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APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO E ANTROPOLOGIA ... - pucrs

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RESUMO<br />

<strong>APROXIMAÇÕES</strong> <strong>ENTRE</strong> <strong>DIREITO</strong> E <strong>ANTROPOLOGIA</strong>:<br />

UMA REFLEXÃO A PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/20 07 1<br />

Débora Fanton<br />

Atualmente, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à<br />

aprovação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecid o como “Lei Muwaji”, o referido<br />

Projeto de Lei dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção<br />

dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras<br />

sociedades ditas não tradicionais. Não obstante, percebe-se que algumas<br />

comunidades indígenas brasileiras concebem diferentemente as noções de ser<br />

humano, de vida e de morte e, por essa razão, não consideram tais práticas como<br />

“nocivas”. Diante desta questão, que envolve a diversidade cultural, a Antropologia<br />

assume relevante papel para a Ciência Jurídica, uma vez que evidencia, através de<br />

instrumentos interpretativos, diferentes sistemas de símbolos significantes. Neste<br />

contexto, o presente trabalho tem por objetivo introduzir, primeiramente, o conceito<br />

antropológico de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para uma<br />

melhor compreensão sobre a diversidade cultural, bem como os elementos<br />

relacionados a ela: o etnocentrismo e o relativismo cultural. Em seguida, será<br />

exposta a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na<br />

ordem jurídico-constitucional brasileira. Por fim, no terceiro e último capítulo, o<br />

Projeto de Lei será analisado e, em seguida, serão trazidos os argumentos tanto da<br />

perspectiva antropológica, como da jurídica. Concluir-se-á, nesse sentido, a<br />

necessidade de um diálogo intercultural, baseado em ambas as perspectivas.<br />

Palavras-chave: Direito. Antropologia. Diversidade Cultural. Relativismo Cultural.<br />

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Cada vez mais se tem despertado o interesse e desenvolvido pesquisas<br />

entre os campos do Direito e da Antropologia. Atualmente, discute-se a<br />

necessidade do diálogo entre as duas áreas, principalmente no que concerne ao<br />

âmbito da diversidade cultural. Assuntos como a luta pelo reconhecimento e<br />

delimitação das terras indígenas, elaboração de políticas públicas, preservação do<br />

patrimônio histórico nacional, questões relativas à saúde e educação diferenciadas<br />

e os direitos das minorias étnicas de uma forma geral demonstram esta significante<br />

preocupação.<br />

O conhecimento antropológico, apesar de até o presente momento não ter<br />

recebido seu merecido destaque na Ciência Jurídica, é extremamente indispensável<br />

1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de<br />

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do<br />

Sul. Aprovação, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela orientadora Profª. Drª.<br />

Clarice Beatriz da Costa Söhngen, Profª. Drª. Lígia Mori Madeira e Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de<br />

Azevedo, em 25 de novembro de 2009.


a ela, tanto em termos teóricos, quanto em termos práticos. O Direito lida com o ser<br />

humano e ocupa-se, predominantemente, em regular e resolver os conflitos<br />

decorrentes das relações sociais. Já a Antropologia tem por objetivo buscar<br />

compreender, através de instrumentos interpretativos, os homens e sua cultura.<br />

Dessa forma, o pensamento antropológico assume importante papel para<br />

proporcionar uma ampliação e uma melhor compreensão sobre o homem e, assim,<br />

sobre o papel do Direito nas relações sociais.<br />

Pode-se afirmar que a “Antropologia Jurídica” seria a disciplina encarregada<br />

dessa tarefa e que, através da teoria antropológica e de métodos específicos de<br />

estudo, como o trabalho de campo e/ou a observação participante, analisa e compara<br />

as instituições do direito e as concepções de justiça de determinadas culturas. 2<br />

Um exemplo presente no cenário nacional que evidencia a exigência de se<br />

refletir sobre a conexão entre Direito e Antropologia é o Projeto de Lei n°<br />

1.057/2007. Conhecido como “Lei Muwaji”, ele foi apresentado pelo deputado<br />

Henrique Afonso e, no momento, encontra-se tramitando no Congresso Nacional,<br />

sujeito à aprovação. Este Projeto de Lei dispõe sobre o combate de algumas<br />

práticas tradicionais indígenas consideradas nocivas, em relação ao tratamento das<br />

crianças. Dentre as práticas, está aquela que popularmente se convencionou<br />

chamar de “infanticídio” indígena. Por meio de tal instrumento legal, pretende-se<br />

impedir tais práticas, a fim de se fazer cumprir os direitos humanos e fundamentais,<br />

bem como todas as normas de proteção à vida e à infância, previstas no<br />

ordenamento jurídico brasileiro.<br />

A justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 est á calcada, principalmente,<br />

na garantia do direito à vida, já que este é o direito “por excelência”. Nesse sentido,<br />

percebe-se o ideal de preservar a dignidade da pessoa humana e, portanto, a vida,<br />

a saúde e a integridade físico-psíquica das crianças indígenas e, como aponta o<br />

texto legal, também das crianças pertencentes a sociedades ditas não-tradicionais. 3<br />

Igualmente, refere o Projeto de Lei, que o artigo 231 da Constituição Federal,<br />

relativo ao direito de reconhecimento da diversidade cultural, não deve ser<br />

interpretado de forma desvinculada do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,<br />

previsto no artigo 1°, inciso III, e das diretrizes dos direitos fundamentais, previstas<br />

no artigo 5°.<br />

Contudo, desde a sua divulgação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 tem<br />

recebido inúmeras críticas e causado polêmicas, sobretudo, entre as comunidades<br />

indígenas englobadas nesta discussão. Percebe-se que algumas comunidades<br />

indígenas brasileiras não concebem tais práticas como nocivas, indicando, portanto,<br />

haver outro universo de significação em relação às concepções de ser humano, de<br />

vida e de morte.<br />

Desse modo, nota-se que a discussão centra-se no conflito entre o Princípio<br />

da Dignidade da Pessoa Humana, o direito à vida e o direito à diversidade cultural.<br />

2 SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 12; COLAÇO, Thais<br />

Luzia. O despertar da antropologia jurídica. In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de<br />

antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p. 29.<br />

3 Cumpre referir que a ênfase de nossa reflexão neste trabalho se dará sobre as práticas tradicionais<br />

indígenas.<br />

2


Assim sendo, o presente trabalho tem como finalidade refletir, a partir do Projeto de<br />

Lei n° 1.057/2007, sobre as aproximações que podem se estabelecer entre os<br />

campos do direito e da antropologia. Ou seja, iremos discutir a aplicação dos<br />

direitos humanos e fundamentais, questionando o caráter universalista e interventor<br />

do Projeto de Lei. Por outro lado, expor-se-á a particularidade da significação dos<br />

sistemas simbólicos indígenas, já que, a partir do ponto de vista antropológico,<br />

dever-se-ia interpretar o artigo 1°, inciso III e o artigo 5° em conformidade com o<br />

artigo 231 da Constituição Federal.<br />

Tendo em vista que muitas vezes as minorias étnicas são incompreendidas<br />

ou, até mesmo, menosprezadas, interpretá-las significa despertar a importância de<br />

enxergar o “outro” a partir de seu contexto social.<br />

Diante disso, no primeiro capítulo desta monografia serão abordados os<br />

principais conceitos antropológicos, como a noção de “cultura”, a partir da<br />

perspectiva de Clifford Geertz, para que seja possível um melhor entendimento<br />

sobre a diversidade cultural, além das concepções que estão diretamente ligadas a<br />

esta noção, como o etnocentrismo e o relativismo cultural.<br />

No segundo capítulo, será explicada a noção e a importante função que o<br />

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana exerce na ordem jurídico-constitucional<br />

brasileira, posto que ele é o principal fundamento do Projeto de Lei n° 1.057/2007.<br />

Ou seja, o primeiro capítulo expõe as principais ferramentas antropológicas para<br />

tratar deste tema, ao passo que o segundo capítulo, as ferramentas jurídicas.<br />

Por fim, no terceiro capítulo, mostrar-se-á os principais aspectos e os<br />

fundamentos da justificativa do Projeto de Lei n° 1 .057/2007. Em contraposição,<br />

exporemos as críticas do olhar antropológico dirigidas a ele, bem como a<br />

interessante proposta do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica de<br />

Boaventura de Souza Santos sobre o debate relacionado à diversidade cultural e à<br />

aplicação dos direitos humanos (e fundamentais). Nesse sentido, o que estamos<br />

buscando é encontrar uma decisão sobre este Projeto de Lei que seja justificável<br />

para ambas as culturas.<br />

Para uma melhor compreensão sobre o assunto, realizaram-se entrevistas,<br />

as quais nos aproximam da realidade indígena e, igualmente, suscitam outras<br />

questões, que poderiam muito bem ser abordadas neste tema, mas que, devido à<br />

complexidade, não foram objeto de maior desenvolvimento neste trabalho, tais<br />

como: a democracia, relacionada à participação das comunidades indígenas no<br />

processo constituinte brasileiro; o tratamento legal dos povos indígenas no Brasil; a<br />

colisão entre direitos e princípios constitucionais; os direitos coletivos e o pluralismo<br />

jurídico.<br />

Considerando que o presente estudo limita-se em apresentar algumas<br />

aproximações entre Direito e Antropologia, ressalta-se que não temos o intuito de<br />

apontar soluções definitivas para o problema, mas o de esboçar questionamentos e<br />

ampliar o debate sobre ele, uma vez que repensar o Direito a partir do viés<br />

antropológico é um desafio que se impõe nos dias de hoje.<br />

3


1 CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL: O ARCABOUÇO<br />

TEÓRICO DA <strong>ANTROPOLOGIA</strong><br />

Dizer que a Antropologia é a ciência que se dedica ao estudo do homem é<br />

reiterar o óbvio. As áreas da Antropologia (Biológica, Arqueologia, Lingüística, Social<br />

e/ou Cultural, entre outras) se ocupam em interpretar a complexidade da existência<br />

humana, sob o enfoque de diferentes aspectos. 4 Aqui, nos ateremos mais à<br />

abrangência do plano cultural, tendo em vista a especificidade dos fatores<br />

estudados.<br />

A noção de “cultura” é de extrema importância para a reflexão antropológica,<br />

pois sobre ela foi desenvolvida a compreensão de como a experiência humana é<br />

organizada. Como existem diversas concepções sobre cultura, neste trabalho<br />

optaremos pela matriz epistemológica do antropólogo Clifford Geertz, tendo em vista<br />

a atualidade de seu pensamento no que concerne ao assunto, ressaltando-se<br />

claramente que não possuímos a pretensão de absolutizar o termo.<br />

1.1 TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA: A PERSPECTIVA DE CLIFFORD<br />

GEERTZ<br />

Clifford Geertz (1926-2006), antropólogo norte-americano de notável<br />

influência na segunda metade do século XX, contribuiu para a reconstrução do<br />

conceito “cultura”, para o debate do relativismo cultural, além de ampliar e conectar<br />

suas reflexões a outras áreas, como história, política, direito, artes e literatura. Dessa<br />

forma, promoveu o desenvolvimento da antropologia moderna e o desencadeamento<br />

da antropologia pós-moderna. Sua dimensão hermenêutica rompeu com as<br />

estruturas metodológicas formais de estudo do meio antropológico, ao considerar<br />

que o homem e as relações humanas devem ser interpretados em suas<br />

particularidades culturais, e não sintetizados como se fossem leis gerais em uma<br />

espécie de Código Cultural. Nesse sentido, a abordagem semiótica da cultura revela<br />

que os fenômenos culturais são dotados de um conteúdo simbólico e,<br />

conseqüentemente, carregados de significados passíveis de serem interpretados de<br />

forma inteligível.<br />

A posição por uma teoria interpretativa da cultura é claramente visível nos<br />

argumentos do pensador. O trabalho antropológico é uma interpretação, isto é, uma<br />

leitura do objeto analisado, e não uma “construção de representações impecáveis de<br />

ordem formal”. 5 Dito de outro modo, a interpretação cultural, através do instrumento<br />

da prática etnográfica (a descrição densa), somente é possível pela aproximação de<br />

dados concretos. Ela é um ponto de vista articulado pelo próprio observador a partir<br />

da interpretação do(s) observado(s) e, por essa razão, nunca será completa, eis que<br />

apenas o “objeto” de estudo poderia revelar uma interpretação “pura”, já que faz<br />

parte de sua cultura. 6 Nesse sentido, o trabalho antropológico é uma interpretação<br />

de uma interpretação. Ao estudar uma comunidade indígena, pode-se dizer que o<br />

antropólogo depende das informações reveladas pelos nativos, seus “informantes”.<br />

4 Para uma noção geral sobre os ramos da Antropologia, consultar: DAMATTA, Roberto.<br />

Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 27-38;<br />

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 16-20.<br />

5 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 13.<br />

6 Ibidem, p. 11.<br />

4


Através dessa coleta de dados, o intérprete busca compreender a trama de<br />

significados. Assim, a interpretação não pode ser vista como uma lei, mas como uma<br />

compreensão de um fato particular, de uma comunidade particular, de uma cultura<br />

particular. 7 Seguindo essa linha de raciocínio, o ideal de Geertz pode ser<br />

demonstrado pelo seguinte trecho:<br />

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias<br />

de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas<br />

teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em<br />

busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do<br />

significado. 8<br />

Com efeito, tendo em vista a atualidade dessa discussão em relação ao<br />

estudo antropológico, em grande parte deste capítulo, serão apresentadas as idéias<br />

desenvolvidas por Clifford Geertz para uma melhor compreensão da cultura e,<br />

portanto, da diversidade cultural.<br />

1.1.1 Cultura: o conjunto de sistemas de símbolos significantes<br />

Uma das principais preocupações da Antropologia foi – e continua sendo – a<br />

definição do termo “cultura”. 9 Tal preocupação deve-se ao fato de que em torno<br />

desse conceito é que se estruturou todo o estudo do homem.<br />

Desde a antigüidade, inúmeros pensadores, tais como Confúcio, Heródoto e<br />

Tácito, 10 tentaram explicar a noção de cultura, com o intuito de compreender a<br />

diversidade humana. Entretanto, apenas em 1871 que as idéias foram<br />

sistematizadas, sendo pela primeira vez descrito o conceito científico da palavra,<br />

trabalho realizado pelo inglês Edward Burnett Tylor. 11 Após ele, diversos<br />

antropólogos se dedicaram a esse objetivo, cuja pluralidade de enfoques pode ser<br />

analisada nas escolas antropológicas do pensamento. 12<br />

Contudo, a maioria das formulações do conceito “cultura”, por serem um tanto<br />

abrangentes, mostrou-se demasiadamente confusa. Segundo Clifford Geertz, as<br />

noções amplas correm o risco de perder seu foco, frustrando o seu próprio sentido.<br />

Conforme o autor, as noções universais perdem sua força. Portanto, percebe-se que<br />

é de suma relevância delimitar e especificar o conceito cultura, a fim de que tal<br />

7<br />

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 11 e 21.<br />

8<br />

Ibidem, p. 4.<br />

9<br />

A opinião de Roque de Barros Laraia sobre o estudo da cultura é que: “provavelmente nunca<br />

terminará, pois uma compreensão exata do próprio conceito de cultura significa a compreensão da<br />

própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana”. (LARAIA, Roque de<br />

Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 63).<br />

10<br />

Ibidem, p. 10-11.<br />

11<br />

Para Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo inglês da corrente Evolucionista, “Cultura ou<br />

Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui<br />

conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos<br />

adquiridos pelo homem na condição de membro de sociedade”. (TYLOR, Edward Burnett. A ciência<br />

da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.<br />

69. Sobre a crítica de Clifford Geertz em relação ao referido autor, consultar p. 3 da obra A<br />

interpretação das culturas).<br />

12<br />

Neste trabalho não se pretende detalhar as diferentes contribuições das escolas antropológicas,<br />

limitaremo-nos em apenas citar as mais conhecidas: Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo,<br />

Estruturalismo, Antropologia Interpretativa, Antropologia Pós-Moderna ou Crítica.<br />

5


noção não perca seu conteúdo, torne-se mais esclarecedora e quiçá mais<br />

poderosa. 13 Por essas razões, Clifford Geertz expõe que:<br />

a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de<br />

comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem<br />

sido o caso até agora, mas como um conjunto de controle – planos,<br />

receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam<br />

de “programas”) – para governar o comportamento. [...] O homem é<br />

precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais<br />

mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas<br />

culturais, para ordenar seu comportamento. 14<br />

Diferentemente de Tylor, que define cultura utilizando a enumeração de itens,<br />

como um mero descritivismo – e aqui não desvalorizamos seu mérito, pois foi a partir<br />

de sua construção que o conceito se desenvolveu –, a concepção de Geertz tornase<br />

mais consistente, pois mesmo subjetivamente, define de forma simples e clara a<br />

expressão “cultura”, sem dissecar as “banalidades empíricas do comportamento”. 15<br />

Em suma, para Geertz, o conceito antropológico de cultura pode ser designado<br />

como um conjunto de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais,<br />

construídos historicamente, que orientam o comportamento humano, dando<br />

significado à sua experiência. 16<br />

Ao contrário do que é comumente pensada, a cultura não é apenas um<br />

detalhe característico que pode marcar um povo, como se o futebol representasse o<br />

brasileiro, a cuia, o gaúcho, o acarajé, o baiano e assim por diante. Conforme<br />

Geertz, a cultura não é simplesmente um acessório, mas um elemento essencial<br />

para a existência humana. 17 Os sistemas de símbolos significantes ou padrões<br />

culturais são, de acordo com o autor, uma espécie de “programa” ou um “gabarito” 18 ,<br />

no qual o homem norteia as suas decisões. Ressalta-se que o homem não é<br />

estritamente determinado por sua cultura, como se fôssemos fadados a viver de<br />

uma só forma. A gama de possibilidades de nossas decisões está inserida em uma<br />

espécie de gabarito cultural. Por essa razão, pode-se dizer, por exemplo, que<br />

preferimos escolher comer churrasco de gado à aranha grelhada.<br />

Para Geertz, “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser,<br />

finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver<br />

milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”. 19<br />

Assim, todas as pessoas são capazes de crescer em qualquer cultura, porém tendo<br />

crescido em uma específica, a ela se adaptará, pois a convivência com os símbolos<br />

correspondentes implica na sua absorção e, por conseguinte, no seu modo de vida.<br />

