenômenos<br />

da hipocondria e da parafrenia. 40<br />

Freud apresenta as neuroses de transferência em oposição às neuroses<br />

narcísicas. Portanto, a psicose, inicialmente sob a categoria de neurose narcísica em<br />

oposição às neuroses de transferência, apresenta a possibilidade da libido se retirar<br />

dos objetos e voltar a investir o ego.<br />

c) Narcisismo na vida amorosa normal<br />

Com sua introdução oficial o termo narcisismo passa a ser visto como etapa<br />

normal do desenvolvimento do ser humano. Na vida amorosa normal, o conceito é<br />

trabalhado a partir da distinção entre os dois modelos de escolha objetal – a escolha<br />

narcísica e a escolha por apoio. Segundo Freud, ser humano tem a sua disposição as<br />

duas possibilidades de escolha e pode decidir por uma ou outra, pois:<br />

...tem dois objetos sexuais originários: ele mesmo e a mulher que o criou, e propusemos<br />

então em todo ser humano o narcisismo primário que, eventualmente, pode expressar-se<br />

de maneira dominante em sua eleição de objeto. 41<br />

39 Idem ibid, p. 80. (grifo nosso)<br />

40 Idem ibid, p. 81. (grifo nosso).<br />

41 Idem ibid, p. 85.<br />

31


A escolha de objeto por apoio se daria a partir do modelo de objeto que supria<br />

as necessidades nutricionais da criança. As pessoas ligadas à satisfação das<br />

necessidades alimentares, aos cuidados e proteção da criança forneceriam o protótipo<br />

do objeto sexual satisfatório. Assim, a escolha por apoio só seria possível porque as<br />

pulsões sexuais surgem por apoio nas pulsões de autoconservação.<br />

Na escolha narcísica os objetos de amor são escolhidos com base no modelo de<br />

si mesmo, como ocorre para homossexuais e perversos. Mas este tipo de escolha se dá<br />

também nos indivíduos que sofrem de esquizofrenia e de paranóia, pois elas têm<br />

como ponto de fixação a fase do narcisismo primário. Pode-se dizer que os indivíduos<br />

com esse tipo de escolha são os mais dispostos a desenvolver estes tipos de doença.<br />

Freud considera que o amor dos pais por seus filhos é o reviver do seu<br />

narcisismo infantil, pois o amor dirigido a um objeto tem por fim a realização de seu<br />

narcisismo no filho. A busca da realização por meio dos filhos compreende a busca<br />

pela imortalidade de seu próprio ego. 42<br />

d) Narcisismo no dormir<br />

Freud compara as condutas narcísicas das doenças com o dormir. No sonho<br />

haveria uma retirada narcisista da libido sobre a própria pessoa, mais<br />

especificamente, sobre seu exclusivo desejo de dormir. O cumprimento dos próprios<br />

desejos e o desinvestimento do mundo exterior mostrariam o egoísmo dos sonhos.<br />

A semelhança da doença também ao restado de dormir implica uma retirada narcisista<br />

das posições libidinais sobre a própria pessoa; mais precisamente, sobre seu exclusivo<br />

desejo de dormir. 43<br />

42 Idem ibid, p. 88.<br />

43 Idem ibid, p. 80. (grifo nosso)<br />

32


Em ambos os casos, quer nos sonhos quer nas doenças, se têm exemplos de<br />

alterações na distribuição da libido em conseqüência de uma alteração do ego. 44<br />

O narcisismo vem abalar a teoria formulada nos Três ensaios da teoria sexual<br />

(1905) que aponta o conflito psíquico como resultado da luta entre as pulsões sexuais e<br />

as pulsões de autoconservação. A oposição entre libido do ego e libido de objeto entra<br />

no lugar do conflito pulsional entre pulsões sexuais e pulsões egóicas, dadas as<br />

dificuldades explicativas levantadas pelo investimento do ego pela libido. Mas Freud<br />

não considera suficiente uma oposição que não seja pulsional, por isso só abandona o<br />

primeiro dualismo quando já dispõe de outro.<br />

Neste texto Freud introduz também o conceito de narcisismo primário, como<br />

correspondente ao momento de formação do ego quando o próprio ego é tomado<br />

como primeiro objeto pela libido narcísica. Segundo Freud, seguiriam<br />

respectivamente: autoerotismo, narcisismo primário e escolha objetal. O narcisismo<br />

secundário designaria um retorno da libido ao ego após ter investido objetos externos<br />

em casos extremos de regressão. Mas designaria também um estado permanente do<br />

sujeito, pois uma parcela de libido se manteria sempre no ego.<br />

Freud introduz também os conceitos de ideal de ego e da instância de<br />

observação de si, os quais serviriam de base para o que depois veio a designar-se<br />

como superego – uma das novas instâncias da personalidade da Segunda Tópica.<br />

A distinção entre narcisismo e autoerotismo se encontra no fato de, no<br />

narcisismo, a libido investir o ego como objeto, enquanto o autoerotismo caracteriza<br />

um estádio anobjetal. 45 Mas fica difícil manter o narcisismo como um estádio sem<br />

relações com objetos esternos porque se o narcisismo primário corresponde aos<br />

momentos formadores do ego, que se define pela identificação com o outro, o<br />

44 Freud analisa a relação dos sonhos e as doenças em Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos<br />

(1915).<br />

45 Se considerasse o investimento de partes do objeto como investimento objetal o autoerotismo<br />

primário não seria anobjetal, mas não é neste sentido que Freud toma o termo e, portanto,<br />

consideremos como anobjetal a ausência de investimento em um objeto “total”.<br />

33


narcisismo primário seria um estádio que se forma a partir da interiorização de uma<br />

relação.<br />

1.3. O narcisismo nos Artigos metapsicológicos posteriores à introdução do conceito<br />

Os Artigos metapsicológicos apresentam as tentativas de Freud em preencher as<br />

lacunas explicativas que se levantam e exigem reformulações. Trataremos, mais<br />

especificamente, das lacunas que apareceram com a introdução do conceito de<br />

narcisismo e das alternativas e tentativas de explicação relacionadas.<br />

Ao longo destes artigos fica clara a insuficiência da primeira teoria das pulsões,<br />

mas Freud só abre mão deste primeiro dualismo posteriormente, quando introduz um<br />

novo.<br />

1.3.1. Pulsões e seus destinos (1915)<br />

Freud propõe esclarecimentos sobre o tema pulsão diferenciando-a de<br />

estímulo. Ele assinala que diferentemente de estímulo, a pulsão não surge do exterior,<br />

mas do próprio organismo e dela não se pode fugir. Sua satisfação está ligada ao que<br />

Freud denominou prazer de órgão e o objeto para esta satisfação pode ser qualquer<br />

coisa.<br />

...o objeto apaga-se em benefício do órgão, eu é a fonte dela, e regra geral coincide com<br />

ele. 46<br />

A busca desse prazer de órgão pela pulsão está ligada à idéia de apoio das<br />

pulsões sexuais nas de autoconservação e é o que caracteriza o autoerotismo.<br />

46 Freud, Pulsões e destinos de pulsão (1915), v. 14, p. 132.<br />

34


Simanke assinala que com a introdução da pulsão Freud visava a introdução de<br />

um conceito limítrofe entre o orgânico e o psíquico:<br />

A satisfação da necessidade (por exemplo, de alimento) situa-se, assim, em um registro<br />

puramente orgânico. Com a sexualização dessa função, constitui-se a pulsão (no caso,<br />

oral), como o especifica a noção de apoio. O aparecimento do objeto (representado) como<br />

elemento significativo para a obtenção da satisfação assinala o surgimento do desejo,<br />

definido como o impulso propriamente psíquico em direção ao objeto. Esta última<br />

transição coincidiria com o surgimento do narcisismo, correlativo, por um lado, à<br />

constituição do esquema corporal. 47<br />

Desta perspectiva, o surgimento do desejo como impulso psíquico até o objeto<br />

coincidiria com o surgimento do narcisismo, quando o ego é tomado como objeto do<br />

desejo narcísico. Assim, fazer coincidir autoerotismo e narcisismo é também coincidir<br />

pulsão e desejo ou, pelo menos, perder a possibilidade de distingui-los.<br />

Freud assinala que, de início, as pulsões sexuais emanam de uma grande<br />

variedade de funções orgânicas, atuam independentemente umas das outras e só<br />

alcançam a síntese numa etapa posterior. Esta etapa corresponde ao narcisismo, no<br />

momento em que ocorre a unificação das pulsões sexuais em uma unidade e o ego é<br />

tomado como objeto da libido.<br />

Mas Freud coloca que no narcisismo o ego seria investido por pulsões que se<br />

satisfazem no próprio corpo. Assim o estágio do narcisismo envolveria a forma de<br />

satisfação autoerótica. Freud acaba por apresentar o autoerotismo também como<br />

modo de obtenção de satisfação da fase narcísica do desenvolvimento. Neste ponto<br />

pode-se inferir que enquanto fase o autoerotismo termina com a entrada no<br />

narcisismo, mas não enquanto forma de obtenção de satisfação.<br />

Freud faz considerações a respeito da relação amor e ódio. Considera o amor<br />

como originalmente narcisista, passando posteriormente para os objetos por sua<br />

35


associação com a pulsão sexual, enquanto que a relação do ódio com o objeto é mais<br />

antiga. Considera o ódio expressão do desprazer causado pelo objeto e mantém<br />

relação com a pulsão de autoconservação. Com a organização genital amor e ódio<br />

entram numa relação de oposição. 48<br />

1.3.2. Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1915)<br />

Freud reapresenta o fenômeno onírico trabalhado em A Interpretação dos sonhos<br />

(1900), apresentando o sono e o sonho como equivalentes normais das afecções<br />

narcísicas, o que já havia sido assinalado brevemente no artigo que introduz o<br />

conceito.<br />

...modelos normais das afecções patológicas. Entre eles se contam estados afetivos como o<br />

luto e a paixão, mas também o estado de dormir e o fenômeno de sonhar. 49<br />

O sonho é considerado um fenômeno alucinatório que envolve uma dupla<br />

regressão: uma seria a regressão no desenvolvimento do ego até a satisfação<br />

alucinatória do desejo e outra a regressão no desenvolvimento da libido ao narcisismo<br />

primitivo. A dupla regressão estaria presente também nas neuroses narcísicas. Com<br />

relação a esta dupla regressão, Freud coloca:<br />

Distinguimos duas destas regressões: no desenvolvimento do ego e da libido. No estado<br />

de dormir, este último chega até a reprodução do narcisismo primitivo, e o primeiro, até<br />

a etapa da satisfação alucinatória do desejo. 50<br />

47 Simanke, 1994, pp. 128-9.<br />

48 Freud, Pulsões e destinos de pulsão (1915), v. 14, pp. 160-2.<br />

49 Freud.Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1915), v.14, p. 221<br />

50 Idem ibid, pp. 221-2.<br />

36


Pode-se dizer que, para Freud, a alucinação está para a neurose narcísica da<br />

mesma forma que o sonho está para o sono. O narcisismo do estado de dormir se<br />

expressa com a atividade do desejo que procura recolher todos os investimentos<br />

emitidos pelo ego e estabelecer o narcisismo absoluto.<br />

...o narcisismo do estado de dormir implica o cancelamento do investimento de todas<br />

representações-objeto, tanto em sua parte consciente quanto a pré-consciente. 51<br />

Segundo o autor, o reprimido que parte do Icc não obedece este desejo de<br />

dormir que parte do ego, de modo que uma parte do contrainvestimento e da censura<br />

entre Icc e Pcc são conservados, ainda que com menor força. 52 Os investimentos,<br />

provenientes dos sistemas Icc e Pcc, ao serem retirados dos objetos devido à perda do<br />

interesse por eles, convergem para o ego.<br />

Freud assinala que o vínculo com o mundo exterior depende da capacidade em<br />

distinguir entre percepção e representação. O reconhecimento de uma percepção<br />

como tal se dá pelo exame da realidade, o que envolve o abandono da satisfação<br />

alucinatória do desejo. Tal exame seria da alçada do sistema Cc (P) e ocorreria sob a<br />

via progressiva. Freud coloca que o exame da realidade e as censuras são instituições<br />

do ego, ou seja, o ego como agente do recalque.<br />

A amentia é a reação frente a uma perda que a realidade apresenta, mas que deve ser<br />

desmentida pelo ego como algo insuportável. Com base nisso o ego rompe o vínculo com a<br />

realidade, retira o investimento do sistema Cc das percepções... Com este estranhamento<br />

da realidade acaba eliminado o exame da realidade, as fantasias de desejo – não<br />

51 Idem ibid, p. 223.<br />

52 Idem ibid, p. 224.<br />

37


eprimidas, inteiramente conscientes – podem penetrar no sistema e ser admitidas desde<br />

aqui como uma realidade melhor. 53<br />

Segundo Freud, nos sonhos bem como nas psicoses o exame da realidade é<br />

abandonado e a satisfação alucinatória do desejo restabelecida. Assim como peças<br />

mais importantes do sonho aparecem a formação da fantasia do desejo e o caminho<br />

regressivo percorrido até a alucinação. Ambos ocorrem e mostram-se também<br />

fundamentais nas afecções narcísicas como na confusão alucinatória aguda – amentia<br />

(de Meynert) - e na fase alucinatória da esquizofrenia. Assim, Freud apresenta o<br />

investimento do ego pela libido desde sua expressão na normalidade até na patologia.<br />

O delírio alucinatório da amentia é uma fantasia de desejo claramente reconhecível...<br />

...a psicose alucinatória do desejo... não só traz à consciência desejos ocultos ou<br />

reprimidos, mas sim que os representa, com crença plena, como cumpridos. 54<br />

No sonho o desejo aparece disfarçado devido à ação da censura, enquanto que<br />

na amentia pode ser claramente reconhecido, pois nesta o fracasso da censura se dá em<br />

maior grau. Da mesma forma, o fracasso da repressão é maior na psicose do que na<br />

neurose. Nesta, o retorno do reprimido se dá apenas de forma parcial e distorcida.<br />

Tomando-se as psicoses como exemplo pode-se dizer que, quanto maior o<br />

comprometimento do ego, maior o fracasso da repressão.<br />

Freud apresenta o sonho como uma retração narcisista dos investimentos até<br />

um estágio anterior do cumprimento do desejo e o dormir como uma “reativação da<br />

permanência no seio materno” em busca de um estado de apaziguamento de<br />

estímulos que deixa de lado o exame da realidade. Compreende uma volta ao<br />

narcisismo primário. Neste momento o narcisismo primário pode ser entendido como<br />

53 Idem ibid, p. 232.<br />

54 Freud.Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1915), v.14, pp. 228 e 229.<br />

38


um estado inicial do indivíduo anterior à formação do ego, diferentemente do<br />

proposto por Freud em textos anteriores.<br />

A retração narcisista dos investimentos levaria à admissão das fantasias de<br />

desejo como a realidade mais satisfatória, o que é permitido por uma regressão no<br />

desenvolvimento do ego até um estágio anterior do cumprimento do desejo. As<br />

moções pulsionais (desejo onírico) que se formam no Pcc substituem um material Icc;<br />

o processo tramado pelo Pcc e reforçado pelo Icc toma um caminho retrocedente que<br />

vai do Icc até a percepção e se impõe à consciência. Assim, restaria aberta apenas a via<br />

regressiva que incapacita a consciência de proceder com o exame da realidade,<br />

responsável pela distinção entre o que é de dentro e o que é de fora.<br />

Freud descreve a mesma ocorrência na demência precoce. O ego, responsável<br />

pelo exame da realidade e pela censura, estaria fragmentado ao ponto em que o<br />

exame da realidade já não impede a alucinação.<br />

...o ego do doente se tem fragmentado até o ponto em que o exame da realidade já não<br />

impede a alucinação. 55<br />

Ou seja, a capacidade em distinguir entre o que é percepção e o que é<br />

representação, entre o que está dentro e o que está fora, não se acha presente. As<br />

fantasias de desejo penetram na consciência como uma realidade melhor no lugar da<br />

abandonada. Esta distinção entre o que é de dentro e o que é de fora se mostra<br />

essencial para a vida mental do sujeito.<br />

Haveria, segundo a apresentação freudiana, dois momentos nos quais<br />

poderiam ocorrer rupturas no narcisismo do sonho. Uma primeira ruptura seria a<br />

renúncia ao dormir pelo fato do sujeito temer seus sonhos reveladores de suas moções<br />

pulsionais inconscientes. Uma segunda ruptura seria quando alguns pensamentos<br />

55 Freud.Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1915), v.14, p. 233.<br />

39


diurnos se mostrassem conscientes, mantendo uma parte de seu investimento entre<br />

Icc e Pcc. 56<br />

Freud apresenta também o caráter egoísta dos sonhos, fazendo coincidir<br />

narcisismo e egoísmo.<br />

...sabemos que o sonho é absolutamente egoísta... Agora bem, isto se desprende de<br />

maneira facilmente compreensível do narcisismo do estado de dormir. É que<br />

narcisismo e egoísmo coincidem; a palavra narcisismo só quer destacar que o egoísmo é<br />

também um fenômeno libidinoso ou, expresso de outro modo, que o narcisismo pode<br />

definir-se como o complemento libidinoso do egoísmo. 57<br />

Narcisismo e egoísmo coincidem, ou seja, ocorrem ao mesmo tempo, mas não<br />

designam um fenômeno idêntico. O narcisismo é o investimento do ego pela libido e o<br />

egoísmo “define-se como investimento pelas pulsões do ego.” 58<br />

1.3.3. Luto e melancolia (1917 [1915])<br />

Freud estuda a melancolia comparando-a ao afeto normal experimentado no<br />

luto. Ele coloca que, frente às mesmas condições, pode ocorrer o estado normal de luto<br />

ou a melancolia; supõe então que haja uma disposição para a ocorrência desta última.<br />

As considerações sobre a melancolia permitiram que Freud retomasse as colocações<br />

sobre o narcisismo e o ideal do ego. As considerações sobre o ideal do ego abriram<br />

espaço para posteriores desenvolvimentos em Psicologia das massas e análise do ego e<br />

conduziu para a hipótese do superego, apresentado em O ego e o id. O conceito de<br />

56 Idem ibid, p. 225.<br />

57 Idem ibid, p. 222.<br />

58 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 140.<br />

40


identificação é analisado em primeiro plano, como etapa anterior à escolha objetal;<br />

momento em que o ego está se formando por via identificatória.<br />

Freud assinala que a melancolia se caracteriza pelo profundo sofrimento, o<br />

cancelamento do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de escolher um<br />

novo objeto, diminuição da produtividade e um rebaixamento da auto-estima,<br />

expresso como auto-recriminações. Isto ocorre porque o ego, por meio de uma<br />

identificação narcísica com o objeto perdido/abandonado, é criticado como antes fora<br />

o objeto. Freud conclui que as auto-recriminações do doente estão ligadas ao ódio<br />

dirigido ao objeto; são enviadas para o ego a partir de uma identificação narcísica com<br />

o objeto.<br />

O investimento de objeto mostrou-se pouco resistente, foi cancelado, mas a libido livre<br />

não deslocou para outro objeto e sim se retirou sobre o ego. Mas assim não encontrou u m<br />

uso qualquer, serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto resignado.<br />

A sombra do o bjeto caiu sobre o ego, quem, sucessivamente, pode ser julgado por uma<br />

instancia particular como um objeto, como o objeto abandonado. Desta forma, a perda do<br />

objeto teve que se mudar em uma perda do ego; e o conflito entre o ego e a pessoa amada,<br />

em uma separação entre ego crítico e o ego alterado por identificação. 59<br />

A identificação narcísica substitui o investimento erótico anteriormente<br />

dissipado ao objeto amado, ou seja, o investimento objetal é abandonado. A perda<br />

objetal se transforma na perda do ego e o conflito entre ego e objeto passa a ser entre<br />

ego e parte alterada do ego.<br />

O luto envolve a perda de um objeto real, sendo assim, de natureza consciente,<br />

enquanto a melancolia envolve a perda real ou fantasística do objeto, sendo que esse<br />

segundo tipo de perda é de natureza inconsciente. Contudo, a melancolia também<br />

pode ser decorrente de uma perda real de objeto. Freud observa que, no luto, não<br />

