APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO E ANTROPOLOGIA ... - pucrs
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RESUMO<br />
<strong>APROXIMAÇÕES</strong> <strong>ENTRE</strong> <strong>DIREITO</strong> E <strong>ANTROPOLOGIA</strong>:<br />
UMA REFLEXÃO A PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/20 07 1<br />
Débora Fanton<br />
Atualmente, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à<br />
aprovação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecid o como “Lei Muwaji”, o referido<br />
Projeto de Lei dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção<br />
dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras<br />
sociedades ditas não tradicionais. Não obstante, percebe-se que algumas<br />
comunidades indígenas brasileiras concebem diferentemente as noções de ser<br />
humano, de vida e de morte e, por essa razão, não consideram tais práticas como<br />
“nocivas”. Diante desta questão, que envolve a diversidade cultural, a Antropologia<br />
assume relevante papel para a Ciência Jurídica, uma vez que evidencia, através de<br />
instrumentos interpretativos, diferentes sistemas de símbolos significantes. Neste<br />
contexto, o presente trabalho tem por objetivo introduzir, primeiramente, o conceito<br />
antropológico de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para uma<br />
melhor compreensão sobre a diversidade cultural, bem como os elementos<br />
relacionados a ela: o etnocentrismo e o relativismo cultural. Em seguida, será<br />
exposta a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na<br />
ordem jurídico-constitucional brasileira. Por fim, no terceiro e último capítulo, o<br />
Projeto de Lei será analisado e, em seguida, serão trazidos os argumentos tanto da<br />
perspectiva antropológica, como da jurídica. Concluir-se-á, nesse sentido, a<br />
necessidade de um diálogo intercultural, baseado em ambas as perspectivas.<br />
Palavras-chave: Direito. Antropologia. Diversidade Cultural. Relativismo Cultural.<br />
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.<br />
INTRODUÇÃO<br />
Cada vez mais se tem despertado o interesse e desenvolvido pesquisas<br />
entre os campos do Direito e da Antropologia. Atualmente, discute-se a<br />
necessidade do diálogo entre as duas áreas, principalmente no que concerne ao<br />
âmbito da diversidade cultural. Assuntos como a luta pelo reconhecimento e<br />
delimitação das terras indígenas, elaboração de políticas públicas, preservação do<br />
patrimônio histórico nacional, questões relativas à saúde e educação diferenciadas<br />
e os direitos das minorias étnicas de uma forma geral demonstram esta significante<br />
preocupação.<br />
O conhecimento antropológico, apesar de até o presente momento não ter<br />
recebido seu merecido destaque na Ciência Jurídica, é extremamente indispensável<br />
1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de<br />
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do<br />
Sul. Aprovação, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela orientadora Profª. Drª.<br />
Clarice Beatriz da Costa Söhngen, Profª. Drª. Lígia Mori Madeira e Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de<br />
Azevedo, em 25 de novembro de 2009.
a ela, tanto em termos teóricos, quanto em termos práticos. O Direito lida com o ser<br />
humano e ocupa-se, predominantemente, em regular e resolver os conflitos<br />
decorrentes das relações sociais. Já a Antropologia tem por objetivo buscar<br />
compreender, através de instrumentos interpretativos, os homens e sua cultura.<br />
Dessa forma, o pensamento antropológico assume importante papel para<br />
proporcionar uma ampliação e uma melhor compreensão sobre o homem e, assim,<br />
sobre o papel do Direito nas relações sociais.<br />
Pode-se afirmar que a “Antropologia Jurídica” seria a disciplina encarregada<br />
dessa tarefa e que, através da teoria antropológica e de métodos específicos de<br />
estudo, como o trabalho de campo e/ou a observação participante, analisa e compara<br />
as instituições do direito e as concepções de justiça de determinadas culturas. 2<br />
Um exemplo presente no cenário nacional que evidencia a exigência de se<br />
refletir sobre a conexão entre Direito e Antropologia é o Projeto de Lei n°<br />
1.057/2007. Conhecido como “Lei Muwaji”, ele foi apresentado pelo deputado<br />
Henrique Afonso e, no momento, encontra-se tramitando no Congresso Nacional,<br />
sujeito à aprovação. Este Projeto de Lei dispõe sobre o combate de algumas<br />
práticas tradicionais indígenas consideradas nocivas, em relação ao tratamento das<br />
crianças. Dentre as práticas, está aquela que popularmente se convencionou<br />
chamar de “infanticídio” indígena. Por meio de tal instrumento legal, pretende-se<br />
impedir tais práticas, a fim de se fazer cumprir os direitos humanos e fundamentais,<br />
bem como todas as normas de proteção à vida e à infância, previstas no<br />
ordenamento jurídico brasileiro.<br />
A justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 est á calcada, principalmente,<br />
na garantia do direito à vida, já que este é o direito “por excelência”. Nesse sentido,<br />
percebe-se o ideal de preservar a dignidade da pessoa humana e, portanto, a vida,<br />
a saúde e a integridade físico-psíquica das crianças indígenas e, como aponta o<br />
texto legal, também das crianças pertencentes a sociedades ditas não-tradicionais. 3<br />
Igualmente, refere o Projeto de Lei, que o artigo 231 da Constituição Federal,<br />
relativo ao direito de reconhecimento da diversidade cultural, não deve ser<br />
interpretado de forma desvinculada do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,<br />
previsto no artigo 1°, inciso III, e das diretrizes dos direitos fundamentais, previstas<br />
no artigo 5°.<br />
Contudo, desde a sua divulgação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 tem<br />
recebido inúmeras críticas e causado polêmicas, sobretudo, entre as comunidades<br />
indígenas englobadas nesta discussão. Percebe-se que algumas comunidades<br />
indígenas brasileiras não concebem tais práticas como nocivas, indicando, portanto,<br />
haver outro universo de significação em relação às concepções de ser humano, de<br />
vida e de morte.<br />
Desse modo, nota-se que a discussão centra-se no conflito entre o Princípio<br />
da Dignidade da Pessoa Humana, o direito à vida e o direito à diversidade cultural.<br />
2 SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 12; COLAÇO, Thais<br />
Luzia. O despertar da antropologia jurídica. In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de<br />
antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p. 29.<br />
3 Cumpre referir que a ênfase de nossa reflexão neste trabalho se dará sobre as práticas tradicionais<br />
indígenas.<br />
2
Assim sendo, o presente trabalho tem como finalidade refletir, a partir do Projeto de<br />
Lei n° 1.057/2007, sobre as aproximações que podem se estabelecer entre os<br />
campos do direito e da antropologia. Ou seja, iremos discutir a aplicação dos<br />
direitos humanos e fundamentais, questionando o caráter universalista e interventor<br />