Conforme Geertz:<br />

É por intermédio dos padrões culturais, amontoados ordenados de símbolos<br />

significativos, que o homem encontra sentido nos acontecimentos através<br />

dos quais ele vive. O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais<br />

padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos<br />

13 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 3 e 28-31.<br />

14 Ibidem, p. 32-33.<br />

15 Ibidem, p. 33.<br />

16 Ibidem, p. 66 e 135.<br />

17 Ibidem, p. 34.<br />

18 Ibidem, p. 124.<br />

19 Ibidem, p. 33.<br />

6


de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de<br />

outra forma seria obscuro. 20<br />

Portanto, pode-se afirmar que a cultura modela o comportamento humano, na<br />

medida em que fornece símbolos, ou seja, diretrizes abrangentes de conduta e até<br />

mesmo tendências e reflexos sutis, os quais orientam a vida do homem. Sem tais<br />

“códigos”, a vida humana seria vazia de sentidos.<br />

1.1.2 Os elementos simbólicos e seus significados<br />

Como a cultura é um conjunto ordenado de sistemas de símbolos<br />

significantes, entendê-la importa assimilar o que são os símbolos. Já foi dito<br />

anteriormente que os símbolos orientam, coordenam e dão sentido ao<br />

comportamento humano. Mas, o que são eles?<br />

Em linhas gerais, “símbolo” é tudo aquilo que carrega em si um significado.<br />

Da mesma forma que a noção de cultura, o conceito de símbolo precisa ser<br />

delimitado. Geertz o especifica, referindo que:<br />

[...] ele é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou<br />

relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o<br />

“significado” do símbolo [...] são formulações tangíveis de noções,<br />

abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações<br />

concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças. [...] Os<br />

atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas simbólicas,<br />

são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como<br />

o casamento e tão observáveis como a agricultura. 21<br />

Os significados, segundo Geertz, “só podem ser ‘armazenados’ através de<br />

símbolos”. 22 Estes, por sua vez, podem ser expressos por uma atitude, um objeto<br />

concreto, uma relação ou até mesmo uma abstração. A mão abanando em direção a<br />

alguém que está partindo, o calendário, uma obra de arte, a palavra “amor”, uma<br />

música. Todos eles são símbolos carregados de um significado específico, isto é,<br />

que procuram “dizer algo”. Eis alguns exemplos de Geertz:<br />

O número 6, escrito, imaginado, disposto numa fileira de pedras ou indicado<br />

num programa de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo,<br />

falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze,<br />

dedilhado quando pendurado em uma corrente, e também é um símbolo a<br />

tela “Guernica” ou o pedaço de pedra chamada “churinga”, a palavra<br />

“realidade” ou até mesmo o morfema “ing”. 23<br />

Logo, os significados da cultura de um povo estão sintetizados e<br />

representados em símbolos, construídos pelo homem para que sua vida tenha<br />

sentido. Ressalta-se que os elementos simbólicos não podem ser confundidos com<br />

os atos, objetos e relações, aos quais o homem atribui os significados. Embora os<br />

primeiros confundam-se com os segundos, isto é, uma cruz simbolize a fé cristã, a<br />

cruz por si só não é a fé cristã, mas um objeto que a exprime a partir de sua<br />

utilização por crentes.<br />

20 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 150.<br />

21 Ibidem, p. 67-68.<br />

22 Ibidem, p. 93.<br />

23 Ibidem, p. 68.<br />

7


A interação de um símbolo com outro, dos símbolos entre si, forma um<br />

conjunto de sistemas de símbolos, os quais regulam e modelam as demais relações<br />

em que o homem está inserido. 24<br />

Segundo Geertz, os sistemas de símbolos, ou seja, os padrões culturais<br />

desempenham um papel mútuo: são modelos “da” realidade e modelos “para” a<br />

realidade. No sentido de modelo “da” realidade, as estruturas simbólicas modelam<br />

as relações físicas ou não-simbólicas. No segundo caso, no modelo “para” a<br />

realidade, as estruturas simbólicas é que são adaptadas às relações físicas ou nãosimbólicas.<br />

Fazendo-se um paralelo à atividade agrícola, no modelo “da” realidade, o<br />

homem elabora uma teoria sobre as condições climáticas, da acidez do solo, da<br />

necessidade de fertilizantes, etc., a fim de obter uma maior produtividade em sua<br />

plantação. Ao mesmo tempo, no modelo “para” a realidade, essa teoria é modelada<br />

de acordo com o desenvolvimento da referida plantação, isto é, de acordo com os<br />

resultados obtidos com as condições climáticas, da acidez do solo e da qualidade<br />

dos fertilizantes utilizados. Destaca-se que os modelos “da” e “para” a realidade não<br />

possuem um caráter cronológico, como se um precedesse o outro. Ao contrário, a<br />

relação entre “da” e “para” a realidade é mútua, paralela, assim como pode ser<br />

observado em relação ao exemplo da agricultura. Ao mesmo tempo em que o<br />

homem elabora sua teoria agrícola, ele observa a natureza, ou seja, a teoria molda o<br />

físico, bem como a teoria se ajusta ao físico. Desse modo, os símbolos assumem<br />

uma dupla função, qual seja, dar sentido à realidade, modelando-a e, igualmente,<br />

modelando a realidade a eles mesmos. 25 Nas palavras de Geertz:<br />

Diferentemente dos genes e outras fontes de informação não-simbólicas, os<br />

quais são apenas modelos para, não modelos de, os padrões culturais têm<br />

um aspecto duplo, intrínseco – eles dão significado, isto é, uma forma<br />

conceptual objetiva, à realidade social e psicológica, modelando-se em<br />

conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos. 26<br />

Apenas o homem possui uma ligação entre os modelos “da” e “para” a<br />

realidade. Isto é, diferentemente dos animais, os homens modelam a realidade e<br />

não apenas adaptam-se a ela. Portanto, a partir das observações do mundo em que<br />

está inserido, o homem procura tirar proveito dessas constatações, possibilitando<br />

desenvolver seu aprendizado. 27 É o acúmulo desses aprendizados, ou, nas palavras<br />

de Geertz, do “fundo acumulado de símbolos significantes” 28 , criado historicamente,<br />

que possibilita ao homem enriquecer sua própria cultura. Nesse sentido, os símbolos<br />

representam a essência do comportamento humano. Os símbolos possuem papel<br />

elementar na vida do homem e, por essa razão, os indivíduos têm uma dependência<br />

tão grande em relação a eles.<br />

1.1.3 Pensamento Humano e Diversidade Cultural<br />

Inúmeras pessoas acreditam que as diferenças culturais entre os seres<br />

humanos são produtos da composição genética. Existem teorias que sustentam que<br />

algumas raças e povos possuem atribuições hereditárias. Pode-se recordar, em<br />

24 CRAIK, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.<br />

25 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.<br />

26 Ibidem, p. 69.<br />

27 Ibidem, p. 70.<br />

28 Ibidem, p. 35.<br />

8


tempos não muito distantes, do nazismo, o qual propunha serem superiores os<br />

indivíduos da raça ariana. Além disso, muitas afirmações como estas se tornaram<br />

populares: “índio é preguiçoso”, “negro de canela fina é mais trabalhador do que o<br />

negro de canela grossa” ou “japoneses são mais inteligentes”. 29<br />

Da mesma forma, tal problemática pode ser exemplificada pela notícia<br />

veiculada em uma reportagem do programa Globo Repórter. Nela, os cientistas<br />

demonstram que a característica de infidelidade de homens e mulheres estaria<br />

relacionada a determinados genes, ou seja, pessoas com certos atributos genéticos<br />

estariam mais propensas a trair. Nesse sentido, argumentam os cientistas:<br />

A diferença entre fiéis e infiéis pode ter mesmo relação com os hormônios.<br />

Cientistas suecos e americanos estudaram o comportamento sexual de ratos<br />

que formavam pares e descobriram um gene presente no hormônio<br />

vasopressina que, até então, acreditavam controlar apenas a pressão<br />

sanguínea, mas que pode influenciar também nos relacionamentos. [...]<br />

“No ano passado, um grupo de cientistas publicou o primeiro trabalho em uma<br />

variação desse gene que é relevante para o comportamento dos homens. Os<br />

homens que têm a versão curta do gene tendem a ser mais promíscuos e<br />

mais infiéis, e homens que têm a versão longa do gene tendem a ser mais<br />

monogâmicos e a ficar mais vinculados em casa e a cuidar mais dos filhos”,<br />

explica o geneticista Renato Zamora Flores, da Universidade Federal do Rio<br />

Grande do Sul (UFRGS). 30<br />

Como é de se notar, a discussão do poder dos genes sobre o comportamento<br />

humano é ainda muito polêmica. Negar que a composição genética influencia os<br />

seres humanos soaria irrazoável. Contudo, a Antropologia, através de pesquisas,<br />

desmistifica a concepção de que tão-somente os genes são os elementos essenciais<br />

para a distribuição dos comportamentos. Assim, as diferenças genéticas não<br />

determinariam as diferenças culturais, de modo que, como no exemplo citado,<br />

homens comportar-se-iam diferentemente das mulheres não em razão de seus<br />

hormônios, mas porque a cultura lhes fornece uma gama de possibilidades de<br />

comportamentos e de identificações distintos. 31<br />

Por outro lado, há quem pense que a diversidade cultural é resultante da<br />

geografia. O tipo de clima, vegetação e outras condições naturais específicas do<br />

local onde um povo se instalou interfeririam fortemente na vida desse grupo<br />

humano, conduzindo-o de modo peculiar. Até mesmo condicionariam seu progresso.<br />

Essa doutrina surgiu na antigüidade, mas se desenvolveu e tornou-se conhecida no<br />

final do século XIX e início do século XX, sendo refutada por antropólogos como<br />

Franz Boas. Para ele, os fatores geográficos exercem influência limitada sobre as<br />

culturas. Tal doutrina também dificilmente responderia por que alguns povos com<br />

29<br />

Baseado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro:<br />

Jorge Zahar, 2008, p. 17.<br />

30<br />

REPORTAGEM EXIBIDA no dia 31 de julho de 2009 na rede Globo, às 22h30min. Disponível em:<br />

. Acesso em: 09 ago. 2009.<br />

31<br />

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />

2008, p. 19-20.<br />

9


condições geográficas muitíssimo semelhantes e até mesmo em distâncias próximas<br />

desenvolveram suas culturas de maneira tão discrepantes. 32<br />

Portanto, nem o determinismo biológico, nem o geográfico são suficientes para<br />

justificar a diversidade cultural. Claramente, o homem sofre influência de sua genética e<br />

do meio ambiente onde vive, porém não é determinado por esses aspectos, como se<br />

agisse com um caráter meramente receptivo a eles. Ambos são limitados. 33<br />

A perspectiva tradicional sobre a evolução biológica e cultural do homem<br />

refere que primeiramente o homem desenvolveu seu aparato físico para, somente<br />

após a finalização desse estágio, a partir de um “momento mágico”, começar a<br />

produzir e transmitir elementos culturais. 34<br />

Em oposição, Geertz afirma que a cultura sempre esteve presente na<br />

evolução do homem, sugerindo “não existir o que chamamos de natureza humana<br />

independente de cultura”. 35 Assim, o autor contesta a teoria do “momento mágico”<br />

ou do “ponto crítico”, julgando ser incorreta a tese de que o desenvolvimento total da<br />

biologia humana seria pré-requisito para a capacidade de acumulação cultural. 36 De<br />

acordo com Geertz:<br />

E torna-se evidente, de forma ainda mais crucial, que a acumulação cultural<br />

não só já estava encaminhada muito antes de cessar o desenvolvimento<br />

orgânico, mas que tal acumulação certamente desempenhou um papel ativo<br />

moldando os estágios finais desse desenvolvimento [...] a ferramenta de pedra<br />

ou o machado rústico, em cujo rastro parece ter surgido não apenas uma<br />

estatura mais ereta, uma dentição reduzida e uma mão com domínio do<br />

polegar, mas a própria extensão do cérebro humano até seu tamanho atual. 37<br />

Observa o autor, ainda, que não é possível traçar uma linha delimitando o<br />

homem “não-enculturado” do homem “enculturado” 38 , como se o próprio homem<br />

tivesse subitamente se promovido de “coronel” a “general-de-brigada” 39 . A evolução<br />

biológica deu-se de forma gradual juntamente com o acúmulo cultural, ambos<br />

influenciando-se mutuamente. 40 Dessa forma, a cultura foi ingrediente essencial para<br />

32 Segundo Franz Boas: “As condições ambientais podem estimular as atividades culturais existentes,<br />

mas elas não têm força criativa. O mais fértil solo não cria a agricultura; as águas navegáveis não<br />

criam a navegação; um abundante suprimento de madeira não produz edificações de madeira. Mas<br />

onde quer que exista agricultura, arte da navegação e arquitetura, todas essas atividades serão<br />

estimuladas e parcialmente moldadas segundo as condições geográficas”. Logo adiante o autor<br />

complementa: “Desse modo, é infrutífero tentar explicar a cultura em termos geográficos [...]<br />

Entretanto, as relações espaciais dão apenas a oportunidade para o contato; os processos são<br />

culturais e não podem ser reduzidos a termos geográficos”. (FRANZ, Boas. Antropologia cultural. 3.<br />

ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 61-62; BOAS apud LARAIA, Roque de Barros. Cultura:<br />

um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21-23).<br />

33 Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.<br />

24.<br />

34 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 34.<br />

35 Ibidem, p. 35.<br />

36 Ibidem, p. 45 e 60.<br />

37 WASHBURN, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 49.<br />

38 O significado que o autor imprime à palavra “enculturado” refere-se ao homem ser capaz de<br />

produzir e acumular cultura.<br />

39 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 47.<br />

40 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 46-47. Nesse sentido,<br />

observa Laplantine que o inato (biológico) e o adquirido (aspectos culturais) interagem<br />

10


a formação do homem, influenciando até mesmo seu aparato físico, mas<br />

principalmente a organização e refinamento do sistema nervoso central. Ressalta-se<br />

que o homem, nos seus primórdios, não havia ainda desenvolvido uma cultura no<br />

sentido de um conjunto de sistemas de símbolos significantes ordenados, o que não<br />

impede afirmar que já existiam resquícios culturais capazes de orientar o<br />

comportamento humano e, conseqüentemente, torná-lo cada vez mais dependente<br />

deles. 41<br />

No exemplo bem formulado de Geertz, sem cultura provavelmente os<br />

personagens da obra de William Golding, “O Senhor das Moscas”, não seriam<br />

selvagens inteligentes, “seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos<br />

instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros<br />

casos psiquiátricos”. 42<br />

Por conseguinte, a cultura interferiu e pode-se afirmar que continua<br />

interferindo na evolução da mente humana. Uma constatação recente é a da<br />

provável modificação da percepção cerebral provocada pela revolução dos meios de<br />

comunicação. Os acessos à internet estimulam os circuitos cerebrais e ativam o<br />

córtex pré-frontal, possibilitando aos indivíduos tomarem decisões rápidas diante de<br />

um grande volume de informações complexas. 43<br />

Assim, segundo Geertz, como um ser inacabado, o homem é complementado<br />

pela sua cultura, por suas particularidades culturais. 44<br />

Um pássaro, após nascer, ensaia seus primeiros vôos incertos, busca seu<br />

alimento, acomoda fios, gravetos e barro para a construção de seu ninho e acasalase<br />

basicamente através de seus instintos – os comandos de seus genes – e pelos<br />

estímulos externos, os quais ordenam suas ações para desempenhar tais<br />

atividades. O homem, por sua vez, para escolher sua companheira ou seu círculo de<br />

amizades, selecionar o alimento que lhe apetece e construir sua residência<br />

necessita muito mais das chamadas “fontes extrínsecas de informação” do que de<br />

“fontes intrínsecas”. 45 As fontes intrínsecas de informação são os nossos genes. Já,<br />

as fontes extrínsecas são os fatores externos ao corpo do ser humano, os quais não<br />

possuem ligação direta com os genes, ou seja, são os padrões culturais. 46 O<br />

homem, ao contrário do pássaro e de outros animais, se apóia muito mais em fontes<br />

não genéticas para se desenvolver. Nesse sentido, Geertz aduz que:<br />

Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de<br />

funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o<br />

preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa<br />

cultura. 47<br />

continuadamente. (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.<br />

17).<br />

41<br />

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 50.<br />

42<br />

Ibidem, p. 35.<br />

43<br />

LUZ, Lia. A internet transforma o seu cérebro. Veja, São Paulo, edição 2125, ano 42, n. 32, p. 96-<br />

99, 12 ago. 2009.<br />

44 GEERTZ, op. cit., p. 36.<br />

45 GALENTER; GERSTENHABER, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de<br />

Janeiro: LTC, 2008, p. 121.<br />

46 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36, 68, 121-124.<br />

47 Ibidem, p. 36.<br />

11


[...] Para construir um dique, o castor precisa apenas de um local apropriado<br />

e de materiais adequados – seu modo de agir é modelado por sua fisiologia.<br />

O homem, porém, cujos genes silenciam sobre o assunto das construções,<br />

precisa também de uma concepção do que seja construir um dique, uma<br />

concepção que ele só pode adquirir de uma fonte simbólica – um diagrama,<br />

um livro-texto, uma lição por parte de alguém que já sabe como os diques<br />

são construídos, ou então através da manipulação de elementos gráficos ou<br />

lingüísticos, de forma a atingir ele mesmo uma concepção do que sejam<br />

diques e de como construí-los. 48<br />

A capacidade humana provém da interação das fontes intrínsecas e das<br />

fontes extrínsecas de informação. O aparato genético determina frouxamente o ser<br />

humano, deixando lacunas na experiência humana a serem preenchidas pelos<br />

padrões culturais. Dessa forma, as fontes extrínsecas de informação, isto é, os<br />

sistemas de símbolos significantes, especificam o comportamento humano. 49<br />

Não há dúvidas que possuímos a capacidade de sorrir. No entanto, os<br />

sorrisos irônico, envergonhado, constrangido e tímido são essencialmente culturais.<br />