59 Freud. Luto e melancolia (1917 [1915]), v. 14, p. 246.<br />

41


ocorre perturbação do sentimento de si, nele o mundo se tornaria pobre e vazio,<br />

enquanto na melancolia o próprio ego se empobrece.<br />

A ambivalência de sentimentos com relação ao objeto e a regressão da libido ao<br />

ego são características do luto, mas também da melancolia, cujas precondições são:<br />

uma forte fixação no objeto amado e uma escolha objetal narcísica. Freud coloca que<br />

esse tipo de escolha faz com que, frente à determinada perda, ocorra o retrocesso do<br />

sujeito ao narcisismo. Freud afirma:<br />

...a melancolia toma emprestados uma parte de seus caracteres do luto, e a outra parte da<br />

regressão da eleição narcisista do objeto até o narcisismo. 60<br />

O autor parece conceber o narcisismo como uma “identificação narcísica” com<br />

o objeto, o que faz desaparecer a noção de narcisismo como um estado puramente<br />

anobjetal. Esse caminho levaria à admissão de um narcisismo primitivo anterior a<br />

etapa de formação do ego e o narcisismo secundário contemporâneo a essa. Esse<br />

ponto foi expresso também no artigo Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos. 61<br />

Para explicar a inclinação ao suicídio da melancolia, Freud faz considerações<br />

sobre o sadismo. Considera que todo o sadismo dirigido ao objeto volta-se para o ego<br />

próprio, concluindo que a vontade de se matar partiria do impulso de matar o outro.<br />

A análise da melancolia nos ensina que o ego só pode dar-se morte se em virtude do<br />

retrocesso de um investimento de objeto pode tratar a si mesmo como o objeto, é permitido<br />

dirigir contra si mesmo essa hostilidade que recai sobre um objeto e substitui a reação<br />

originária do ego até objetos do mundo exterior. 62<br />

60 Idem ibid, p. 248.<br />

61 Segundo James Strachey, em nota introdutória ao mesmo artigo, esses dois artigos são<br />

contemporâneos e parecem ter sido escritos em onze dias entre abril e maio de 1915.<br />

62 Freud. Luto e melancolia (1917 [1915]), v. 14, p. 249.<br />

42


Assim, o amor e a hostilidade fariam parte da libido e seriam dirigidos do<br />

objeto ao ego. Da mesma forma o impulso de matar o objeto seria dirigido ao ego.<br />

Freud analisa outra tendência da melancolia, que é a de se transformar em<br />

mania, cujos sintomas são opostos aos da primeira. Ele considera que a transformação<br />

da melancolia em mania deve ser explicada pela regressão da libido ao ego, pois as<br />

duas outras condições necessárias para sua ocorrência – perda do objeto e<br />

ambivalência – estão presentes também em outras situações como nas auto-<br />

recriminações obsessivas. Freud assinala que, na mania, o ego deve ter superado a<br />

perda objetal e o investimento dirigido ao ego pode ser enviado para outros objetos. O<br />

maníaco procura novos investimentos objetais, mostrando-se claramente<br />

desvinculado do objeto que causou sofrimento. Mas, neste momento, não tece demais<br />

explicações sobre a transformação da melancolia em mania.<br />

1.3.4. A teoria da libido e o narcisismo - 26ª Conferência (1916-17)<br />

Freud assinala que a atividade anímica noturna está a serviço do desejo de<br />

dormir e é governada por motivos totalmente egoístas. Para a teoria da libido o<br />

dormir é um estado no qual todos investimentos de objeto - os libidinosos e os<br />

egoístas - são retirados para o interior do ego. No dormente está restabelecido o<br />

estado original da distribuição da libido, o narcisismo pleno, no qual a libido e o<br />

interesse egóico ficam unidos no interior do ego, que se contenta consigo mesmo.<br />

Neste ponto, Freud explicita a distinção entre o egoísmo e o narcisismo:<br />

Bem, eu creio que o narcisismo é o complemento libidinoso do egoísmo. Quando se fala<br />

do egoísmo se tem em vista a utilidade para o indivíduo; quando se pensa no<br />

narcisismo, se leva em conta também sua satisfação libidinal. 63<br />

63 Freud. A teoria da libido e o narcisismo - 26 a Conferência (1916-17), v.16, p. 380. (grifo nosso)<br />

43


O egoísmo poderia ocorrer junto a intensos investimentos de objeto, mas<br />

poderia ocorrer também frente a um forte narcisismo, em ambos os casos de acordo<br />

com a necessidade do ego. Assim, o oposto do egoísmo - o altruísmo - não coincidiria<br />

com o investimento libidinoso do objeto, embora na paixão do altruísmo ocorra o<br />

investimento libidinoso do objeto pela diminuição de libido do ego e conseqüente<br />

sobrestimação do objeto sexual. Ocorre que uma parte do narcisismo é atraída pelo<br />

objeto sexual de forma que o egoísmo é transmitido ao objeto sexual, o qual toma o<br />

poder e suprime o ego. 64<br />

Também a respeito da gênese do sonho, Freud observa que, com a diminuição<br />

da censura, o inconsciente aproveita para se apropriar dos restos diurnos e, a partir<br />

destes, formar um desejo onírico proibido. O inconsciente reprimido adquire certa<br />

independência a respeito do ego e se apresenta no sonho. Por outro lado, Freud vê<br />

como uma possibilidade que os restos diurnos tenham responsabilidade por uma<br />

parte da resistência que se opõe ao recolhimento da libido, disposto pelo desejo de<br />

dormir, devido a uma ligação preexistente entre eles e o inconsciente reprimido. 65<br />

Neste texto algumas mudanças, ligadas à noção de narcisismo, ocorrem. Freud<br />

ainda diferencia as pulsões egóicas das sexuais, mas não tenta fazer um paralelismo<br />

entre ambas. Ele afirma que as pulsões sexuais se relacionam com a angústia mais<br />

intimamente que as pulsões egóicas e buscam se satisfazer através de caminhos<br />

regressivos.<br />

Para Freud o narcisismo poderia ser considerado um estado universal e<br />

original a partir da qual se formaria o amor pelo objeto, sem que desapareça o amor<br />

pelo ego.<br />

É provável que esse narcisismo seja o estado universal e originário a partir do qual só<br />

mais tarde se formou o amor de objeto, sem que por isso deva desaparecer aquele. Da<br />

história do desenvolvimento da libido de objeto, teríamos que recordar que muitas pulsões<br />

64 Idem ibid, p. 380.<br />

65 Idem ibid, p. 381.<br />

44


sexuais se satisfazem no começo no próprio corpo (dissemos que se satisfazem de maneira<br />

autoerótica)... Portanto, o autoerotismo era a prática sexual do estádio narcisista de<br />

colocação da libido. 66<br />

Freud admite a existência de um narcisismo primário até mesmo desde a vida<br />

intra-uterina, o que acaba por fazê-lo coincidir com o autoerotismo. O autoerotismo<br />

aparece como a atividade sexual da fase narcisista de organização libidinal.<br />

Freud apresenta a relação entre libido egóica e libido de objeto para prestar<br />

esclarecimentos sobre as neuroses narcísicas e mostrar suas semelhanças e diferenças<br />

com a histeria e as obsessões. Sobre o movimento da libido, Freud assinala:<br />

A libido, convertida em narcisista, não pode achar o caminho regresso até os objetos, e é<br />

este obstáculo a sua mobilidade o que passa a ser patogênico. Parece que a acumulação da<br />

libido narcisista não se tolera mais além de certa medida. 67<br />

Nas neuroses narcísicas a fixação da libido se daria em fases muito anteriores<br />

do desenvolvimento, diferentemente das neuroses de transferência, como a histeria e<br />

a neurose obsessiva. Freud coloca que nas neuroses de transferências se tropeça em<br />

barreiras parecidas à resistência, sendo que nas neuroses narcisistas a resistência<br />

apresenta-se como insuperável.<br />

As psicoses são apresentadas como equivalentes às neuroses narcísicas. A<br />

paranóia e a demência precoce são reunidas na designação comum de parafrenia. A<br />

demência precoce, analisada por Freud e Karl Abraham, consiste na falta de<br />

investimento libidinal dos objetos. A libido que se encontrava aderida aos objetos, e<br />

66 Idem ibid, p. 378. (grifo nosso)<br />

67 Idem ibid, p. 383.<br />

45


que se empenhava a chegar na satisfação por seu intermédio, pode abandoná-la e<br />

ocupar ao ego. 68<br />

O delírio de grandeza é concebido como conseqüência direta de um aumento<br />

de libido no ego por recolhimento dos investimentos libidinosos do objeto, o que<br />

compreende:<br />

...um narcisismo secundário como retorno do narcisismo originário da primeira<br />

infância. 69<br />

Freud retoma as explicações sobre a paranóia, observando que nos delírios<br />

persecutórios na maioria das vezes os perseguidores eram do mesmo sexo do<br />

perseguido. Segundo ele, a pessoa do mesmo sexo mais amada se transforma no<br />

perseguidor após contrair-se a enfermidade e depois ésubstituída por outro de acordo<br />

com afinidades notáveis em ambas (ex: o pai era substituído pelo professor, o chefe).<br />

Freud descreve a paranóia persecutória como uma forma do indivíduo se<br />

defender de uma moção homossexual muito intensa. A mudança da ternura em ódio<br />

seria resultado da transposição das aspirações libidinosas em angústia. Para Freud, o<br />

perseguidor sempre deve ser do mesmo sexo e em casos em que o perseguidor é de<br />

outro sexo a idéia delirante, inicialmente, é dirigida a uma pessoa do mesmo sexo. A<br />

escolha homossexual do objeto originariamente está mais próxima do narcisismo que<br />

a heterossexual.<br />

A eleição do objeto, após o estágio narcisista, pode produzir-se segundo os<br />

tipos: a) o tipo narcisista, em que o ego próprio é remarcado por outro que se parece<br />

com ele ou b) o tipo analítico, em que uma pessoa adquire valor por haver satisfeito as<br />

outras necessidades da vida, e são desse modo escolhidas como objeto também pela<br />

68 Idem ibid, p. 378.<br />

69 Idem ibid, p. 386.<br />

46


libido. Segundo Freud, o tipo narcisista de eleição do objeto remete a uma disposição<br />

para a homossexualidade manifesta. 70<br />

Freud estuda as afecções narcísicas com o objetivo de poder chegar a conhecer a<br />

composição do ego e seu edifício de instâncias, mas ele considera que foi pela análise<br />

do delírio de observação que pode concluir que dentro do ego existe uma instância<br />

que observa e critica.<br />

...temos extraído a conclusão de que no interior do ego existe realmente uma instância<br />

que continuamente observa, critica e compara, e que de tal modo se contrapõe a outra<br />

parte do ego.<br />

...uma instância que mede o ego atual e cada uma de suas atividades com um ego ideal. 71<br />

Freud considera se tratar de uma instância de observação de si como um<br />

censor egóico - a consciência moral - de onde partiriam as repressões das moções de<br />

desejo. O ego ideal tem o propósito de restaurar a contentamento consigo mesmo do<br />

narcisismo infantil - ideal narcísico de onipotência. Já o ideal do ego, parente do<br />

superego da segunda tópica, é o modelo ao qual o ego atual tenta conformar-se,<br />

modelo esse formado a partir da idealização do ego e das influências dos pais e<br />

protótipos destes. 72<br />

A 26 a Conferência introduz, portanto, importantes mudanças que colaboram no<br />

culminar da ‘virada’ para a segunda tópica, pois neste texto Freud considera a<br />

existência de um narcisismo primitivo desde a vida intra-uterina, o que acaba por<br />

fazê-lo coincidir com o autoerotismo. É perceptível que Freud tenta ainda, manter o<br />

dualismo pulsional, mas suas falhas se mostram evidentes.<br />

70 Idem ibid, pp. 387-8.<br />

71 Idem ibid, p. 390.<br />

72 Esse mesmo ponto de vista foi apresentado anteriormente em Introdução ao narcisismo, onde o termo<br />

ideal do ego foi utilizado pela primeira vez.<br />

47


Muitas mudanças entram nesta nova tópica como conseqüência das<br />

dificuldades explicativas introduzidas pela noção de narcisismo. Entre estas<br />

mudanças tem-se: o abandono da distinção entre autoerotismo e narcisismo; oposição<br />

global entre um estado narcísico primitivo e relações com o objeto; abandono da<br />

noção de neuroses narcísicas; abandono da oposição entre pulsões sexuais e pulsões<br />

egóicas; evolução da noção de ego; introdução da noção de id; surge o superego,<br />

instância que compreende o ideal do ego da primeira tópica.<br />

1.3.5. As neuroses narcísicas<br />

Com a verificação do narcisismo emerge a expressão neurose narcísica para<br />

designar as afecções mentais em que a capacidade para estabelecer vínculos<br />

libidinosos com objetos externos está perdida ou seriamente prejudicada. A libido<br />

retira-se dos objetos externos e reflui ao ego, limitando ou impossibilitando o acesso<br />

do sujeito à realidade o que constitui o narcisismo secundário. Freud apresenta o<br />

termo neurose narcísica em oposição às neuroses de transferência, nas quais a<br />

capacidade de estabelecer vínculos encontra-se preservada.<br />

Inicialmente Freud inclui como modalidades de neuroses narcísicas a paranóia<br />

mais bem enunciada no Caso Schreber; a melancolia descrita em Luto e melancolia; a<br />

esquizofrenia e a confusão alucinatória, tratadas mais especificamente no Complemento<br />

metapsicológico à teoria dos sonhos. Também estudos dos sonhos das pessoas normais e<br />

a hipocondria colaboraram para a descrição do mecanismo das neuroses narcísicas.<br />

No Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos Freud apresenta o sono e o<br />

sonho como equivalentes normais das afecções narcísicas. Uma dupla regressão<br />

estaria presente nos sonhos e nas neuroses narcísicas: a regressão no desenvolvimento<br />

do ego até a satisfação alucinatória do desejo e a regressão no desenvolvimento da<br />

libido ao narcisismo primitivo.<br />

48


As psicoses como os sonhos são considerados estados narcísicos porque em<br />

ambos ocorre um retraimento da libido dos objetos e um aumento da libido investida<br />

no ego. Segundo Freud, nos sonhos bem como nas psicoses o exame da realidade<br />

responsável pelo vínculo com o mundo exterior é abandonado e a satisfação<br />

alucinatória do desejo restabelecida. Na amentia a realidade, percebida como<br />

insuportável, é abandonada e as fantasias de desejo podem ser admitidas como uma<br />

realidade mais satisfatória. 73 Portanto, o aparecimento da fantasia do desejo e o<br />

caminho regressivo percorrido até a alucinação estão presentes tanto nos sonhos como<br />

na confusão alucinatória aguda e na fase alucinatória da esquizofrenia.<br />

Sobre a relação da hipocondria com as neuroses narcísicas: no Caso Schreber<br />

Freud apresenta as primeiras comparações entre a hipocondria e as neuroses<br />

narcísicas ao apontar o aspecto regressivo dos sintomas de Schreber. Mas é em<br />

Introdução ao narcisismo que Freud fornece explicações a respeito desta relação ao<br />

apresentar a hipocondria como um dos meios para se estudar o narcisismo.<br />

O autor apresenta semelhanças entre a hipocondria e as alterações orgânicas<br />

quanto às sensações corporais dolorosas e os efeitos sobre a distribuição da libido<br />

presentes em ambas. Ocorre a retirada da libido dos objetos e o retorno desta ao ego,<br />

caracterizando o narcisismo secundário.<br />

Freud apresenta a oposição entre, de um lado as neuroses atuais e, de outro, as<br />

psiconeuroses que incluem as neuroses de transferência e as neuroses narcísicas. Estas<br />

últimas são apresentadas como equivalentes às psicoses, na medida que<br />

compreendem formas e condutas narcísicas. Dentro do grupo das psiconeuroses<br />

Freud apresenta as neuroses narcísicas em oposição as neuroses de transferência - a<br />

primeira envolve o investimento da libido no ego enquanto que nas segundas a<br />

capacidade para investir objetos externos é mantida.<br />

Sob a denominação de parafrenia Freud inclui a paranóia e a esquizofrenia que<br />

correspondem, ao lado da hipocondria, a uma estase de libido egóica, enquanto que a<br />

formação de sintomas da neurose de transferência se dá pela estase da libido de<br />

73 Freud.Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1915), v.14, p. 232.<br />

49


objeto. 74 Portanto, a psicose, inicialmente sob a categoria de neurose narcísica em<br />

oposição às neuroses de transferência, apresenta a possibilidade da libido se retirar<br />

dos objetos e voltar a investir o ego.<br />

Na segunda tópica a expressão neurose narcísica é abandonada e incluída sob o<br />

termo psicose. São importantes, nesta mudança, os conceitos de projeção e delírio,<br />

tratados quando Freud apresenta explicações sobre a paranóia e o conceito de<br />

identificação, tratado mais especificamente em Luto e melancolia.<br />

Na secção III do Caso Schreber Freud apresenta o mecanismo de formação do<br />

sintoma da paranóia colocando, em primeiro plano, os conceitos de projeção e de<br />

delírio. Ainda, nesta secção, apresenta o papel do narcisismo na gênese da paranóia,<br />

explicada como um conflito, uma defesa, uma tentativa de dominar as fantasias de<br />

desejo homossexuais. A projeção e o delírio aparecem como mecanismos de defesa<br />

contra estes desejos. A primeira trata-se de um mecanismo de defesa encontrado<br />

particularmente na paranóia. Segundo Laplanche e Pontalis 75 a paranóia se define<br />

pelo seu caráter de defesa contra a homossexualidade através dos mecanismos de<br />

projeção e delírio. Através da projeção Schreber localiza no exterior, mais<br />

especificamente em seu médico, os desejos homossexuais que recusa em si mesmo.<br />

Freud assinala:<br />

O mecanismo da formação de sintoma na paranóia exige que a percepção interna, o<br />

sentimento, seja substituída por uma percepção de fora. 76<br />

Assim, pela projeção, uma percepção interna é percebida como se originasse do<br />

exterior. A partir daí Freud apresenta algumas formas de paranóia com tipos de<br />

delírios ou projeção específicos. São eles: o delírio de perseguição, a erotomania e o<br />

delírio de ciúmes. O primeiro se dá pela projeção do ódio, o “eu o odeio” é substituído<br />

0 74 Freud. Introdução ao narcisismo (1914), v. 14, p. 81. (grifo nosso).<br />

75 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 335.<br />

50


por “ele me odeia” e assim tem-se por conclusão “eu o odeio porque ele me odeia e me<br />

persegue”. Na erotomania a tendência homossexual é negada pela concepção “eu não o<br />

amo, porque eu a amo” pela projeção “ela me ama” e assim tem-se “eu não o amo – eu a<br />

amo – porque ela me ama”. No delírio de ciúmes ocorre a substituição do “eu o amo” por<br />

“ela o ama”. Freud apresenta ainda uma outra forma de paranóia que envolve a<br />

concepção “eu não o amo em absoluto, e não amo a ninguém”, cujo caráter apresenta-se<br />

relacionado à concepção de narcisismo. A este respeito Freud diz:<br />

“Eu não o amo em absoluto, e não amo a ninguém”, esta frase parece<br />

psicologicamente relacionada – posto que não tem que por sua libido em alguma parte – à<br />

frase: “Eu amo só a mim”. Esta variedade da contradição nos dá então como resultado o<br />

delírio de grandeza, que podemos conceber como uma superestimação do ego próprio<br />

e, assim, por em paralelo com a conhecida superestimação do objeto de amor. 77<br />

Segundo Simanke, na paranóia a projeção forma a contrapartida do<br />

desinvestimento de objeto que caracteriza as neuroses narcísicas, ou seja, mantém<br />

relação de correspondência com o ato de desinvestir o objeto. 78 À medida que o<br />

sujeito projeta seus sentimentos no mundo exterior e o condena, sua libido se acha<br />

livre para investir o ego. O delírio e a projeção aparecem como tentativa de cura,<br />

assim:<br />

O que nos consideramos a produção patológica, a formação delirante, é, na realidade, a<br />

tentativa de restabelecimento, a reconstrução. 79<br />

76 Freud. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia autobiograficamente descrito (1911 [1910])), v.<br />

12, p. 59.<br />

77 Idem ibid, p. 61.<br />

78 Simanke, 1994, p. 149.<br />

79 Freud. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia autobiograficamente descrito (1911 [1910])), v.<br />

12, p. 65.<br />

51


Freud apresenta a esquizofrenia ao lado da paranóia como formadoras do<br />

grupo parafrenia. Em ambas ocorreria um investimento regressivo do ego a partir do<br />

mecanismo de repressão. A distinção entre elas se relaciona aos tipos de fixações e<br />

mecanismos de defesa. Ambas as afecções estão no grupo das neuroses narcísicas,<br />

cujos sintomas manifestos compreendem tentativas de restauração do laço objetal.<br />