do Projeto de Lei. Por outro lado, expor-se-á a particularidade da significação dos<br />
sistemas simbólicos indígenas, já que, a partir do ponto de vista antropológico,<br />
dever-se-ia interpretar o artigo 1°, inciso III e o artigo 5° em conformidade com o<br />
artigo 231 da Constituição Federal.<br />
Tendo em vista que muitas vezes as minorias étnicas são incompreendidas<br />
ou, até mesmo, menosprezadas, interpretá-las significa despertar a importância de<br />
enxergar o “outro” a partir de seu contexto social.<br />
Diante disso, no primeiro capítulo desta monografia serão abordados os<br />
principais conceitos antropológicos, como a noção de “cultura”, a partir da<br />
perspectiva de Clifford Geertz, para que seja possível um melhor entendimento<br />
sobre a diversidade cultural, além das concepções que estão diretamente ligadas a<br />
esta noção, como o etnocentrismo e o relativismo cultural.<br />
No segundo capítulo, será explicada a noção e a importante função que o<br />
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana exerce na ordem jurídico-constitucional<br />
brasileira, posto que ele é o principal fundamento do Projeto de Lei n° 1.057/2007.<br />
Ou seja, o primeiro capítulo expõe as principais ferramentas antropológicas para<br />
tratar deste tema, ao passo que o segundo capítulo, as ferramentas jurídicas.<br />
Por fim, no terceiro capítulo, mostrar-se-á os principais aspectos e os<br />
fundamentos da justificativa do Projeto de Lei n° 1 .057/2007. Em contraposição,<br />
exporemos as críticas do olhar antropológico dirigidas a ele, bem como a<br />
interessante proposta do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica de<br />
Boaventura de Souza Santos sobre o debate relacionado à diversidade cultural e à<br />
aplicação dos direitos humanos (e fundamentais). Nesse sentido, o que estamos<br />
buscando é encontrar uma decisão sobre este Projeto de Lei que seja justificável<br />
para ambas as culturas.<br />
Para uma melhor compreensão sobre o assunto, realizaram-se entrevistas,<br />
as quais nos aproximam da realidade indígena e, igualmente, suscitam outras<br />
questões, que poderiam muito bem ser abordadas neste tema, mas que, devido à<br />
complexidade, não foram objeto de maior desenvolvimento neste trabalho, tais<br />
como: a democracia, relacionada à participação das comunidades indígenas no<br />
processo constituinte brasileiro; o tratamento legal dos povos indígenas no Brasil; a<br />
colisão entre direitos e princípios constitucionais; os direitos coletivos e o pluralismo<br />
jurídico.<br />
Considerando que o presente estudo limita-se em apresentar algumas<br />
aproximações entre Direito e Antropologia, ressalta-se que não temos o intuito de<br />
apontar soluções definitivas para o problema, mas o de esboçar questionamentos e<br />
ampliar o debate sobre ele, uma vez que repensar o Direito a partir do viés<br />
antropológico é um desafio que se impõe nos dias de hoje.<br />
3
1 CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL: O ARCABOUÇO<br />
TEÓRICO DA <strong>ANTROPOLOGIA</strong><br />
Dizer que a Antropologia é a ciência que se dedica ao estudo do homem é<br />
reiterar o óbvio. As áreas da Antropologia (Biológica, Arqueologia, Lingüística, Social<br />
e/ou Cultural, entre outras) se ocupam em interpretar a complexidade da existência<br />
humana, sob o enfoque de diferentes aspectos. 4 Aqui, nos ateremos mais à<br />
abrangência do plano cultural, tendo em vista a especificidade dos fatores<br />
estudados.<br />
A noção de “cultura” é de extrema importância para a reflexão antropológica,<br />
pois sobre ela foi desenvolvida a compreensão de como a experiência humana é<br />
organizada. Como existem diversas concepções sobre cultura, neste trabalho<br />
optaremos pela matriz epistemológica do antropólogo Clifford Geertz, tendo em vista<br />
a atualidade de seu pensamento no que concerne ao assunto, ressaltando-se<br />
claramente que não possuímos a pretensão de absolutizar o termo.<br />
1.1 TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA: A PERSPECTIVA DE CLIFFORD<br />
GEERTZ<br />
Clifford Geertz (1926-2006), antropólogo norte-americano de notável<br />
influência na segunda metade do século XX, contribuiu para a reconstrução do<br />
conceito “cultura”, para o debate do relativismo cultural, além de ampliar e conectar<br />
suas reflexões a outras áreas, como história, política, direito, artes e literatura. Dessa<br />
forma, promoveu o desenvolvimento da antropologia moderna e o desencadeamento<br />
da antropologia pós-moderna. Sua dimensão hermenêutica rompeu com as<br />
estruturas metodológicas formais de estudo do meio antropológico, ao considerar<br />
que o homem e as relações humanas devem ser interpretados em suas<br />
particularidades culturais, e não sintetizados como se fossem leis gerais em uma<br />
espécie de Código Cultural. Nesse sentido, a abordagem semiótica da cultura revela<br />
que os fenômenos culturais são dotados de um conteúdo simbólico e,<br />
conseqüentemente, carregados de significados passíveis de serem interpretados de<br />
forma inteligível.<br />
A posição por uma teoria interpretativa da cultura é claramente visível nos<br />
argumentos do pensador. O trabalho antropológico é uma interpretação, isto é, uma<br />
leitura do objeto analisado, e não uma “construção de representações impecáveis de<br />
ordem formal”. 5 Dito de outro modo, a interpretação cultural, através do instrumento<br />
da prática etnográfica (a descrição densa), somente é possível pela aproximação de<br />
dados concretos. Ela é um ponto de vista articulado pelo próprio observador a partir<br />
da interpretação do(s) observado(s) e, por essa razão, nunca será completa, eis que<br />
apenas o “objeto” de estudo poderia revelar uma interpretação “pura”, já que faz<br />
parte de sua cultura. 6 Nesse sentido, o trabalho antropológico é uma interpretação<br />
de uma interpretação. Ao estudar uma comunidade indígena, pode-se dizer que o<br />
antropólogo depende das informações reveladas pelos nativos, seus “informantes”.<br />
4 Para uma noção geral sobre os ramos da Antropologia, consultar: DAMATTA, Roberto.<br />
Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 27-38;<br />
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 16-20.<br />
5 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 13.<br />
6 Ibidem, p. 11.<br />
4
Através dessa coleta de dados, o intérprete busca compreender a trama de<br />
significados. Assim, a interpretação não pode ser vista como uma lei, mas como uma<br />
compreensão de um fato particular, de uma comunidade particular, de uma cultura<br />
particular. 7 Seguindo essa linha de raciocínio, o ideal de Geertz pode ser<br />
demonstrado pelo seguinte trecho:<br />
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias<br />
de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas<br />
teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em<br />
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do<br />
significado. 8<br />
Com efeito, tendo em vista a atualidade dessa discussão em relação ao<br />