Como o sorriso, outros símbolos são criados pelo homem. A capacidade de criar<br />

símbolos e compreendê-los é que distingue o homem dos animais. 50 Além disso, o<br />

ser humano necessita aprender e continuar aprendendo. 51<br />

Ora, o pensamento humano não é uma ocorrência enigmática ou misteriosa,<br />

na qual não possamos descrever ou interpretar. Segundo Geertz, o homem pensa,<br />

apoiando-se em símbolos elaborados historicamente por sua cultura, os quais dão<br />

sentido à sua experiência. 52 E isto pode ser descrito pela Antropologia. Em<br />

conformidade com Geertz:<br />

Para tomar nossas decisões, precisamos saber como nos sentimos a<br />

respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas<br />

precisamos de imagens públicas [...] 53 Para obter a informação adicional<br />

necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de<br />

fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes. 54 Tornar-se<br />

humano é tornar-se individual, e nós nos tornarmos individuais sob a<br />

direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados<br />

historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção<br />

às nossas vidas. Os padrões culturais não são gerais, mas específicos. 55<br />

Assim, a cultura é o ingrediente essencial para a orientação do raciocínio;<br />

como antes referido, é um “gabarito”. Um indivíduo, ao refletir sobre o instituto do<br />

casamento, por exemplo, raciocina de acordo com os padrões de sua cultura, isto é,<br />

na forma como o casamento é realizado. Por esse motivo, muitos ocidentais<br />

estranham o modo como é procedido o casamento muçulmano no Oriente Médio.<br />

De um lado a monogamia, de outro, a poligamia. Seus sistemas ordenados de<br />

48 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.<br />

49 Ibidem, p. 33, 36, 69, 124.<br />

50 Ibidem, p. 48.<br />

51 Ibidem, p. 58.<br />

52 Ibidem, p. 150, 33, 36.<br />

53 Ibidem, p. 59-60.<br />

54 Ibidem, p. 35.<br />

55 Ibidem, p. 37.<br />

12


símbolos são diferentes e, assim, estranhos um ao outro. 56 Nesse sentido, nas<br />

simples palavras de Roque de Barros Laraia, percebe-se que “a cultura condiciona a<br />

visão de mundo do homem”. 57<br />

Concordando com Gilbert Ryle, Geertz afirma que o pensamento humano é<br />

primeiramente um ato público e secundariamente um ato privado. É basicamente um<br />

ato público, pois os indivíduos manipulam sua experiência a partir dos símbolos e<br />

seus significados, os quais são públicos. É a partir deles que particularmente o<br />

indivíduo constrói seu pensamento e toma suas decisões. 58 Conforme Geertz:<br />

os símbolos [...] são construídos historicamente, mantidos socialmente e<br />

aplicados individualmente 59<br />

O sistema nervoso humano depende, inevitavelmente, da acessibilidade a<br />

estruturas simbólicas públicas para construir seus próprios padrões de<br />

atividade autônoma, contínua. Isso, por sua vez, significa que o pensamento<br />

humano é, basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais<br />

objetivos da cultura comum, e só secundariamente um assunto privado. 60<br />

Portanto, o acesso às estruturas simbólicas permite ao homem guiar seu<br />

pensamento, deliberar sobre as suas ações e determinar a sua própria vida.<br />

Logicamente, por uma cultura abranger uma multiplicidade de padrões culturais, os<br />

indivíduos não participam ou, então, não compreendem todos eles. Ainda assim,<br />

para que sua vida torne-se viável em sociedade, o homem precisa dominar o mínimo<br />

de símbolos significantes, pois são eles que vinculam os indivíduos, tornam possível<br />

a sua existência. 61<br />

Igualmente, nesse contexto, cumpre salientar que a cultura é dinâmica. Isto é,<br />

segundo Roque de Barros Laraia, as características culturais não são imutáveis,<br />

mas sofrem alterações dentro da própria cultura, tendo em vista, por exemplo, os<br />

acontecimentos históricos de seu povo e, também, sofrem alterações externas, pela<br />

interação com outros sistemas culturais. 62 Diante de um mundo globalizado, torna-se<br />

fácil identificar essas modificações. O Brasil, por exemplo, através do contato com<br />

outras nações, importou palavras tais como “internet”, “hambúrguer”, “buffet”, entre<br />

outras. O indígena utiliza o celular e não deixa de ser índio. Nós aprendemos a falar<br />

francês e comemos sushi e, mesmo assim, não deixamos de ser brasileiros. Enfim,<br />

nenhuma cultura é estática, ela modifica-se ao longo do tempo pelo tráfico de<br />

símbolos significantes.<br />

56 Evidentemente existem muitos casais poligâmicos no Ocidente, como ocorre em algumas regiões<br />

nos Estados Unidos. No entanto, de uma forma geral, a prática mais comum é de que as uniões<br />

entre pessoas sejam monogâmicas. Destaca-se também que a religião exerce grande influência<br />

nesse aspecto.<br />

57 Para outros exemplos sobre como a cultura condiciona a visão de mundo do homem, consultar:<br />

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge<br />

Zahar, 2008, p. 67-74.<br />

58 RYLE, Gilbert, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p.<br />

121, 150-151.<br />

59 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 151.<br />

60 Ibidem, p. 61.<br />

61 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />

2008, p. 82.<br />

62 Ibidem, p. 94-101.<br />

13


Diante do exposto, fica mais claro agora pensar que a diversidade cultural não<br />

é produto dos fatores genéticos ou, então, da localização em que os grupos<br />

humanos se desenvolveram. A diversidade cultural é resultado dos diferentes tipos<br />

de interação do homem com o mundo. As relações específicas de um povo, tendo<br />

em vista sua história, a maneira de como criaram seus símbolos, classificaram seus<br />

elementos e organizaram suas experiências resultaram em conjuntos de sistemas<br />

de símbolos significantes diferenciados. 63 Nesse sentido, os homens foram ao<br />

mesmo tempo produtos e produtores de sua cultura e, portanto, essa mútua<br />

interação, através do processo de aprendizagem (por meio da linguagem), tornou<br />

viável a construção de diferentes culturas, as quais projetaram diferentes sentidos à<br />

vida dos seres humanos.<br />

Em suma, na perspectiva de Clifford Geertz, observa-se que a cultura, como<br />

um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais,<br />

construídos historicamente, é elemento essencial para o desenvolvimento do<br />

homem. Ela funciona como uma espécie de “gabarito” ou “programa”, no qual os<br />

indivíduos norteiam suas vidas, fazendo-os capazes de tomar suas próprias<br />

decisões. Dito de outro modo, o homem está atrelado a esta “teia”, pois são os<br />

símbolos e seus respectivos significados que imprimem sentido e razão à sua<br />

própria existência. É por esse motivo que Geertz salienta: “sem os homens<br />

certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito<br />

significativamente, sem cultura não haveria homens”. 64 A cultura é fundamental para<br />

a formação do ser humano.<br />

Assim, o que distingue o homem dos animais é a cultura, pois somente ele<br />

tem o poder de criar e assimilar os símbolos. Ademais, o que distingue os homens<br />

entre si não é a sua composição genética ou a geografia, mas sim a diferença da<br />

mútua interação entre os modelos “da” e “para” a realidade que cada povo percebeu<br />

e elaborou de maneira singular. Tal processo possibilitou, portanto, construções<br />

diversificadas de modelos simbólicos, refletindo nas diferentes visões de mundo que<br />

cada cultura possui e orienta seus indivíduos.<br />

1.2 ETNOCENTRISMO<br />

Quando uma cultura se defronta com outra é natural que deste encontro<br />

desperte um estranhamento. Isso porque, como já examinado, cada cultura imprime<br />

e entende de maneira peculiar os significados dos seus símbolos, os quais nem<br />

sempre coincidem com o conteúdo de outros universos simbólicos existentes. Não<br />

obstante, é possível notar que muitas vezes atribuímos os nossos próprios<br />

significados aos símbolos de outras culturas, ou seja, emitimos juízos valorativos a<br />

partir de nossa visão de mundo e nossa experiência em relação à diferentes culturas<br />

(o “outro”). Assim, tal estranhamento traduz nossa dificuldade em pensar o “outro”<br />

em seus próprios valores. Esse fenômeno é explicado por Everardo Rocha do<br />

seguinte modo:<br />

63<br />

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,<br />

1987, p. 24.<br />

64<br />

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36.<br />

14


Etnocentrismo é uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio<br />

grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos<br />

pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a<br />

existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de<br />

pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza,<br />

medo, hostilidade, etc. 65<br />

Pode-se afirmar que a visão sobre o “outro” a partir das concepções do “eu”<br />

esteve presente em toda a história da humanidade. Esse aspecto pode ser<br />

principalmente verificado na época dos descobrimentos, isto é, quando o<br />

desenvolvimento da navegação permitiu os primeiros contatos entre diferentes<br />

povos. Talvez, esses foram os momentos marcantes para se começar a pensar<br />

sobre a diferença. Referindo-se aos índios do Brasil, o escrivão Pero Vaz de<br />

Caminha descreve ao Rei de Portugal: “Assim, quando o batel chegou à foz do rio<br />

estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que<br />

lhes cobrisse suas vergonhas”. 66 Essa, dentre outras passagens, revela a<br />

perplexidade dos portugueses com a imagem dos indígenas; em outras palavras:<br />

como eles não se vestem como nós? Por que não cobrem suas “vergonhas”? 67<br />

Pero Vaz de Caminha também escreve a Dom Manuel:<br />

E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua<br />

fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza,<br />

fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual praza Nosso Senhor<br />

que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de boa simplicidade e<br />

gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar. 68 E,<br />

portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar na santa fé católica,<br />

deve intervir em sua salvação. 69<br />

Igualmente, os trechos citados manifestam a visão etnocêntrica do grupo do<br />

“eu” em comparação ao grupo do “outro”. Os portugueses, ao terem a pretensão de<br />

incorporar a fé cristã à cultura indígena, a fim de salvar os “bons selvagens” e tornálos<br />

mais “humanos”, consideraram a sua religião como a única ideal. Nesse sentido,<br />

o etnocentrismo pode ser percebido quando o “eu” eleva a sua visão e as suas<br />

características como superiores, mais corretas e mais naturais. Já o “outro” é visto<br />

como uma expressão do absurdo, do frágil ou do ininteligível. 70<br />

O etnocentrismo é um fenômeno que está presente em todas as sociedades e<br />

que pode ser considerado natural, uma vez que ele decorre do choque entre as<br />

culturas, ou seja, da constatação das diferenças. 71 Além disso, é um fato natural e/ou<br />

comum, pois a diferença do “outro” parece ameaçar a própria identidade cultural.<br />

Assim, o etnocentrismo até certa medida torna-se necessário, já que ele funciona<br />

como uma espécie de autodefesa ou força capaz de revigorar os elementos culturais<br />

65<br />

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 7.<br />

66<br />

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 9.<br />

67<br />

Eduardo Bueno traz à tona mais registros sobre as impressões entre os indígenas brasileiros e os<br />

navegantes lusos: BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998,<br />

v. 1, p. 94-102.<br />

68<br />

CAMINHA, op. cit., p. 46.<br />

69<br />

Ibidem, p. 47.<br />

70<br />

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.<br />

71<br />

Ibidem, p. 8; LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo<br />

Brasileiro, 1989, p. 333.<br />

15


de uma coletividade, afirmando e assegurando a identidade de um povo. Diante disso,<br />

apresenta-se o seguinte questionamento: o que seria de uma cultura se os indivíduos<br />

achassem os seus elementos inferiores, abdicando de sua própria identidade para<br />

emergir em outra cultura? Por essa razão, pode-se dizer que o sentimento de<br />

superioridade que caracteriza a visão etnocêntrica, observando-se alguns limites, é<br />

um fator positivo para o desenvolvimento de uma cultura. 72<br />

O etnocentrismo pode assumir várias feições, desde formas sutis, como o<br />

estranhamento diante dos diferentes modos de viver e pensar, e também formas<br />

extremas, como a intolerância cultural. Por conseguinte, ele é até certa medida<br />

aceitável, pois sua força pode tornar-se perigosa, sendo utilizada pura e<br />

simplesmente para menosprezar e reprimir o “outro”, negando-lhe condições para<br />

apresentar a si mesmo. 73 Em relação à dificuldade dos homens em encarar a<br />

diversidade das culturas, Lévi-Strauss comenta que:<br />

A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes<br />

mesmo da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas<br />

primitivas se autodesignam com um nome que significa “os homens” (ou às<br />

vezes – digamo-lo com mais discrição? – os “bons”, os “excelentes”, os<br />

“completos”), implicando assim que as outras tribos, grupos, ou aldeias não<br />

participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando<br />

muito, compostos de “maus”, de “malvados”, de “macacos da terra” ou de<br />

“ovos de piolho”. Chega-se freqüentemente a privar o estrangeiro deste<br />

último grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”. 74<br />

O próprio desenvolvimento da ciência antropológica é marcado por idéias de<br />

caráter etnocêntrico. Os pensadores da corrente evolucionista 75 , fortemente<br />

influenciados pela obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, acreditavam<br />

que a diversidade cultural poderia ser explicada em virtude das diferentes posições<br />

que os povos ocupariam nos denominados graus de evolução da humanidade.<br />

Segundo eles, todas as culturas enfrentariam obrigatoriamente três estágios de<br />

desenvolvimento: selvageria, barbárie e civilização. Assim, o parâmetro de<br />

“civilizado” para o pesquisador era, por exemplo, a existência de elementos<br />

tecnológicos em uma cultura. Contudo, o que é tecnologia? O pesquisador baseavase<br />

na sua noção do que é tecnológico, esquecendo-se que esta sequer existia em<br />

outras culturas. Conforme as críticas dirigidas a essa corrente, o erro do<br />

evolucionismo estaria em comparar e classificar as culturas de acordo com os<br />

critérios da sociedade do pesquisador, ignorando o contexto no qual os elementos<br />

da cultura analisada estariam inseridos. Porém, é de se ressaltar que o mérito do<br />

evolucionismo está em, ao menos, ter se proposto a refletir sobre o “outro”. 76<br />

72 SIMON, apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p.<br />

242-243; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.<br />

73 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 14; CUCHE,<br />

Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 48 e 243.<br />

74 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,<br />

1989, p. 334.<br />

75 Edward Burnett Tylor, James Frazer e Lewis Morgan foram os autores expoentes do Evolucionismo<br />

Cultural.<br />

76 Sobre a corrente evolucionista: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia<br />

Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 89-101; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é<br />

etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 25-36.<br />

16


No plano legislativo brasileiro, igualmente, essas idéias podem ser<br />

observadas. O antigo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos<br />

Trabalhadores Nacionais, criado em 1910 pelo Decreto n° 8.072, por exemplo, tinha<br />

como principal finalidade, apesar de aparentes benefícios, transformar o índio em<br />

um trabalhador rural, a fim de que ele pudesse “progredir” ao estágio “civilizado” da<br />

cultura dominante nacional. Em outras palavras, os indígenas eram considerados<br />

como um atraso ao desenvolvimento. O objetivo do projeto era o de integrar e<br />

assimilar de forma pacífica a cultura indígena pela cultura branca. 77<br />

Além disso, até pouco tempo o indígena não era considerado plenamente<br />

capaz para exercer pessoalmente todos os atos da vida civil. O artigo 6° do Código<br />

Civil de 1916 arrolava os indígenas como relativamente capazes, ao lado dos<br />

maiores de 16 e menores de 21 anos e dos pródigos. A imagem do índio “não<br />

civilizado” como um ser infantil, que necessita da tutela do Estado, pode ser notada<br />

no parágrafo único do referido artigo. 78<br />

É de se ressaltar também que, ainda hoje, o índio é visto como um<br />

personagem do folclore brasileiro que já deveria ter sumido da história do país. 79<br />

Essa posição etnocêntrica em relação às comunidades indígenas pode ser<br />

visualizada através do trecho do antropólogo Julio Cezar Melatti:<br />

Os brancos que vivem próximos das aldeias indígenas dedicam-se à coleta<br />

de borracha ou de castanha, à criação de gado, à agricultura e outras<br />

atividades, segundo as diferentes regiões. Sejam grandes empresários,<br />

trabalhadores rurais, camponeses, ou garimpeiros, estão sempre a disputar<br />

o território dos índios. O látex, a castanha, o pasto natural, a terra boa para<br />

a lavoura, a caça acham-se muitas vezes dentro da área de ação de<br />

sociedades indígenas. [...] os vizinhos das terras dos índios afirmam que<br />

eles são preguiçosos, cruéis, sujos. Ao chamá-los de preguiçosos,<br />

associam a isto a idéia de que os índios não aproveitam bem suas terras,<br />

que estas produziriam muito mais se pertencessem aos brancos; tal<br />

acusação serve também para justificar os salários baixos que dão aos<br />

índios ou em outras regiões onde há excesso de mão-de-obra, para lhes<br />

77 BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma<br />

hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,<br />

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 15 jul. 2009.<br />

78 O artigo 6° do Código Civil de 1916 dispõe: São in capazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à<br />

maneira de os exercer: I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts. 154 a<br />

156); II - os pródigos; III - os silvícolas. Parágrafo único: Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar,<br />

estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à<br />

civilização do País. Disponível em: . Acesso em: 14<br />

set. 2009; BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de<br />

uma hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,<br />

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 15 jul. 2009.<br />

79 Em relação à visão sobre os indígenas, destacamos o interessante trecho de Eduardo Viveiros de<br />

Castro: “A impressão que tenho é que o ‘Brasil’ até bem pouco não queria saber de índio, e sempre<br />

morreu de medo de ser associado, ‘lá fora’, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa<br />

há muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios<br />

continuam aí, e vão continuar. E, como vemos, eles começam devagarzinho a ser admitidos no<br />

Brasil oficial-midiático, agora que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar<br />

pela Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim”. (SZTUTMAN, Renato.<br />

Encontros Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 85).<br />

17


ecusar trabalho. Ao chamá-los de cruéis, justificam a crueldade que usam<br />

para com eles. Não raro se ouve dizer que o índio deve ser tratado a bala. 80<br />

A presente passagem demonstra como o grupo do “eu” constrói uma imagem<br />

distorcida do “outro”. Ao considerarmos como critério a nossa sociedade<br />

(desenvolvida, com elevado acúmulo de reservas), concebemos as comunidades<br />

indígenas como atrasadas, projetando, por exemplo, seu tipo de economia (de<br />

subsistência) como sinônimo de miséria e pobreza. Dito de outro modo, esquecemos<br />

o contexto no qual tais comunidades estão inseridas. 81<br />

Portanto, diante dos exemplos citados, percebe-se a necessidade de<br />

superação do pensamento etnocêntrico, caso não queiramos cair erros teóricos.<br />