Também chamadas de neuroses narcísicas, juntamente com a melancolia, até a<br />

entrada na segunda tópica.<br />

Segundo o autor, a fixação numa fase anterior do desenvolvimento marca as<br />

psicoses, mas a maior desagregação da esquizofrenia se explica pelo aspecto mais<br />

regressivo da afecção que tem como ponto de fixação o autoerotismo enquanto que na<br />

paranóia corresponde a um retorno ao narcisismo.<br />

Em Luto e melancolia a melancolia é incluída no grupo das neuroses narcísicas e<br />

seu mecanismo de formação de sintomas é especificado. Freud assinala que, na<br />

melancolia, a perda do objeto corresponde a uma perda do ego e o conflito entre ego e<br />

objeto amado se muda para o conflito entre parte crítica do ego e parte alterada por<br />

identificação. Isso se daria pela identificação do ego com o objeto abandonado e por<br />

uma forte fixação neste objeto. A critica dirigida anteriormente ao objeto é agora<br />

dirigida ao ego e teria como precedente uma relação ambivalente com o objeto.<br />

Como as outras neuroses narcísicas, a melancolia se caracteriza por uma fixação<br />

numa fase anterior do desenvolvimento, correspondente a regressão para a fase oral<br />

da libido que pertence ao narcisismo. 80 Esta regressão até o narcisismo se dá a partir<br />

da identificação e da eleição narcisista do objeto. A identificação aparece como uma<br />

etapa anterior ao investimento objetal que mostra-se fundamental para a intelecção<br />

das neuroses narcísicas. A identificação, talvez a maior contribuição teórica de Luto e<br />

melancolia, permite explicar como o ego se forma a partir da relação intersubjetiva e<br />

vem também explicar posteriormente, em O ego e o id, a formação do superego.<br />

A expressão neuroses narcísicas é abandonada, na segunda tópica, a partir do<br />

artigo Neurose e psicose de 1924, quando Freud procura distinguir e caracterizar as<br />

80 Freud. Luto e melancolia (1917 [1915]), v. 14, p. 247.<br />

52


duas principais categorias de transtornos mentais. As modificações introduzidas neste<br />

texto se dão por conseqüência dos desenvolvimentos teóricos apresentados em O ego e<br />

o id. Até este momento, as neuroses narcísicas e as psicoses eram consideradas<br />

equivalentes. Agora, Freud restringe o uso da expressão neurose narcísica às afecções<br />

melancólicas e limita a esquizofrenia e a paranóia à categoria de psicose. Freud<br />

assinala que as neuroses e as psicoses ocorrem em função dos conflitos do ego com as<br />

diferentes instâncias – o ego acaba por se deformar ou se segmentar. Assim:<br />

A neurose de transferência corresponde ao conflito entre o ego e o id, a neurose<br />

narcísica ao conflito entre o ego e o superego, a psicose ao conflito entre o ego e o mundo<br />

exterior. 81<br />

Freud categoriza a psicose, o que exige explicações metapsicológicas. O<br />

narcisismo, enquanto forma patológica, continua a ser considerado dentro do campo<br />

das psicoses. Os sintomas psicóticos, desde a introversão da libido ao ego,<br />

compreendem tentativas do ego refazer o contato com a realidade.<br />

81 Freud. Neurose e psicose (1924[1923]), v. 19, p. 158. (grifo nosso)<br />

53


2. A PASSAGEM DA PRIMEIRA PARA A SEGUNDA TÓPICA E O <strong>NARCISISMO</strong><br />

O próprio autor aponta para a ‘virada’ de seu pensamento nos anos 20.<br />

‘Virada‘que marca a busca por uma adequação de um novo dualismo pulsional, já que<br />

as falhas do primeiro dualismo se mostraram evidentes, a tal ponto que se tornava<br />

difícil, para Freud, negar o monismo pulsional que Jung, recém “divorciado” do<br />

autor, apontava.<br />

O conceito de narcisismo traz consigo exigências explicativas que Freud passa a<br />

considerar desde os Artigos metapsicológicos. Neste período de transição outros<br />

conceitos, mais especificamente ligados ao narcisismo, apresentam-se em primeiro<br />

plano, como os conceitos de identificação e de ideal do ego.<br />

A primeira tópica tenta estabelecer uma divisão rígida entre, de um lado, o ego<br />

consciente como agente repressor e, de outro, o reprimido inconsciente. Assim, o<br />

reprimido corresponderia ao sistema Icc e o ego com o Pcc/Cc. Contudo, Freud vê<br />

que não é fácil fazer esta correspondência. Dentro do ego tem uma parte de<br />

inconsciente, como se verifica na resistência que ocorre na situação de análise e o<br />

sentimento inconsciente de culpa.<br />

Além do princípio de prazer (1920) compreende a fase final dos Artigos<br />

metapsicológicos, pois nesse texto aparecem indícios do novo quadro de estruturação<br />

psíquica, com a apresentação, pela primeira vez, da nova dicotomia entre pulsões de<br />

vida e pulsões de morte. As idéias expostas, nesse texto, levam Freud a trabalhar mais<br />

afundo os termos identificação e escolha de objeto no texto Psicologia das massas e<br />

análise do ego (1921), dado que a identificação estaria relacionada ao momento de<br />

formação do ego. As conseqüências teóricas da retomada da questão do ego vão<br />

culminar em O ego e o id (1923). Freud apresenta pela primeira vez as três instâncias<br />

psíquicas – id, ego e superego – considerando que a origem tanto do ego quanto do<br />

superego estaria ligada à identificação. Esse texto marca a entrada numa nova forma<br />

de estruturação psíquica – a segunda tópica.<br />

54


Em Além do princípio de prazer se acha expressa esta idéia na proposição que<br />

divide o ego em coerente e reprimido, ou seja, em uma parte pcc/cc e outra icc, a qual<br />

encontra-se no interior do ego. Como assinala James Strachey em nota introdutória de<br />

O ego e o id, a qualidade de consciente atribuída ao ego já não é suficiente para<br />

estabelecer o modelo estrutural da psique.<br />

Na primeira tópica a maior parte dos textos assimilam o inconsciente ao<br />

recalcado, mas tem aqueles que falam de conteúdos adquiridos filogenéticamente que<br />

constituiriam o núcleo do ego. Sem referência a conteúdos filogenéticos o inconsciente<br />

coincidiria com o recalcado. 82 Laplanche e Pontalis consideram que na segunda tópica,<br />

a consideração de que o ego tem uma parte inconsciente faz com que o id abranja os<br />

conteúdos que antes eram atribuídos ao Icc, mas não o conjunto do psiquismo icc.<br />

A introdução do conceito de narcisismo acarreta algumas conseqüências à<br />

definição do ego. Sua gênese se daria paralelamente à entrada no narcisismo a partir<br />

das identificações com os pais. Portanto, trata-se de uma escolha de objeto de amor<br />

tomado pela sua semelhança com o próprio ego - escolha narcísica. Define-se como<br />

unidade que vem depois do funcionamento fragmentado da sexualidade que<br />

caracteriza o autoerotismo e se apresenta como objeto de amor à sexualidade, tal como<br />

um objeto exterior. O titulo dado ao ego de “grande reservatório da libido”, traz em si<br />

contradições. Causa dificuldades supor o ego como reservatório da libido e ao mesmo<br />

tempo, como sendo investido por ela. 83<br />

É a partir da introdução do conceito de narcisismo que a distinção entre pulsões<br />

sexuais e pulsões egóicas se torna confusa, pois o ego também é investido pela libido.<br />

As sucessivas reformulações na teoria das pulsões obrigam Freud a situar as pulsões<br />

de autoconservação de maneira diferente. Os conceitos de pulsões do ego e de pulsões<br />

de autoconservação que eram correspondentes já não conseguem manter esta<br />

correspondência. Na realidade, desde o início percebe-se a pulsão de autoconservação<br />

raramente é invocada como energia recalcante. Atribui-se ao ego e, portanto, as<br />

pulsões egóicas o papel de recalque.<br />

82 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 219.<br />

55


Em Além do princípio do prazer Freud tenta situar as pulsões do ego como pulsões<br />

de morte, ao colocar as pulsões sexuais como pulsões de vida. Mas após este texto,<br />

Freud deixa de fazer uso do conceito de pulsão do ego e utiliza-se do conceito de<br />

pulsão de autoconservação. Freud ainda chama o ego de “grande reservatório da<br />

libido” a partir do qual a libido seria enviada aos objetos. 84 Nesse momento, o conflito<br />

a que Freud se referia se dava na oposição entre libido objetal e libido do ego.<br />

Contudo, as pulsões de autoconservação, como as pulsões sexuais, também são de<br />

natureza libidinal. Dessa forma o conflito ficava reduzido, deixando de ser um<br />

conflito entre pulsões. A pulsão sexual existe dentro do campo de uma oposição<br />

primordial entre pulsões. 85<br />

Freud reconhece que a oposição inicial entre pulsões sexuais e pulsões egóicas<br />

mostra-se inapropriada, mas em momento algum adota o monismo pulsional, ao<br />

contrário, esforça-se para a introdução de um novo dualismo. A dificuldade em<br />

abandonar o primeiro dualismo e entender a libido como energia psíquica em geral<br />

deve-se, como afirma Simanke, a vários fatores:<br />

A resistência de Freud em consentir com isto prende-se a vários fatores. Um histórico: tal<br />

hipótese havia sido sugerida por Jung, com quem Freud rompera recentemente e com<br />

quem se empenha em uma discussão... Outros fatores são de natureza teórica: a dualidade<br />

pulsional serve de base para a noção de conflito psíquico, que está na raiz da compreensão<br />

freudiana das neuroses. 86<br />

De modo que Freud só renuncia ao antigo dualismo quando dispõe de um novo,<br />

o qual começa a se mostrar em Além do princípio de prazer (1920). A introdução do<br />

conceito de pulsões de morte realizada neste texto abre espaço para critica e Freud<br />

83 Idem ibid, pp. 131-2.<br />

84 Freud. Além do princípio de prazer (1920), v. 18, p. 50.<br />

85 Monzani, 1989, p.145.<br />

86 Simanke, 1994, p. 122.<br />

56


tenta montar sua defesa, ampliada em O ego e o id (1923), ou melhor, desenvolvida<br />

nesse texto.<br />

A noção de identificação também se desenvolve passa a ser entendida como<br />

profundamente ligada a modificações do ego. A identificação e a escolha objetal são<br />

colocadas na origem do ego e do superego, daí resulta a importância do conceito<br />

narcisismo, cuja fundamentação está estreitamente ligada a essas noções. A partir da<br />

análise da identificação na melancolia ocorrem transformações na noção do ego. Sua<br />

gênese estaria em conexão com a identificação com objetos externos. Resta a pergunta:<br />

para investir um objeto é necessário a existência da unidade ego ou investimento e<br />

gênese do ego se dão paralelamente?<br />

Uma resposta começa a ser trabalhada, por Freud, quando estuda o<br />

melancólico. A identificação do melancólico é entendida “como uma regressão a uma<br />

identificação mais arcaica, concebida como uma fase preliminar da escolha de objeto”, assim<br />

haveria “um ego que não seria apenas remodelado por identificações secundárias; seria<br />

também constituído, desde a origem, por uma identificação que toma como protótipo a<br />

incorporação oral”. 87 Desta forma, com a introjeção do objeto, toda uma relação seria<br />

interiorizada.<br />

Assim, na melancolia o conflito ambivalente para com o objeto seria transposto<br />

na relação com o ego. Nesse momento tem-se o conflito entre o ego e a parte<br />

reprimida do ego. Compreende um momento de transição até a introdução da noção<br />

de id em O ego e o id. O ego já não é concebido como a única instância personificada no<br />

interior do psiquismo. Uma parte do ego põe-se diante da outra e a julga de forma<br />

critica, tomando-a como objeto. Essa parte que julga compreende a instância critica e<br />

se apresenta como consciência moral.<br />

Em O ego e o id, Freud introduz o id como nova instância da personalidade e<br />

atribui ao mesmo o papel de grande reservatório da libido e o narcisismo do ego passa<br />

a ser um narcisismo secundário:<br />

87Laplanche e Pontalis, 1982, p. 132.<br />

57


Agora, a partir da separação entre o ego e o id devemos reconhecer o id como grande<br />

reservatório da libido. 88<br />

A princípio toda a libido está acumulada no id, enquanto que o ego se encontra em<br />

processo de formação ou é fraco. O id envia uma parte desta libido aos investimentos<br />

eróticos de objeto, do qual o ego logo fortalecido procura apoderar-se desta libido de objeto<br />

e impor-se ao id como objeto de amor. Portanto o narcisismo do ego é um narcisismo<br />

secundário, retirado dos objetos. 89<br />

Mais tarde, já no final de sua obra, em Esboço de psicanálise, Freud ora atribui ao<br />

ego a função de reservatório inicial da libido, ora atribui ao ego-id indiferenciado e<br />

aponta para o narcisismo do ego após investimentos objetais – um narcisismo<br />

secundário.<br />

As contradições, abandono e retomada de pensamentos, se mantêm. Mas não<br />

deixam de ser orientadoras e necessárias.<br />

88 Freud. O ego e o id (1923), v. 19, p. 32. (grifo nosso)<br />

89 Idem ibid, p. 47. (grifo nosso)<br />

58


3. A SEGUNDA TÓPICA E O <strong>NARCISISMO</strong><br />

3.1. Além do princípio de prazer (1920)<br />

Trataremos aqui de algumas questões que surgem com a introdução do<br />

narcisismo, buscando explicitar as alternativas explicativas apontadas por Freud.<br />

Entre estas, a principal a ser tratada aqui é a introdução da oposição entre pulsões de<br />

vida e pulsões de morte. Oposição esta, que se relaciona, em maior ou menor medida,<br />

com noções que se desenvolvem a partir da introdução do narcisismo.<br />

Este texto surge do esforço de Freud em manter a noção de conflito psíquico,<br />

agora sob um novo dualismo, dado a impossibilidade de manter o primeiro. Com a<br />

introdução do conceito de pulsão de morte, aparecem em Além do princípio de prazer os<br />

germes da nova teoria das pulsões, mais especificamente tratada, três anos depois, em<br />

O ego e o id. A introdução do novo dualismo pulsional abre espaço para criticas, mas,<br />

ao mesmo tempo, se mostra como alternativa para as dificuldades teóricas trazidas<br />

pela noção de narcisismo. Freud ainda chama o ego de “grande reservatório da<br />

libido” a partir do qual a libido é iniciada para os objeto. 90<br />

A principal colaboração de Além do princípio do prazer é a fundamentação da<br />

compulsão à repetição como característica da pulsão e como algo que vem antes do<br />

princípio de prazer. Freud apresenta condições que ultrapassam, ou melhor, que vão<br />

além do princípio de prazer, como a instauração do princípio da realidade, os sonhos<br />

de neurose traumática, a repetição em análise e os jogos infantis. Estes três últimos de<br />

caráter repetitivo.<br />

Freud tenta situar as pulsões do ego como pulsões de morte na medida em que<br />

situa as pulsões sexuais como pulsões de vida. A princípio ele fala que as pulsões de<br />

autoconservação são as que querem garantir a morte ao indivíduo, mas depois diz<br />

que elas querem a volta ao estado inorgânico, mas não de maneira imediata. Ele ainda<br />

90 Freud. Além do princípio de prazer (1920), v. 18, p. 50.<br />

59


tenta colocar a pulsões de autoconservação como pulsões egóicas, ou seja, tenta<br />

atribuir a qualidade de autoconservação ao ego, mas volta atrás porque o ego também<br />

é sexual. Assim, as pulsões de autoconservação, como as pulsões sexuais, também são<br />

de natureza libidinal. O que leva Freud a não falar mais de pulsão do ego após Além<br />

do princípio de prazer.<br />

Na secção I, Freud analisa o princípio do prazer em sua relação com o<br />

princípio de constância e, de forma mais breve, com o princípio da realidade. Na<br />

última secção aparece em suas relações com o princípio de Nirvana.<br />

Freud observa que o princípio de prazer dá lugar ao princípio da realidade para<br />

a autoconservação do ego. Trata-se na verdade de um adiamento do prazer em função<br />

da autoconservação. Daí as pulsões sexuais terem que, mesmo que com demora, se<br />

educar - deixar de lado o prazer e vivenciar o desprazer causado pela repressão. As<br />

metas e exigências destas pulsões mostram-se inconciliáveis, por isso são reprimidas e<br />

não podem alcançar a satisfação.<br />

Quanto às suas relações com o princípio de constância, Freud assinala que o<br />

princípio do prazer deriva do princípio de constância, o qual compreende a busca do<br />

aparelho anímico em manter a quantidade de excitação mais baixa possível ou, pelo<br />

menos, constante. Um aumento de tensão é sentido como desprazer e o escoamento<br />

dessa tensão é sentido como prazer graças ao princípio de constância. Para Freud, o<br />

princípio de prazer deriva do de constância, pois trabalha para que ocorra a<br />

constância - um nível ideal para o funcionamento do aparelho psíquico.<br />

...o trabalho do aparato anímico se empenha em manter baixa a quantidade de excitação,<br />

tudo que possa aumentá-la será sentido como disfuncional, cabe dizer, desprazeroso. O<br />

princípio de prazer se deriva do princípio de constância; na realidade, o princípio de<br />

constância se discerniu a partir dos achados que nos impuseram a hipótese de princípio<br />

de prazer. 91<br />

91 Idem ibid, p. 9.<br />

60


Assim, o princípio de prazer compreende a tendência do aparelho psíquico<br />

para fazer escoar a energia excedente, pois um aumento de tensão é sentido como<br />

desprazer. A repressão é uma fonte de desprazer, pois na medida que algumas<br />

pulsões por suas metas e exigências são inconciliáveis, são reprimidas. Portanto, o<br />

princípio de prazer trabalharia contra este aumento de quantidade. A respeito deste,<br />

Monzani assinala:<br />

Desde o começo, a lição que Freud nos ensina é... não perseguimos o prazer, fugimos do<br />

desprazer.<br />

O prazer não pode nem mesmo ser definido como a ausência do desprazer. Ele só é ou só<br />

aparece no ato mesmo do desaparecimento do desprazer. 92<br />

Freud concebe a fuga do desprazer e não a perseguição do prazer. Desta forma,<br />

do ponto de vista econômico o princípio de prazer compreende uma redução de<br />

quantidade, por isso a evitação do aumento de quantidade e defesa contra este<br />

aumento.<br />

As formulações sobre o princípio de prazer aparecem um pouco confusas nesse<br />

texto, ora o princípio de prazer parece estar a serviço das pulsões de vida quando é<br />

atribuída a ele a tarefa de conservar a quantidade de excitação constante, ou seja,<br />

como derivado do princípio de constância; ora parece ser expressão do princípio de<br />

Nirvana, o qual expressa a tendência da vida anímica de rebaixar, manter constante,<br />

suprimir a tensão interna, ou seja, remover toda quantidade de excitação do aparelho.<br />

Ou seja, o princípio de prazer aparece relacionado tanto ao princípio de<br />

constância quanto ao de nirvana. Mas como conciliar a tendência a manter constante<br />

com a tendência a se livrar de toda excitação? A obediência ao princípio de constância<br />

se daria porque as exigências da vida tomam a constância como solução mediadora, já<br />

92 Monzani, 1989, p.190.<br />

61


que se livrar completamente das excitações corresponde à morte do organismo.<br />