estudo antropológico, em grande parte deste capítulo, serão apresentadas as idéias<br />
desenvolvidas por Clifford Geertz para uma melhor compreensão da cultura e,<br />
portanto, da diversidade cultural.<br />
1.1.1 Cultura: o conjunto de sistemas de símbolos significantes<br />
Uma das principais preocupações da Antropologia foi – e continua sendo – a<br />
definição do termo “cultura”. 9 Tal preocupação deve-se ao fato de que em torno<br />
desse conceito é que se estruturou todo o estudo do homem.<br />
Desde a antigüidade, inúmeros pensadores, tais como Confúcio, Heródoto e<br />
Tácito, 10 tentaram explicar a noção de cultura, com o intuito de compreender a<br />
diversidade humana. Entretanto, apenas em 1871 que as idéias foram<br />
sistematizadas, sendo pela primeira vez descrito o conceito científico da palavra,<br />
trabalho realizado pelo inglês Edward Burnett Tylor. 11 Após ele, diversos<br />
antropólogos se dedicaram a esse objetivo, cuja pluralidade de enfoques pode ser<br />
analisada nas escolas antropológicas do pensamento. 12<br />
Contudo, a maioria das formulações do conceito “cultura”, por serem um tanto<br />
abrangentes, mostrou-se demasiadamente confusa. Segundo Clifford Geertz, as<br />
noções amplas correm o risco de perder seu foco, frustrando o seu próprio sentido.<br />
Conforme o autor, as noções universais perdem sua força. Portanto, percebe-se que<br />
é de suma relevância delimitar e especificar o conceito cultura, a fim de que tal<br />
7<br />
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 11 e 21.<br />
8<br />
Ibidem, p. 4.<br />
9<br />
A opinião de Roque de Barros Laraia sobre o estudo da cultura é que: “provavelmente nunca<br />
terminará, pois uma compreensão exata do próprio conceito de cultura significa a compreensão da<br />
própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana”. (LARAIA, Roque de<br />
Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 63).<br />
10<br />
Ibidem, p. 10-11.<br />
11<br />
Para Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo inglês da corrente Evolucionista, “Cultura ou<br />
Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui<br />
conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos<br />
adquiridos pelo homem na condição de membro de sociedade”. (TYLOR, Edward Burnett. A ciência<br />
da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.<br />
69. Sobre a crítica de Clifford Geertz em relação ao referido autor, consultar p. 3 da obra A<br />
interpretação das culturas).<br />
12<br />
Neste trabalho não se pretende detalhar as diferentes contribuições das escolas antropológicas,<br />
limitaremo-nos em apenas citar as mais conhecidas: Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo,<br />
Estruturalismo, Antropologia Interpretativa, Antropologia Pós-Moderna ou Crítica.<br />
5
noção não perca seu conteúdo, torne-se mais esclarecedora e quiçá mais<br />
poderosa. 13 Por essas razões, Clifford Geertz expõe que:<br />
a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de<br />
comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem<br />
sido o caso até agora, mas como um conjunto de controle – planos,<br />
receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam<br />
de “programas”) – para governar o comportamento. [...] O homem é<br />
precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais<br />
mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas<br />
culturais, para ordenar seu comportamento. 14<br />
Diferentemente de Tylor, que define cultura utilizando a enumeração de itens,<br />
como um mero descritivismo – e aqui não desvalorizamos seu mérito, pois foi a partir<br />
de sua construção que o conceito se desenvolveu –, a concepção de Geertz tornase<br />
mais consistente, pois mesmo subjetivamente, define de forma simples e clara a<br />
expressão “cultura”, sem dissecar as “banalidades empíricas do comportamento”. 15<br />
Em suma, para Geertz, o conceito antropológico de cultura pode ser designado<br />
como um conjunto de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais,<br />
construídos historicamente, que orientam o comportamento humano, dando<br />
significado à sua experiência. 16<br />
Ao contrário do que é comumente pensada, a cultura não é apenas um<br />
detalhe característico que pode marcar um povo, como se o futebol representasse o<br />
brasileiro, a cuia, o gaúcho, o acarajé, o baiano e assim por diante. Conforme<br />
Geertz, a cultura não é simplesmente um acessório, mas um elemento essencial<br />
para a existência humana. 17 Os sistemas de símbolos significantes ou padrões<br />
culturais são, de acordo com o autor, uma espécie de “programa” ou um “gabarito” 18 ,<br />
no qual o homem norteia as suas decisões. Ressalta-se que o homem não é<br />
estritamente determinado por sua cultura, como se fôssemos fadados a viver de<br />
uma só forma. A gama de possibilidades de nossas decisões está inserida em uma<br />
espécie de gabarito cultural. Por essa razão, pode-se dizer, por exemplo, que<br />
preferimos escolher comer churrasco de gado à aranha grelhada.<br />
Para Geertz, “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser,<br />
finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver<br />
milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”. 19<br />
Assim, todas as pessoas são capazes de crescer em qualquer cultura, porém tendo<br />
crescido em uma específica, a ela se adaptará, pois a convivência com os símbolos<br />
correspondentes implica na sua absorção e, por conseguinte, no seu modo de vida.<br />
Conforme Geertz:<br />
É por intermédio dos padrões culturais, amontoados ordenados de símbolos<br />
significativos, que o homem encontra sentido nos acontecimentos através<br />
dos quais ele vive. O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais<br />
padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos<br />
13 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 3 e 28-31.<br />
14 Ibidem, p. 32-33.<br />
15 Ibidem, p. 33.<br />
16 Ibidem, p. 66 e 135.<br />
17 Ibidem, p. 34.<br />
18 Ibidem, p. 124.<br />
19 Ibidem, p. 33.<br />
6
de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de<br />
outra forma seria obscuro. 20<br />
Portanto, pode-se afirmar que a cultura modela o comportamento humano, na<br />
medida em que fornece símbolos, ou seja, diretrizes abrangentes de conduta e até<br />
mesmo tendências e reflexos sutis, os quais orientam a vida do homem. Sem tais<br />
“códigos”, a vida humana seria vazia de sentidos.<br />
1.1.2 Os elementos simbólicos e seus significados<br />
Como a cultura é um conjunto ordenado de sistemas de símbolos<br />
significantes, entendê-la importa assimilar o que são os símbolos. Já foi dito<br />
anteriormente que os símbolos orientam, coordenam e dão sentido ao<br />
comportamento humano. Mas, o que são eles?<br />
Em linhas gerais, “símbolo” é tudo aquilo que carrega em si um significado.<br />
Da mesma forma que a noção de cultura, o conceito de símbolo precisa ser<br />
delimitado. Geertz o especifica, referindo que:<br />
[...] ele é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou<br />
relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o<br />
“significado” do símbolo [...] são formulações tangíveis de noções,<br />
abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações<br />
concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças. [...] Os<br />
atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas simbólicas,<br />
são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como<br />
o casamento e tão observáveis como a agricultura. 21<br />
Os significados, segundo Geertz, “só podem ser ‘armazenados’ através de<br />
símbolos”. 22 Estes, por sua vez, podem ser expressos por uma atitude, um objeto<br />
concreto, uma relação ou até mesmo uma abstração. A mão abanando em direção a<br />
alguém que está partindo, o calendário, uma obra de arte, a palavra “amor”, uma<br />
música. Todos eles são símbolos carregados de um significado específico, isto é,<br />
que procuram “dizer algo”. Eis alguns exemplos de Geertz:<br />
O número 6, escrito, imaginado, disposto numa fileira de pedras ou indicado<br />
num programa de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo,<br />
falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze,<br />
dedilhado quando pendurado em uma corrente, e também é um símbolo a<br />
tela “Guernica” ou o pedaço de pedra chamada “churinga”, a palavra<br />
“realidade” ou até mesmo o morfema “ing”. 23<br />
Logo, os significados da cultura de um povo estão sintetizados e<br />
representados em símbolos, construídos pelo homem para que sua vida tenha<br />
sentido. Ressalta-se que os elementos simbólicos não podem ser confundidos com<br />
os atos, objetos e relações, aos quais o homem atribui os significados. Embora os<br />
primeiros confundam-se com os segundos, isto é, uma cruz simbolize a fé cristã, a<br />
cruz por si só não é a fé cristã, mas um objeto que a exprime a partir de sua<br />
utilização por crentes.<br />
20 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 150.<br />
21 Ibidem, p. 67-68.<br />
22 Ibidem, p. 93.<br />
23 Ibidem, p. 68.<br />
7
A interação de um símbolo com outro, dos símbolos entre si, forma um<br />
conjunto de sistemas de símbolos, os quais regulam e modelam as demais relações<br />
em que o homem está inserido. 24<br />
Segundo Geertz, os sistemas de símbolos, ou seja, os padrões culturais<br />
desempenham um papel mútuo: são modelos “da” realidade e modelos “para” a<br />
realidade. No sentido de modelo “da” realidade, as estruturas simbólicas modelam<br />
as relações físicas ou não-simbólicas. No segundo caso, no modelo “para” a<br />
realidade, as estruturas simbólicas é que são adaptadas às relações físicas ou nãosimbólicas.<br />
Fazendo-se um paralelo à atividade agrícola, no modelo “da” realidade, o<br />
homem elabora uma teoria sobre as condições climáticas, da acidez do solo, da<br />
necessidade de fertilizantes, etc., a fim de obter uma maior produtividade em sua<br />
plantação. Ao mesmo tempo, no modelo “para” a realidade, essa teoria é modelada<br />
de acordo com o desenvolvimento da referida plantação, isto é, de acordo com os<br />
resultados obtidos com as condições climáticas, da acidez do solo e da qualidade<br />
dos fertilizantes utilizados. Destaca-se que os modelos “da” e “para” a realidade não<br />
possuem um caráter cronológico, como se um precedesse o outro. Ao contrário, a<br />
relação entre “da” e “para” a realidade é mútua, paralela, assim como pode ser<br />
observado em relação ao exemplo da agricultura. Ao mesmo tempo em que o<br />
homem elabora sua teoria agrícola, ele observa a natureza, ou seja, a teoria molda o<br />
físico, bem como a teoria se ajusta ao físico. Desse modo, os símbolos assumem<br />
uma dupla função, qual seja, dar sentido à realidade, modelando-a e, igualmente,<br />
modelando a realidade a eles mesmos. 25 Nas palavras de Geertz:<br />
Diferentemente dos genes e outras fontes de informação não-simbólicas, os<br />
quais são apenas modelos para, não modelos de, os padrões culturais têm<br />
um aspecto duplo, intrínseco – eles dão significado, isto é, uma forma<br />
conceptual objetiva, à realidade social e psicológica, modelando-se em<br />
conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos. 26<br />
Apenas o homem possui uma ligação entre os modelos “da” e “para” a<br />
realidade. Isto é, diferentemente dos animais, os homens modelam a realidade e<br />
não apenas adaptam-se a ela. Portanto, a partir das observações do mundo em que<br />
está inserido, o homem procura tirar proveito dessas constatações, possibilitando<br />
desenvolver seu aprendizado. 27 É o acúmulo desses aprendizados, ou, nas palavras<br />
de Geertz, do “fundo acumulado de símbolos significantes” 28 , criado historicamente,<br />
que possibilita ao homem enriquecer sua própria cultura. Nesse sentido, os símbolos<br />
representam a essência do comportamento humano. Os símbolos possuem papel<br />
elementar na vida do homem e, por essa razão, os indivíduos têm uma dependência<br />
tão grande em relação a eles.<br />
1.1.3 Pensamento Humano e Diversidade Cultural<br />
Inúmeras pessoas acreditam que as diferenças culturais entre os seres<br />
humanos são produtos da composição genética. Existem teorias que sustentam que<br />
algumas raças e povos possuem atribuições hereditárias. Pode-se recordar, em<br />
24 CRAIK, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.<br />
25 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.<br />
26 Ibidem, p. 69.<br />
27 Ibidem, p. 70.<br />
28 Ibidem, p. 35.<br />
8
tempos não muito distantes, do nazismo, o qual propunha serem superiores os<br />
indivíduos da raça ariana. Além disso, muitas afirmações como estas se tornaram<br />
populares: “índio é preguiçoso”, “negro de canela fina é mais trabalhador do que o<br />
negro de canela grossa” ou “japoneses são mais inteligentes”. 29<br />
Da mesma forma, tal problemática pode ser exemplificada pela notícia<br />
veiculada em uma reportagem do programa Globo Repórter. Nela, os cientistas<br />
demonstram que a característica de infidelidade de homens e mulheres estaria<br />
relacionada a determinados genes, ou seja, pessoas com certos atributos genéticos<br />
estariam mais propensas a trair. Nesse sentido, argumentam os cientistas:<br />
A diferença entre fiéis e infiéis pode ter mesmo relação com os hormônios.<br />
Cientistas suecos e americanos estudaram o comportamento sexual de ratos<br />
que formavam pares e descobriram um gene presente no hormônio<br />
vasopressina que, até então, acreditavam controlar apenas a pressão<br />
sanguínea, mas que pode influenciar também nos relacionamentos. [...]<br />
“No ano passado, um grupo de cientistas publicou o primeiro trabalho em uma<br />
variação desse gene que é relevante para o comportamento dos homens. Os<br />
homens que têm a versão curta do gene tendem a ser mais promíscuos e<br />
mais infiéis, e homens que têm a versão longa do gene tendem a ser mais<br />
monogâmicos e a ficar mais vinculados em casa e a cuidar mais dos filhos”,<br />
explica o geneticista Renato Zamora Flores, da Universidade Federal do Rio<br />
Grande do Sul (UFRGS). 30<br />