Muito embora seja uma tarefa difícil, ao tentar analisar e compreender o “outro”, é<br />

importante exercitarmos o desprendimento das concepções da nossa própria<br />

cultura, atividade que é possível através da relativização.<br />

1.3 RELATIVISMO CULTURAL<br />

O relativismo cultural é um tema extremamente polêmico e, por essa razão,<br />

não é surpreendente que sobre ele suscitem inúmeras discussões. 82<br />

Conforme afirma Denys Cuche, o relativismo cultural é compreendido de três<br />

maneiras distintas: (a) como uma teoria, na qual é sustentado que cada cultura<br />

forma uma entidade separada das demais, cujas conseqüências mais radicais<br />

seriam a impossibilidade de comparação e de diálogo entre as outras culturas; (b)<br />

como um princípio ético, que exige uma absoluta neutralidade e respeito em relação<br />

à diversidade das culturas; (c) como um princípio metodológico, que privilegia uma<br />

abordagem compreensiva da diversidade, tendo-se em vista a análise completa do<br />

sistema simbólico das culturas. 83<br />

Embora existam essas três concepções sobre o relativismo cultural, para<br />

Denys Cuche, apenas a última é válida. Isso, porque a primeira noção não pode ser<br />

comprovada cientificamente, ou seja, não é razoável pensar que as diferentes<br />

culturas não podem ser comparadas entre si; e a segunda – da neutralidade ética –,<br />

porque serve, muitas vezes, como uma “máscara do desprezo”. 84<br />

Portanto, segundo o autor, o relativismo cultural deve ser considerado como<br />

um princípio metodológico. Nesse sentido:<br />

Recorrer ao relativismo cultural é postular que todo o conjunto cultural tem<br />

uma tendência para a coerência e certa autonomia simbólica que lhe<br />

80<br />

MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 255-256. Neste capítulo da<br />

obra, Melatti expõe também outras visões de como os índios são julgados: do ponto de vista<br />

romântico, da mentalidade estatística, burocrática ou empresarial. (Ibidem, p. 256-261).<br />

81<br />

SAHLINS, apud ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense,<br />

1984, p. 79-80.<br />

82<br />

Cumpre destacar que foi Franz Boas (1858-1942) o responsável pela concepção antropológica do<br />

relativismo cultural. Apesar de não ter cunhado a expressão, em seus textos é notável a idéia de<br />

que as culturas devem ser analisadas em suas particularidades. A primeira pessoa a utilizar a<br />

expressão “relativismo cultural” foi Melville Herskovits nos anos 1930. (CUCHE, Denys. A noção de<br />

cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 44 e 240).<br />

83<br />

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 239-241.<br />

84 Ibidem, p. 239-240.<br />

18


confere seu caráter original singular; e que não se pode analisar um traço<br />

cultural independentemente do sistema cultural ao qual ele pertence e que<br />

lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas, quaisquer que<br />

sejam a priori, sem compará-las e ou “medi-las” prematuramente em relação<br />

a outras culturas. 85<br />

Assim, o relativismo cultural não pode estar associado à trivial idéia de que<br />

“tudo é variável” ou “tudo deve ser aceito”, mas a de que os fatores de uma cultura<br />

necessitam ser primeiramente compreendidos em seus próprios termos, ou seja, a<br />

partir da lógica do sistema simbólico dessa mesma cultura e, vale dizer, não a partir<br />

da lógica do sistema do observador. 86<br />

Na mesma linha, Everardo Rocha destaca que relativizar é “não transformar a<br />

diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na<br />

dimensão de riqueza por ser diferença”. 87 Dessa forma, ao observar o “outro”, as<br />

concepções do grupo do “eu” não podem ser colocadas como o centro de tudo, ou<br />

seja, não podem ser absolutizadas ou universalizadas. Ao contrário, é importante<br />

que o “outro” seja analisado de acordo com os seus elementos, as suas<br />

características e os seus próprios problemas. 88 Ademais, ressalta o autor que o<br />

relativismo é um processo complicado, uma vez que devemos perder de vista<br />

nossas “certezas” etnocêntricas. Todavia, a postura relativizadora permite a reflexão<br />

sobre o “outro” e, até mesmo, a transformação da própria sociedade do “eu”. 89<br />

Em relação à postura de reflexão sobre o “outro”, Roberto DaMatta refere que<br />

essa atividade consiste basicamente no movimento de “transformar o exótico no<br />

familiar e/ou transformar o familiar em exótico”. 90 Eis o processo relativizador.<br />

Na transformação do exótico em familiar, pode-se afirmar que o pesquisador<br />

busca entender o universo de significação do sistema do “outro”, familiarizando-se,<br />

ou seja, conhecendo melhor os aspectos culturais que outrora pareciam exóticos,<br />

incompreensíveis e obscuros. O movimento inverso, a transformação do familiar em<br />

exótico, refere-se ao fato de o pesquisador descobrir o “outro” na sua própria cultura.<br />

Em outras palavras, trata-se de identificar e estranhar os elementos familiares que<br />

estão “petrificados” em nós, ou seja, de realizar um movimento de reflexão sobre<br />

nós mesmos a partir dessa diferença. 91 É justamente essa mútua relação entre o<br />

familiar e o exótico que proporciona a reflexão e, por conseguinte, o diálogo. 92<br />

85<br />

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 241.<br />

86<br />

Sobre esse aspecto, Roque de Barros Laraia ressalta que cada cultura tem a sua lógica própria. A<br />

transposição da lógica de um sistema cultural para outro caracteriza um ato etnocêntrico. Por essa<br />

razão, um traço cultural deve ser observado em conformidade com a coerência de seu próprio<br />

sistema cultural. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 87 e 91).<br />

87<br />

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 20.<br />

88<br />

Ibidem, p. 46.<br />

89<br />

Ibidem, p. 54, 73 e 93.<br />

90<br />

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,<br />

1987, p. 157.<br />

91 Ibidem, p. 157-158.<br />

92 Ibidem, p. 26-27, 158 e 162.<br />

19


Clifford Geertz, diante desse polêmico tema, assume a posição Anti Anti-<br />

Relativista. 93 Esta expressão quer indicar que o autor não possui a pretensão de<br />

defender o relativismo cultural, mas a de atacar o medo infundado que é mantido em<br />

relação a ele. Assim, a dupla negativa [Anti Anti-] refere-se, estritamente, a sua<br />

oposição ao pensamento anti-relativista. 94 Tal pensamento, para Geertz, além de<br />

atribuir conseqüências infundadas ao relativismo cultural, como, por exemplo, o<br />

niilismo (“ou tudo ou nada”) e o subjetivismo (“tudo depende da maneira como você<br />

vê as coisas”), dá uma solução errada a este problema antropológico, qual seja, a de<br />

que precisamos encontrar um aspecto (imutável) do ser humano que esteja acima<br />

da cultura, como a moral ou o conhecimento (a Razão), para, só assim, afastar os<br />

supostos fantasmas da abordagem relativista. 95 Todavia, mesmo que Geertz rejeite<br />

a posição anti-relativista, ele não quer assumir uma posição relativista como uma<br />

teoria antropológica. Nesse sentido, ele destaca que a inclinação relativista dos<br />

antropológicos recebe impulsos não tanto das teorias construídas a partir dos dados<br />

antropológicos (costumes, vestígios arqueológicos, crânios, léxicos, etc.), mas, sim,<br />

a partir destes mesmos dados. 96 Ou seja, o alerta dos relativistas sobre o perigo de<br />

nossas concepções teóricas e atitudes práticas estarem demasiadamente<br />

arraigadas em nossa cultura e, assim, impossibilitarem-nos de entrar em um diálogo<br />

autêntico com outras culturas, não precisa ser erigido ao status de uma teoria,<br />

porque a questão encontra-se em como viver com estes dados antropológicos, que<br />

colocam em questão, constantemente, a cultura na qual advém o antropólogo. 97<br />

Logo, retomando a idéia central do presente capítulo, pode-se afirmar que o<br />

relativismo cultural é um princípio metodológico ou, ainda, um exercício no qual se<br />

busca compreender como os povos deram e dão sentidos diversos aos modelos “da”<br />

e “para” a realidade. Relativizar significa abandonar a forma radical da visão<br />

etnocêntrica, na medida em que se busca interpretar a outra cultura a partir de seu<br />

próprio universo de significação.<br />

2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-<br />

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA<br />

Antes mesmo de adentrarmos na discussão propriamente dita do Projeto de<br />

Lei n° 1.057/2007, objeto deste trabalho, teceremos alguns breves delineamentos<br />

sobre a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem<br />

jurídico-constitucional brasileira, eis que ela está diretamente relacionada à<br />

justificação do referido projeto de lei. Cumpre ressaltar também que não nos<br />

deteremos a examinar a totalidade das normas que estão relacionadas ao problema<br />

proposto em nosso tema, pois isto envolveria uma análise teórico-jurídica muito mais<br />

ampla do que a prevista, como, por exemplo, a análise da relação entre os direitos<br />

previstos em convenções e declarações internacionais e a respectiva abertura<br />

material do catálogo dos direitos fundamentais da Constituição Federal, bem como<br />

as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, limitar-nos-<br />

93 GEERTZ, Clifford. Anti Anti-Relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:<br />

Jorge Zahar, 2001, p. 47-67.<br />

94 Ibidem, p. 47.<br />

95 Ibidem, p. 61-63.<br />

96 Ibidem, p. 49.<br />

97 Ibidem, p. 49 e 65.<br />

20


emos em refletir sobre o Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana,<br />

uma vez que ele irradia diretrizes a todo o ordenamento jurídico brasileiro.<br />

2.1 A NOÇÃO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-<br />

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA<br />

Definir o que seja a dignidade da pessoa humana não é uma tarefa fácil,<br />

tendo em vista a complexidade desta idéia. Isto se deve ao fato de que a dignidade<br />

possui um conceito extremamente impreciso, genérico, vago e ambíguo. 98 Contudo,<br />

há a necessidade de conceituá-la, da maneira mais explícita possível, mesmo que<br />

em linhas gerais. 99<br />

A dignidade da pessoa humana pode ser tida como a qualidade intrínseca de<br />

todo o ser humano, sendo o elemento que o identifica como tal, 100 sem distinções,<br />

ou seja, independentemente de suas características. 101 Como algo inerente a todo e<br />

qualquer ser humano, a dignidade é insubstituível, inalienável e irrenunciável, 102 não<br />

podendo, dessa forma, ser ela substituída, transferida ou mesmo abdicada. Note-se<br />

que a principal tarefa, aqui, é a procura de critérios de delimitação do conceito de<br />

dignidade da pessoa humana.<br />

Nesse sentido, ressalta Sarlet, a dignidade da pessoa humana não é criada,<br />

concedida ou retirada, mas sim reconhecida e protegida pelo Estado. 103 Em outras<br />

palavras, a qualidade que uma pessoa seja digna, não depende do Direito, já que a<br />

dignidade preexiste a ele. Ao mesmo tempo, a dignidade da pessoa humana pode<br />

ser violada e, por essa razão, ao Estado incumbe protegê-la e promovê-la. 104 Assim,<br />

a dignidade é tida como um princípio e não um direito em nosso ordenamento<br />

jurídico, já que não é concedida, mas reconhecida. 105 Sarlet explicita que a<br />

dignidade da pessoa humana deve ser entendida como norma (princípio e regra) e<br />

valor fundamental na ordem jurídico-constitucional. 106<br />

98<br />

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 44.<br />

99<br />

Não nos ateremos em expor aqui a perspectiva histórica da construção da noção de dignidade da<br />

pessoa humana, sendo que, para isso, pode ser consultada a obra de Ingo Wolfgang Sarlet:<br />

(Ibidem, p. 31-44).<br />

100<br />

SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na<br />

Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 45.<br />

101<br />

No contexto dos direitos humanos, Fábio Konder Comparato afirma que se trata de “algo que é<br />

inerente à própria condição humana, sem ligação com particularidades determinadas de indivíduos<br />

ou grupos”. (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 2005, p. 57).<br />

102<br />

DÜRIG; STERN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />

fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,<br />

2009, p. 47.<br />

103<br />

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 47.<br />

104<br />

Ibidem, p. 77-78.<br />

105<br />

Ibidem, p. 78.<br />

106<br />

Sobre o status jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana como norma (princípio e regra)<br />

e valor fundamental, Ingo Sarlet remete o pensamento a Robert Alexy e, em virtude da<br />

complexidade deste raciocínio, não o desenvolveremos aqui. Para isso, conferir: SARLET, Ingo<br />

Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988.<br />

7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 74-84.<br />

21


Em função disso, afirma-se que a dignidade da pessoa humana é, ao mesmo<br />

tempo, limite (função defensiva) e tarefa (função prestacional) do Estado. Limite,<br />

pois, como uma qualidade intrínseca e indisponível de todo o ser humano, obsta que<br />

o poder estatal venha ofendê-la, atuando como uma defesa. E, tarefa, pois ao<br />

Estado cumpre respeitar, preservar e proteger a dignidade da pessoa humana e, em<br />

especial, prestar e proporcionar condições para a sua concretização. 107 Ainda,<br />

aponta Sarlet, que a dignidade assume uma dimensão intersubjetiva, 108 ou seja, não<br />

é tarefa apenas do Estado protegê-la, promovê-la e não a violar, mas também da<br />

comunidade e das próprias pessoas. 109<br />

Em síntese, para Sarlet, a dignidade da pessoa humana pode ser designada<br />

como:<br />

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz<br />

merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da<br />

comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres<br />

fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de<br />

cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições<br />

existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover<br />

sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e<br />

da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido<br />

respeito aos demais seres que integram a rede da vida. 110<br />

Ressalta-se que a dignidade da pessoa humana, embora seja uma qualidade<br />

intrínseca ao ser humano, é concretizada através de um processo históricocultural.<br />

111 Retomando as idéias do capítulo anterior, a afirmação desta qualidade<br />

como um símbolo significante depende da interação dos modelos “da” e “para” a<br />

realidade, de tal modo que seu conceito está em constante desenvolvimento, sendo<br />

isto uma das razões pelas quais não possui um conteúdo fixo. É o contexto histórico<br />

e cultural de um povo que assegura e procura concretizar efetivamente este<br />

elemento intrínseco de cada ser humano. 112 Porém, tal elemento deverá valer para<br />

todo e qualquer ser humano protegido pelo ordenamento.<br />

Além disso, a dignidade da pessoa humana está intimamente ligada à<br />

liberdade. Isto diz respeito à possibilidade de o ser humano exercer sua autonomia e<br />

sua autodeterminação, isto é, de governar a si próprio, bem como definir sua<br />

107 PODLECH; SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />

fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,<br />

p. 52-53.<br />

108 KANT, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na<br />

Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 58.<br />

109 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 125.<br />

110 Ibidem, p. 67.<br />

111 HÄBERLE, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />

na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51.<br />

112 De acordo com Sarlet, a dignidade é a qualidade intrínseca ao ser humano, que preexiste ao<br />

Direito, mas que apesar disso “o grau de reconhecimento e proteção outorgado à dignidade da<br />

pessoa por cada ordem jurídico-constitucional e pelo Direito Internacional, certamente irá<br />

depender de sua efetiva realização e promoção” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa<br />

Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do<br />

Advogado, 2009, p. 76).<br />

Sobre este ponto convém lembrar a notável obra de Fábio Konder Comparato, que demonstra,<br />

através de documentos normativos, a construção histórica dos direitos do homem (COMPARATO,<br />

Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005).<br />

22


conduta e escolher as circunstâncias em relação à sua vida. 113 Sobre este aspecto,<br />

José Joaquim Gomes Canotilho refere-se à idéia de o indivíduo ser “conformador de<br />

si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual”. 114 Oportuno frisar<br />

que a dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida a todo o ser humano,<br />

mesmo que a pessoa não possa exercer sua liberdade de maneira autônoma, como<br />

é o caso, por exemplo, dos absolutamente incapazes (portadores de sérias doenças<br />

físicas e/ou mentais, nascituro). Por conseguinte, fala-se que a dignidade humana<br />

está relacionada ao potencial de liberdade. 115<br />

Observa-se, assim, que a dignidade da pessoa humana será efetiva se forem<br />

garantidos – não somente eles, mas principalmente – o direito fundamental à vida e<br />

à liberdade. Nas palavras de Sarlet, eles constituem as “exigências da dignidade da<br />

pessoa humana” (bem como os outros direitos e garantias fundamentais, na medida<br />

em que são concretizações daquela). 116 Nesse sentido, segundo o autor:<br />

Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser<br />

humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem<br />

asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade<br />

e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos<br />

fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não<br />

haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por<br />

sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. 117<br />

Portanto, embora tenhamos traçado em linhas gerais o conceito jurídico de<br />

dignidade da pessoa humana, percebe-se que o mesmo possui, segundo afirma<br />

Sarlet, um caráter multidimensional, 118 visto que a dignidade da pessoa humana é<br />

qualidade intrínseca de todo e qualquer ser humano, com uma dupla função (limite e<br />

tarefa), concretizada em um plano histórico-cultural, e que, como veremos no<br />

próximo tópico, é o princípio embasador do ordenamento jurídico brasileiro.<br />

2.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO E FIM DO<br />

ESTADO E A SUA RELAÇÃO COM OS <strong>DIREITO</strong>S FUNDAMENTAIS<br />

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagrou o valor da<br />

dignidade humana, ao reconhecer em seu preâmbulo e em outros artigos que o<br />

homem possui o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei. Este<br />

documento exerceu grande influência e, a partir disso, a idéia sobre o valor supremo<br />

da dignidade da pessoa humana passou a ser integrada expressamente em diversas<br />

cartas constitucionais. 119 Após um longo processo histórico, o homem figura o<br />

elemento primordial do Estado, isto é, que legitima e justifica o poder estatal.<br />