Assim, a constância não corresponde à negação da inércia, mas a uma solução<br />

mediadora que obriga o aparelho psíquico a manter um nível mínimo de energia<br />

necessário a vida. Neste sentido Monzani coloca:<br />

O princípio de prazer supõe também sempre essa dupla referência, o mais indicado é<br />

manter essa dualidade através da distinção entre tendência e função, colocando que o<br />

princípio de prazer é justamente uma tendência que opera a serviço da função de<br />

evacuação completa ou parcial da excitação. 93<br />

Assim, em última instância o princípio de prazer é o princpio dominante da<br />

vida mental que busca a evacuação total da energia, ou seja, serve à pulsão de morte,<br />

mas segue o princípio da constância como solução mais adequada para as exigências<br />

da vida.<br />

Nas secções II e III, Freud fundamenta uma “compulsão à repetição” que vai<br />

além do princípio de prazer, analisando o fenômeno de repetição que ocorre nos<br />

sonhos dos que sofrem de neurose traumática, em certas características das<br />

brincadeiras infantis e nos neuróticos na situação de análise.<br />

…uma compulsão à repetição que se instaura mais além do princípio de prazer. E agora<br />

nos inclinaremos a relacionar com essa compulsão os sonhos dos doentes de neurose<br />

traumática e o impulso que leva as crianças a brincar. 94<br />

É na análise dos sonhos de horror das neuroses traumáticas que Freud faz<br />

exceção ao paradigma que apresenta os sonhos como realização de desejo, pois nestes<br />

93 Idem ibid, p. 212.<br />

94 Freud. Além do princípio de prazer (1920), v. 18, p. 22.<br />

62


sonhos a situação traumática seria revivida numa tentativa de abrandar sua ação por<br />

meio da ligação e ab-reação.<br />

Estes sonhos buscam recuperar o domínio sobre os estímulos por meio de um<br />

desenvolvimento de angústia, cuja omissão causa a neurose traumática. Nos proporciona<br />

assim uma perspectiva sobre uma função do aparato anímico que, sem contradizer ao<br />

princípio de prazer, é, porém, independente dele e parece mais originária que o propósito<br />

de ganhar prazer e evitar o desprazer. 95<br />

Freud descreve a função de repetição da situação traumática nos sonhos como<br />

algo independente do princípio de prazer, mas não como algo que o contradiz. Tem-<br />

se, desse modo, a compulsão à repetição como mais originária que o princípio de<br />

prazer.<br />

Freud trabalha os conceitos de traumatismo e de dor, esta em sua passagem de<br />

dor física para a psíquica operada no sentido da passagem do traumatismo físico para<br />

o traumatismo psíquico. Segundo Monzani 96, para Freud o princípio de prazer estaria<br />

fora de ação e outro mecanismo de bloqueio e fixação de energia estaria em<br />

funcionamento.<br />

Freud afirma que, no momento em que chegam as excitações ameaçadoras, todos<br />

os meios de defesa se põem em ação e o princípio do prazer é abolido. O aparelho<br />

anímico produziria um enorme contrainvestimento para dominar estas excitações e<br />

acabaria por haver um rebaixamento de outras operações psíquicas 97, pois com o dano<br />

físico haveria um investimento narcisista muito intenso do órgão doente. O<br />

hiperinvestimento do órgão lesado sujeitaria o excesso de excitação e não permite o<br />

desenvolvimento de uma neurose traumática.<br />

95 Idem ibid, p. 31.<br />

96 Monzani, 1989, p. 164.<br />

97 Freud. Além do Princípio do Prazer, p. 29<br />

63


As excitações que chegam ao indivíduo adquirem o caráter de traumáticas caso<br />

não sejam passiveis, para este sujeito, de sofrerem uma descarga ou uma elaboração<br />

psíquica adequada. 98 Não podendo haver uma ligação imediata o sujeito repete<br />

compulsivamente, principalmente sob a forma de sonhos, a situação traumatizante na<br />

tentativa de ligá-la, ou de ab-reagi-la. A ligação procuraria estabelecer formas mais<br />

estáveis e a ab-reação compreenderia uma descarga emocional.<br />

Portanto, para Freud qualquer evento mental ou físico, com ou sem lesão, que<br />

ultrapasse certos limites seria capaz de provocar uma excitação de caráter sexual.<br />

Devido à incapacidade individual e/ou situacional ocorreria, junto à excitação e<br />

conseqüente susto, uma liberação sexual que sem poder ser investida se transformaria<br />

em angústia. A compulsão à repetição compreenderia uma tentativa de estabelecer a<br />

ligação que fracassou em seus propósitos.<br />

Segundo Monzani, 99 a construção de conceitos, realizada por Freud, vai da dor<br />

e do traumatismo corporal para a neurose traumática, e desta para as psiconeuroses.<br />

A neurose traumática como análoga ao traumatismo corporal e as psiconeuroses como<br />

análogas às neuroses traumáticas.<br />

Para Freud, a neurose traumática se assemelha à histeria no que diz respeito<br />

aos sintomas motores, mas a ultrapassa, chegando mais próxima à hipocondria e à<br />

melancolia, quanto ao padecimento subjetivo de caráter depressivo.<br />

A compulsão à repetição dos jogos infantis, dos sonhos de neurose traumática,<br />

bem como sua manifestação na análise, não se reduz à manifestação do conflito entre<br />

princípio de prazer e princípio da realidade. A repetição teria a finalidade de ligação<br />

e/ou de ab-reação. Só em última instância se submeteria ao princípio do prazer. Neste<br />

sentido, Freud fala da “ganância final de prazer”, verificada nas brincadeiras infantis.<br />

Estas práticas infantis serviriam para exteriorizar de maneira primária e independente<br />

o princípio de prazer. Nesse texto Freud narra o caso de um menino que solta o<br />

carretel e depois puxa por um fio. Considerando o contexto, Freud interpreta o jogo<br />

98 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 137.<br />

99 Monzani, 1989, p. 176.<br />

64


do carretel como sendo a representação do ir e vir da mãe. Assim, a repetição de uma<br />

impressão desagradável se devia unicamente a sua ligação à ganância final pelo<br />

prazer.<br />

A necessidade de transferência da situação analítica também se daria mediante<br />

a compulsão à repetição. O indivíduo repetiria o reprimido ao invés de recordá-lo,<br />

reproduzindo fragmentos de sua vida sexual infantil e, portanto, do complexo de<br />

Édipo. Neste caso, a compulsão à repetição desprezaria o princípio do prazer sob<br />

todos os modos.<br />

Na secção IV Freud faz referência a uma divisão do ego em uma parte<br />

inconsciente e outra pré-consciente–consciente. Assim, a oposição não seria entre<br />

inconsciente e consciente, mas entre a parte coerente do ego e o reprimido. Dessa<br />

forma, a resistência parte do ego enquanto que a compulsão à repetição parte do<br />

reprimido inconsciente. Freud assinala que a resistência do ego pcc–cc está a serviço<br />

do prazer de modo a se poupar do desprazer que a liberação do reprimido causaria.<br />

Contudo, depois se rende ao princípio de realidade e sente o desprazer. Já na secção<br />

III Freud aponta:<br />

É que sem dúvida também no interior do ego em muito de inconsciente: justamente o que<br />

pode se chamar de o núcleo do ego, tomamos só uma pequena parte disso com o nome de<br />

pré-consciente. Por detrás substituir assim uma terminologia meramente descritiva por<br />

uma sistemática ou dinâmica, podemos dizer que a resistência do analisado parte se seu<br />

ego; feito isto, em seguida advertimos que temos de atribuir a compulsão à repetição ao<br />

reprimido inconsciente. 100<br />

Freud mostra-se indeciso, nesse texto, pois ora assinala que o que é desprazer<br />

para um sistema não é para outro, ora fala de uma compulsão à repetição que se<br />

instaura para além do princípio de prazer, havendo uma tendência para o prazer, mas<br />

100 Freud. Além do princípio de prazer (1920), v. 18, pp. 19-20.<br />

65


não um império. Realmente, como assinala Laplanche e Pontalis 101 , fica difícil se ver<br />

bem que instância do sujeito poderia encontrar satisfação de desejo na repetição de<br />

experiências desagradáveis.<br />

Na secção VII, ao estabelecer a relação entre os processos pulsionais de repetição<br />

e o princípio de prazer, Freud acaba colocando a compulsão à repetição sob a<br />

tendência do principio de prazer.<br />

…o princípio de prazer é uma tendência que está a serviço de uma função: a de fazer com<br />

que o aparato anímico se ache isento de excitação, ou a de mantê-lo constante, ou no nível<br />

mínimo possível, o montante de excitação. 102<br />

...o princípio de prazer parece estar diretamente a serviço das pulsões de morte.. 103<br />

A compulsão à repetição obedeceria, então, ao principio de prazer e, portanto, à<br />

meta final da vida - a morte - obedecendo ao princípio de nirvana. Assim tomada, ela<br />

não estaria para “além do principio de prazer”, pois, da mesma forma que nas<br />

brincadeiras infantis, a ganância final pelo prazer aparece. Neste caso, como a volta ao<br />

estado inorgânico.<br />

Resumindo as relações que Freud estabelece entre princípio de prazer e<br />

compulsão à repetição tem-se: ora parecem aliados, como no caso dos jogos infantis;<br />

ora como opostos, como na transferência; e ora a compulsão à repetição parece<br />

preparar terreno para a instauração do principio do prazer.<br />

Nas seções V e VI Freud introduz o novo dualismo pulsional e paralelamente<br />

procura redefinir o conceito de pulsão.<br />

101 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 84.<br />

102 Freud. Além do princípio do prazer (1920), v. 18, p. 60.<br />

103 Idem ibid, p. 61.<br />

66


Dá à compulsão a repetição um caráter pulsional ao atribuir à pulsão o caráter<br />

de repetição que é próprio do funcionamento inconsciente. Para ele, no inconsciente<br />

há predominância da compulsão à repetição. Assim atribui a pulsão o caráter<br />

conservador, um caráter geral de restabelecer um estado anterior, no qual o<br />

inorgânico se encontrava presente.<br />

Uma pulsão seria então um esforço, inerente ao organismo vivo, de reproduzir um estado<br />

anterior que o vivo teve que abandonar sob influência de forças perturbadoras externas.<br />

Seria um tipo de elasticidade orgânica ou, se preferir, a exteriorização da inércia na vida<br />

orgânica. 104<br />

A meta de toda vida é a morte; e, retrospectivamente: O inanimado esteve presente antes<br />

do vivo. 105<br />

A pulsão passa a ser entendida como expressão da natureza conservadora do ser<br />

vivo, cuja meta final é a morte. Mas surge, para Freud, a seguinte questão: como<br />

conciliar a noção de pulsão de autoconservação com o pressuposto de que a vida<br />

pulsional tem como meta a ser alcançada a morte? Para Freud o indivíduo quer<br />

morrer a sua maneira, por isso luta contra influências que poderiam lhe oferecer um<br />

caminho mais curto para a morte; influências estas que seriam exercidas pelas pulsões<br />

de autoconservação que procurariam garantir a meta final da vida – a morte pelo<br />

caminho mais rápido possível. Na luta contra estas influências estariam as pulsões<br />

sexuais que esperariam a volta ao estado inorgânico, mas buscariam prolongar o<br />

caminho até alcançar sua meta. Essa função das pulsões sexuais se daria graças a sua<br />

maior resistência a influências externas. Freud conclui:<br />

104 Idem ibid, v. 18, p. 36.<br />

105 Idem ibid, p. 38.<br />

67


As pulsões de autoconservação... são pulsões parciais destinadas a garantir o caminho até<br />

a morte peculiar do organismo e a afastar outras possibilidades de retorno ao inorgânico<br />

que não sejam as imanentes. 106<br />

As pulsões sexuais são conservadoras no mesmo sentido que as outras, enquanto buscam<br />

estados anteriores da substância viva; mas o são também de outra forma, pois são<br />

particularmente resistentes a interferências externas, e são também em outro sentido,<br />

pois conservam a vida por tempos mais longos. São as verdadeiras pulsões de vida. 107<br />

Neste sentido, as pulsões sexuais, da mesma forma que as pulsões de<br />

autoconservação, também trabalham para a pulsão de morte, enquanto buscam<br />

estados anteriores da substância viva. Mas, paralelamente trabalham para a pulsão de<br />

vida, pois são resistentes a influências externas, daí demorarem e resistirem em deixar<br />

o princípio da realidade substituir o de prazer. Também são conservadoras em favor<br />

de conservar a vida por mais tempo, a partir da fusão de células germinais. Freud<br />

apresenta a diferença entre as pulsões de autoconservação e as sexuais:<br />

Existe como um ritmo hesitante na vida dos organismos; um dos grupos pulsionais se<br />

lança, impetuoso, até adiante, para alcançar o mais rápido possível a meta final da vida; o<br />

outro, chegando a certo lugar deste caminho, se lança para trás para voltar a retomá-lo<br />

deste determinado ponto e assim prolongar a duração do trajeto. 108<br />

Ao ver nas pulsões de autoconservação a função de garantir o caminho do<br />

sujeito até a morte e ao atribuir as pulsões sexuais o papel de prorrogar a vida, fica<br />

claro a tentativa de Freud de colocar as pulsões sexuais do lado das pulsões de vida e<br />

as pulsões de autoconservação do lado das pulsões de morte, correspondentemente.<br />

Nesta tentativa, Freud coloca as pulsões egóicas como correspondentes às pulsões de<br />

106 Idem ibid, p. 39.<br />

107 Idem ibid, p. 40. (grifo nosso)<br />

108 Idem ibid, p. 40.<br />

68


autoconservação, ao atribuir a elas a compulsão de estabelecer o inanimado, e ao opô-<br />

las às sexuais. Contudo, ele mesmo assinala que sua tentativa é falha:<br />

A conclusão obtida até este momento, que institui uma profunda oposição entre as<br />

pulsões egóicas e as pulsões sexuais, e segundo a qual as primeiras se esforçam no sentido<br />

da morte e as segundas no da continuação da vida, resultará sem dúvida insatisfatória em<br />

muitos aspectos, ainda para nós mesmos. 109<br />

A oposição entre pulsões sexuais e pulsões egóicas se mostra insatisfatória, pois<br />

o ego também é objeto da sexualidade, o que leva ao abandono da utilização da noção<br />

de pulsões egóicas.<br />

Estimamos que no interior do ego atuam pulsões diferentes das de autoconservação<br />

libidinosas.<br />

Ainda antes de discernir claramente o narcisismo a psicanálise aponta que as<br />

“pulsões egóicas” tem atraído até si componentes libidinosos. 110<br />

Torna-se necessário um reagrupamento das pulsões. Esta exigência faz Freud<br />

adotar uma nova perspectiva que coloca as pulsões sexuais e as pulsões de<br />

autoconservação do mesmo lado como pulsões de vida. Na realidade, em ambas as<br />

pulsões - sexuais e de autoconservação – existe expressão da pulsão de vida e da<br />

pulsão de morte.<br />

Freud busca na biologia referência para falar em pulsão de morte. Segundo ele,<br />

a separação feita por Weismann 111 entre soma e plasma germinal faz a divisão entre<br />

pulsões de vida e pulsões de morte recuperar seu valor. Para Weismann as células<br />

109 Idem ibid, p. 43.<br />

110 Idem ibid, p. 52.<br />

111 Biólogo do século XIX (contemporâneo de Freud).<br />

69


germinais, na medida que sejam passadas para outros indivíduos são imortais. Freud<br />

assinala que isso dá força para se concluir que a imortalidade da substância viva é<br />

assegurada pela pulsão sexual.<br />

Busca também a filosofia de Schopenhauer 112 para quem, segundo Freud, a<br />

morte é o resultado genuíno, o fim da vida enquanto que a pulsão sexual é a<br />

encarnação da vontade de viver. 113<br />

Para chegar à conclusão de colocar as pulsões sexuais e as pulsões de<br />

autoconservação como pulsões de vida, Freud aponta as mudanças explicativas que<br />

adotou. Resumidamente tem-se que as pulsões sexuais foram supostas sexuais por<br />

sua relação com os sexos e com a função de reprodução. Com a tese da libido<br />

narcisista e a extensão de libido a célula individual, a pulsão sexual se converteu em<br />

Eros - a parte do Eros que se volta ao objeto. Inicialmente, as pulsões egóicas são<br />

definidas como todas as pulsões que não as sexuais, cuja expressão é a libido.<br />

Com a mudança na concepção de ego, Freud percebe que uma parte das<br />

pulsões egóicas é de natureza libidinosa e toma como objeto o próprio ego. Estas<br />

pulsões de autoconservação narcisistas deveriam, então ser contadas entre as sexuais<br />

libidinosas. A oposição entre as pulsões egóicas e as pulsões sexuais se converte entre<br />

pulsões egóicas e pulsões de objeto, ambas de natureza libidinosa. Mas dessa forma<br />

Freud estaria dando razão a Jung no que se refere ao caráter libidinal de toda e<br />

qualquer pulsão. A concepção de narcisismo traz consigo, portanto, dificuldades para<br />

se manter o primeiro dualismo e exigências explicativas.<br />

Contudo, Freud não abre mão do antigo dualismo sem, paralelamente, elaborar<br />

um outro, pois a noção de conflito psíquico é fundamental para a compreensão das<br />

neuroses. Surge a oposição entre pulsões libidinosas (egóicas e de objeto) e outras que<br />

estariam no interior do ego, as pulsões de destruição. Por especulação Freud converte<br />

esta oposição na que existe na segunda tópica entre pulsões de vida e pulsões de<br />

morte.<br />

112 Filósofo do século XIX (contemporâneo de Freud).<br />

113 Freud. Além do princípio do prazer (1920), v. 18, p. 48-9.<br />

70


Freud apresenta a oposição entre amor (ternura) e ódio (agressão) como<br />

representante da oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte. Para ele ficaria<br />

difícil colocar o componente sádico da pulsão sexual, apontado já na primeira edição<br />

dos Três ensaios da teoria sexual, dentro do grupo das pulsões de vida.<br />

Neste momento Freud se pergunta se seria conveniente ver o sadismo como<br />

uma pulsão de morte separada do ego por influência da libido narcisista. Ele assinala<br />

que o sadismo entra em funcionamento no estádio de organização oral da libido para<br />

servir a pulsão sexual e se expressa na tentativa do indivíduo em aniquilar o objeto.<br />

Neste sentido o narcisismo primitivo seria abandonado porque o ego tenta afastar de<br />

si componentes da pulsão de morte também presentes na libido. A respeito do ponto<br />

de vista de Freud, Simanke assinala:<br />

“A pulsão de morte “ensinaria” à libido o caminho para os objetos.” 114<br />

No primado do genital, já a serviço da reprodução, o sadismo teria como<br />

função dominar o objeto sexual. Freud concebe o masoquismo como uma volta do<br />

sadismo para o próprio corpo. Na verdade, Freud concebe um masoquismo primário.<br />

O masoquismo, a pulsão parcial complementaria ao sadismo, tem de ser entendida como<br />

uma reversão do sadismo até o próprio ego.<br />

O masoquismo, a volta da pulsão até o ego próprio, seria então, na realidade, um<br />

retrocesso a uma fase anterior daquela, uma regressão. 115<br />

Na realidade, a libido presente sob a forma masoquista e sádica, contemplaria<br />

os dois tipos de pulsões – de vida e de morte. O masoquismo parece ser concebido<br />

como uma forma de narcisismo, pois envolve o investimento da libido no ego.<br />

114 Simanke, 1984, p. 174.<br />

115 Freud. Além do princípio do prazer (1920), v. 18, p. 53.<br />

71


Além do princípio de prazer compreende, portanto, a tentativa de Freud de dar<br />

respostas às exigências teóricas impostas pela noção de narcisismo. Uma tentativa que<br />

nega o monismo pulsional e tenta manter o conflito psíquico, através da introdução de<br />

um novo dualismo. O ego não é mais a instância repressora, censuradora e<br />

responsável por barreiras protetoras e formações reativas. Freud atribui ao ego a<br />

função de reservatório inicial da libido de onde partiria os investimentos de objeto<br />

que refluiria a ele, que está entre os objetos sexuais investidos pela libido narcisista.<br />

Contudo, dificuldades de discernimento presentes, neste momento de<br />

transição, exigem esclarecimentos teóricos, que Freud procura dar no ano seguinte em<br />

Psicologia das massas e análise do ego, onde coloca a identificação em primeiro plano, e<br />

pouco mais tarde em O ego e o id.<br />

3.2. Psicologia das massas e análise do ego (1921)<br />

Neste artigo Freud retoma pontos de vista de Totem e tabu (1912-1913) e<br />

questões sobre o narcisismo, que aparece como estado anobjetal. Aparece o tema de<br />

identificação em sua ocorrência nos casos de homossexualidade, o que foi tratado no<br />