Como é de se notar, a discussão do poder dos genes sobre o comportamento<br />
humano é ainda muito polêmica. Negar que a composição genética influencia os<br />
seres humanos soaria irrazoável. Contudo, a Antropologia, através de pesquisas,<br />
desmistifica a concepção de que tão-somente os genes são os elementos essenciais<br />
para a distribuição dos comportamentos. Assim, as diferenças genéticas não<br />
determinariam as diferenças culturais, de modo que, como no exemplo citado,<br />
homens comportar-se-iam diferentemente das mulheres não em razão de seus<br />
hormônios, mas porque a cultura lhes fornece uma gama de possibilidades de<br />
comportamentos e de identificações distintos. 31<br />
Por outro lado, há quem pense que a diversidade cultural é resultante da<br />
geografia. O tipo de clima, vegetação e outras condições naturais específicas do<br />
local onde um povo se instalou interfeririam fortemente na vida desse grupo<br />
humano, conduzindo-o de modo peculiar. Até mesmo condicionariam seu progresso.<br />
Essa doutrina surgiu na antigüidade, mas se desenvolveu e tornou-se conhecida no<br />
final do século XIX e início do século XX, sendo refutada por antropólogos como<br />
Franz Boas. Para ele, os fatores geográficos exercem influência limitada sobre as<br />
culturas. Tal doutrina também dificilmente responderia por que alguns povos com<br />
29<br />
Baseado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar, 2008, p. 17.<br />
30<br />
REPORTAGEM EXIBIDA no dia 31 de julho de 2009 na rede Globo, às 22h30min. Disponível em:<br />
. Acesso em: 09 ago. 2009.<br />
31<br />
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />
2008, p. 19-20.<br />
9
condições geográficas muitíssimo semelhantes e até mesmo em distâncias próximas<br />
desenvolveram suas culturas de maneira tão discrepantes. 32<br />
Portanto, nem o determinismo biológico, nem o geográfico são suficientes para<br />
justificar a diversidade cultural. Claramente, o homem sofre influência de sua genética e<br />
do meio ambiente onde vive, porém não é determinado por esses aspectos, como se<br />
agisse com um caráter meramente receptivo a eles. Ambos são limitados. 33<br />
A perspectiva tradicional sobre a evolução biológica e cultural do homem<br />
refere que primeiramente o homem desenvolveu seu aparato físico para, somente<br />
após a finalização desse estágio, a partir de um “momento mágico”, começar a<br />
produzir e transmitir elementos culturais. 34<br />
Em oposição, Geertz afirma que a cultura sempre esteve presente na<br />
evolução do homem, sugerindo “não existir o que chamamos de natureza humana<br />
independente de cultura”. 35 Assim, o autor contesta a teoria do “momento mágico”<br />
ou do “ponto crítico”, julgando ser incorreta a tese de que o desenvolvimento total da<br />
biologia humana seria pré-requisito para a capacidade de acumulação cultural. 36 De<br />
acordo com Geertz:<br />
E torna-se evidente, de forma ainda mais crucial, que a acumulação cultural<br />
não só já estava encaminhada muito antes de cessar o desenvolvimento<br />
orgânico, mas que tal acumulação certamente desempenhou um papel ativo<br />
moldando os estágios finais desse desenvolvimento [...] a ferramenta de pedra<br />
ou o machado rústico, em cujo rastro parece ter surgido não apenas uma<br />
estatura mais ereta, uma dentição reduzida e uma mão com domínio do<br />
polegar, mas a própria extensão do cérebro humano até seu tamanho atual. 37<br />
Observa o autor, ainda, que não é possível traçar uma linha delimitando o<br />
homem “não-enculturado” do homem “enculturado” 38 , como se o próprio homem<br />
tivesse subitamente se promovido de “coronel” a “general-de-brigada” 39 . A evolução<br />
biológica deu-se de forma gradual juntamente com o acúmulo cultural, ambos<br />
influenciando-se mutuamente. 40 Dessa forma, a cultura foi ingrediente essencial para<br />
32 Segundo Franz Boas: “As condições ambientais podem estimular as atividades culturais existentes,<br />
mas elas não têm força criativa. O mais fértil solo não cria a agricultura; as águas navegáveis não<br />
criam a navegação; um abundante suprimento de madeira não produz edificações de madeira. Mas<br />
onde quer que exista agricultura, arte da navegação e arquitetura, todas essas atividades serão<br />
estimuladas e parcialmente moldadas segundo as condições geográficas”. Logo adiante o autor<br />
complementa: “Desse modo, é infrutífero tentar explicar a cultura em termos geográficos [...]<br />
Entretanto, as relações espaciais dão apenas a oportunidade para o contato; os processos são<br />
culturais e não podem ser reduzidos a termos geográficos”. (FRANZ, Boas. Antropologia cultural. 3.<br />
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 61-62; BOAS apud LARAIA, Roque de Barros. Cultura:<br />
um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21-23).<br />
33 Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.<br />
24.<br />
34 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 34.<br />
35 Ibidem, p. 35.<br />
36 Ibidem, p. 45 e 60.<br />
37 WASHBURN, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 49.<br />
38 O significado que o autor imprime à palavra “enculturado” refere-se ao homem ser capaz de<br />
produzir e acumular cultura.<br />
39 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 47.<br />
40 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 46-47. Nesse sentido,<br />
observa Laplantine que o inato (biológico) e o adquirido (aspectos culturais) interagem<br />
10
a formação do homem, influenciando até mesmo seu aparato físico, mas<br />
principalmente a organização e refinamento do sistema nervoso central. Ressalta-se<br />
que o homem, nos seus primórdios, não havia ainda desenvolvido uma cultura no<br />
sentido de um conjunto de sistemas de símbolos significantes ordenados, o que não<br />
impede afirmar que já existiam resquícios culturais capazes de orientar o<br />
comportamento humano e, conseqüentemente, torná-lo cada vez mais dependente<br />
deles. 41<br />
No exemplo bem formulado de Geertz, sem cultura provavelmente os<br />
personagens da obra de William Golding, “O Senhor das Moscas”, não seriam<br />
selvagens inteligentes, “seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos<br />
instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros<br />
casos psiquiátricos”. 42<br />
Por conseguinte, a cultura interferiu e pode-se afirmar que continua<br />
interferindo na evolução da mente humana. Uma constatação recente é a da<br />
provável modificação da percepção cerebral provocada pela revolução dos meios de<br />
comunicação. Os acessos à internet estimulam os circuitos cerebrais e ativam o<br />
córtex pré-frontal, possibilitando aos indivíduos tomarem decisões rápidas diante de<br />
um grande volume de informações complexas. 43<br />
Assim, segundo Geertz, como um ser inacabado, o homem é complementado<br />
pela sua cultura, por suas particularidades culturais. 44<br />
Um pássaro, após nascer, ensaia seus primeiros vôos incertos, busca seu<br />
alimento, acomoda fios, gravetos e barro para a construção de seu ninho e acasalase<br />