113 BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />

na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50.<br />

114 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:<br />

Almedina, 2000, p. 225.<br />

115 DÜRIG, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na<br />

Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50-51.<br />

116 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51.<br />

117 Ibidem, p. 65.<br />

118 Ibidem, p. 66.<br />

119 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo:<br />

Saraiva, 2005, p. 222-237.<br />

23


Conforme assinala Bleckmann, “é o Estado que existe em função da pessoa<br />

humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não<br />

meio da atividade estatal”. 120 Para Judith Martins-Costa “a pessoa, considerada em<br />

si e em (por) sua humanidade, constitui o ‘valor fonte’ que anima e justifica a própria<br />

existência de um ordenamento jurídico”. 121 E, segundo Canotilho:<br />

A dignidade humana como base da República significa o reconhecimento do<br />

indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste<br />

sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é<br />

o homem que serve os aparelhos político-organizatórios. 122<br />

Nessa mesma linha, tendo em vista que os direitos protegem a dignidade do<br />

homem, Robert Alexy destaca que:<br />

A observação aos direitos do homem é uma condição necessária para a<br />

legitimidade do direito positivo. Nisto, que o direito positivo deve respeitar,<br />

proteger e fomentar os direitos do homem para ser legítimo, portanto, ser<br />

suficiente à sua pretensão à exatidão, manifesta-se a prioridade dos direitos<br />

do homem. Direitos do homem estão, com isso, em uma relação necessária<br />

com o direito positivo, que está caracterizada pela prioridade dos direitos do<br />

homem. 123<br />

Em suma, o homem pelo simples fato de ser pessoa e, portanto, dotado de<br />

dignidade, não pode ser considerado como um objeto, ou seja, não pode ser<br />

instrumentalizado, servindo como meio do poder estatal. Ao contrário, é a dignidade<br />

da pessoa humana que possibilita e legitima o poder do Estado, uma vez que este<br />

está a serviço do homem, pois, como no pensamento de Kant, “o homem é um fim<br />

em si mesmo”.<br />

Em nosso ordenamento jurídico ela está prevista como princípio fundamental<br />

no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal. S egundo Sarlet, os princípios<br />

fundamentais possuem “a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda<br />

a ordem constitucional”. 124 Desse modo, a dignidade humana constitui o fundamento<br />

e o fim de nosso Estado Social e Democrático de Direito, 125 ideal estabelecido no<br />

caput do referido artigo.<br />

Nesse contexto, os direitos e garantias fundamentais são concretizações ou<br />

desdobramentos – em maior ou menor grau – do Princípio da Dignidade da Pessoa<br />

Humana, uma vez que se referem à proteção e desenvolvimento das pessoas. 126<br />

Assim, a dignidade de cada pessoa humana só pode ser exercida se lhe forem<br />

120<br />

BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />

na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 73-74.<br />

121<br />

MARTINS-COSTA, Judith. As interfaces entre o Direito e a Bioética. In: CLOTET, Joaquim (Org.).<br />

Bioética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 75.<br />

122<br />

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:<br />

Almedina, 2000, p. 225.<br />

123<br />

ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático: para a relação entre<br />

direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista da Faculdade<br />

de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 16, p. 208-209, 1999.<br />

124<br />

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 69.<br />

125<br />

Em relação ao conceito de Estado Social e Democrático de Direito, conferir: SILVA, José Afonso<br />

da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 112-122.<br />

126<br />

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Portugal: Coimbra, 2000, v. 4, p. 181.<br />

24


concedidos os direitos e garantias fundamentais, pois, por exemplo, como referido<br />

anteriormente, o direito à liberdade e à integridade física e moral (entre outros)<br />

constituem condições para uma vida digna. Por isso, os direitos fundamentais podem<br />

estar ligados direta ou indiretamente à dignidade da pessoa humana, lembrando que<br />

essa vinculação será mais ou menos intensa de acordo com a importância que o<br />

contexto histórico-cultural de determinada sociedade imprimir aos mesmos. 127 Nessa<br />

linha de raciocínio, Sarlet, com base no pensamento de Geddert-Steinacher, destaca<br />

que a violação de um direito fundamental implica também em uma violação à dignidade<br />

da pessoa humana, tendo em vista o vínculo sui generis estabelecido entre eles e dada<br />

a função da dignidade da pessoa humana como “elemento e medida” dos direitos<br />

fundamentais. 128<br />

2.2.1 A função integradora e hermenêutica do Princípio da Dignidade da<br />

Pessoa Humana<br />

Com efeito, sendo a dignidade da pessoa humana o fundamento da existência e o<br />

fim do próprio Estado, afirma-se que ela constitui um princípio de maior hierarquia<br />

axiológico-valorativa, sendo que a interpretação do ordenamento jurídico deve ser<br />

realizada com vistas a ela. Sobre este aspecto, cumpre referir que, apesar de o Princípio<br />

da Dignidade da Pessoa Humana assumir uma posição privilegiada em nosso<br />

ordenamento jurídico, Sarlet destaca, com base em Robert Alexy, que não existem<br />

princípios absolutos. Assim, não seria possível conceber sua prevalência de forma<br />

absoluta em todos os casos concretos. Havendo colisões, no momento da ponderação, a<br />

dignidade da pessoa humana poderá assumir diversos graus de realizações. 129<br />

Isso significa dizer que, mesmo não sendo princípio absoluto (pois nenhum o<br />

é), a dignidade da pessoa humana assume relevante função no ordenamento<br />

jurídico, pelo o que já exposto, servindo como elemento de conexão dos direitos e<br />

garantias fundamentais, bem como de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Em<br />

outras palavras, o referido princípio tem uma função de integrar o ordenamento<br />

jurídico, de tal forma que o mesmo revele-se coerente internamente como um todo.<br />

Ademais, ele revela-se como parâmetro para o processo de interpretação e<br />

aplicação das normas previstas em nosso sistema. 130 Nesse sentido:<br />

A dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos<br />

fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se<br />

justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de<br />

maior hierarquia axiológico-valorativa. 131<br />

Na medida em que serve de parâmetro para a aplicação, interpretação e<br />

integração não apenas dos direitos fundamentais e do restante das normas<br />

127 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 105.<br />

128 GEDDERT-STEINACHER, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />

fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 113.<br />

129 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 82-83 e 89. Em relação a este<br />

ponto, conferir: COELHO, Inocêncio Mártires. Princípio da dignidade da pessoa humana. In:<br />

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires (Org.).<br />

Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 172-177.<br />

130 NIPPERDEY, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />

na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 88.<br />

131 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 119.<br />

25


constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico, imprimindo-lhe, além<br />

disso, sua coerência interna. 132<br />

Tais afirmações podem ser constatadas em face dos limites que o Princípio<br />

da Dignidade da Pessoa Humana pode estabelecer em relação às restrições<br />

realizadas aos direitos fundamentais. 133 Ressalta-se também que o Princípio da<br />

Dignidade da Pessoa Humana pode estabelecer limites aos próprios direitos<br />

fundamentais 134 ou a outras normas previstas no ordenamento jurídico, levando-se<br />

em consideração a ocorrência de eventuais colisões. 135<br />

Portanto, verifica-se que pelo conteúdo e significado do Princípio da<br />

Dignidade da Pessoa Humana, o mesmo “atua simultaneamente como limite e limite<br />

dos limites”. 136<br />

Poder-se-ia, inclusive, dizer que – e aqui novamente retomamos os conceitos<br />

vistos no capítulo anterior –, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um<br />

símbolo de tamanha importância que, em virtude de seu significado e conteúdo,<br />

coordena a interpretação de todos os demais símbolos normativos do ordenamento<br />

jurídico brasileiro, assegurando uma coerência entre eles. Por essa razão, ela não<br />

está unicamente prevista no artigo 1°, inciso III d a Constituição Federal, mas<br />

também expressa ou implicitamente prevista em outras normas – principalmente nos<br />

direitos e garantias fundamentais.<br />

Diante do exposto neste capítulo, questiona-se, agora, sobre a possível<br />

relativização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, isto é, se ele pode ser<br />

aplicado no contexto cultural de algumas comunidades indígenas brasileiras, as<br />

quais possuem diferentes concepções sobre a vida, a morte e o ser humano. Sobre<br />

esta intrigante questão da diversidade cultural e da dignidade da pessoa humana<br />

Sarlet expõe que:<br />

Com efeito, é de perguntar-se até que ponto a dignidade não está acima<br />

das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a<br />

maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da<br />

pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos,<br />

encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de<br />

determinadas comunidades. 137<br />

132 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 88.<br />

133 Ibidem, p. 129.<br />

134 Em relação à limitação à restrição dos direitos e à limitação dos próprios direitos, afirma Sarlet que<br />

“o princípio da dignidade da pessoa humana serve como importante elemento de proteção aos<br />

direitos contra medidas restritivas. [...] Todavia, cumpre relembrar que o princípio da dignidade da<br />

pessoa humana também serve como justificativa para a imposição de restrições a direitos<br />

fundamentais, acabando, neste sentido, por atuar como elemento limitador destes”. (Ibidem, p.<br />

135).<br />

135 O assunto sobre a colisão entre princípios e direitos e a forma pela qual o conflito é resolvido<br />

(ponderação/proporcionalidade/proibição de retrocesso) no âmbito do ordenamento jurídico<br />

brasileiro não serão desenvolvidos no presente trabalho, em virtude da complexidade da questão.<br />

136 SARLET, op. cit., p. 135.<br />

137 A respeito do reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa humana numa ambivalência<br />

multicultural, o autor deixa o estudo em aberto. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa<br />

humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do<br />

Advogado, 2009, p. 62).<br />

26


Dessa forma, passaremos a expor o conteúdo do Projeto de Lei n°<br />

1.057/2007 e as suas justificativas para, assim, podermos refletir sobre a questão da<br />

diversidade cultural relacionada à temática do Direito e da Antropologia.<br />

3 <strong>APROXIMAÇÕES</strong> <strong>ENTRE</strong> <strong>DIREITO</strong> E <strong>ANTROPOLOGIA</strong>: UMA REFLEXÃO A<br />

PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/2007<br />

Até o momento, desenvolvemos as idéias concernentes aos dois panos de<br />

fundo de nosso trabalho: a noção de cultura como um conjunto de sistemas de<br />

símbolos significantes, assim como os elementos que estão ligados a ela, e a<br />

importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana para o<br />

ordenamento jurídico brasileiro. Este raciocínio foi necessário para agora<br />

compreendermos o Projeto de Lei n° 1.057/2007 e as questões que envolvem o<br />

debate entre Direito e Antropologia.<br />

3.1 O PROJETO DE LEI N° 1.057/2007<br />

Sabe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras sacrificam suas<br />

crianças em virtude, por exemplo, de serem portadoras de deficiência física e/ou<br />

mental, serem gêmeos, ou, ainda, serem filhos de mãe solteira ou viúva. Esses<br />

motivos, bem como as circunstâncias da prática e a escolha da decisão de eliminar<br />

a criança, seja pelo grupo seja pela própria mãe, são variáveis, dependendo da<br />

organização (do sistema simbólico) de cada comunidade. 138<br />

Foi diante desses fatos e de outros exemplos semelhantes relacionados ao<br />

tratamento das crianças que o Projeto de Lei n° 1.0 57 foi criado. Então, em maio do<br />

ano de 2007, ele foi apresentado pelo Deputado Henrique Afonso 139 e atualmente<br />

está tramitando na Câmara Federal, sujeito à aprovação. 140<br />

O Projeto ficou conhecido como “Lei Muwaji”, em homenagem à mãe da etnia<br />

Suruwahá (Amazônia), que impediu que sua filha Iganani fosse sacrificada por ter<br />

nascido com paralisia cerebral. Além disso, para que o Projeto de Lei ganhasse<br />

publicidade, o deputado federal Henrique Afonso utilizou-se do filme “Hakani”,<br />

reprodução da história de uma menina da etnia Suruwahá que teria sido salva do<br />

sacrifício pelo seu irmão. 141<br />

138 Ressalta-se que o presente trabalho não possui o intuito de descrever, analisar ou especificar os<br />

motivos das práticas, bem como a sua ocorrência, estatísticas, etc., pois, para isso, demandaria<br />

uma pesquisa entre as comunidades indígenas. Além do que, esses dados não são facilmente<br />

acessíveis em trabalhos ou sites do Governo. Por essa razão, nos ateremos em examinar o<br />

Projeto de Lei n° 1.057 de 2007 e as suas propostas . Para alguns exemplos em relação a esses<br />

acontecimentos nas comunidades indígenas, consultar: HOLANDA, Marianna Assunção<br />

Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena.<br />

2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais,<br />

Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 16-68.<br />

139 Henrique Afonso é componente do Partido Trabalhista do Acre. Sua área de atuação política pode<br />

ser conferida no Portal: . Acesso em: 04 set. 2009.<br />

140 Para acompanhar a tramitação do Projeto de Lei n° 1.057 de 2007, consultar:<br />

. Acesso em: 02 set. 2009.<br />

141 No Brasil, há principalmente duas organizações não-governamentais que atuam contra a prática,<br />

como elas mesmas denominam, do “infanticídio” indígena: ATINI ,<br />

e JOCUM . Tais organizações<br />

27


Pelo o que se depreende da leitura do Projeto de Lei n° 1.057/2007, seu<br />

alcance não se limita somente em inibir o que se convencionou a ser popularmente<br />

chamado de “infanticídio” indígena, mas visa também inibir, entre outras práticas, o<br />

abuso sexual e os maus-tratos a crianças. Sobre este aspecto, cumpre<br />

primeiramente destacar que, muito embora o termo “infanticídio” seja utilizado para<br />

impressionar e, ao mesmo tempo, abreviar a descrição de tal prática, como pode ser<br />

observado no próprio portal da internet do deputado Henrique Afonso, essa<br />

categoria não está incorporada ao texto legal. O artigo 2°, caput do referido Projeto<br />

de Lei, emprega a expressão “práticas tradicionais nocivas”, desvinculando-as,<br />

portanto, da conceituação do crime de infanticídio, previsto no Código Penal, posto<br />

que elas devem ser lidas de acordo com o artigo 231 da Constituição Federal.<br />

Assim, é oportuno ressaltar que o uso do termo “infanticídio” é inadequado ao se<br />

referir às práticas tradicionais indígenas, uma vez que ele se apóia na legislação<br />

penal brasileira, cujo símbolo significante da ação é diverso. Segundo o artigo 123<br />

do Código Penal, o crime de infanticídio significa “matar, sob o estado puerperal, o<br />

próprio filho, durante o parto ou logo após”. 142 O estado puerperal, conforme<br />

Guilherme Nucci é:<br />

O estado que envolve a parturiente durante a expulsão da criança do ventre<br />

materno. Há profundas alterações psíquicas e físicas, que chegam a<br />

transtornar a mãe, deixando-a sem plenas condições de entender o que<br />

está fazendo. [...] O puerpério é o período que se estende do início do parto<br />

até a volta da mulher às condições pré-gravidez. 143<br />

Portanto, na prática indígena não se trata, de modo algum, do ato de matar a<br />

criança sob o estado puerperal, senão por outros fatores que possuem origens<br />

culturais, constituídos por uma significação simbólica diferente.<br />

Do mesmo modo, como tais práticas não são vistas como criminosas, os<br />

autores diretos não são criminalizados. Ressalta-se, nesse sentido, que, ao contrário<br />

da posição de Rita Segato, 144 o Projeto de Lei n° 1.057/2007 procura inibir tais<br />

“práticas tradicionais nocivas”, uma vez que elas contrariam os direitos<br />

fundamentais, previstos no ordenamento jurídico brasileiro, e os direitos humanos,<br />

reconhecidos internacionalmente.<br />

A polêmica sobre a criminalização das práticas tradicionais é esclarecida no<br />

site do deputado federal Henrique Afonso: “O Projeto de Lei não pretende<br />

criminalizar o índio ou a mulher indígena e sim qualquer pessoa ou autoridade que<br />

tenha ou tinha conhecimento que uma criança corre ou corria o risco de morte e<br />

exerceram grande influência no Projeto de Lei. O filme “Hakani” foi produzido por David L.<br />

Cunningham, filho do fundador da organização JOCUM, e desde a sua veiculação tem recebido<br />

inúmeras críticas. O filme também foi transmitido na Câmara dos Deputados em 27/11/2008.<br />

. Acesso em: 04 set. 2009.<br />

142 BRASIL. Código Penal. 10. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 277.<br />

143 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 7. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 565.<br />

144 Em seu texto sobre o assunto, Rita Laura Segato diz o seguinte: “No me dedicaré aquí a hacer<br />

una crítica del Proyecto de Ley en términos jurídicos. Baste decir que he repetidamente indicado<br />

que esa ley ‘ultra-criminaliza’ el infanticidio indígena porque, por un lado, repite la sanción<br />

que pesan sobre acciones ya debidamente encuadradas en la Constitución y el Código<br />

Penal y, por el otro, incluye en la acusación no sólo a los autores directos del acto sino a<br />

todos sus testigos reales o potenciales, es decir, toda la aldea en que el acto ocurre, y otros<br />

testigos como, por ejemplo, el representante de la FUNAI, el antropólogo, o agentes de salud,<br />

entre otros posibles visitantes.” [grifos nossos]. [Material por e-mail pessoal], p. 6.<br />

28


nada fez ou faz para impedir o seu sacrifício”. 145 Portanto, pode-se dizer que o<br />

Projeto de Lei n° 1.057/2007 é, de certo modo, rela tivizador, pois compreende que<br />

tais práticas são tradicionais (e não crimes), sendo elas analisadas de acordo com o<br />

artigo 231 da Constituição Federal. Além disso, propõe que todas as medidas<br />

previstas no Projeto de Lei para o combate das práticas tradicionais nocivas serão<br />

realizadas através “da educação e do diálogo”, consoante o artigo 7°.<br />

A única pena estabelecida encontra-se no artigo 4° do Projeto de Lei e referese<br />

à omissão de socorro, a qual remete ao artigo 135 do Código Penal. Neste caso,<br />

em conformidade com os artigos citados e o artigo 3° do Projeto, qualquer pessoa<br />

(indígenas, antropólogos, agentes dos órgãos do Estado, visitantes, etc.) que souber<br />

de alguma prática tradicional nociva deverá comunicá-la a uma autoridade<br />

competente (FUNAI, FUNASA, Conselho Tutelar, autoridade judiciária ou policial),<br />

sob pena de ser responsabilizada. Caso as autoridades competentes não tomarem<br />

as devidas medidas em relação aos casos também incorrerão no crime de omissão<br />

de socorro, de acordo com o artigo 5° do mesmo Proj eto de Lei. 146<br />

O texto do Projeto de Lei n° 1.057/2007 dispõe sobr e “o combate a práticas<br />

tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas,<br />

bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais”. Por “práticas<br />

tradicionais nocivas” entende-se aquelas atentatórias à vida e à integridade físicopsíquica<br />

(das crianças). Nesse sentido, o artigo 2° visa coibir não apenas o<br />

“infanticídio”, mas elenca as práticas tradicionais nocivas em um rol exemplificativo,<br />

de acordo com a seguinte classificação: (a) homicídio de recém nascidos (incisos I a<br />