Caso Schreber e em Leonardo da Vinci; e como ocorre na melancolia, o que foi analisado<br />

em Luto e melancolia (1915). Daí a maior aproximação deste artigo com Totem e tabu e<br />

Luto e melancolia. E ainda, como considera James Strachey em nota introdutória,<br />

Psicologia das massas e análise do ego tem escassa relação com Além do princípio de prazer,<br />

seu precedente.<br />

Fred coloca as considerações sobre o ideal do ego em primeiro plano. Esta<br />

noção abrange aqui, funções que em O ego e o id serão atribuídas ao superego.<br />

Portanto, a conexão entre estes textos pode ser verificada com relação a este<br />

desenvolvimento.<br />

72


A oposição entre a parte coerente do ego e o reprimido, colocada em Além do<br />

princípio de prazer, se repete neste texto. Mas só em O ego e o id é que a fundamentação<br />

desta descoberta é desenvolvida.<br />

Na secção I Freud dá início à apresentação que avalia a oposição entre<br />

psicologia individual e psicologia das massas - a qual se mostra presente ao longo do<br />

texto - ao colocar os atos anímicos sociais em oposição aos narcisistas. Estes<br />

compreendem uma retirada dos investimentos externos em direção ao próprio ego.<br />

A relação do indivíduo com seus pais e irmãos, com seu objeto de amor, com seu professor<br />

e com seu medico, ou seja, todos os vínculos que tem sido até agora investigados<br />

preferencialmente pela psicanálise, têm direito a reivindicar que se os considere<br />

fenômenos sociais. Assim, entram em oposição com certos outros processos, que temos<br />

chamado narcisistas, nos quais a satisfação pulsional se retira da influência de outras<br />

pessoas ou renuncia a estas. 116<br />

...o indivíduo sacrifica, muito facilmente, seu interesse pessoal ao interesse coletivo. 117<br />

Na secção II Freud atribui à massa uma espécie de “alma coletiva”, de modo<br />

que na massa o indivíduo se comporta de forma diferente do que se comporta<br />

individualmente. Em massa desaparece o sentido de responsabilidade que freia os<br />

indivíduos, porque o indivíduo encontra-se submetido a condições que colocam de<br />

lado as repressões de moções pulsionais inconscientes. 118<br />

Freud assinala que, na massa o indivíduo, torna-se um selvagem, age por<br />

instinto e está isento de consciência moral. Seu inconsciente se apresenta como a<br />

disposição a toda a “maldade da alma humana”. É para Freud, pois, o homem um<br />

116 Freud. Psicologia das massas e análise do ego (1921), v. 18, p. 67. (grifo nosso)<br />

117 Idem ibid, p. 72.<br />

118 Idem ibid, v. 18, p. 71.<br />

73


homem “mal” em sua essência. 119 O exame da realidade retrocede, prevalecendo o<br />

irreal, as ilusões, a vida da fantasia.<br />

Assim pois, o mesmo que no sonho e na hipnose, na atividade anímica da massa o exame<br />

da realidade retrocede frente à intensidade das moções de desejo afetivamente<br />

investidas. 120<br />

Freud conclui que a vida anímica da massa é marcada pela rescisão da<br />

consciência moral, o cancelamento das inibições e a ganância pelo prazer.<br />

Na secção IV Freud analisa a expressão da libido na massa, como<br />

correspondente a uma restrição do narcisismo.<br />

Freud diz que a libido é a energia das pulsões ligadas aos diversos tipos de<br />

amor: amor por si mesmo, amor fraternal, amor aos filhos, amizade e o amor à<br />

humanidade. Todos estes tipos de amor seriam expressão das mesmas moções<br />

pulsionais que entre os sexos se esforçam no sentido da união sexual. Desta forma,<br />

investimentos libidinais estariam presentes em todas estas formas de amor. Freud<br />

define libido como:<br />

... a energia, considerada como magnitude quantidade – embora ainda não mensurável –<br />

daquelas pulsões que tem a ver com tudo o que pode sintetizar-se como amor. 121<br />

Desta forma, Freud assinala que existem ligações libidinosas que caracterizam a<br />

massa. As restrições ao narcisismo que aparecem em massa funcionam como indício de<br />

que a essência de sua formação são as ligações libidinosas entre seus membros. Mas<br />

119 Ponto de vista que faz referencia a uma herança arcaica da alma humana, ou seja, referencia a noção<br />

de id, de aparecimento posterior em O ego e o id.<br />

120 Freud. Psicologia das massas e análise do ego (1921), v. 18, pp. 76-7.<br />

121 Idem ibid, p. 86.<br />

74


existem outros mecanismos de ligação afetiva entre os membros da massa, entre eles a<br />

identificação.<br />

De acordo com nossos pontos de vista teóricos, uma restrição assim do narcisismo só<br />

pode ser produzida por este fator: uma ligação libidinosa com outras pessoas. 122<br />

Portanto, se na massa aparecem restrições do amor próprio narcisista que não tem<br />

efeito fora dela, isto é um indício conclusivo de que a essência da formação da massa<br />

consiste em ligações libidinosas recíprocas de novo tipo entre seus membros. 123<br />

O investimento de objetos externos envolve o investimento do mundo externo e<br />

constituiu-se numa restrição do narcisismo. O termo restrição nomeia bem o processo<br />

que ocorre, pois, para Freud, uma dose de narcisismo sempre se encontra presente no<br />

indivíduo. Deste modo, não se poderia falar em uma extinção de investimento de<br />

libido no ego, mas sim numa restrição.<br />

Freud assinala que a aversão e a repulsa que são dirigidas a outras pessoas são<br />

expressão do amor por si mesmo, ou seja, expressão do narcisismo. Na tentativa de<br />

conservar-se o indivíduo toma toda e qualquer divergência com determinada pessoa<br />

como critica a seus aspectos individuais. Isso, segundo Freud, mostra a predisposição<br />

ao ódio e uma agressividade desconhecida e elementar do ser humano.<br />

Na secção VII a identificação é apresentada como um tipo de ligação afetiva<br />

entre os membros da massa. Freud assinala que a identificação é a forma primeira, e<br />

mais originária, do laço afetivo com um objeto. Ela substituiu uma ligação libidinosa<br />

de objeto, mediante introjeção do objeto no ego. A ligação das pessoas de uma massa<br />

tem uma identificação que ocorre mediante aspectos comuns entre seus membros.<br />

Freud apresenta o papel da identificação no complexo de Édipo. O menino<br />

toma seu pai como ideal mediante sua identificação com ele e toma sua mãe como<br />

122 Idem ibid, p. 97. (grifo nosso)<br />

123 Idem ibid, p.98. (grifo nosso)<br />

75


objeto sexual. O menino passa a ver o pai como um estorvo para sua relação com a<br />

mãe, e assim a identificação com o pai ganha um caráter hostil. Esta identificação, que<br />

era terna, apresenta-se também hostil. Sendo agora, marcada por um caráter<br />

ambivalente. Pode ocorre depois que o complexo de Édipo experimente uma inversão,<br />

que o menino tome o pai como objeto em uma atitude feminina. Freud assinala que de<br />

forma correspondente se dá com o complexo de Édipo na menina. 124 Ela sente amor<br />

pelo pai e aspira substituir a mãe através de uma vontade hostil. Isso ocorre sob<br />

influxo da consciência de culpa. Freud aponta a importância da identificação na<br />

gênese do ego.<br />

A identificação aspira configurar o próprio ego a semelhança do outro, tomado como<br />

modelo.<br />

A identificação marca a eleição do objeto; a eleição de objeto tem regressado até a<br />

identificação. 125<br />

Freud aponta a importância da identificação na gênese do ego. Neste mesmo<br />

texto, Freud fala de uma modificação ou de uma remodelação do ego, causada pela<br />

identificação. Neste sentido, parece já haver, ao menos, um fraco ego desde o início,<br />

mesmo antes das primeiras identificações do complexo de Édipo. Para que haja uma<br />

remodelação do ego é necessário que se tenha pelo menos um esboço de ego.<br />

Freud retoma a questão da identificação na gênese da homossexualidade. Nos<br />

casos de homossexualidade masculina, o menino permanece fixado à mãe por um<br />

tempo e intensidade exagerados. Ao completar a puberdade chega o momento de<br />

trocar a mãe por outro objeto sexual. Contudo ele não abandona a mãe, identifica-se<br />

com ela e busca objetos que possam substituir seu próprio ego, a quem possa amar e<br />

cuidar como a mãe fez com ele. Segundo a análise realizada em discussões sobre<br />

Leonardo da Vinci e Schreber, isso ocorre por via de uma escolha de objeto narcísica.<br />

124 Freud examina melhor esta questão mais tarde em Sobre a sexualidade feminina (1931).<br />

125 Freud. Psicologia das massas e análise do ego (1921), v. 18, p. 100.<br />

76


Freud retoma também a questão da identificação na melancolia. Nesta, o ego se<br />

encontra fragmentado, sendo que um dos seus fragmentos se forma pela introjeção do<br />

objeto amado e perdido. O outro fragmento crítica e pune o fragmento introjetado,<br />

que compreende o objeto. A esta parte do ego que se desenvolve como instância, que<br />

se separa do resto do ego e pode entrar em conflito, Freud dá o nome de ideal do<br />

ego. 126 Freud atribui a esta instância as funções de observação de si, a consciência<br />

moral, a censura onírica e a repressão. Para Freud este ideal é o que a criança procura<br />

quando não consegue encontrar satisfação no seu ego, por isso ele é herança do<br />

narcisismo infantil.<br />

Na secção VIII Freud aborda o tipo de processo libidinal que se configura<br />

quando o sujeito está apaixonado. A partir da apreciação sensual do objeto amado,<br />

ocorre sua idealização e, conseqüentemente, o indivíduo passa a ver nele diversas<br />

qualidades anímicas positivas. Através da idealização o objeto é tratado como o<br />

próprio ego e assim, uma quantidade maior de libido aflui ao objeto.<br />

Observamos que o objeto é tratado como o próprio ego, e, portanto, na paixão aflui ao<br />

objeto uma quantidade maior de libido narcisista. E ainda em muitas formas de eleição<br />

amorosa fica claro que o objeto serve para substituir um ideal do ego próprio, não<br />

alcançado. Ama-se em virtude das perfeições a que se tem aspirado para o próprio ego e<br />

que agora lhe agradaria procurar, para satisfazer seu narcisismo, por esta via. 127<br />

Portanto, o sujeito é levado a abandonar seu narcisismo primário para investir o<br />

objeto na busca de alcançar o ideal de ego do narcisismo infantil que não pode ser<br />

alcançado. Tenta-se alcançá-lo por uma nova via, que consiste no redirecionamento do<br />

amor por si mesmo para o objeto e no auto-sacrifício do ego.<br />

126 Precursor da noção de superego que aparece em O ego e o id.<br />

127 Freud. Psicologia das massas e análise do ego (1921), v. 18, p. 106. (grifo nosso)<br />

77


O ego renuncia cada vez a todas as exigências, se mostra mais modesto, ao passo que o<br />

objeto se faz mais grandioso e valioso; ao final chega a possuir todo o amor por si mesmo<br />

do ego, e a conseqüência natural é o auto-sacrifício deste. 128<br />

...o objeto se põe no lugar do ego ou no lugar do ideal do ego. 129<br />

Freud analisa a diferença entre identificação e paixão. Na primeira o ego se<br />

enriquece com as propriedades do objeto que é introjetado e se altera segundo o<br />

modelo do objeto resignado. Enquanto que na paixão o ego se encontra empobrecido<br />

e entregue ao objeto. A submissão ao líder e a dependência para com o hipnotizador<br />

são explicadas da mesma forma que a fascinação amorosa. O objeto de amor, o<br />

hipnotizador e o líder são tomados como ideal do ego. Freud vê o ideal do ego como<br />

uma instância distinta do ego e um modelo ao qual o ego procura conformar-se.<br />

Na secção X Freud compara a massa à horda primordial, pois sobrevém nelas a<br />

vontade coletiva, não a particular. Sobre esta questão, Lasch coloca:<br />

A mente coletiva, se houver tal coisa, reflete as necessidades psíquicas do grupo como um<br />

todo, não as necessidades psíquicas do indivíduo, as quais, de fato, têm de subordinar-se<br />

às exigências do viver coletivo. 130<br />

A massa é apresentada como correspondente a um renascimento da horda<br />

primordial. Enquanto que o pai primordial como sendo aquele que guarda sua libido<br />

para si mesmo, governa o ego no lugar do ideal. Não ama, só quer ser amado, é o<br />

senhor que representa um poder sem restrições. É este poder sem restrições, esta ânsia<br />

pela autoridade, que caracteriza a relação da massa com o líder. A sugestão exercida,<br />

pelo hipnotizador é desta índole. É, portanto, resultado de uma ligação erótica (uma<br />

128 Idem ibid, p. 107.<br />

129 Idem ibid, p. 108. (grifo nosso)<br />

130 Lasch, 1983, p. 58.<br />

78


identificação), não de uma possível capacidade de convencer ao hipnotizado. Neste<br />

sentido, Freud coloca que “o amor impõe resistências ao narcisismo, e podemos mostrar<br />

como, em virtude deste seu efeito, tem passado a ser um fator de cultura.” 131<br />

Freud considera que as restrições sexuais impostas pelo pai primordial a seus<br />

filhos, os levaram a estabelecer relações afetivas, ou seja, ligações de metas sexuais<br />

inibidas entre eles mesmos e entre eles e o pai. A esta maneira foram compelidos à<br />

massa, pois se a princípio não lhe fossem impostas restrições se limitariam a ligações<br />

sexuais genitais com uma outra pessoa.<br />

As duas pessoas comprometidas entre si com o fim da satisfação sexual se manifestam<br />

contra a pulsão gregária, contra o sentimento de massa, na medida em que buscam o<br />

isolamento. 132<br />

A fixação da libido em um objeto, a possibilidade de se satisfazer sem rodeios<br />

puseram fim à significação das aspirações sexuais inibidas e fizeram com que o<br />

narcisismo fosse se acrescentando. Por isso, Freud coloca que a massa restringe o<br />

narcisismo da mesma forma que este vai contra o sentimento de massa.<br />

Na última secção, Freud fala que o indivíduo constrói seu ideal de ego a partir<br />

de diversas identificações, segundo diversos modelos, conseguidos nas muitas massas<br />

que ele participa. Na massa ele resigna seu ideal de ego e toma para si o ideal da<br />

massa corporizado na figura do líder, por identificação a partir da via sugestiva.<br />

Outros indivíduos elegem o líder de outra forma:<br />

Em muitos indivíduos, a separação entre seu ego e seu ideal de ego não tem chegado<br />

muito longe; ambos coincidem com facilidade, o ego tem conservado muitas vezes sua<br />

antiga vaidade narcisista. 133<br />

131 Freud. Psicologia das massas e análise do ego (1921), v. 18, p. 118.<br />

132 Idem ibid, p. 133.<br />

79


No caso destes indivíduos elegem o líder a partir de características que passam<br />

uma impressão de força e de uma liberdade libidinosa maiores que as que vêem em si<br />

mesmos, ou seja, revestem o líder de um super poder que não vêem neles próprios.<br />

Freud conclui que a estrutura libidinosa de uma massa se define pela diferenciação<br />

entre o ego e o ideal do ego que se dá via identificação e via introdução do objeto no<br />

lugar do ideal do ego.<br />

Freud assinala que o ego apresenta-se como um objeto frente ao seu ideal; da<br />

mesma forma que se relacionava com o mundo exterior passa a se relacionar com seu<br />

ideal. No interior do ego se forma algo de outra qualidade que apresenta e leva, para<br />

dentro dele, proibições impostas pelo mundo exterior. 134 Assim, dentro do ego tem-se<br />

uma parte coerente, que reprime, e outra parte que é o reprimido inconsciente.<br />

O ideal do ego engloba a soma de todas as proibições que o ego deve obedecer, e por isso<br />

a suspensão do ideal não podia menos que ser uma festa grandiosa para o ego, que assim<br />

teria permitido voltar a se contentar consigo mesmo. 135<br />

Portanto, como em Introdução ao narcisismo, Freud atribui à formação do ideal do<br />

ego a condição para a repressão. Ele assinala que as proibições impostas pelo ideal do<br />

ego não são aceitas com facilidade, por isso muitas vezes o indivíduo regride a<br />

estados anteriores. Isto se verifica na contração de várias doenças psíquicas frente às<br />

novas dificuldades que se apresentam a vida anímica, frente à tensão entre ego e ideal<br />

de ego, cuja expressão é o sentimento de culpa e de inferioridade.<br />

Assim, com o nascimento passamos do narcisismo absolutamente auto-suficiente a<br />

percepção do mundo exterior variável e o início da escolha de objeto, e a isso se liga o fato<br />

133 Idem ibid, p. 122. (grifo nosso)<br />

134 Em O ego e o id Freud apresenta o superego da mesma forma que o ideal do ego.<br />

80


de que não suportamos o novo estado de maneira permanente, que periodicamente<br />

voltamos atrás e ao dormir regressamos ao estado de ausência de estímulo e evitação do<br />

objeto. 136<br />

Desta forma, no sonho, como em muitas doenças psíquicas, tem-se um retorno a<br />

um estado de indiferenciação entre ego e ideal de ego, quando não ocorreu ainda a<br />

escolha de objeto. Este retorno compreende a volta a um momento em que não se<br />

havia eleito um objeto externo como objeto de amor. Aparece, portanto, a acepção de<br />

um narcisismo primitivo, anterior a relação com o objeto. O narcisismo primário<br />

aparece como um estado anobjetal anterior a constituição do ego.<br />

Para Freud, quando ego e seu ideal coincidem o indivíduo experiência uma<br />

sensação de triunfo como a exemplo da mania. Nesta, ego e ideal de ego se<br />

confundem de tal forma que a auto-crítica desaparece, bem como as inibições e auto-<br />

reprovações. Enquanto que, na melancolia ego e ideal do ego aparecem distintos e em<br />

contraposição. O ideal do ego critica e condena o ego ao seu delírio de insignificância<br />

e auto-recriminação. A melancolia se manifesta pela retirada da libido do objeto de<br />

amor, por motivo de sua morte ou por este se mostrar indigno de amor. Neste caso,<br />

em que o objeto é resignado por se mostrar indigno de amor, ele volta a se instituir no<br />

interior do ego por via identificação, onde é julgado pelo ideal do ego. Desta forma, o<br />

ego é tratado como o objeto; toda a crítica antes dirigida ao objeto se dirige ao ego.<br />

Neste texto a importância da identificação é posta em primeiro plano dado sua<br />

influência na gênese do ego e, da mesma forma, na constituição do ideal do ego.<br />

Freud apresenta um narcisismo primitivo, anterior a relação com o objeto. Este<br />

seria o narcisismo primário presente desde o início como um estado anobjetal anterior<br />

a constituição do ego. Acaba opondo totalmente o narcisismo primitivo, ao qual dá o<br />

nome de narcisismo primário, às relações com o objeto. O narcisismo passa a ser<br />

descrito, da mesma forma que o autoerotismo, como um momento do<br />

135 Freud. Psicologia das massas e análise do ego (1921), v. 18, p. 124. (grifo nosso)<br />

136 Idem ibid, p. 123. (grifo nosso)<br />

81


desenvolvimento em que ainda não se encontra presente um esboço de ego. Portanto<br />

se perde a diferenciação entre o autoerotismo e o narcisismo.<br />

3.3. O ego e o id (1923)<br />

Este texto é o que mais enfaticamente marca a “virada” dos anos 20. Ele inaugura<br />

uma nova fase da teoria psicanalítica marcada pela entrada no novo dualismo<br />

pulsional, com a introdução da noção de id e de superego a partir de mudanças no<br />

conceito de ego. Estas mudanças se devem a algo mais do que atribuir a uma parte do<br />

ego a qualidade de inconsciente. Na realidade este algo mais se afigura desde 1914,<br />

quando Freud descreve o ego como objeto da libido.<br />

Um novo modelo de aparelho psíquico se apresenta com os três sistemas e as<br />

três instâncias de modo algum coincidentes. O ideal do ego é retomado e ampliado,<br />

atingindo a designação de instância como sinônimo do superego. 137 O ego entra na<br />

categoria de instância que leva em conta exigências contraditórias do id e do<br />

superego. Laplanche e Pontalis colocam que o ego vem, ainda, reagrupar as funções e<br />

processos que na primeira tópica estavam divididos pelos três sistemas.<br />

Em O ego e o id a função de “grande reservatório da libido” é atribuída ao id, pois<br />

o ego de início embora se encontre indiferenciado no ego-id, ainda é fraco. Agora, o<br />

narcisismo do ego é chamado de narcisismo secundário que surge<br />

contemporaneamente a gênese do ego a partir da interiorização das relações com os<br />

outros.<br />

Na secção I Freud apresenta o sistema consciente e inconsciente e a concepção de<br />

que o ego também tem muito de inconsciente. Ele coloca que a premissa básica da<br />

psicanálise é a separação entre consciente e inconsciente, mas considera que esta não é<br />

suficiente para explicar o conflito psíquico.<br />

82


A consciência trata-se de uma qualidade do psiquismo que pode estar presente<br />

ou ausente. Ser consciente invoca a percepção imediata e segura, sendo que uma<br />

representação consciente pode não o ser no momento seguinte, mas pode voltar a ser.<br />