basicamente através de seus instintos – os comandos de seus genes – e pelos<br />
estímulos externos, os quais ordenam suas ações para desempenhar tais<br />
atividades. O homem, por sua vez, para escolher sua companheira ou seu círculo de<br />
amizades, selecionar o alimento que lhe apetece e construir sua residência<br />
necessita muito mais das chamadas “fontes extrínsecas de informação” do que de<br />
“fontes intrínsecas”. 45 As fontes intrínsecas de informação são os nossos genes. Já,<br />
as fontes extrínsecas são os fatores externos ao corpo do ser humano, os quais não<br />
possuem ligação direta com os genes, ou seja, são os padrões culturais. 46 O<br />
homem, ao contrário do pássaro e de outros animais, se apóia muito mais em fontes<br />
não genéticas para se desenvolver. Nesse sentido, Geertz aduz que:<br />
Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de<br />
funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o<br />
preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa<br />
cultura. 47<br />
continuadamente. (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.<br />
17).<br />
41<br />
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 50.<br />
42<br />
Ibidem, p. 35.<br />
43<br />
LUZ, Lia. A internet transforma o seu cérebro. Veja, São Paulo, edição 2125, ano 42, n. 32, p. 96-<br />
99, 12 ago. 2009.<br />
44 GEERTZ, op. cit., p. 36.<br />
45 GALENTER; GERSTENHABER, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de<br />
Janeiro: LTC, 2008, p. 121.<br />
46 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36, 68, 121-124.<br />
47 Ibidem, p. 36.<br />
11
[...] Para construir um dique, o castor precisa apenas de um local apropriado<br />
e de materiais adequados – seu modo de agir é modelado por sua fisiologia.<br />
O homem, porém, cujos genes silenciam sobre o assunto das construções,<br />
precisa também de uma concepção do que seja construir um dique, uma<br />
concepção que ele só pode adquirir de uma fonte simbólica – um diagrama,<br />
um livro-texto, uma lição por parte de alguém que já sabe como os diques<br />
são construídos, ou então através da manipulação de elementos gráficos ou<br />
lingüísticos, de forma a atingir ele mesmo uma concepção do que sejam<br />
diques e de como construí-los. 48<br />
A capacidade humana provém da interação das fontes intrínsecas e das<br />
fontes extrínsecas de informação. O aparato genético determina frouxamente o ser<br />
humano, deixando lacunas na experiência humana a serem preenchidas pelos<br />
padrões culturais. Dessa forma, as fontes extrínsecas de informação, isto é, os<br />
sistemas de símbolos significantes, especificam o comportamento humano. 49<br />
Não há dúvidas que possuímos a capacidade de sorrir. No entanto, os<br />
sorrisos irônico, envergonhado, constrangido e tímido são essencialmente culturais.<br />
Como o sorriso, outros símbolos são criados pelo homem. A capacidade de criar<br />
símbolos e compreendê-los é que distingue o homem dos animais. 50 Além disso, o<br />
ser humano necessita aprender e continuar aprendendo. 51<br />
Ora, o pensamento humano não é uma ocorrência enigmática ou misteriosa,<br />
na qual não possamos descrever ou interpretar. Segundo Geertz, o homem pensa,<br />
apoiando-se em símbolos elaborados historicamente por sua cultura, os quais dão<br />
sentido à sua experiência. 52 E isto pode ser descrito pela Antropologia. Em<br />
conformidade com Geertz:<br />
Para tomar nossas decisões, precisamos saber como nos sentimos a<br />
respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas<br />
precisamos de imagens públicas [...] 53 Para obter a informação adicional<br />
necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de<br />
fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes. 54 Tornar-se<br />
humano é tornar-se individual, e nós nos tornarmos individuais sob a<br />
direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados<br />
historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção<br />
às nossas vidas. Os padrões culturais não são gerais, mas específicos. 55<br />
Assim, a cultura é o ingrediente essencial para a orientação do raciocínio;<br />
como antes referido, é um “gabarito”. Um indivíduo, ao refletir sobre o instituto do<br />
casamento, por exemplo, raciocina de acordo com os padrões de sua cultura, isto é,<br />
na forma como o casamento é realizado. Por esse motivo, muitos ocidentais<br />
estranham o modo como é procedido o casamento muçulmano no Oriente Médio.<br />
De um lado a monogamia, de outro, a poligamia. Seus sistemas ordenados de<br />
48 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69.<br />
49 Ibidem, p. 33, 36, 69, 124.<br />
50 Ibidem, p. 48.<br />
51 Ibidem, p. 58.<br />
52 Ibidem, p. 150, 33, 36.<br />
53 Ibidem, p. 59-60.<br />
54 Ibidem, p. 35.<br />
55 Ibidem, p. 37.<br />
12
símbolos são diferentes e, assim, estranhos um ao outro. 56 Nesse sentido, nas<br />
simples palavras de Roque de Barros Laraia, percebe-se que “a cultura condiciona a<br />
visão de mundo do homem”. 57<br />
Concordando com Gilbert Ryle, Geertz afirma que o pensamento humano é<br />
primeiramente um ato público e secundariamente um ato privado. É basicamente um<br />
ato público, pois os indivíduos manipulam sua experiência a partir dos símbolos e<br />
seus significados, os quais são públicos. É a partir deles que particularmente o<br />
indivíduo constrói seu pensamento e toma suas decisões. 58 Conforme Geertz:<br />
os símbolos [...] são construídos historicamente, mantidos socialmente e<br />
aplicados individualmente 59<br />
O sistema nervoso humano depende, inevitavelmente, da acessibilidade a<br />
estruturas simbólicas públicas para construir seus próprios padrões de<br />
atividade autônoma, contínua. Isso, por sua vez, significa que o pensamento<br />
humano é, basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais<br />
objetivos da cultura comum, e só secundariamente um assunto privado. 60<br />
Portanto, o acesso às estruturas simbólicas permite ao homem guiar seu<br />
pensamento, deliberar sobre as suas ações e determinar a sua própria vida.<br />
Logicamente, por uma cultura abranger uma multiplicidade de padrões culturais, os<br />
indivíduos não participam ou, então, não compreendem todos eles. Ainda assim,<br />
para que sua vida torne-se viável em sociedade, o homem precisa dominar o mínimo<br />
de símbolos significantes, pois são eles que vinculam os indivíduos, tornam possível<br />
a sua existência. 61<br />
Igualmente, nesse contexto, cumpre salientar que a cultura é dinâmica. Isto é,<br />
segundo Roque de Barros Laraia, as características culturais não são imutáveis,<br />
mas sofrem alterações dentro da própria cultura, tendo em vista, por exemplo, os<br />
acontecimentos históricos de seu povo e, também, sofrem alterações externas, pela<br />
interação com outros sistemas culturais. 62 Diante de um mundo globalizado, torna-se<br />
fácil identificar essas modificações. O Brasil, por exemplo, através do contato com<br />
outras nações, importou palavras tais como “internet”, “hambúrguer”, “buffet”, entre<br />
outras. O indígena utiliza o celular e não deixa de ser índio. Nós aprendemos a falar<br />