IX); (b) abuso sexual (inciso X); (c) maus-tratos (inciso XI); (d) regra em aberto<br />

(outras práticas tradicionais que, culposa ou dolosamente, ofendam a vida ou a<br />

integridade físico-psíquica da criança). Observa-se, portanto, que o referido Projeto<br />

não abrange apenas o denominado homicídio de recém-nascidos, mas também o<br />

abuso sexual e os maus-tratos, assim como práticas atentatórias, estendendo-se às<br />

crianças indígenas e às pertencentes a sociedades ditas não tradicionais. 147<br />

Em casos extremos, quando não houver um acordo entre as autoridades<br />

competentes e as partes envolvidas na prática, dispõe o artigo 6° que se deverá<br />

afastar os genitores do convívio da criança ou, então, retirá-la provisoriamente,<br />

mantendo-a em abrigos autorizados. O parágrafo único do mesmo artigo permite,<br />

ainda, que, no caso de ser frustrada a medida de afastamento, deve a criança ser<br />

encaminhada à adoção, tendo em vista a necessidade de preservação do direito<br />

fundamental à vida e da integridade físico-psíquica.<br />

145 Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2009.<br />

146 Poder-se-ia talvez aqui realizar um paralelo com o artigo 58 da Lei n° 6.001/1973 (Estatuto do Índio) , o<br />

qual não prevê punição ao indígena que adquire bebidas alcoólicas, mas a quem vender a ele. O<br />

referido artigo preceitua: “Art. 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena: [...] III –<br />

propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos<br />

tribais ou entre índios não integrados. Pena – detenção de seis meses a dois anos.” Disponível em:<br />

. Acesso em: 01 nov. 2009.<br />

Sobre a significação do uso de bebidas alcoólicas entre comunidades indígenas, conferir o<br />

trabalho de: CAMPOS, Jankiel de. Envio do artigo “O uso abusivo de bebidas alcoólicas entre os<br />

Macuxi e Wapishana de Roraima” (Jankiel de Campos) [Material por email pessoal]. Mensagem<br />

recebida por jankiel@prrr.mpf.gov.br em 09 maio 2009.<br />

147 Caberia, no entanto, perguntar aqui se o conceito de sociedades não-tradicionais englobaria as<br />

sociedades não-indígenas, já que o Projeto de Lei n° 1.057/2007 não o especifica.<br />

29


Dentre as principais justificativas teóricas do Projeto de Lei n° 1.057/2007 está<br />

a proteção à vida, eis que é o “direito por excelência”, bem maior a ser tutelado pelo<br />

ordenamento jurídico brasileiro. Em outras palavras, independentemente do sistema<br />

simbólico que o indivíduo está inserido, deve prevalecer o Princípio da Dignidade da<br />

Pessoa Humana, o direito fundamental à vida e à saúde em oposição, no caso, ao<br />

direito de exercer a prática tradicional que seria válida em virtude do direito ao<br />

reconhecimento da diversidade cultural. Por essa razão, estabelece o referido<br />

Projeto de Lei – e este é o ponto cerne da reflexão – que o artigo 231 da<br />

Constituição Federal deve ser interpretado em conformidade com o ordenamento<br />

jurídico brasileiro, e não de maneira isolada. Nesse sentido, prevê o artigo 1°:<br />

Reafirma-se o respeito e o fomento a práticas tradicionais indígenas e de<br />

outras sociedades ditas não tradicionais, sempre que as mesmas estejam<br />

em conformidade com os direitos humanos fundamentais, estabelecidos na<br />

Constituição Federal e internacionalmente reconhecidos.<br />

Por conseguinte, são reconhecidas as práticas tradicionais englobadas pelo<br />

artigo 231 da Constituição Federal, desde que as mesmas não infrinjam o<br />

ordenamento jurídico brasileiro. Salienta o texto do Projeto que as tradições são<br />

reconhecidas e devem ser respeitadas, no entanto, não são legitimadas quando<br />

violam os direitos humanos e fundamentais, conforme também preceitua o artigo 8°,<br />

n. 2, da Convenção n° 169 da OIT. Verifica-se, port anto, que há uma limitação ao<br />

direito constitucional de reconhecimento à diversidade cultural. Assim, o objetivo do<br />

Projeto de Lei é resguardar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,<br />

justificando-se em uma interpretação dos direitos e princípios constitucionais e das<br />

demais diretrizes de proteção à criança. É por isso, então, que foi desenvolvido o<br />

Capítulo anterior, a fim de expormos tal entendimento.<br />

Logo, cabe agora analisarmos as propostas do Projeto de Lei n° 1.057/2007 e<br />

as críticas dirigidas a ele.<br />

3.2 O OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE O PROJETO DE LEI N° 1.057/2007<br />

Como vimos, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 refere-s e à nocividade de<br />

algumas práticas tradicionais indígenas, com base no Princípio da Dignidade da<br />

Pessoa Humana. Porém, o que significam essas práticas para as próprias<br />

comunidades indígenas? A resposta a esta pergunta só pode ser realizada a partir<br />

de um trabalho antropológico e, como destacado anteriormente, não temos o intuito<br />

de trazer descrições sobre elas, até porque esta tarefa demandaria um estudo mais<br />

aprofundado, o qual não nos cabe aqui. Assim, para compreendermos melhor a<br />

necessária aproximação entre Direito e Antropologia, exporemos a pesquisa de<br />

Marianna Assunção Figueiredo Holanda, que evidencia a significação dos sistemas<br />

simbólicos de algumas comunidades indígenas em relação a determinados interditos<br />

da vida.<br />

Afirma a autora que a vida entre os ameríndios – de uma forma geral – é<br />

construída. É construída, pois é através do vínculo com a comunidade que a criança<br />

torna-se aos poucos pessoa: pela aquisição de alimentos, pelo cuidado, pela<br />

30


socialização, resumidamente, pelo saber “ser social”. 148 Nesse sentido, a construção<br />

da pessoalidade é “um processo contínuo de aprender a ser humano”. 149 Observase,<br />

assim, a importância do social e do coletivo para a concepção de vida ameríndia.<br />

De acordo com Marianna Holanda:<br />

[...] o projeto indígena de criação de vidas só se efetiva pela elaboração do<br />

social como um espaço de trocas, reciprocidades e interações. Fora disso<br />

não há social, não há possibilidade de vida humana sem vínculos afetivos,<br />

consangüíneos e/ou afins. Não há possibilidade de vidas nuas. 150<br />

Segundo Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, o corpo desempenha<br />

importante função para refletir a concepção de ser humano e para desenvolver a<br />

organização das sociedades indígenas brasileiras. 151 A idéia de indivíduo recai sobre<br />

o aspecto social e coletivo, tendo em vista que a noção de pessoa está atrelada à<br />

corporalidade, relação baseada nas trocas inter-pessoais de fluídos (sêmen, sangue,<br />

leite), de alimentos e na convivência social. 152 Nesse sentido, a pessoa é construída<br />

pela sociedade, ou seja, pelo processo de socialização. Portanto, nesses sistemas<br />

simbólicos, o nascimento implica em diversas transformações, afetando a vida<br />

prática dessas sociedades e as relações de parentesco e de troca. 153<br />

Dessa forma, por exemplo, os povos Araweté e Yanomami dão o nome à<br />

criança apenas quando ela está envolvida nos laços sociais, ou seja, quando ela<br />

consegue interagir com o meio social (falar, andar, alimentar-se, etc., de maneira<br />

autônoma). 154<br />

Ocorre que alguns recém-nascidos não possuem condições desse “saber<br />

ser”, pois estão impedidos, de alguma forma, de viver no grupo. Por essa razão,<br />

muitos deles não são considerados seres, são considerados não-humanos. 155 Em<br />

outras palavras, os “entes”, nesses casos, não existem. 156 Dentre as razões de as<br />

crianças não serem consideradas humanas, apresentam-se alguns fatos, como por<br />

exemplo, a criança não ter pai, 157 o número ideal de filhos e o planejamento familiar,<br />

148 Segundo Marianna Holanda, “uma criança que ‘nasce’ não é imediatamente feita humana e,<br />

portanto, a procriação não é garantia de parentesco. Isso porque, para eles, a consubstancialidade<br />

que nos faz consangüíneos e parentes não é fato, não é um dom, mas uma condição a ser<br />

continuamente produzida pelas trocas e relações”. (HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo.<br />

Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f.<br />

Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de<br />

Brasília, Brasília, 2008, p. 16).<br />

149 Ibidem, p. 17.<br />

150 Ibidem, p. 135.<br />

151 SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto; CASTRO, Eduardo Viveiros de. A construção da pessoa<br />

nas sociedades indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de Oliveira (Org.).<br />

Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987, p. 13.<br />

152 Ibidem, p. 20-21.<br />

153 HOLANDA, op. cit., p. 37-38.<br />

154 Ibidem, p. 27.<br />

155 Ibidem, p. 17.<br />

156 Marianna Holanda destaca que alguns neonatos, por carecerem do “saber ser”, não são inseridos<br />

nas relações sociais. Tal motivo justifica a sua denominação a eles como “entes”, ao invés de<br />

“seres”. (Ibidem, p. 17).<br />

157 IRELAND, apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos?<br />

Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em<br />

Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 25;<br />

REVISTA TERRA apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos<br />

31


a gemeleidade, a deficiência física e/ou mental, a preferência pelo sexo da criança, a<br />

criança ser concebida fora do casamento, os filhos de viúva, 158 entre outros.<br />

Conforme salienta Marianna Holanda, “são as relações que vão dizer quem<br />

está apto ou não a transformar-se, a humanizar-se ou a não fazer sentido<br />

socialmente”. 159 De acordo com José Otávio Catafesto de Souza, para os indígenas,<br />

a questão maior é a do sofrimento. Para eles, uma vida sofrida é uma vida indigna,<br />

razão pela qual a morte é vista como um mal menor. Assim também destaca Rita<br />

Segato, com base em alguns estudos, que em determinadas circunstâncias avaliase<br />

se a vida do neonato vale a pena ser vivida ou não. 160<br />

Logo, consoante Marianna Holanda, se a criança, devido a alguma das<br />

circunstâncias mencionadas, é considerada incapaz de se tornar humana, então,<br />

não poderá continuar vivendo. Nesse sentido, argumenta-se que não há morte e,<br />

portanto, não há crime, pois, para isso, a criança deveria ser considerada pessoa e,<br />

assim, pertencer à sociedade – o que não ocorre. 161 Afirma Marianna Holanda:<br />

Isso indica que, no intuito de pensar a negação do status de pessoa a alguns<br />

entes não estamos falando em morte, nem de crime, nem de movimento.<br />

O despertencimento do universo social é um processo tão gradual como a<br />

aquisição de humanidade; esta é, inclusive, a função dos ritos funerários,<br />

retirar o consubstancial. Ritos que não são efetuados para neonatos que<br />

nunca vieram a pertencer. Nenhuma marca social é registrada nestes entes.<br />

[...] Contudo, é justamente por estarem fora do sistema de relações que<br />

compõe o mundo, inclusive do sistema vida e morte, humanos e nãohumanos<br />

que, paradoxalmente, podem ser constitutivos de toda esta sóciológica<br />

ameríndia: eles falam de tudo que se ausentam. 162<br />

Ao contrário, ressalta a autora, se a criança já está socializada, se já pertence<br />

ao grupo, a retirada de sua vida significa a morte e, neste caso, são procedidos os<br />

rituais funerários 163 e a respectiva punição.<br />

Portanto, podemos perceber que a cultura indígena possui um sistema de<br />

símbolos significantes muito diferente do nosso. E é a partir desta tese que o olhar<br />

antropológico irá criticar o Projeto de Lei n° 1.05 7/2007. Agora, com o intuito de refletir<br />

melhor sobre o assunto, ordenamos as principais considerações de Rita Segato e<br />

Marianna Holanda, 164 restringindo-nos a explicar somente as críticas concernentes ao<br />

direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em<br />

Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 42.<br />

158<br />

HOLANDA, op. cit., respectivamente p. 48-49 e 64; 50-55 e 62-63; 59-60; 62; 61; 61.<br />

159<br />

Ibidem, p. 44.<br />

160<br />

SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />

Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />

ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />

globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material<br />

por e-mail pessoal], p. 9.<br />

161<br />

HOLANDA, op. cit., p. 44.<br />

162<br />

HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />

criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia<br />

Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 44.<br />

163<br />

Ibidem, p. 60.<br />

164<br />

Rita Laura Segato é antropóloga e professora da UnB e, em agosto de 2007, foi convocada pela<br />

Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso Nacional para participar da Audiência<br />

32


direito, tais como: (a) a necessária superação do pensamento monista do Estado; (b) o<br />

ideal universalista dos Direitos Humanos; (c) as práticas, as quais o Projeto de Lei n°<br />

1.057/2007 denomina como “nocivas”, não possuem o mesmo significado para as<br />

comunidades indígenas; (d) o Projeto de Lei “ultra-criminaliza” as práticas, pois legisla o<br />

que já foi legislado; (e) o caráter intervencionista e colonizador do Projeto de Lei; (f) as<br />

comunidades indígenas devem participar efetivamente na deliberação sobre uma lei, a<br />

qual elas estão englobadas; (g) o papel do Estado e a necessidade de um projeto de<br />

pluralismo jurídico no Brasil.<br />

Segundo Holanda, o direito ao reconhecimento à diversidade cultural só<br />

poderá ser efetivamente garantido se for superado o pensamento monista do<br />

Estado, ou seja, de que ele não é o único produtor de juridicidade. Tendo em vista<br />

as diferenças culturais, é de notar-se que não existe apenas uma única concepção<br />

do que é a vida, morte, ética e ser humano. 165 Ressalta a autora que o problema<br />

está na interpretação desses direitos tidos como universais, isto porque “a teia moral<br />

que balizou e sustenta os Direitos Humanos foi se constituindo também pela<br />

imposição de inumanidade às alteridades, sempre portadora de falhas morais a<br />

serem corrigidas”. 166 Assim, a imposição de valores universais tem por conseqüência<br />

a minimização das diferenças. Esse ideal de igualdade sustentado pelo Estado e<br />

dissociado da compreensão da alteridade reflete um racismo institucional, 167 que<br />

abafa a voz do “outro” e exige ao mesmo uma adaptação à forma do Estado, que<br />

nem sempre corresponde a sua própria forma de organização. 168 Em outras<br />

palavras, evidencia-se a postura etnocêntrica do Estado em relação às<br />

peculiaridades culturais dessas comunidades indígenas.<br />

Nesse sentido, algumas comunidades indígenas revelam possuir outra<br />

significação de vida e de morte, razão pela qual suas práticas não deveriam ser<br />

consideradas pelo Projeto de Lei n° 1.057/2007 como “nocivas”. Como já referido,<br />

pode-se dizer que a elaboração da vida para algumas comunidades indígenas se dá<br />

através da construção da rede social, na qual os indivíduos precisam ter condições<br />

de viver em comunidade. 169 Acerca deste tema, sustenta Segato:<br />

Constatamos una vez más, que no es la ignorancia lo que se esconde<br />

detrás de la diferencia en el tratamiento de la vida recién nacida en<br />

sociedades originarias del Nuevo Mundo, sino otra concepción de lo que es<br />

humano y de las obligaciones sociales que lo manufacturan. 170<br />

Pública sobre o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Maria nna Holanda é antropóloga e foi orientada por<br />

Rita Segato em sua dissertação de mestrado, trabalho já referido aqui. Por serem as pessoas<br />

envolvidas neste assunto e que possuem material publicado a respeito, exporemos suas idéias e<br />

críticas em relação ao referido projeto de lei.<br />

165 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />

criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia<br />

Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008. p. 143.<br />

166 Ibidem, p. 10.<br />

167 STAVENHAGEN, apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos<br />

direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em<br />

Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 10.<br />

168 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />

criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) –<br />

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 10-11.<br />

169 Ibidem, p. 135.<br />

170 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />

Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />

33


Ademais, para Rita Segato, o referido projeto de lei “ultra-criminaliza” as<br />

práticas indígenas, uma vez que estabelece diretrizes já previstas no ordenamento<br />

jurídico brasileiro, como as normas da Constituição Federal e do Código Penal, além<br />

das reconhecidas internacionalmente. 171 Assim, para a antropóloga, não haveria<br />

sentido promulgar uma lei com este conteúdo, porque isso implicaria em legislar<br />

sobre o que já está devidamente legislado. 172 Em sua opinião, o projeto de lei ligado<br />

às campanhas humanitárias promovidas por algumas organizações nãogovernamentais<br />

(como ATINI e JOCUM), que atuam em prol da vida das crianças<br />

indígenas, mascaram uma propaganda anti-indígena. Isso porque eles criam uma idéia<br />

de que os povos indígenas são bárbaros, ignorando a significação de seus sistemas<br />

simbólicos, com o fundamento de que as crianças devem ser salvas da incapacidade<br />

cultural de seus povos. Tal fato origina uma abertura para a intervenção, na qual muitas<br />

vezes ocorre de maneira inadequada. Nesse sentido, alega Rita Segato:<br />

Tanto las noticias plantadas por esta organización en diarios y revistas de<br />

amplia distribución nacional como la conmovedora entrada en el auditorio<br />

del Congreso en que se desarrollaba la sesión resultan naturalmente en una<br />

imagen de las sociedades indígenas como bárbaras, homicidas y crueles<br />

para con sus propios e indefensos bebés. Imagen contrapuesta a la de un<br />

movimiento religioso que afirma “salvar los niños” de pueblos que los<br />

asesinan. La legítima defensa de la vida de cada niño y el deseo de una<br />

buena vida para todos se transformaba así en una campaña proselitista<br />

anti-indígena y en la prédica de la necesidad de incrementar la supervisión<br />

de la vida en las aldeas. 173<br />

Igualmente, Marianna Holanda refere que:<br />

Isso faz das missões e da forma de atuação das missões um debate que<br />

deve ser posto na cena política nacional. A violência com que muitas delas<br />

atuam em aldeias indígenas no Brasil é encoberta por uma filantropia e<br />

protegida por uma moralidade que não se sustenta mais [...] Mudar as<br />

culturas “em seus aspectos sombrios e negativos” é o desejo trágico destas<br />

missões. [...] Um humanismo que insiste no que, por séculos, os Povos<br />

Indígenas no Brasil vêm demonstrando: que não se dobram à colonização<br />

persistente. 174<br />

ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />

globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008. p. 12.<br />

[Material por e-mail pessoal].<br />

171<br />

Em relação às diretrizes de proteção à criança que já possuiriam previsão legal, se poderia<br />

destacar: artigo 1°, inciso III (dignidade da pesso a humana); artigo 5°, caput (direito à vida); artigo<br />