Neste caso trata-se de uma representação inconsciente que pode se tornar consciente,<br />

ao que Freud chama de latente. Freud divide o inconsciente em latente e reprimido.<br />

Vemos, pois, que temos duas classes de inconsciente: o latente, ainda suscetível de<br />

consciência, e o reprimido, que em si e sem mais é insuscetível de consciência. 138<br />

Freud chama o latente de pré-consciente, pois se trata de inconsciente no sentido<br />

descritivo, não no sentido dinâmico que envolve o processamento das experiências<br />

anímicas. Limita o nome de inconsciente ao reprimido, inconsciente dinamicamente.<br />

No sentido econômico inconsciente envolve a intensidade das representações. Agora<br />

existem consciente, pré-consciente e inconsciente.<br />

Freud atribui ao ego a função de descarga das excitações no mundo exterior daí<br />

a qualidade de consciência depender dele. Ao ego é atribuído também o papel de<br />

agente repressor responsável pela resistência, a qual parte de sua parte inconsciente.<br />

Temos encontrado no ego mesmo algo que é também inconsciente, que se comporta<br />

exatamente como o reprimido, isto é, produz efeitos intensos sem tornar-se consciente, e<br />

precisa de um trabalho particular para se fazer consciente. Eis aqui a conseqüência disso<br />

para a prática analítica: cairemos em infinitas imprecisões e dificuldades se pretendermos<br />

nos ater ao nosso modo habitual de expressão e, por exemplo, derivar as neuroses de um<br />

conflito entre o consciente e o inconsciente. 139<br />

137 Ideal do ego aparece como sinônimo de superego. Enquanto que em Introdução ao narcisismo Freud<br />

fala da possibilidade de haver uma instância que compare o ego ao ideal do ego. Em Novas Conferencias<br />

de introdução à psicanálise o ideal do ego aparece como uma função da instância superego.<br />

138 Freud. O ego e o id (1923), v. 19, p. 17.<br />

83


A partir desta acepção do ego, como coerente e reprimido, Freud tenta esclarecer<br />

o conceito de inconsciente:<br />

Discernimos que o Icc não coincide com o reprimido; segue sendo correto que todo<br />

reprimido é icc, mas nem todo Icc é reprimido. 140<br />

Trata-se de uma consideração que não faz coincidir o inconsciente enquanto<br />

sistema com o reprimido. Tem-se que recalcado e inconsciente já não coincidem, pois<br />

uma parte do ego se comporta como o inconsciente recalcado.<br />

Na secção II, de mesmo título que o artigo, Freud apresenta as diferenças entre<br />

inconsciente, pré-consciente e consciente, enquanto sistemas e enquanto qualidades e<br />

introduz a noção de id.<br />

A consciência como qualidade psíquica pode emergir sob determinadas<br />

condições e está relacionada à percepção. São conscientes percepções externas e<br />

internas - os sentimentos, as sensações e os processos de pensamento vindos do<br />

interior. A qualidade de consciente caracteriza uma parte do ego que mantém estreita<br />

relação com a realidade. Mas, como dito, o ego tem muito de inconsciente.<br />

Freud relata que Groddeck 141 insistia que era atribuída uma posição de<br />

passividade ao ego, enquanto que o indivíduo era governado por forças<br />

desconhecidas e ingovernáveis. A partir disto, Freud assinala:<br />

Todos temos recebido {produzido} estas mesmas impressões... Proponho dar razão a ela<br />

chamando ego à essência que parte do sistema P e que é primeiro pcc, e id, por outro lado,<br />

139 Idem ibid, p. 19.<br />

140 Idem ibid.<br />

141 Segundo James Strachey, em nota introdutória a O ego e o id, Groddeck era um medico que havia se<br />

vinculado à psicanálise e conquistado a simpatia de Freud pela extensão de suas idéias.<br />

84


segundo o uso de Groddeck, ao outro psíquico em que aquele se prolonga e se comporta<br />

como icc. 142<br />

O ego aparece como um prolongamento/uma diferenciação do id. Para Freud,<br />

da mesma forma que o ego converge com o id, sua parte reprimida também é uma<br />

parte do id. Segundo Freud:<br />

O reprimido só é separado superficialmente do ego pelas resistências da repressão, mas<br />

pode comunicar-se com o ego através do id. 143<br />

...o ego é a parte do id alterada pela influência direta do mundo exterior, com mediação de<br />

P-Cc. 144<br />

Portanto, o ego é resultado da diferenciação do id pela percepção do mundo<br />

exterior. É, também, a partir deste vínculo com a percepção que o ego apresenta ao id<br />

a influência da realidade e substitui o princípio de prazer que governa o id pelo<br />

princípio da realidade. A percepção é um fator de importância capital na gênese do<br />

ego e sua separação do id. Freud assinala que a percepção tem para o ego o mesmo<br />

papel que a pulsão tem para o id. Ao primeiro liga-se o objeto do desejo e ao segundo,<br />

o objeto das pulsões.<br />

O ego é o representante do que pode chamar-se razão e prudência, por oposição ao id, que<br />

contém as paixões. 145<br />

142 Freud. O ego e o id (1923), v. 19, p. 25.<br />

143 Idem ibid, p. 26.<br />

144 Idem ibid, p. 27.<br />

145 Idem ibid.<br />

85


A ligação do ego à percepção se expressa no fato do ego governar o acesso à<br />

mobilidade e à linguagem. Isto expressa o vínculo do ego com a consciência. Outra<br />

parte do ego é pré-consciente como se expressa nos trabalhos de reflexão que se<br />

encontram em muitos sonhos. Freud relaciona a inconsciente do ego aos mecanismos<br />

de defesa e de identificação. Mas Freud percebe outros operações anímicas de<br />

natureza inconsciente, são elas a auto-crítica e a consciência moral, derivadas de um<br />

sentimento de culpa. Surgem novas questões que Freud trata na secção III, onde<br />

introduz o conceito de superego, descrevendo sua formação juntamente com a do ego<br />

e ainda, relação entre estas duas instâncias.<br />

Na secção III Freud amplia o conceito de ideal de ego e o coloca como sinônimo<br />

do conceito de superego, agora introduzido. Investiga o papel da identificação na<br />

formação do ego e do superego e a relação de ambos com a escolha de objeto. Para<br />

isso faz considerações sobre o complexo de Édipo. O autor expõe também sua análise<br />

sobre a relação existente entre as três instâncias – id, ego e superego.<br />

Freud assinala na fase oral da organização libidinal, é impossível distinguir entre<br />

investimento de objeto e identificação. Segundo Freud:<br />

...os investimentos de objeto partem do id, que sente estas aspirações eróticas como<br />

necessidades. O ego, embora a princípio fraco, recebe notícias dos investimentos de objeto,<br />

presta sua permissão ou busca defender-se deles mediante o processo de repressão. 146<br />

Freud assinala que, a exemplo da melancolia, no caso do ego não aceitar o<br />

investimento de objeto ocorre uma alteração do ego mediante introjeção do objeto.<br />

Freud considera a simultaneidade do investimento do objeto e da identificação, que<br />

envolveria uma alteração do ego antes da resignação de objeto. Desta forma, a<br />

alteração poderia sobreviver ao vínculo com o objeto, preservando-o em certo sentido.<br />

146 Idem ibid, p. 31.<br />

86


Segundo Freud, isso permite ao ego dominar o id e aprofundar seus vínculos com<br />

este, podendo ele mesmo se apresentar ao id como objeto de amor:<br />

coloca:<br />

Quando o ego adquire as características de objeto, ou seja, se impõe ele mesmo ao id como<br />

objeto de amor, busca reparar a perda do id dizendo: “Veja, pode amar também a mim;<br />

sou tão parecido ao objeto.” 147<br />

E ainda sobre esta transposição da libido de objeto em libido egóica, Freud<br />

A transposição assim cumprida de libido de objeto em libido narcisista leva,<br />

manifestadamente, uma renúncia das metas sexuais, uma dessexualização e, portanto, a<br />

uma sublimação. 148<br />

Neste texto a função de “grande reservatório da libido”, de onde partem os<br />

primeiros investimentos de objeto, é atribuída ao id. Desta forma, o ego mediante a<br />

identificação com o objeto escolhido pelo id se apresenta como objeto da libido<br />

narcísica. O narcisismo do ego passa a ser entendido como um narcisismo secundário,<br />

pois ocorre a partir da retirada da libido dos objetos. 149 Em Introdução ao narcisismo e<br />

em Além do princípio de prazer a função de “grande reservatório da libido” era<br />

atribuída ao ego.<br />

Freud considera que os efeitos das primeiras identificações são universais e<br />

duradouros. Segundo ele, a gênese do ideal do ego ou superego se relaciona a estas<br />

primeiras identificações com os pais, quando não se sabe a diferença anatômica entre<br />

147 Idem ibid, p. 32.<br />

148 Idem ibid, p. 32.<br />

149 Idem ibid, pp. 32 e 47.<br />

87


os sexos. Estas identificações se relacionam ao complexo de Édipo e ao seu modelo<br />

formado sobre a base da bissexualidade.<br />

O menino investe a mãe segundo a escolha de objeto por apoio e o pai por via da<br />

identificação. O complexo de Édipo surge com um reforço dos desejos sexuais pela<br />

mãe o que leva a perceber o pai como rival. O desejo de eliminar e substituir o pai<br />

convive junto às moções ternas dirigidas a ele – ambivalência. Freud assinala que o<br />

complexo de Édipo ocorre de forma análoga na menina que se identifica e rivaliza<br />

com a mãe. Freud chama de positiva esta forma de complexo de Édipo. Ambas as<br />

formas negativa e positiva coexistem durante o Édipo. Contudo, ao final a forma<br />

positiva ou negativa pode prevalecer.<br />

As identificações do complexo de Édipo deixam marcas na constituição do ego,<br />

marcando a gênese do ideal do ego ou superego.<br />

Assim, como resultado mais universal da fase sexual governada pelo complexo de Édipo,<br />

se pode supor uma sedimentação no ego, que consiste no estabelecimento destas duas<br />

identificações, unificadas de alguma maneira entre si. Esta alteração do ego apresenta sua<br />

situação especial: confronta-se com o outro conteúdo do ego como ideal do ego ou<br />

superego. 150<br />

Na verdade, Freud considera que o superego é mais do que apenas o resultado<br />

das primeiras identificações com o objeto; é uma formação reativa frente a elas. Ou<br />

seja, trata-se de uma formação que se institui dentro do ego e se empenha na<br />

repressão do complexo de Édipo como obstáculo à realização de desejos.<br />

O superego é considerado a instância representante do vínculo com os pais, das<br />

interdições, bem como do vínculo de substitutos dos pais. Ele se apresenta sob a<br />

forma de consciência moral e o sentimento inconsciente de culpa.<br />

150 Idem ibid, pp. 35-6. (grifo nosso)<br />

88


No posterior circuito do desenvolvimento, professores e autoridades foram tomando o<br />

papel dos pais, suas ordens e proibições permaneceram vigentes no ideal do ego e agora<br />

exercem, como consciência moral, a censura moral. 151<br />

Freud vê como necessário a introdução da instância superego porque percebe a<br />

existência no ego de operações anímicas de natureza inconsciente. São elas a auto-<br />

crítica e a consciência moral.<br />

Portanto, tem-se o ego como a instância que se situa como representante dos<br />

interesses da totalidade da pessoa, o id como o pólo pulsional da personalidade e o<br />

superego como a instância constituída pela interiorização das exigências e das<br />

interdições parentais.<br />

Os conflitos entre o ego e os investimentos de objeto do id se repetem entre o ego<br />

e o superego, pois o superego é herdeiro do id. Por este motivo, o superego pode ter<br />

uma parte inconsciente e inacessível ao ego e, por outro lado, da mesma forma que o<br />

id, só pode alcançar a consciência por intermédio do ego.<br />

Freud aponta para a existência de um id hereditário que trás consigo os restos de<br />

inumeráveis existências de ego, de modo que quando o ego retira do id a força para o<br />

superego retoma formações egóicas antigas.<br />

Na secção IV Freud retoma a oposição entre pulsões de vida e pulsões de morte e<br />

a relação destas com as instâncias. Freud assinala que em cada fragmento da<br />

substância viva estariam presentes as duas classes de pulsões, do mesmo modo,<br />

estariam presentes em todas as instâncias.<br />

Freud fornece uma resposta dual ao fim e ao propósito da vida, dado que ambas<br />

as pulsões têm caráter conservador. Contudo as pulsões de morte buscam um<br />

caminho mais curto até a conservação enquanto que as pulsões de vida adiam a meta<br />

final.<br />

151 Idem ibid, p. 38. (grifo nosso)<br />

89


Segundo o autor, as pulsões de morte podem em parte se tornar inofensivas pela<br />

mistura a componentes eróticos e em parte se desviar para fora como agressão. Mas<br />

em boa parte continuam atuando dentro do indivíduo. 152 De início as pulsões de<br />

destruição são dirigidas para os outros porque são desviadas da própria pessoa por<br />

intermédio do Eros.<br />

Freud assinala que as pulsões de vida compreendem as pulsões sexuais de meta<br />

inibida e não inibida e as pulsões de autoconservação. Ou seja, coloca as pulsões<br />

sexuais e as pulsões de autoconservação como pulsões de vida. Enquanto que as<br />

pulsões de morte se exteriorizam como pulsões de destruição. Freud considera que<br />

em cada fragmento da substância viva estão em conexão as duas classes de pulsões,<br />

como se pode verificar pelos componentes sádicos da pulsão sexual a serviço da<br />

descarga. Contudo em alguns casos, como na neurose obsessiva, ocorre uma<br />

separação total entre as pulsões, com a proeminência da pulsão de morte. 153<br />

Segundo Freud originariamente estas pulsões não estão em conexão. Pelo<br />

contrário, se apresentam em oposição. Isso explica a originária ambivalência dos<br />

sentimentos da criança para com os pais. Assim, a oposição entre amor e ódio é uma<br />

expressão da oposição entre pulsões. Freud assinala:<br />

Agora bem, a experiência clínica nos ensina que o ódio não só é, com inesperada<br />

regularidade, o acompanhante do amor (ambivalência), não só é, várias vezes, seu<br />

precursor nos vínculos entre os seres humanos, mas também, nas mais diversas<br />

circunstâncias, o ódio se transforma em amor e o amor em ódio. 154<br />

A análise da expressão do amor e do ódio na paranóia mostra que o doente se<br />

defende de uma ligação homossexual hiperintensa com uma pessoa passando, por<br />

projeção, a odiá-la e vê-la como perseguidora, a partir da transposição do amor em<br />

152 Idem ibid, p. 54.<br />

153 Idem ibid, pp. 42-3.<br />

154 Idem ibid, pp. 43-4. (grifo nosso)<br />

90


ódio. Enquanto na paranóia a moção erótica é transposta em hostil, por via<br />

dessexualização da libido, na gênese da homossexualidade ocorre o inverso; o ódio é<br />

transposto em amor, por uma questão econômica que oferece melhores perspectivas<br />

de satisfação através da possibilidade de descarga. 155<br />

Considerando a mudança de amor em ódio à luz da diversidade entre as duas<br />

novas classes de pulsões, Freud assinala que não é possível uma passagem direta de<br />

um para outro. Ele supõe a existência de uma energia indiferenciada, presente no ego<br />

e no id, que pode agregar uma moção erótica ou uma pulsão destrutiva. Freud<br />

considera:<br />

Parece provável que esta energia indiferente e mutável, ativa tanto no ego quanto no id,<br />

provenha do monopólio libidinal narcisista e seja, por fim, Eros dessexualizado. 156<br />

Ou seja, supõe a existência de uma libido dessexualizada (sublimada) e,<br />

portanto, as pulsões eróticas se mostram mais plásticas e desviáveis que as pulsões de<br />

destruição. A dessexualização da libido é correspondente à passagem da libido erótica<br />

(de objeto) para a libido egóica.<br />

Esta transposição em libido egóica resulta, desde logo, uma renúncia das metas sexuais,<br />

uma dessexualização. Como quer que fosse, adquirimos a intelecção de uma importante<br />

operação do ego em sua ligação com o Eros. Ao apoderar-se da libido dos investimentos de<br />

objeto, ao atribuir-se a condição de único objeto de amor, dessexualizando e sublimando a<br />

libido do id, trabalha contra os propósitos do Eros, se põe a serviço das moções pulsionais<br />

inimigas. 157<br />

155 Idem ibid, v. 19, pp. 44-5.<br />

156 Idem ibid, p. 45. (grifo nosso)<br />

157 Idem ibid, p. 46. (grifo nosso)<br />

91


A libido inicialmente acumulada no id investe o ego, após investir objetos<br />

externos. Este investimento do ego ocorre mediante a resignação das metas sexuais,<br />

por isso, Freud observa que o ego mostra seu trabalho contra Eros e a serviço das<br />

moções pulsionais destrutivas.<br />

Agora havia que empreender uma importante ampliação na doutrina do narcisismo. A<br />

princípio toda libido está acumulada no id; contudo, o ego se encontra em processo de<br />

formação ou é fraco. O id envia uma parte desta libido a investimentos eróticos de objeto,<br />

dos quais logo o ego fortalecido procura apoderar-se desta libido de objeto e impor-se ao id<br />

como objeto de amor. Portanto o narcisismo do ego é um narcisismo secundário,<br />

subtraído dos objetos. 158<br />

Portanto, Freud passa a ver o narcisismo do ego como um narcisismo<br />

secundário, pois a libido narcísica, sob a forma dessexualizada, é retirada dos objetos<br />

investidos pelo id e investe o ego. Esta nova forma de ver o narcisismo é correlativa à<br />

introdução do id como reservatório inicial da libido e as mudanças introduzidas na<br />

noção de ego. Traz como conseqüência a perda da distinção entre autoerotismo e<br />

narcisismo, pois o narcisismo primário se caracteriza agora, como o investimento de<br />

libido em si mesmo, mas um si mesmo sem ego.<br />

Fica difícil definir o que é investido pela libido no narcisismo primário, pois o<br />

que é esse si mesmo, o que o compõe? Portanto, neste momento o narcisismo primário<br />

aparece como um estádio anobjetal. Enquanto que o narcisismo do ego é designado de<br />

narcisismo secundário porque ocorre após os investimentos de objeto do id.<br />

Mais tarde, em Sexualidade feminina (1931), Freud assinala que um investimento<br />

libidinal originariamente narcisista ocorre inicialmente quando a criança não<br />

distingue o seio como um objeto externo. Desta forma resta saber o que seria<br />

investido, que tipo de unidade poderia estar presente, nesta indistinção inicial entre o<br />