francês e comemos sushi e, mesmo assim, não deixamos de ser brasileiros. Enfim,<br />
nenhuma cultura é estática, ela modifica-se ao longo do tempo pelo tráfico de<br />
símbolos significantes.<br />
56 Evidentemente existem muitos casais poligâmicos no Ocidente, como ocorre em algumas regiões<br />
nos Estados Unidos. No entanto, de uma forma geral, a prática mais comum é de que as uniões<br />
entre pessoas sejam monogâmicas. Destaca-se também que a religião exerce grande influência<br />
nesse aspecto.<br />
57 Para outros exemplos sobre como a cultura condiciona a visão de mundo do homem, consultar:<br />
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge<br />
Zahar, 2008, p. 67-74.<br />
58 RYLE, Gilbert, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p.<br />
121, 150-151.<br />
59 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 151.<br />
60 Ibidem, p. 61.<br />
61 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />
2008, p. 82.<br />
62 Ibidem, p. 94-101.<br />
13
Diante do exposto, fica mais claro agora pensar que a diversidade cultural não<br />
é produto dos fatores genéticos ou, então, da localização em que os grupos<br />
humanos se desenvolveram. A diversidade cultural é resultado dos diferentes tipos<br />
de interação do homem com o mundo. As relações específicas de um povo, tendo<br />
em vista sua história, a maneira de como criaram seus símbolos, classificaram seus<br />
elementos e organizaram suas experiências resultaram em conjuntos de sistemas<br />
de símbolos significantes diferenciados. 63 Nesse sentido, os homens foram ao<br />
mesmo tempo produtos e produtores de sua cultura e, portanto, essa mútua<br />
interação, através do processo de aprendizagem (por meio da linguagem), tornou<br />
viável a construção de diferentes culturas, as quais projetaram diferentes sentidos à<br />
vida dos seres humanos.<br />
Em suma, na perspectiva de Clifford Geertz, observa-se que a cultura, como<br />
um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais,<br />
construídos historicamente, é elemento essencial para o desenvolvimento do<br />
homem. Ela funciona como uma espécie de “gabarito” ou “programa”, no qual os<br />
indivíduos norteiam suas vidas, fazendo-os capazes de tomar suas próprias<br />
decisões. Dito de outro modo, o homem está atrelado a esta “teia”, pois são os<br />
símbolos e seus respectivos significados que imprimem sentido e razão à sua<br />
própria existência. É por esse motivo que Geertz salienta: “sem os homens<br />
certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito<br />
significativamente, sem cultura não haveria homens”. 64 A cultura é fundamental para<br />
a formação do ser humano.<br />
Assim, o que distingue o homem dos animais é a cultura, pois somente ele<br />
tem o poder de criar e assimilar os símbolos. Ademais, o que distingue os homens<br />
entre si não é a sua composição genética ou a geografia, mas sim a diferença da<br />
mútua interação entre os modelos “da” e “para” a realidade que cada povo percebeu<br />
e elaborou de maneira singular. Tal processo possibilitou, portanto, construções<br />
diversificadas de modelos simbólicos, refletindo nas diferentes visões de mundo que<br />
cada cultura possui e orienta seus indivíduos.<br />
1.2 ETNOCENTRISMO<br />
Quando uma cultura se defronta com outra é natural que deste encontro<br />
desperte um estranhamento. Isso porque, como já examinado, cada cultura imprime<br />
e entende de maneira peculiar os significados dos seus símbolos, os quais nem<br />
sempre coincidem com o conteúdo de outros universos simbólicos existentes. Não<br />
obstante, é possível notar que muitas vezes atribuímos os nossos próprios<br />
significados aos símbolos de outras culturas, ou seja, emitimos juízos valorativos a<br />
partir de nossa visão de mundo e nossa experiência em relação à diferentes culturas<br />
(o “outro”). Assim, tal estranhamento traduz nossa dificuldade em pensar o “outro”<br />
em seus próprios valores. Esse fenômeno é explicado por Everardo Rocha do<br />
seguinte modo:<br />
63<br />
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,<br />
1987, p. 24.<br />
64<br />
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36.<br />
14
Etnocentrismo é uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio<br />
grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos<br />
pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a<br />
existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de<br />
pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza,<br />
medo, hostilidade, etc. 65<br />
Pode-se afirmar que a visão sobre o “outro” a partir das concepções do “eu”<br />
esteve presente em toda a história da humanidade. Esse aspecto pode ser<br />
principalmente verificado na época dos descobrimentos, isto é, quando o<br />
desenvolvimento da navegação permitiu os primeiros contatos entre diferentes<br />
povos. Talvez, esses foram os momentos marcantes para se começar a pensar<br />
sobre a diferença. Referindo-se aos índios do Brasil, o escrivão Pero Vaz de<br />
Caminha descreve ao Rei de Portugal: “Assim, quando o batel chegou à foz do rio<br />
estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que<br />
lhes cobrisse suas vergonhas”. 66 Essa, dentre outras passagens, revela a<br />
perplexidade dos portugueses com a imagem dos indígenas; em outras palavras:<br />
como eles não se vestem como nós? Por que não cobrem suas “vergonhas”? 67<br />
Pero Vaz de Caminha também escreve a Dom Manuel:<br />
E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua<br />
fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza,<br />
fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual praza Nosso Senhor<br />
que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de boa simplicidade e<br />
gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar. 68 E,<br />
portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar na santa fé católica,<br />
deve intervir em sua salvação. 69<br />
Igualmente, os trechos citados manifestam a visão etnocêntrica do grupo do<br />
“eu” em comparação ao grupo do “outro”. Os portugueses, ao terem a pretensão de<br />
incorporar a fé cristã à cultura indígena, a fim de salvar os “bons selvagens” e tornálos<br />
mais “humanos”, consideraram a sua religião como a única ideal. Nesse sentido,<br />
o etnocentrismo pode ser percebido quando o “eu” eleva a sua visão e as suas<br />
características como superiores, mais corretas e mais naturais. Já o “outro” é visto<br />
como uma expressão do absurdo, do frágil ou do ininteligível. 70<br />
O etnocentrismo é um fenômeno que está presente em todas as sociedades e<br />
que pode ser considerado natural, uma vez que ele decorre do choque entre as<br />
culturas, ou seja, da constatação das diferenças. 71 Além disso, é um fato natural e/ou<br />
comum, pois a diferença do “outro” parece ameaçar a própria identidade cultural.<br />
Assim, o etnocentrismo até certa medida torna-se necessário, já que ele funciona<br />
como uma espécie de autodefesa ou força capaz de revigorar os elementos culturais<br />
65<br />