5°, inciso III (tratamento desumano ou degradante); artigo 227, caput (dever do Estado em<br />

assegurar o direito à vida e à saúde às crianças) – todos da Constituição Federal; artigo 121<br />

(homicídio); artigo 129 (lesão corporal); artigo 135 (omissão de socorro); artigo 136 (maus-tratos) –<br />

todos do Código Penal; o artigo 7° (direito e prote ção à vida e à saúde); artigo 13 (maus-tratos);<br />

artigo 15 (dignidade da pessoa humana); artigo 17 (integridade física, psíquica e moral), todos do<br />

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069 de 1990). (SEGATO, Rita Laura. "Que cada<br />

pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo Jurídico en diiálogo didáctico con<br />

legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María<br />

Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e<br />

Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 6.<br />

172<br />

Ibidem, p. 14.<br />

173<br />

Ibidem, p. 5.<br />

174<br />

HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />

criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia<br />

Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 145.<br />

34


Aliás, este também é o posicionamento da Associação Brasileira de<br />

Antropologia, ao declarar que o Projeto de Lei n° 1 .057/2007 simboliza uma<br />

renovação do preconceito e, por isso, merece ser arquivado pelo Congresso<br />

Nacional. 175<br />

Conforme afirma João Pacheco de Oliveira, representando a Comissão de<br />

Assuntos Indígenas da ABA, as publicações sobre as práticas indígenas nos meios<br />

de comunicação (internet, televisão, revistas e jornais) demonstram nada mais do<br />

que um discurso desprovido de qualquer fundamentação científica, tornando-se uma<br />

perigosa estratégia retórica para criminalizar as comunidades indígenas, estando aí<br />

implícita a consideração da irracionalidade e da perversão desses povos. 176 O<br />

antropólogo compara tal discurso àquele da época da colonização da América, onde<br />

os atos eram justificados por diversas pretensões “humanitárias”. Por trás disso há,<br />

em realidade, interesses de intervenção. 177<br />

Da mesma forma, segundo o antropólogo, o Projeto de Lei n° 1.057/2007<br />

apóia-se em informações da mídia e registros não confiáveis. A questão que ele<br />

coloca é: como, então, legislar sobre o assunto, impondo um “parâmetro de<br />

fiscalização” e “outros modos de socialização” sobre essas coletividades? 178 Logo,<br />

João Pacheco de Oliveira declara:<br />

Tal intervenção pode resolver problemas de consciência de algumas<br />

pessoas, mas decididamente cria um falso problema e propõe soluções<br />

lastimáveis. Pior ainda, contribui para estimular uma visão negativa,<br />

ultrapassada e mesmo racista desse segmento da população brasileira. 179<br />

João Pacheco de Oliveira destaca ainda que a Declaração Universal dos<br />

Direitos do Homem serve como um instrumento para proteger os cidadãos, e não<br />

para afirmar a superioridade moral de alguns povos sobre outros. Nesse contexto,<br />

afirma que a Constituição Federal de 1988 teve justamente a proposta de romper<br />

com as barreiras autoritárias da tradição colonial, promovendo um Estado Social de<br />

Direito, ao reconhecer e proteger as coletividades culturalmente distintas. Contudo, o<br />

que aparenta estar acontecendo é que o Brasil está na “contramão da história”,<br />

renovando o preconceito através deste Projeto de Lei. Segundo o antropólogo, essa<br />

pretensão de um movimento interventor poderia ser convertida em um diálogo<br />

175 Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>. Infanticídio<br />

entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em:<br />

Acesso em: 25/06/2009. p. 4.<br />

176 O antropólogo João Pacheco de Oliveira afirma que atualmente as práticas em questão são raras<br />

entre as comunidades indígenas brasileiras e que não existem registros confiáveis e consistentes<br />

sobre elas. Além disso, comenta que o filme “Hakani”, veiculado no Youtube, trata-se de uma<br />

encenação produzida para obter fundos para as missões das instituições “pilantrópicas”.<br />

Ressalta-se que o objetivo deste trabalho não é investigar os dados etnográficos e estatísticos da<br />

questão, mas expor os debates teóricos em torno do tema.<br />

Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>.<br />

Infanticídio entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do<br />

preconceito? Disponível em: . Acesso em: 25 jun.<br />

2009, p. 1 e 3.<br />

177 Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>. Infanticídio<br />

entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em:<br />

Acesso em: 25 jun. 2009, p. 3.<br />

178 Ibidem, p. 3.<br />

179 Ibidem, p. 3.<br />

35


intercultural, o qual obviamente deverá contar com a efetiva participação das<br />

comunidades indígenas afetadas por esta polêmica discussão. 180<br />

De acordo com essa abordagem, Rita Segato alega que o Estado não possui<br />

legitimidade, capacidade e responsabilidade para intervir nas comunidades<br />

indígenas afetadas pelo Projeto de Lei n° 1.057/200 7. Diante desse pensamento, ela<br />

relembra as “cicatrizes” deixadas pelo impacto colonial sobre os povos indígenas,<br />

período profundamente marcado pela exploração, violência e ganância. 181<br />

Segundo Rita Segato, as conseqüências da promulgação deste Projeto de Lei<br />

seriam, no mínimo, nefastas. Em primeiro lugar, porque essas práticas, como o<br />

“infanticídio”, poderão virar emblemas da diferença, ou seja, essas práticas tornar-seiam<br />

um símbolo representativo com uma conotação extremamente negativa, sendo as<br />

comunidades indígenas “marcadas” e lembradas apenas por esses atos. Em segundo<br />

lugar, pois o cumprimento das diretrizes estabelecidas no Projeto de Lei poderá permitir<br />

a intervenção das forças públicas para vigiar e fiscalizar os atos das comunidades<br />

indígenas, interferindo, conseqüentemente, na sua autonomia e intimidade. 182<br />

Explica a antropóloga que o papel do Estado deveria ser mais o de proteger e<br />

promover a vitalidade dos povos indígenas, bem como a sua autonomia, do que<br />

atuar com um caráter preponderantemente punitivo e interventor. 183 O foco da<br />

discussão para Rita Segato é o direito dessas comunidades como sujeitos<br />

coletivos 184 , ou seja, o direito de condição como povos, o qual ainda não teria sido<br />

objeto de maior desenvolvimento no ordenamento jurídico brasileiro. 185 Assim, é<br />

necessária que seja restituída e garantida a liberdade às comunidades indígenas<br />

para que elas possam resolver seus próprios conflitos de acordo com seus usos,<br />

costumes e tradições. Só assim, continua Segato, será possível que esses povos<br />

dialoguem a seu modo com os parâmetros estabelecidos no Brasil e<br />

internacionalmente. 186<br />

180<br />

Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>. Infanticídio<br />

entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em:<br />

. Acesso em: 25 jun. 2009, p. 3.<br />

181<br />

Estes são alguns questionamentos colocados por Rita Segato: “¿Qué Estado es ese que hoy<br />

pretende legislar sobre como los pueblos indígenas deben preservar sus niños? ¿Qué estado es<br />

ese que hoy pretende enseñarles a cuidarlas? ¿Qué autoridad tiene ese Estado? ¿Qué<br />

legitimidad y qué prerrogativas? ¿Qué credibilidad ese Estado tiene al intentar, mediante esta<br />

nueva ley, criminalizar a los pueblos que aquí tejían los hilos de su historia cuando fueron<br />

interrumpidos por la violencia y la codicia de los cristianos?”. (SEGATO, Rita Laura. "Que cada<br />

pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo Jurídico en diálogo didáctico con<br />

legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María<br />

Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e<br />

Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 17 e 20).<br />

182<br />

Ibidem, p. 21.<br />

183<br />

Ibidem, p. 17-18.<br />

184<br />

Em relação ao direito ao reconhecimento da diversidade cultural, há a discussão sobre a<br />

legitimidade dos sujeitos coletivos de direito. Não abordaremos tal assunto aqui. Sobre isso,<br />

consultar: SOUZA, Rosinaldo Silva de. Direitos Humanos através da história recente em uma<br />

perspectiva antropológica. In: DE LIMA, Roberto Kant; NOVAES, Regina Reyes (Org.).<br />

Antropologia e Direitos humanos. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001, p. 47-79.<br />

185<br />

SEGATO, op. cit, p. 15.<br />

186 Ibidem, p. 18.<br />

36


Portanto, conforme expõe a autora, não cabe ao Estado, através da coerção,<br />

impor o curso que esses povos devem seguir. Ao Estado compete respeitar e<br />

proteger a capacidade que cada sistema simbólico possui, como sujeitos coletivos<br />

de direito, de construir a sua história, livre de intromissões autoritárias. 187 Nesse<br />

sentido, a posição final de Rita Segato é que o Projeto de Lei n° 1.057/2007, ao<br />

“criminalizar” as práticas aqui já mencionadas, coloca o “outro” em uma posição de<br />

inimigo, impedindo que as comunidades indígenas deliberem internamente sobre o<br />

curso de sua tradição, em outras palavras, que “teçam os fios de sua história”. 188 Em<br />

conformidade com a antropóloga:<br />

Por eso, esa ley es, antes que nada, anti-histórica, ya que una de las<br />

preocupaciones centrales de nuestro tiempo es la de valorizar y preservar la<br />

diferencia, la reproducción de un mundo en plural que, para existir, necesita del<br />

desarrollo del derecho de sujetos colectivos. Cuidar de ellos es central inclusive<br />

porque, a pesar de nuestras agresiones constantes en el curso de estos 500<br />

años, esos pueblos no solamente sobrevivieron mediante sus propias<br />

estrategias y lógicas internas, sino también porque es posible imaginar que nos<br />

superarán en esa capacidad de sobrevivencia. 189<br />

Além disso, Rita Segato discute que a tentativa de criminalizar as<br />

comunidades indígenas através deste Projeto de Lei viola o direito constitucional que<br />

garante e protege a diversidade cultural e desrespeita a autodeterminação e os<br />

Direitos Próprios desses povos, garantias asseguradas na Convenção 169 da OIT, a<br />

qual o Brasil ratificou. 190<br />

A ênfase, portanto, da crítica de Rita Segato está na legitimidade do Estado<br />

na intervenção, na desnecessidade de legislar sobre o que já está previsto no<br />

ordenamento jurídico brasileiro, na eficácia dessa pretensa criminalização e,<br />

também, na não-participação das comunidades indígenas na redação das leis, como<br />

é o caso do Projeto de Lei n° 1.057/2007.<br />

Diante dessas circunstâncias, a antropóloga aponta a necessidade de um<br />

projeto de pluralismo jurídico 191 no Brasil, isto é, a possibilidade de uma abertura<br />

para que os povos da nação resolvam e deliberem internamente sobre os seus<br />

conflitos e trilhem o seu próprio caminho. 192 Tendo em vista o mundo multicultural e<br />

globalizado da atualidade, nada mais sensato do que permitir a esses povos esta<br />

187<br />

SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />

Jurídico en diálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />

ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />

globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material<br />

por e-mail pessoal], p. 22.<br />

188<br />

Ibidem, p. 18.<br />

189<br />

Ibidem, p. 18.<br />

190<br />

Nas palavras de Rita Segato: “Esos datos imponen nuevos interrogantes al respecto de las<br />

motivaciones que los legisladores podrían entretener al insistir en una ley que criminaliza los pueblos<br />

indígenas y vuelve más distante su acceso a un Derecho Propio y a una jurisdicción propia para la<br />

solución de conflictos y disensos dentro de las comunidades, contraviniendo así el Convenio 169 de la<br />

OIT, plenamente vigente en Brasil desde 2002.” (Ibidem, p. 19).<br />

191<br />

Sobre o assunto do pluralismo jurídico, conferir a obra: WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo<br />

Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994.<br />

192<br />

SEGATO, op. cit, p. 20.<br />

37


garantia de liberdade, a fim de que não sejam objetos de ações fundamentalistas por<br />

outros setores da sociedade. 193<br />

Essa proposta, contudo, não significa que o Estado deverá ausentar-se. Ao<br />

contrário, seu papel deverá ser o de promover o diálogo entre os povos e os poderes<br />

estatais, assim como o diálogo interno. Em suma, a intervenção estatal será no<br />

sentido de restituir e garantir a liberdade das comunidades indígenas, através de um<br />

projeto de pluralismo jurídico, que possibilite a deliberação de forma justa e o<br />

exercício da justiça própria. 194<br />

Neste tópico, vimos que a discussão está baseada na interpretação do artigo<br />

231 da Constituição Federal. Por um lado, conforme a justificativa do Projeto de Lei<br />

n° 1.057/2007, tal artigo deve ser interpretado de acordo com o artigo 1°, III e com o<br />

artigo 5° da Constituição. Por outro, o olhar antropológico refere que os artigos<br />

mencionados devem ser lidos de acordo com o artigo 231, tendo em vista que a<br />

concepção de pessoa é relativa aos sistemas de símbolos significantes.<br />

Agora, passaremos a expor algumas propostas concernentes ao problema.<br />

3.3 O DIÁLOGO INTERCULTURAL E A HERMENÊUTICA DIATÓPICA<br />

Diante do polêmico assunto que expomos neste trabalho, é possível observar<br />

que um questionamento torna-se saliente: afinal, os direitos humanos e<br />

fundamentais poderiam assumir um caráter universal, no sentido de deverem estar<br />

presentes em todos os sistemas simbólicos da cultura brasileira, apesar das<br />

especificidades culturais?<br />

O Projeto de Lei n° 1.057/2007 é apenas um dentre o utros exemplos que<br />

poderíamos ter evidenciado sobre os casos que envolvem a problemática dos<br />

direitos humanos e fundamentais e a diversidade cultural e que indica a importante e<br />

necessária reflexão sobre o Direito e a Antropologia.<br />

Tentaremos desenvolver esse raciocínio a partir da tese de Boaventura de<br />

Souza Santos, a qual discute a aplicação dos direitos humanos em tempos de uma<br />

era globalizante. Ressaltamos que não temos o objetivo de fornecer respostas, mas<br />

de apenas impulsionar reflexões.<br />

Os direitos humanos tidos como universais, na visão de Boaventura de Souza<br />

Santos, são fruto da construção do mundo ocidental. 195 Essa construção concebe a<br />

193 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />

Jurídico en diálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />

ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />

globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material<br />

por e-mail pessoal], p. 20-21.<br />

194 Ibidem, p. 23.<br />

195 De acordo com a exposição de Boaventura de Souza Santos: “O conceito de direitos humanos<br />

assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais,<br />

designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a<br />

natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante da realidade; o indivíduo possui<br />

uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a<br />

autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como<br />

soma de indivíduos livres”. (PANIKKAR, apud SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção<br />

38


existência de uma natureza humana universal e a dignidade da pessoa humana<br />

como qualidade intrínseca. No entanto, percebe-se que outras culturas não<br />

compreendem a natureza humana e a dignidade humana da mesma forma, pois<br />

alguns povos sequer contemplam essas noções como direitos humanos. Nota-se,<br />

dessa forma, que os direitos humanos não são universais em sua aplicação. Desse<br />

modo, as políticas dos direitos humanos são políticas baseadas em pressupostos<br />

culturais específicos. 196 Nesse sentido, eles tendem a atuar como localismo<br />

globalizado, razão pela qual é indispensável um redirecionamento dos direitos<br />

humanos à forma do cosmopolitismo.<br />

Para Boaventura de Souza Santos, a globalização, a partir de uma<br />

perspectiva social, cultural e política, compreende-se em diferentes conjuntos de<br />

relações sociais e, por serem diferentes, geram também diferentes modos de<br />

globalização. Por essa razão, segundo o autor, existem fenômenos de<br />

globalizações, no plural, e não no singular. Seguindo este raciocínio, há quatro<br />

modos de produção de globalização que dão origem a quatro formas de<br />

globalização: (a) o localismo globalizado, que ocorre quando um fenômeno local<br />

consegue se estender ao resto do globo, como é o caso dos fast-food, por exemplo;<br />

(b) o globalismo localizado, que ocorre quando um fenômeno global causa impacto<br />

nas condições locais e, assim, essas passam a se adaptar com o novo imperativo,<br />

como por exemplo, a transformação da agricultura de subsistência em agricultura do<br />

tipo exportação; (c) o cosmopolitismo, que ocorre quando as formas de dominação<br />

transnacional são utilizadas de forma não imperativa em prol dos interesses comuns<br />

dos Estados-nação, como é o caso das ONG´s; (d) o patrimônio comum da<br />

humanidade, processo no qual abrange todo o globo, como a discussão sobre a<br />

escassez dos recursos naturais. Diante disso, Boaventura de Souza Santos<br />

classifica as globalizações em: de-cima-para-baixo, isto é, com pretensões<br />

hegemônicas (localismo globalizado e globalismo localizado), e as globalizações debaixo-para-cima,<br />

ou seja, com pretensões contra-hegemônicas (cosmopolitismo e<br />

patrimônio comum da humanidade). 197<br />

Esse raciocínio se faz necessário para entender a tese de Boaventura de<br />

Souza Santos. Segundo o autor, os direitos humanos podem assumir essas formas<br />

de globalização. Contudo, é necessário que a concepção de direitos humanos revele<br />

a forma de cosmopolitismo, ou seja, como uma globalização contra-hegemônica que<br />

opere de-baixo-para-cima. O autor pensa os direitos humanos não como universais,<br />

mas como multiculturais. Este projeto é proporcionado pelo diálogo intercultural e<br />

através do que ele denominou de “hermenêutica diatópica”. 198 Nas palavras de<br />

Boaventura de Souza Santos:<br />

A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos<br />

universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo<br />

multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de<br />

Cultura Contemporânea, n. 39, p. 112, 1997).<br />

Sobre este aspecto, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />

fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.<br />

31-44.<br />

196 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua<br />

Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 107 e 112,<br />

1997.<br />

197 Ibidem, p. 107, 109-111.<br />

198 Ibidem, p. 107, 109-111.<br />

39


globalizado – uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre<br />

um instrumento de “choque de civilizações”[...]. A sua abrangência global<br />

será obtida à custa da sua legitimidade local. 199<br />

Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização<br />

de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser<br />

reconceitualizados como multiculturais. 200<br />

Conforme o autor, “todas as culturas tendem a considerar os seus valores<br />

máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a<br />

formulá-los como universais”. 201 Dito de outro modo, cada cultura considera seus<br />

símbolos significantes como os mais abrangentes, entretanto, é característica do<br />

ocidente querer elevar a sua validade ao resto do mundo e, aqui, poderíamos<br />

arriscar em dizer que, talvez, essa atitude demonstra um caráter etnocêntrico.<br />