158 Idem ibid, p. 47. (grifo nosso)<br />

92


que é de si mesmo e o que é do outro. 159 Monzani assinala que nesta linha de<br />

interpretação:<br />

O ego aparece como uma síntese ou uma fusão de diferentes identificações, tendo como<br />

solo básico a identificação primária. 160<br />

A respeito da identificação primária Laplanche e Pontalis assinalam:<br />

Convém, no entanto, notar, que a rigor, é difícil ligar a identificação primária a um<br />

estado absolutamente indiferenciado e anobjetal. 161<br />

Segundo Laplanche e Pontalis, Freud fala, embora raramente, uma identificação<br />

primária com o pai primordial. Trataria-se de uma identificação permanente e anterior<br />

a qualquer investimento objetal. Isso se verifica quando Freud considera que o<br />

superego se forma por uma identificação com o arquétipo paterno e assim exprime<br />

suas marcas.<br />

Ainda sobre o dualismo pulsional, Freud assinala que Eros exige baixar o nível<br />

de excitação seguindo o propósito da vida que, guiada pelo princípio de constância,<br />

quer chegar até a morte. Contudo, as pulsões de vida querem chegar até a morte por<br />

um caminho mais longo, por isso são responsáveis também pela introdução de novas<br />

tensões. O id, obedecendo ao princípio de prazer, tenta se livrar do desprazer causado<br />

pelo aumento de tensão. Para isso, sede as exigências da libido lutando pela satisfação<br />

das aspirações sexuais. Freud considera que o ego vem livrar o id do trabalho de<br />

obediência à libido, sublimando parte desta libido para si e para seus fins.<br />

159 Em O ego e o id Freud descreve a presença desde o início do id.<br />

160 Monzani, 1989, p. 246.<br />

161 Laplanche e Pontalis, 1982, p. 232.<br />

93


Freud descreve a semelhança entre o estado de morte e o estado que se apresenta<br />

quando se chega à plena satisfação sexual. Neste estado o Eros é deixado de lado e a<br />

pulsão de morte se encontra livre para alcançar sua meta. Isso aponta para a expressão<br />

dos dois tipos de pulsões no id. 162<br />

Na última secção Freud fala que o id se forma a partir de identificações que<br />

substituem seus investimentos. Assim, o investimento objetal ocorreria a partir do id.<br />

Ao mesmo tempo que as primeiras identificações estão ligadas à formação do ego, se<br />

contrapõem a ele como superego. Portanto, a identificação exerce um papel<br />

fundamental na gênese do ego e do superego.<br />

...já dissemos repetidamente que o ego se forma em boa parte a partir de identificações que<br />

tomam lugar dos investimentos do id, resignados; que as primeiras destas identificações<br />

se comportam regularmente como uma instância particular dentro do ego, se contrapõem<br />

ao ego como superego. 163<br />

Portanto, o superego também se forma a partir das primeiras identificações do<br />

id, quando o ego ainda é fraco. Freud considera que por esta afinidade com o id, o<br />

superego está mais distante da consciência que o ego. Ele assinala que o superego<br />

mantém sempre a mesma relação com o ego, ou seja, contrapõe-se a ele e tenta<br />

dominá-lo.<br />

O sentimento de culpa tem como agente o superego e se apresenta como<br />

expressão da tensão entre ego e superego, pois é resultado da renúncia de um<br />

investimento erótico em função da critica que o superego exerce sobre o ego. Assim,<br />

na base do sentimento de culpa dos que sofrem de neurose obsessiva está a ação das<br />

moções eróticas reprimidas. Na melancolia o ego toma o objeto por via identificação e<br />

passa a se tratar como ao objeto, submetendo-se ao castigo imposto pela ira do<br />

162 Freud. O ego e o id (1923), v. 19, pp. 47-8.<br />

94


superego. Na histeria o ego se defende da percepção penosa, que a critica exercida<br />

pelo superego causaria, através da repressão. Portanto:<br />

Se deve ao ego, então, que o sentimento de culpa permaneça inconsciente. Sabemos que o<br />

ego pode empreender as repressões a serviço e por encargo do superego. 164<br />

Segundo Freud, grande parte do sentimento de culpa tem que ser inconsciente<br />

porque a gênese da consciência moral tem relação profunda com o complexo de Édipo<br />

que pertence ao inconsciente. Assim o superego mostra sua relação com o id<br />

inconsciente.<br />

...o superego da provas de sua independência do ego consciente e de seus vínculos íntimos<br />

com o id inconsciente. 165<br />

O superego surge como uma diferenciação do id e retira dele sua energia de<br />

investimento. Contudo ele também se constitui de restos mnêmicos - as<br />

representações-palavra - a partir de sua relação com a percepção, dado que ele é uma<br />

parte do ego, o qual está intimamente ligado ao sistema perceptivo. O superego torna-<br />

se acessível à consciência através das representações-palavra que permitem que os<br />

processos internos de pensamento sejam transformados em percepções. 166<br />

Freud assinala que o superego, a exemplo do que ocorre na melancolia, pode<br />

submeter-se a influência da pulsão de morte e tentar carregar o ego para a morte. Ele<br />

apodera-se do sadismo existente no indivíduo e o dirige ao ego. Neste caso, a pulsão<br />

163 Idem ibid, p. 49.<br />

164 Idem ibid, p. 52.<br />

165 Idem ibid, p. 53.<br />

166 Idem ibid, p. 25.<br />

95


de morte se encontra em proeminência e totalmente separada do Eros. 167 Quando o<br />

ego consegue se defender do superego pode ocorrer a mania.<br />

No neurótico obsessivo a pulsão de destruição tenta aniquilar o objeto, o amor<br />

pode transpor-se em agressão contra ele. Com isso o neurótico é quase que imune ao<br />

suicídio, diferentemente do melancólico e ainda que em menor grau, diferente do<br />

histérico também. Disso conclui:<br />

...é a conservação do objeto o que garante a segurança ao ego. 168<br />

Freud considera que o ego não acolhe as tendências de destruição do objeto<br />

vindas do id. Na realidade luta contra elas através de formações reativas, mas o<br />

superego condena o ego como se este fosse o responsável por estas tendências.<br />

Quanto mais o indivíduo limita sua agressão até o mundo, mais o ideal do ego se<br />

mostra severo para com ele. Então:<br />

Desamparado por ambos os lados, o ego se defende em vão das insinuações do id assassino<br />

e das reprovações da consciência moral punitiva. Consegue inibir ao menos as ações mais<br />

grosseiras de ambos; o resultado é, primeiro, um auto-sacrifício interminável e, no<br />

posterior desenvolvimento, um sacrifício sistemático do objeto toda vez que este se<br />

encontre ao alcance. 169<br />

O ego serve ao id e ao superego e é o mediador da relação entre ambos. Ele<br />

controla os impulsos de ambos, por ser a instância que está intimamente ligada a<br />

realidade por possuir o acesso a mobilidade e ao mundo exterior.<br />

167 Idem ibid, p. 43.<br />

168 Idem ibid, p. 54.<br />

169 Idem ibid.<br />

96


Como ser fronteiriço, o ego quer fazer uma mediação entre o mundo e o id, fazer com que<br />

o id obedeça ao mundo, e – através de suas próprias ações musculares – fazer com que o<br />

mundo faça justiça ao desejo o id. 170<br />

...recobre suas ordens icc, com suas racionalizações prcc, simula a obediência ao id às<br />

permissões da realidade ainda quando o id tem permanecido rígido e inflexível, dissimula<br />

os conflitos do id com a realidade e, toda vez que é possível, também os conflitos com o<br />

superego. 171<br />

Portanto, o ego faz a mediação entre o id e o mundo externo, de modo a fazer<br />

com que o id se submeta às leis da realidade. Paralelamente, procura transformar a<br />

realidade através da ação motriz para que os desejos do id, ou pelo menos uma parte<br />

deles, possa ser realizada.<br />

O ego medeia a relação entre os patronos de sua formação: o id e a realidade e o<br />

id e o superego. Ele serve as exigências do id, do superego e da realidade. Em sua<br />

formação colabora também o superego, que como instância que retira do id conteúdos<br />

da pré-história, pode nutrir o ego com estas experiências. Assim, Freud conclui que<br />

alguns conteúdos chegam diretamente do id ao ego enquanto outros têm que passar<br />

pelo ideal do ego que se constitui numa formação reativa contra as moções pulsionais<br />

do id.<br />

Neste momento, o da segunda tópica, Freud atribui ao ego as funções de<br />

controle da mobilidade e da percepção, prova da realidade, pensamento racional e,<br />

por outro lado, racionalização, defesa contra exigências pulsionais, resistências etc.<br />

Quanto às relações do ego com as pulsões de morte e de vida, Freud assinala<br />

que, mediante identificação e sublimação, o ego auxilia as pulsões de morte a dominar<br />

a libido, mas corre o risco de tornar-se seu objeto. Portanto, para auxiliar a pulsão de<br />

170 Idem ibid, p. 56.<br />

171 Idem ibid, p. 57.<br />

97


morte, o ego teve que se investir com a libido e por este caminho se encontra<br />

submetido a Eros e agora quer viver e ser amado. 172<br />

Obedecendo à pulsão de morte o superego ameaça o ego, que frente a esta<br />

ameaça se angustia. Esta é a angústia de castração em torno da qual, mais tarde, se<br />

forma a angústia de consciência moral. Freud assinala que toda angústia é angústia de<br />

morte que estaria envolvida com um rebaixamento do investimento libidinal<br />

narcisista. Esta angústia se desenvolveria no caso da ameaça por um perigo externo e<br />

ou processo interno, como na melancolia. Portanto, na melancolia a angústia de morte<br />

se dá porque o ego se sente odiado e perseguido pelo superego, quando quer ser<br />

amado por aquele que substitui o pai da horda primordial.<br />

3.4. As relações entre narcisismo e complexo de Édipo<br />

São apresentadas as relações entre complexo de Édipo e narcisismo, enfocando<br />

os textos escritos entre 1923 e 1925, que mais especificamente tratam da questão do<br />

Édipo. São eles: A organização genital infantil (1923), O sepultamento do complexo de Édipo<br />

(1924) e Algumas conseqüências da diferença anatômica entre os sexos (1925). Também são<br />

apresentadas as colocações sobre o Édipo que aparecem em textos mais tardios - Sobre<br />

a sexualidade feminina (1931) e Esboço de psicanálise (1938).<br />

Freud escreve sobre a sexualidade na infância tomando desde as organizações<br />

pré-genitais da libido. Aborda a sexualidade desde o período anterior ao complexo de<br />

Édipo 173, o começo e desfecho do Édipo, o período de latência, até a conformação<br />

sexual final no adulto. Embora Freud atribua ao complexo de Édipo a função de dar<br />

acesso à genitalidade, daí a fase fálica ser sua contemporânea, Laplanche e Pontalis<br />

172 Idem ibid.<br />

173 Embora a importância merecida dada a este período, chamado por Freud de pré- edipiano, só tenha<br />

ocorrido em “Sexualidade feminina” (1931), como o próprio Freud atesta na pagina 228 deste texto: “O<br />

vínculo primário com a mãe havia se edificado de maneira rica e plurilateral (...) havíamos subestimado também a<br />

duração desta ligação-mae”<br />

98


essaltam a importância de não querer fazer coincidir o período pré-edipiano com o<br />

pré-genital, pois “pode haver uma atividade genital satisfatória sem Édipo consumado, e<br />

também que o conflito edipiano pode ocorrer em registros sexuais pré-genitais.” 174<br />

Pode-se dizer, que para Freud, pode haver atividade genital satisfatória antes do<br />

Édipo porque a criança pode perceber e mexer nesta zona ainda no período pré-<br />

edipiano, mas este mexer não têm nenhum conteúdo psíquico. Contudo, na fase fálica,<br />

já no Édipo, o mexer na genitália ganha um conteúdo psíquico.<br />

Freud assinala que o período pré-edipiano compreende o momento da ligação<br />

primária entre mãe e criança, sendo o apego à mãe o resumo desta relação. O primeiro<br />

objeto erótico da criança seria o peito, tomado como objeto de amor por satisfazer a<br />

necessidade de nutrição. Trata-se de um investimento libidinal originariamente narcisista,<br />

já que a criança não distingue o seio como um objeto externo, como um outro, mas<br />

sim como fazendo parte dela mesma. Desta forma, pode-se inferir que Freud faz<br />

corresponder um investimento originalmente narcisista com um narcisismo presente<br />

no indivíduo desde o início, quando o organismo mantém um tipo de relação com o<br />

objeto. Mas nessa relação o objeto é concebido como parte do próprio sujeito, o que<br />

põe-se de acordo com a hipótese de um narcisismo primário. Esta concepção de<br />

narcisismo leva a perda da distinção entre narcisismo e autoerotismo.<br />

Quando a criança faz a distinção do seio como objeto externo, toma como o<br />

objeto a mãe que alimenta e cuida.<br />

Esse primeiro objeto se completa logo na pessoa da mãe, quem não apenas alimenta,<br />

mas também cuida, e provoca na criança tantas outras sensações corporais, tanto<br />

prazerosas quanto desprazerosas. No cuidado do corpo, ela torna-se a primeira<br />

sedutora da criança. 175<br />

174 Laplanche e Pontalis, 1982, p.352.<br />

175 Freud. Esboço de psicanálise (1940[1938]), v. 23, p.188.<br />

99


Tem-se então, a mãe como primeiro objeto de amor para meninos e meninas.<br />

Freud assinala que isso ocorre porque as condições primordiais de eleição de objeto<br />

são idênticas para ambos 176. Mas a entrada no Édipo é diferente para cada um, pois a<br />

menina entra no Édipo em sua forma invertida, ou seja, tendo como objeto o<br />

progenitor do mesmo sexo para depois colocar sua libido sobre o pai e rivalizar com a<br />

mãe. Enquanto o menino mantém a mãe como seu objeto e rivaliza com o pai.<br />

Com a entrada no Édipo ocorre a plena escolha de objeto a partir de<br />

identificações e investimentos de objeto características desse período. O Édipo marca a<br />

instauração do primado do falo e mostra seus efeitos na construção da personalidade<br />

sobre a constituição das diferentes instâncias, principalmente o superego e o ideal do<br />

ego, pois com o Édipo o indivíduo interioriza as exigências e interdições.<br />

Freud considera que esta relação primária com a mãe é marcada por metas<br />

sexuais de natureza passiva e ativa. As primeiras vivências sexuais seriam de natureza<br />

passiva, pois a mãe amamenta, alimenta, limpa e veste a criança. Mas apenas uma<br />

parte da libido permanece ligada e obtém satisfação destas experiências, a outra parte<br />

se volta contra, na forma de atividade:<br />

…se mostra de maneira inequívoca uma rebeldia contra a passividade e uma<br />

predileção pelo papel ativo. 177<br />

A atividade sexual da criança até a mãe se apresenta seguindo a seqüência<br />

aspirações orais, sádicas e fálicas, e é caracterizada segundo a zona erógena que se<br />

encontra dominante. São as fases libidinais do desenvolvimento que caracterizam a<br />

natureza das relações com a mãe. A fase fálica seria marcada pelo direcionamento à<br />

mãe de moções passivas e ativas. As moções ativas se expressam pela masturbação do<br />

clitóris. Pelas moções passivas a menina percebe a mãe como sedutora - a mãe que<br />

limpa é a mãe que seduz. Freud nota que as moções ativas sofrem mais os efeitos da<br />

176 Freud. Sobre a sexualidade feminina (1931), v. 21, p.230.<br />

177 Idem ibid, p.238.<br />

100


frustração que as passivas e, por isso, a libido as abandona com mais facilidade. Freud<br />

conclui que:<br />

… a mãe inevitavelmente desperta em sua filha a fase fálica o que, nas fantasias dos<br />

anos posteriores, o pai apareça tão regularmente como o sedutor sexual. 178<br />

Freud considera que na fase fálica a menina nota que o menino possui um pênis<br />

superior ao seu (o clitóris) e conseqüentemente se decepciona com a mãe, considerada<br />

a responsável pela miséria do seu pequeno órgão e, como conseqüência, por seu<br />

desejo. A decepção com a mãe leva a menina a vivenciar a inveja do pênis e como<br />

conseqüência o complexo de masculinidade. Se comporta como um menino por achar<br />

que tem um pênis ou que vai receber um. 179<br />

Quando a menina aceita a castração, reprimi a masculinidade até então adotada<br />

e assim suspende sua masturbação e numa atitude de feminilidade passiva, toma o<br />

pai como objeto. Substitui o desejo de ter um pênis pelo desejo de dar um filho ao pai.<br />

Sobre o complexo de castração Freud assinala:<br />

É, portanto, com o conhecimento da castração que a menina abandona sua<br />

masturbação e seu objeto – a mãe. Freud assinala que na menina a castração marca a<br />

entrada no complexo de Édipo 180 . Freud assinala que a menina passa por uma fase do<br />

complexo de Édipo negativo, com a vivência de “inveja do pênis”, antes de ingressar<br />

no positivo. Segundo Freud, as duas formas – positiva e negativa - coexistem no<br />

Édipo, o que possibilita entender a atitude ambivalente para com ambos os pais. O<br />

complexo de Édipo positivo marcaria a masculinidade no menino e a feminilidade na<br />

menina 181<br />

178 Idem ibid, p.240.<br />

179 Freud. Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925), v.19, p. 272-3.<br />

180 Pode- se dizer que a castração marca, mais especificamente, a entrada no complexo de Édipo<br />

positivo, já que Freud assinala que o Édipo se inicia, na menina, na forma negativa.<br />

181 Freud. O ego e o id (1923), v.19, p.34.<br />

101


No menino, a entrada no Édipo se dá diferente da menina; ocorre na sua forma<br />

positiva e sem troca de objeto. Ele continua com a mãe como objeto e rivaliza com o<br />

pai. A atitude edipiana pertence à fase fálica em que um interesse narcísico no genital – o<br />

falo – leva-o a ser investido com libido 182.<br />

Na fase fálica do desenvolvimento sexual que ocorre contemporaneamente ao<br />

complexo de Édipo, o menino percebe seu genital e passa a examiná-lo. Nesta fase a<br />

criança a acredita que o falo é o único órgão genital existente. O menino vê a falta de<br />

pênis, mas desmente a diferença procurando fazer com que se encaixe em suas<br />

expectativas.<br />

A princípio não crê na ameaça de castração, mas quando esta percepção torna-se<br />

significativa passa a temer a perca de seu próprio pênis. Freud assinala:<br />

A falta de pênis é entendida como resultado de uma castração, e agora se<br />

apresenta ao menino a tarefa de lutar contra a ameaça da castração a sua própria<br />

pessoa. ...só se pode apreciar corretamente o significado do complexo de castração se se<br />

leva em conta sua gênese no primado do falo. 183<br />

A reprovação da masturbação por parte dos pais que cuidam da criança ativa o<br />

complexo de castração e põe fim à masturbação. Tem-se que a organização genital<br />

fálica do menino se fundamenta a raiz da ameaça de castração 184.<br />

Enquanto que o complexo de Édipo do menino termina devido ao complexo de<br />

castração, o da menina é possibilitado e introduzido por este último. 185<br />

182 Freud. Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925), V.19, p.268.<br />

183 Freud. A organização sexual infantil (1923), v.19, p.147.<br />

184 Freud. O sepultamento do Complexo de Édipo (1924), v.19, p.183.<br />

185 Freud. Algumas diferenças psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925), v.19, p.275.<br />

102


Na menina a castração marca a entrada no complexo de Édipo, enquanto que no<br />

menino seu desfecho. A ameaça de castração vivenciada pelo menino leva seus<br />

investimentos libidinosos a serem resignados, dessexualizados e sublimados. Como<br />

resultado da fase sexual governada pelo complexo de Édipo, como resíduo das<br />

primeiras identificações e eleições de objeto e da repressão do desejo, nasce o<br />

superego que se fundamenta como formação reativa frente a estas eleições.<br />

Assim, como resultado mais universal da fase sexual governada pelo complexo de<br />

Édipo, se pode supor uma sedimentação no ego, que consiste no estabelecimento<br />

destas duas identificações, unificadas de alguma maneira entre si. Esta alteração do<br />

ego recebe sua posição especial: opõe-se a outro conteúdo do ego como ideal do ego<br />

ou superego. 186<br />

O que significa dizer que o superego se fundamenta como instância pela<br />

interiorização das exigências e das interdições parentais e exerce sua função inibitória,<br />

contrapondo-se ao ego e tentando dominá-lo, sob a forma consciência moral. 187 .<br />