Assim, à medida que os direitos humanos operarem sob o aspecto universal, isto<br />

é, atuarem como localismo globalizado, pretendendo atingir um âmbito global<br />

(globalização de-cima-para-baixo/hegemônica), a sua abrangência e aplicação se dará<br />

“à custa da sua legitimidade local”, ignorando, muitas vezes, as peculiaridades culturais<br />

dos outros povos, a partir da imposição de valores ao restante do mundo. 202<br />

Por tal razão, de acordo com Boaventura de Souza Santos, os direitos<br />

humanos devem assumir uma política progressista e emancipatória com âmbito<br />

global e legitimidade local. 203 O que isso significa? Significa dizer que os direitos<br />

humanos necessitam operar como forma de cosmopolitismo, isto é, como<br />

globalização contra-hegemônica, assumindo uma dimensão multicultural, ao invés<br />

de universal.<br />

Tendo em vista que o multiculturalismo é requisito para uma vinculação<br />

harmônica entre as relações globais e locais, ele proporcionaria uma política contrahegemônica<br />

de direitos humanos. 204 Logo, para transformar os direitos humanos<br />

universais, ou seja, aqueles decorrentes do localismo globalizado ou de uma<br />

globalização hegemônica (globalização de-cima-para-baixo) em direitos humanos<br />

multiculturais, isto é, aqueles decorrentes do cosmopolitismo ou de uma<br />

globalização contra-hegemônica (globalização de-baixo-para-cima) é preciso do<br />

diálogo intercultural.<br />

De acordo com Santos, o diálogo intercultural caracteriza-se pela troca de<br />

saberes entre universos de sentido diferentes, 205 ou podemos dizer, entre diferentes<br />

sistemas de símbolos significantes. Para que isso ocorra, em primeiro lugar, é<br />

importante: (a) reconhecer que todas as culturas possuem noções de dignidade<br />

humana, embora diversas, mas de forma inteligível; e, principalmente, (b)<br />

reconhecer a incompletude de cada cultura em relação a essas concepções. 206<br />

Dessa forma, é possível construir uma concepção multicultural de direitos humanos,<br />

199 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua<br />

Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 111, 1997.<br />

200 Ibidem, p. 111-112.<br />

201 Ibidem, p. 112.<br />

202 Ibidem, p.111.<br />

203 Ibidem, p. 105 e 107.<br />

204 Ibidem, p. 112.<br />

205 Ibidem, p. 115.<br />

206 Ibidem, p. 114.<br />

40


que “em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação<br />

de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e que se constitui em redes de<br />

referenciais normativas capacitantes”. 207 Trata-se, portanto, de uma concepção de<br />

direitos humanos com âmbito global e com legitimidade local.<br />

Ressalta-se que a proposta de um diálogo intercultural é viabilizada através do<br />

que o autor denominou de “hermenêutica diatópica”. Segundo Boaventura de Souza<br />

Santos, os universos de sentido de cada cultura são compostos por topoi forres,<br />

“lugares comuns teóricos mais abrangentes”, ou seja, premissas de argumentação.<br />

Através dos topoi de cada cultura é possível propor uma produção e troca de<br />

argumentos, isto é, estabelecer o diálogo intercultural. 208 Isso significa que, por<br />

exemplo, a partir das premissas de argumentação sobre dignidade humana de uma<br />

cultura estabelece-se o diálogo com as premissas de argumentação sobre dignidade<br />

humana de outra cultura, como em nosso caso, entre noções indígenas e nãoindígenas<br />

de dignidade humana. Pode-se dizer que ocorre um intercâmbio de<br />

símbolos significantes, ocasião em que cada cultura vê-se a explicar e a justificar os<br />

significados dos símbolos de seu sistema.<br />

A tese de Boaventura de Souza Santos centra-se na idéia de que nenhuma<br />

cultura é completa. Segundo o autor, por mais fortes que sejam os argumentos –<br />

topoi –, eles são tão incompletos, assim como a sua própria cultura. Nesse sentido,<br />

a hermenêutica diatópica seria um instrumento capaz de auxiliar na compreensão da<br />

incompletude dos elementos culturais ou sistemas simbólicos, sem, no entanto, ter a<br />

pretensão de que o diálogo intercultural proporcione a sua completude, pois isso<br />

seria algo impossível. 209 Ao contrário, esse esforço possuiria a ambição de ampliar a<br />

consciência sobre a incompletude de ambas as culturas e, por essa razão, revelar a<br />

necessidade do alargamento do diálogo, “com um pé numa cultura e outro, noutra”.<br />

Eis o caráter diatópico.<br />

Fazendo uso do pensamento de Ruth Benedict, no qual “a cultura é como<br />

uma lente através da qual o homem vê o mundo”, se poderia afirmar que nenhuma<br />

cultura consegue enxergar o mundo sozinha. Todas elas sofreriam de uma miopia,<br />

motivo pelo qual necessitariam dos óculos do “outro”, isto é, do diálogo intercultural<br />

e de um tráfico de símbolos significantes, proporcionando até mesmo uma<br />

(re)significação de seus próprios símbolos.<br />

Portanto, um dos pressupostos para o diálogo intercultural é o<br />

reconhecimento das incompletudes mútuas. 210 Assim, a hermenêutica diatópica<br />

207<br />

SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua<br />

Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 107, 109-115,<br />

1997.<br />

208<br />

Ibidem, p. 115.<br />

209<br />

Ibidem, p. 116.<br />

210<br />

O autor fornece exemplos sobre os topoi dos direitos humanos na cultura ocidental, de dharma na<br />

cultura hindu e de umma na cultura islâmica, demonstrando que todas essas noções possuem<br />

incompletudes em si. Segundo Santos: “A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza<br />

fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o<br />

indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao<br />

narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e<br />

islâmica deve-se ao fato de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma<br />

dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade<br />

41


torna-se um procedimento que engloba um trabalho mútuo, isto é, que envolve a<br />

construção de conhecimento por diversas culturas. 211<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O conceito antropológico de “cultura”, tal como concebido por Clifford Geertz,<br />

indica um conjunto de sistemas de símbolos significantes, construídos<br />

historicamente. A partir desta perspectiva, a diversidade cultural apresenta-se como<br />

as diferentes interações dos grupos humanos com os modelos “da” e “para” a<br />

realidade. A tarefa antropológica constitui-se, assim, na interpretação de diferentes e<br />

peculiares maneiras de como cada cultura elabora e organiza o seu universo de<br />

símbolos e seus respectivos significados.<br />

Com efeito, neste trabalho pôde-se perceber, através da pesquisa de<br />

Marianna Holanda, que algumas comunidades indígenas brasileiras concebem e<br />

compreendem diferentemente as noções de ser humano, de vida e de morte,<br />

comparativamente à cultura não-indígena, visto que esses símbolos possuem outras<br />

significações.<br />

Não obstante, a justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 centra-se na<br />

exigência da interpretação do artigo 231 da Constituição Federal de acordo com o<br />

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os direitos fundamentais, além de<br />

outras normas de proteção à infância, englobadas no ordenamento jurídico<br />

brasileiro. Isto significaria, a partir do olhar antropológico, a exigência de uma<br />

mesma interpretação ou atitude em relação ao ser humano entre diferentes culturas.<br />

Por outro lado, pode-se afirmar que algumas comunidades indígenas interpretariam<br />

os artigos 1º, inciso III e 5º da Constituição Federal de modo radicalmente diferente,<br />

uma vez que sua concepção de ser humano é compreendida de outra forma.<br />

Observa-se, portanto, um embate gerado pela transposição de categorias de um<br />

sistema simbólico a outro. No entanto, tal embate não traz como conseqüência a<br />

existência de diferentes ordenamentos jurídicos.<br />

Não é de se negar, que existam diferentes culturas em nosso país e que elas<br />

possuem outros universos de significação. Com isso não se quer dizer que as<br />

mesmas não estejam englobadas e protegidas pelo ordenamento jurídico nacional.<br />

Verifica-se no caso do Projeto de Lei, o inquietante debate entre o Direito e a<br />

Antropologia. Mais do que isso, nota-se a importância e a necessidade das<br />

aproximações entre esses dois campos de conhecimento.<br />

Acredita-se que o problema apresentado atinge a interpretação atual da<br />

ordem jurídico-constitucional brasileira, baseada no Princípio da Dignidade da<br />

Pessoa Humana. Nesse sentido, questionam-se as conseqüências de se levar em<br />

consideração a questão da diversidade cultural como sendo tão fundamental quanto<br />

o referido princípio.<br />

não hierarquicamente organizada”. (SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural<br />

de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura<br />

Contemporânea, n. 39, p. 118, 1997).<br />

211 Ibidem, p. 120.<br />

42


Visto que a cultura orienta o comportamento humano, dando sentido à sua<br />

experiência, trata-se, sobretudo, de estabelecer questionamentos e perceber que<br />

existem outras formas de concepção do que seja o ser humano, a vida e a morte no<br />

Brasil, símbolos os quais coordenam alguns sistemas simbólicos indígenas, e que<br />

não podem ser esquecidas ou ignoradas.<br />

Entretanto, frise-se oportunamente que, com tais reflexões, não queremos,<br />

simplesmente, ser a favor ou contra as práticas tradicionais indígenas, mencionadas<br />

no Projeto de Lei n° 1.057/2007. Parafraseando o tí tulo de um artigo de Clifford<br />

Geertz, 212 adotaremos a posição Anti anti-“infanticídio”, ou seja, ao irmos contra as<br />

posições que procuram impedir algumas práticas tradicionais indígenas, como<br />

estabelece o referido Projeto de Lei, não estamos necessariamente adotando uma<br />

posição a favor de tais práticas. Isto significa dizer, como Geertz explica em sua<br />

posição anti anti-relativista, que a dupla negativa “permite rejeitar algo sem que com<br />

isso nos comprometamos com aquilo que este algo rejeita”. 213<br />

A partir de tal posição, encontramos três direções sobre o caso investigado:<br />

(1) as ditas “práticas tradicionais nocivas” devem ser impedidas, pois ferem o<br />

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como as normas de proteção à<br />

infância, previstas no ordenamento jurídico brasileiro; (2) tais práticas, tendo em<br />

vista que estão inseridas em sistemas de símbolos significantes diferentes, não<br />

poderiam sofrer intervenções; (3) seria necessário o estabelecimento de um diálogo<br />

intercultural, tendo por objetivo principal a justificação de tais práticas entre ambas<br />

as culturas e, nesse sentido, elas seriam (3.1) permitidas ou (3.2) proibidas até o<br />

consenso sobre os seus topoi.<br />

Percebe-se, assim, que as duas primeiras direções baseiam-se fortemente<br />

ora na perspectiva jurídica, ora na perspectiva antropológica. Já a terceira procura<br />

um diálogo entre ambas as perspectivas, mas difere essencialmente em sua<br />

resolução inicial. Diante destas propostas, o nosso trabalho procurou mostrar que as<br />

duas primeiras direções são insuficientes. Por essa razão, consideramos válida a<br />

terceira direção, à qual passaremos a justificá-la a seguir.<br />

A perspectiva antropológica revela que, ao se examinar determinados<br />

fenômenos e elementos culturais, é essencial não dissociá-los do contexto do qual<br />

pertencem. Simplesmente “pinçar” um símbolo cultural, desvinculando-o de seu<br />

significado e de seu sistema simbólico, e transpondo outros valores ao mesmo, pode<br />

caracterizar uma atitude etnocêntrica. Dessa forma, o relativismo cultural, como um<br />

princípio metodológico, tem por objetivo compreender o “outro” a partir de seus<br />

próprios termos.<br />

Ressalta-se, no entanto, que, dentro do sistema simbólico indígena, existem<br />

muitos indivíduos que participam diferentemente de sua cultura, sendo algumas<br />

pessoas contrárias às suas próprias práticas tradicionais, razão pela qual elas<br />

reivindicam a proteção das crianças.<br />

A partir da perspectiva jurídica, considera-se de suma relevância a construção<br />

e a conquista histórica dos direitos humanos, as quais desencadearam e<br />

212 GEERTZ, Clifford. Anti anti-relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:<br />

Jorge Zahar, 2001, p. 47-67.<br />

213 Ibidem, p. 48.<br />

43


possibilitaram que diversas cartas constitucionais reconhecessem expressamente<br />

esses direitos e garantias. Além disso, é inegável a importância do Princípio da<br />

Dignidade da Pessoa Humana, bem como a necessidade de serem primordialmente<br />

resguardados os direitos fundamentais à vida, à saúde e à integridade físicopsíquica<br />

das crianças brasileiras, sejam elas indígenas ou não-indígenas.<br />

No caso da “Lei Muwaji”, é evidenciado, por um lado, o seu caráter<br />

relativizador, pois tal projeto não considera as práticas indígenas como crimes,<br />

associando-as ao artigo 231 da Constituição Federal. Contudo, ao mesmo tempo, o<br />

referido projeto de lei pretende impedi-las, defendendo o Princípio da Dignidade da<br />

Pessoa Humana acima das especificidades culturais.<br />

Nesse sentido, observa-se que as propostas do Projeto de Lei n° 1.057/2007<br />

são embasadas em concepções hegemônicas de direitos humanos (e<br />

fundamentais), desconsiderando, por isso, as noções indígenas aqui já<br />

mencionadas. Além disso, verifica-se que a elaboração do referido projeto não<br />

contou com a efetiva participação das comunidades indígenas englobadas nesta<br />

discussão.<br />

Tecidas essas considerações, entende-se que a perspectiva do diálogo<br />

intercultural tem o condão de proporcionar trocas de justificação das práticas<br />

tradicionais. Desse modo, cada sistema simbólico – indígena e não-indígena – vê-se<br />

impelido a explicar e, sobretudo, fundamentar a significação de seus elementos,<br />

expondo-se ao olhar do “outro”. As conseqüências desse argumento indicam que,<br />

nesse caso, tanto a nossa cultura, quanto a cultura indígena precisaria realizar uma<br />

justificação mútua de suas práticas e de suas concepções de vida, sem uma<br />

intervenção enquanto isso não ocorrer. Uma importante pergunta que se poderia<br />

fazer agora, no entanto, é a seguinte: que tipos de justificações seriam aceitas como<br />

razoáveis?<br />

Atualmente, é salutar a reflexão sobre a aplicação dos direitos humanos e<br />

fundamentais, principalmente no cenário nacional, que se caracteriza pela vasta<br />

diversidade de culturas. Nesse sentido, a idéia de Boaventura de Souza Santos<br />

sobre o diálogo intercultural, através da hermenêutica diatópica, fornece uma<br />

interessante proposta para que haja um intercâmbio entre diferentes símbolos<br />

significantes. Assim, os direitos humanos e fundamentais podem assumir um caráter<br />

não-hegemônico, ou seja, multicultural, respeitando, dessa forma, as diferenças.<br />

Com isso, o saber antropológico auxilia a Ciência Jurídica, na medida em que<br />

fornece compreensões de outros universos culturais, isto é, traduz o significado dos<br />

símbolos. Dessa forma, ele pode facilitar o trabalho dos juristas no deslinde de<br />

diversas questões, tais como as indígenas. Conforme mencionam Marcelo Veiga<br />

Beckhausen e José Otávio Catafesto de Souza, a Antropologia surge como a ciência<br />

capaz de narrar e evidenciar os elementos culturais. Os antropólogos são, nesse<br />

sentido, os profissionais responsáveis por isso, uma vez que servem de<br />

intermediadores e tradutores dos símbolos significantes de outras culturas que,<br />

muitas vezes, não estão ao alcance do jurista.<br />

44


Em vista disso, os laudos antropológicos, por exemplo, assumem relevância<br />

nos processos judiciais e administrativos relativos aos direitos socioculturais. 214<br />

Esses instrumentos podem ser requisitados em virtude da realização de perícias ou<br />

para o assessoramento técnico a juízes ou às partes envolvidas nos processos, a<br />

fim de serem contextualizados e avaliados determinados elementos e situações<br />

culturais. 215 Dentre alguns exemplos de laudos antropológicos estão aqueles<br />

relacionados à demarcação de terras indígenas, identificação étnica, impacto<br />

socioambiental, educação, saúde, etc. 216<br />

Em relação ao aspecto do trabalho antropológico, ressaltamos um importante<br />

trecho do Parecer Técnico n° 49/2009 da 6ª Câmara d e Coordenação e Revisão<br />

(Índios e Minorias) do Ministério Público Federal da 4ª Região, o qual sintetiza o<br />

pensamento até então desenvolvido:<br />

O objetivo é trazer para o bojo das ações do Estado perspectivas nãohegemônicas,<br />

na tentativa de arejar e dilatar o alcance das decisões do<br />

poder público em favor da consolidação de direitos diferenciados. O intuito é<br />

evitar, ao máximo, que decisões relativas às vidas de grupos étnicos e<br />

sociais minoritários ocorram baseadas em uma visão etnocêntrica, que<br />

toma apenas as suas próprias categorias de compreensão do mundo como<br />

parâmetro de consideração e julgamento para outros contextos sociais e<br />

culturais. Desse modo, é pertinente que no Brasil a consolidação do<br />

pluralismo jurídico passa, também, pela afirmação das perícias<br />

antropológicas. 217<br />

Por fim, mostra-se imprescindível um diálogo interdisciplinar entre os campos<br />

do direito e da antropologia, que, cada vez mais, vai encontrando espaço nos<br />

ambientes acadêmicos. A Resolução do Conselho Nacional de Educação e da<br />

Câmara de Educação Superior n° 9, 218 por exemplo, institui diretrizes curriculares<br />

nacionais do curso de graduação em Direito e dá outras providências, obrigando o<br />

desenvolvimento de projetos pedagógicos que envolvam o conteúdo sobre<br />

Antropologia.<br />

Retomando o pensamento de Ruth Benedict, o Direito não enxerga o mundo<br />

sozinho e, por isso, muitas vezes precisará dos “óculos” de outras ciências e de<br />

outros campos do saber para resolver a demanda de conflitos, tais como da<br />

Antropologia, Sociologia, Psicologia, Medicina, entre outros.<br />

214<br />

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