Em O ego e o id Freud nota que a partir das identificações, as quais tomam lugar<br />

dos investimentos do id, que se formam o ego e o superego. Portanto o narcisismo do<br />

ego ocorreria num momento em que o complexo de Édipo já se encontra instalado,<br />

um narcisismo secundário posterior aos investimentos objetais do Édipo. Mas na<br />

realidade o complexo de Édipo não servia para completar a passagem do narcisismo<br />

para a escolha de objeto? Pode-se dizer que isso também, pois, na medida que Freud<br />

concebe a existência de um narcisismo primitivo, o Édipo completaria a passagem<br />

deste para a escolha objetal.<br />

186 Freud. O ego e o id (1923), v.19, p.46.<br />

187 Idem ibid, pp.49-50.<br />

103


3.5. Esboço de psicanálise (1940 [1938])<br />

Segundo James Strachey em nota introdutória, Freud escreve esse texto aos 82<br />

anos, mas não chega a terminá-lo. Escreve para o público que já entendido da<br />

psicanálise, o que pode ser percebido pela forma como fala dos temas já conhecidos e<br />

apresentados. Retoma agora diversas questões, que fizeram parte do desenvolvimento<br />

da teoria psicanalítica, à luz do novo quadro em que se encontra a psicanálise.<br />

Apresenta considerações sobre: o aparelho psíquico e suas três instâncias, as<br />

qualidades psíquicas e o novo dualismo pulsional. E neste contexto, sob luz das novas<br />

terminologias, reavalia questões clínicas e questões de ordem teórica, como sobre o<br />

papel da distribuição da libido no desenvolvimento sexual, a questão da identificação<br />

e da escolha de objeto e o papel do complexo de Édipo. Edifica alguns<br />

desenvolvimentos complementares sobre a cisão do ego e o desmentir de parte do<br />

mundo exterior. Aqui serão tratadas as considerações de Freud sobre: o novo<br />

dualismo, as três instancias, a identificação e a escolha objetal.<br />

Na seção I Freud apresenta e funções do id, do ego e do superego e suas<br />

relações. O id seria a instância mais antiga de conteúdo herdado e por isso teria como<br />

propósito satisfazer as necessidades congênitas. A partir da influência do mundo<br />

exterior o id se desenvolve e o ego se estabelece, que media a relação entre o id e o<br />

mundo exterior de forma a atingir seu propósito de manter a vida e proteger-se dos<br />

perigos mediante a angústia. Assim, o ego tem como função a autoconservação, por<br />

estar relacionado à percepção e poder decidir sobre a ação muscular mediante<br />

adaptação, evitação ou fuga. Internamente, o ego decide se satisfaz ou não as<br />

exigências do id, levando em consideração possíveis perigos.<br />

O superego seria uma instância que se forma no ego para prolongar a<br />

influência dos pais, por isso se forma num longo período da infância quando o sujeito<br />

depende dos pais. Quando se separa do ego se contrapõe a ele, numa relação baseada<br />

no modelo da relação que a criança teve com seus pais. No desenvolvimento do<br />

indivíduo o superego colhe suas influências de relações com pessoas substitutas dos<br />

104


progenitores como professores, ideais adorados da sociedade. O superego tenta<br />

limitar as satisfações requeridas pelo id criticando o ego como se este fosse o autor<br />

dessas exigências.<br />

O poder do id expressa o propósito vital genuíno do indivíduo. Consiste em<br />

satisfazer suas necessidades congênitas. Um propósito de manter-se com vida e<br />

proteger-se de perigos mediante a angústia não se pode atribuir ao id. Esta é a<br />

tarefa do ego, quem te também que encontrar uma maneira mais favorável e menos<br />

perigosa de satisfação dando atenção ao mundo exterior. Ainda que o superego pode<br />

impor necessidades novas, sua principal operação segue sendo limitar as<br />

satisfações. 188<br />

Portanto, o ego se angustia frente às exigências dos três senhores que tentam<br />

comandá-lo: o id, o superego e a realidade. Freud aproxima novamente mais o<br />

superego do id do que o ego do id, ao colocar que ambos - id e superego – concordam<br />

no que diz respeito aos influxos do passado - o id do passado herdado e o superego<br />

do passado comandado por outros enquanto o ego é comandado pelo que ele mesmo<br />

tem vivenciado. 189<br />

Na secção II Freud apresenta novamente o novo dualismo pulsional que agora<br />

coordena a teoria psicanalítica. Eros trabalharia sob o princípio 190 da ligação para<br />

produzir unidades cada vez maiores, enquanto que a pulsão de morte ou pulsão de<br />

destruição procuraria destruir os nexos, - “destruir as coisas do mundo”.<br />

...temos resolvido admitir só duas pulsões básicas: Eros e pulsão de destruição.<br />

(A oposição entre pulsão de conservação de si mesmo e de conservação da espécie,<br />

assim como a outra entre amor egóico e amor de objeto, se situam no interior do<br />

188 Freud. Esboço de psicanálise (1940[1938]), v. 23, p.146<br />

189 Idem ibid, p.145<br />

105


Eros.) A meta da primeira é produzir unidades cada vez maiores e, assim, conservá-<br />

las, ou seja, uma ligação; a meta da outra é, ao contrário, dissolver nexos e, assim,<br />

destruir as coisas do mundo. A respeito da pulsão de destruição, podemos pensar<br />

que aparece como sua meta última transportar o vivo ao estado inorgânico; por isso<br />

a chamamos também pulsão de morte. 191<br />

Freud algumas vezes acaba opondo a pulsão de vida com seu caráter de ligação<br />

ao caráter de conservação das pulsões que coloca no início deste texto e ao longo de<br />

diversos textos anteriores.<br />

Chamamos de pulsões às forças que supomos trazer as tensões de necessidade do id.<br />

Representam os requerimentos que o corpo faz à vida anímica. Ainda que causa última de<br />

toda atividade, são de natureza conservadora. 192<br />

Contudo, ele observa que não pode aplicar a Eros a mesma fórmula que aplica<br />

à pulsão de morte de que toda pulsão aspira voltar a um estado anterior, pois:<br />

Isso pressuporia que a substância viva foi outrora uma unidade logo dilacerada e<br />

que agora aspira sua reunificação. 193<br />

Freud se fundamenta em hipóteses biológicas para definir as noções de pulsão<br />

de vida e de morte. Segundo ele, nas funções biológicas estas pulsões produzem<br />

efeitos uma contra as outras ou se combinam de tal forma a produzirem uma<br />

variedade das manifestações da vida.<br />

190 Princípio não está sendo usado aqui com a mesma acepção que Freud o usa.<br />

191 Freud. Esboço de psicanálise (1940[1938]), v. 23, p.146<br />

192 Idem ibid.<br />

193 Idem ibid, p.147.<br />

106


Freud apresenta a suposição de um estado inicial de disposição das pulsões em<br />

que a libido, energia do Eros, estaria presente no ego-id indiferenciado servindo para<br />

neutralizar as inclinações da pulsão de destruição presente também nesta ‘instância’<br />

indiferenciada.<br />

Nós representamos um estado inicial da seguinte maneira: a energia integra<br />

disponível do Eros, que desde agora chamaremos libido, está presente no ego-id<br />

todavia indiferenciado e serve para neutralizar as inclinações de destruição<br />

simultaneamente presentes.(Carecemos de um termo análogo à libido para a energia<br />

da pulsão de destruição). 194<br />

Quanto aos caminhos percorridos pela pulsão de morte Freud fala que de início<br />

permanece muda só mostrando-se quando é dirigida para fora como pulsão de<br />

destruição, apoiada na necessidade de conservação do indivíduo. Com a formação do<br />

superego uma parte da agressão dirigida para fora se volta para o próprio ego. Freud<br />

assinala que uma parte desta agressão permanece no interior até a morte do<br />

indivíduo, “possivelmente só quando a libido deste se tenha consumido ou fixado de uma<br />

maneira desfavorável” 195 .<br />

Ainda na secção II Freud apresenta como o “grande reservatório da libido” ora o<br />

ego-id indiferenciado, ora o ego. Chama de narcisismo primário absoluto ao estado em<br />

que todo o montante de libido disponível se encontra no ego, que duraria até que a<br />

libido narcisista se transpusesse em libido de objeto.<br />

É difícil enunciar algo sobre o comportamento da libido dentro do id e dentro do<br />

superego. Tudo que sabemos a respeito disto se refere ao ego, no qual se armazena<br />

inicialmente todo o montante de libido disponível - chamamos narcisismo primário<br />

absoluto a esse estado. Dura até que o ego investe com libido as representações de objeto.<br />

194 Idem ibid.<br />

195 Idem ibid, p.148.<br />

107


Durante toda a vida o ego segue sendo o grande reservatório a partir do qual<br />

investimentos objetais são enviados aos objetos e ao interior do qual os investimentos<br />

voltam, tal como um corpo protoplasmático procede com seus pseudópodes. 196<br />

Quanto à localização inicial da libido Freud apresenta dois pontos de vista<br />

distintos em O ego e o id e Esboço de psicanálise. Segundo o ponto de vista expresso em<br />

O ego e o id, a princípio toda a libido estaria acumulada no id e a partir dele investiria<br />

os objetos externos, para somente depois voltar ao ego. Nesta concepção Freud<br />

considera o narcisismo do ego um narcisismo secundário. Enquanto que em Esboço de<br />

psicanálise Freud considera que o ego armazena inicialmente todo o montante libidinal<br />

e chama a este estado de narcisismo primário que dura até o momento que o ego<br />

investe os objetos externos. Neste mesmo texto considera que toda libido está<br />

inicialmente presente no ego-id, passando desta para o ego para depois ser enviadas<br />

ao ego. Segundo James Strachey, os dois processos não são incompatíveis, podendo se<br />

ajustar, mas Freud não se pronuncia nesse sentido.<br />

Com relação a esta contradição entre as posições tomadas por Freud em O ego e o<br />

id e Esboço de psicanálise, Simanke assinala:<br />

Ao que parece, a contradição aqui repousa em uma falta de discernimento entre o objeto<br />

da pulsão e o objeto do desejo: o primeiro não necessita de uma unidade comparável ao<br />

ego para ser encontrado, devido ao seu caráter absolutamente contingente; o segundo<br />

pressuporia o ego, e aí nada contradiz a hipótese de que tomasse o próprio ego como objeto<br />

inicial e que este estado configurasse o narcisismo. 197<br />

O narcisismo surgiria no momento em que surge o desejo que toma o ego como<br />

primeiro objeto ou, pensando num narcisismo primitivo, o narcisismo tomaria como<br />

objeto um instância indiferenciada, oferecida pela pulsão? Se este segundo ponto de<br />

196 Idem ibid, p.148. (grifo nosso)<br />

197 Simanke,1994, p. 132.<br />

108


vista fosse considerado pode-se apontar para uma tendência biologizante, pela qual a<br />

pulsão oferece ao organismo seu objeto que seria de alguma forma por ela<br />

determinado.<br />

Portanto, deixar de lado a distinção entre autoerotismo e narcisismo não se<br />

apresenta sem problemas para a teoria psicanalítica. Um dos problemas é perder a<br />

acepção de narcisismo como referência a uma imagem de si mesmo, ao assumir um<br />

narcisismo primitivo, presente mesmo antes da formação do ego. Outro problema é<br />

perder a distinção entre pulsão e desejo pela tomada de uma concepção de tendência<br />

biologizante, o que acaba por fazer perder explicações úteis sobre a patologia em<br />

geral.<br />

Na secção VII Freud faz considerações sobre o complexo de Édipo e por<br />

consequencia sobre a identificação e a escolha de objeto. Ele considera que por meio<br />

de um investimento originariamente narcisista, a criança toma o peito materno seu<br />

primeiro objeto erótico que se oferece à criança a partir da necessidade de nutrição. A<br />

mãe, logo, é tomada como primeiro objeto de amor por meninos e meninas. Assim, a<br />

menina entra no Édipo em sua forma invertida, enquanto que o menino entra na<br />

forma positiva com a mãe como objeto e rivalizando com o pai. Freud fala de um<br />

arquétipo materno, formado a partir da relação incomparável e imutável da criança<br />

com a mãe cuidadora e sedutora, que marca todos os posteriores vínculos de amor do<br />

indivíduo.<br />

O Édipo é marcado pelo primado do falo e a plena escolha de objeto a partir das<br />

identificações e investimentos de objeto característicos deste período. Assim, a<br />

construção da personalidade se dá em grande parte no Édipo, pois é neste período<br />

que ocorrem as primeiras e fundamentais identificações responsáveis pela gênese do<br />

ego e do superego - instância formada pela interiorização das exigências e interdições<br />

parentais. Assim, o complexo de Édipo engloba desde a formação do ego quanto do<br />

superego até a plena escolha de objeto.<br />

Freud faz corresponder o investimento originalmente narcisista com um<br />

narcisismo primitivo, presente no indivíduo desde o início, quando o organismo vê o<br />

109


seio como fazendo parte dele mesmo. Esta concepção de narcisismo leva a perda da<br />

distinção entre narcisismo e autoerotismo.<br />

110


CONCLUSÃO<br />

A teoria do narcisismo foi uma das principais contribuintes para a ‘virada’ dos<br />

anos 20. O narcisismo surge na psicanálise quando Freud conclui que o ego é<br />

investido de libido. Algumas dificuldades surgem a partir de sua introdução, mais<br />

especificamente no que se refere a manter o conflito psíquico como um conflito entre<br />

pulsões, o que Freud se esforça para conseguir. Diferentes questões e exigências<br />

explicativas e, por conseqüência, tentativas de solução do impasse surgem. Como<br />

alterações conseqüentes do narcisismo tem-se: alteração na noção de ego, introdução<br />

das duas novas instâncias, o novo dualismo pulsional.<br />

O esforço em manter um dualismo entre pulsões, mesmo frente às dificuldades<br />

acrescentadas pela descoberta de que o ego também é objeto da libido, faz com que<br />

Freud só abandone o primeiro dualismo, quando já havia trabalhado um outro para<br />

tomar seu lugar. Esse esforço de Freud compreende a tentativa de atingir no plano<br />

teórico, sem deixar de lado a experiência clínica, mas indo além dela, as explicações<br />

relacionadas ao funcionamento e gênese de diversos conceitos. Entre eles, e de<br />

interesse fundamental, está o de narcisismo, quer normal, quer patológico.<br />

O narcisismo caminharia desde a normalidade até a patologia, do sonho à<br />

psicose. O narcisismo do sonho mostra-se essencial, pois a realização do desejo por via<br />

sonho colabora para que o sujeito não ‘busque’ um tipo de realização de desejo que<br />

envolva um comprometimento do ego, como por via alucinação psicótica. Concebido<br />

como normal porque uma dose de narcisismo deve sempre estar presente. Mas o<br />

investimento de objeto é imprescindível para a vida, porque com um forte narcisismo<br />

todo ao sadismo seria enviado para o ego, como se verifica no padecimento subjetivo<br />

nas psicoses, no sofrimento que se vê na melancolia.<br />

No narcisismo o ego recebe a libido não apenas como expressão da pulsão de<br />

vida, mas também como expressão da pulsão de morte, pois o amor e o ódio pelo<br />

objeto voltam-se ao ego, ou seja, a ambivalência para com o objeto se apresenta<br />

111


também com relação ao ego próprio. Esta admissão leva Freud a conceber as duas<br />

novas instâncias da personalidade.<br />

O narcisismo primitivo seria abandonado porque o ego tenta afastar de si a<br />

expressão da pulsão de morte presente na libido. A volta sobre si do narcisismo não<br />

leva a satisfação plena, por isso os sintomas psicóticos correspondem a uma tentativa<br />

do ego de restabelecer a relação objetal e assim enviar os componentes sádicos para o<br />

objeto.<br />

Mantém-se em aberto que estado é o narcisismo primário, se há ou não um<br />

narcisismo primitivo, se trata-se ou não de um estado anobjetal e se o autoerotismo<br />

existe como fase ou apenas como modo de obtenção de satisfação, porque não se sabe<br />

que unidade está presente a princípio e serve de reservatório da libido. Por isso Freud<br />

alterna entre um e outro ponto de vista e não se pronuncia a este respeito de modo<br />

que acaba havendo uma incompatibilidade entre suas colocações. Portanto, Freud<br />

apresenta quando escreve sobre o narcisismo, da mesma forma que procede para com<br />

outros conceitos, hesitações, correções, abandono e retomada de posições. Acaba por<br />

não fornecer uma solução, mas indica caminhos a serem seguidos.<br />

A importância desse conceito deve-se, principalmente, ao fato dele exigir de<br />

Freud explicações teóricas que colaboram para a reestruturação do esquema psíquico<br />

proposto pela psicanálise. Pode-se dizer que Freud não apresenta uma solução para<br />

um fechamento do conceito, mas aponta a tendência por assumir um narcisismo<br />

primitivo e originário no sujeito, cujo protótipo é a vida intra-uterina. O autoerotismo<br />

acaba por desaparecer enquanto fase, limitando-se a ser um tipo de comportamento<br />

sexual em que o sujeito obtém satisfação recorrendo ao seu próprio corpo apenas. A<br />

distinção entre autoerotismo e narcisismo se perde, pois este passa a ser entendido<br />

como estando presente desde o princípio.<br />

Portanto, o que esse estudo nos leva a concluir é que o conflito essencial,<br />

presente desde o início, é aquele que coloca, por um lado, a posição narcísica<br />

primitiva, e, por outro, a “necessidade” de um investimento para o objeto que<br />

assegurará a sobrevivência daquele que acabou de nascer. Se o investimento<br />

permanecesse exclusivamente narcisista, impedindo o sujeito de se voltar para o<br />

112


objeto vital, o sujeito seria conduzido à morte. Somente por meio do abandono de<br />

uma posição exclusivamente narcisista é que a vida do sujeito, totalmente dependente<br />

do objeto, é assegurada.<br />

Para o sujeito inicia-se uma longa e silenciosa luta, em que todos os esforços se<br />

voltarão para a distinção entre o “reflexo” da realidade e a realidade, entre o desejo e<br />

o objeto do desejo.<br />

Se o sujeito não é invadido pelo fluxo pulsional, mantendo-se capaz de<br />

considerar a realidade, o ego pode enriquecer-se através da identificação com o objeto<br />

– suporte primitivo de identificação.<br />

Caso contrário, Narciso transporá o mito, e ao confundir sua imagem com o seu<br />

reflexo no espelho, atualizará, no nível individual, a tragédia de quem se dissociou do<br />

corpo e ignorou a realidade na busca da realização de um desejo impossível.<br />

113


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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10. Introdução ao narcisismo (1914). vol. 14, pp. 65-99.<br />

11. Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917 [1915]). vol. 14, pp. 215-33.<br />

12. O inconsciente (1917 [1915]). vol. 14, pp. 153-213.<br />

13. A repressão (1917 [1915]). vol. 14, p. 135-52.<br />

14. Luto e melancolia (1917 [1915]). vol. 14, pp. 235-55.<br />

15. Conferências de introdução à psicanálise (1ª a 15ª Conferência) (1916-17 [1915-17]). vol.<br />

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16. A fixação do trauma, o inconsciente (18ª Conferência) (1916-17 [1915-17]). vol. 15, pp.<br />

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114


17. Resistência e repressão (19ª Conferência) (1916-17 [1915-17]). vol. 15, p. 262-76.<br />

18. Algumas perspectivas sobre o desenvolvimento e a regressão (22a Conferência) (1916-17<br />

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326-43.<br />

20. A teoria da libido e o narcisismo (26a Conferência) (1916-17 [1915-17]). vol. 15, pp. 01-<br />

219.<br />

21. Além do Princípio de Prazer (1920). vol. 18, pp. 01-62.<br />

22. Psicologia das massas e análise do ego (1921). vol. 18, pp. 63-136.<br />

23. O ego e o id (1923). vol. 19, pp. 01-66.<br />

24. organização genital infantil (1923). vol. 19, pp. 151-60.<br />

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26. A perda da realidade na neurose e na psicose (1924). vol. 19, pp. 189-97.<br />

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115


Outros autores:<br />

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J. F. Narcisismo em Tempos Sombrios)<br />

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(CapítuloS II: A Origem do Indivíduo Reprimido – Ontogênese; III: A Origem da<br />

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6. Monzani, L. R. Freud: O Movimento de um pensamento. 5ª ed. Campinas: Editora da<br />

Unicamp, 1989.<br />

7. Schreber, D. P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984.<br />

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34, 1994.<br />

116

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