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 7.<br />
66<br />
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 9.<br />
67<br />
Eduardo Bueno traz à tona mais registros sobre as impressões entre os indígenas brasileiros e os<br />
navegantes lusos: BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998,<br />
v. 1, p. 94-102.<br />
68<br />
CAMINHA, op. cit., p. 46.<br />
69<br />
Ibidem, p. 47.<br />
70<br />
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.<br />
71<br />
Ibidem, p. 8; LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo<br />
Brasileiro, 1989, p. 333.<br />
15
de uma coletividade, afirmando e assegurando a identidade de um povo. Diante disso,<br />
apresenta-se o seguinte questionamento: o que seria de uma cultura se os indivíduos<br />
achassem os seus elementos inferiores, abdicando de sua própria identidade para<br />
emergir em outra cultura? Por essa razão, pode-se dizer que o sentimento de<br />
superioridade que caracteriza a visão etnocêntrica, observando-se alguns limites, é<br />
um fator positivo para o desenvolvimento de uma cultura. 72<br />
O etnocentrismo pode assumir várias feições, desde formas sutis, como o<br />
estranhamento diante dos diferentes modos de viver e pensar, e também formas<br />
extremas, como a intolerância cultural. Por conseguinte, ele é até certa medida<br />
aceitável, pois sua força pode tornar-se perigosa, sendo utilizada pura e<br />
simplesmente para menosprezar e reprimir o “outro”, negando-lhe condições para<br />
apresentar a si mesmo. 73 Em relação à dificuldade dos homens em encarar a<br />
diversidade das culturas, Lévi-Strauss comenta que:<br />
A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes<br />
mesmo da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas<br />
primitivas se autodesignam com um nome que significa “os homens” (ou às<br />
vezes – digamo-lo com mais discrição? – os “bons”, os “excelentes”, os<br />
“completos”), implicando assim que as outras tribos, grupos, ou aldeias não<br />
participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando<br />
muito, compostos de “maus”, de “malvados”, de “macacos da terra” ou de<br />
“ovos de piolho”. Chega-se freqüentemente a privar o estrangeiro deste<br />
último grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”. 74<br />
O próprio desenvolvimento da ciência antropológica é marcado por idéias de<br />
caráter etnocêntrico. Os pensadores da corrente evolucionista 75 , fortemente<br />
influenciados pela obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, acreditavam<br />
que a diversidade cultural poderia ser explicada em virtude das diferentes posições<br />
que os povos ocupariam nos denominados graus de evolução da humanidade.<br />
Segundo eles, todas as culturas enfrentariam obrigatoriamente três estágios de<br />
desenvolvimento: selvageria, barbárie e civilização. Assim, o parâmetro de<br />
“civilizado” para o pesquisador era, por exemplo, a existência de elementos<br />
tecnológicos em uma cultura. Contudo, o que é tecnologia? O pesquisador baseavase<br />
na sua noção do que é tecnológico, esquecendo-se que esta sequer existia em<br />
outras culturas. Conforme as críticas dirigidas a essa corrente, o erro do<br />
evolucionismo estaria em comparar e classificar as culturas de acordo com os<br />
critérios da sociedade do pesquisador, ignorando o contexto no qual os elementos<br />
da cultura analisada estariam inseridos. Porém, é de se ressaltar que o mérito do<br />
evolucionismo está em, ao menos, ter se proposto a refletir sobre o “outro”. 76<br />
72 SIMON, apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p.<br />
242-243; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.<br />
73 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 14; CUCHE,<br />
Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 48 e 243.<br />
74 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,<br />
1989, p. 334.<br />
75 Edward Burnett Tylor, James Frazer e Lewis Morgan foram os autores expoentes do Evolucionismo<br />
Cultural.<br />
76 Sobre a corrente evolucionista: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia<br />
Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 89-101; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é<br />
etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 25-36.<br />
16
No plano legislativo brasileiro, igualmente, essas idéias podem ser<br />
observadas. O antigo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos<br />
Trabalhadores Nacionais, criado em 1910 pelo Decreto n° 8.072, por exemplo, tinha<br />
como principal finalidade, apesar de aparentes benefícios, transformar o índio em<br />
um trabalhador rural, a fim de que ele pudesse “progredir” ao estágio “civilizado” da<br />
cultura dominante nacional. Em outras palavras, os indígenas eram considerados<br />
como um atraso ao desenvolvimento. O objetivo do projeto era o de integrar e<br />
assimilar de forma pacífica a cultura indígena pela cultura branca. 77<br />
Além disso, até pouco tempo o indígena não era considerado plenamente<br />
capaz para exercer pessoalmente todos os atos da vida civil. O artigo 6° do Código<br />
Civil de 1916 arrolava os indígenas como relativamente capazes, ao lado dos<br />
maiores de 16 e menores de 21 anos e dos pródigos. A imagem do índio “não<br />
civilizado” como um ser infantil, que necessita da tutela do Estado, pode ser notada<br />
no parágrafo único do referido artigo. 78<br />
É de se ressaltar também que, ainda hoje, o índio é visto como um<br />
personagem do folclore brasileiro que já deveria ter sumido da história do país. 79<br />
Essa posição etnocêntrica em relação às comunidades indígenas pode ser<br />
visualizada através do trecho do antropólogo Julio Cezar Melatti:<br />
Os brancos que vivem próximos das aldeias indígenas dedicam-se à coleta<br />
de borracha ou de castanha, à criação de gado, à agricultura e outras<br />
atividades, segundo as diferentes regiões. Sejam grandes empresários,<br />
trabalhadores rurais, camponeses, ou garimpeiros, estão sempre a disputar<br />
o território dos índios. O látex, a castanha, o pasto natural, a terra boa para<br />
a lavoura, a caça acham-se muitas vezes dentro da área de ação de<br />
sociedades indígenas. [...] os vizinhos das terras dos índios afirmam que<br />
eles são preguiçosos, cruéis, sujos. Ao chamá-los de preguiçosos,<br />
associam a isto a idéia de que os índios não aproveitam bem suas terras,<br />
que estas produziriam muito mais se pertencessem aos brancos; tal<br />
acusação serve também para justificar os salários baixos que dão aos<br />
índios ou em outras regiões onde há excesso de mão-de-obra, para lhes<br />
77 BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma<br />
hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,<br />
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em:<br />
.<br />
Acesso em: 15 jul. 2009.<br />
78 O artigo 6° do Código Civil de 1916 dispõe: São in capazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à<br />
maneira de os exercer: I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts. 154 a<br />
156); II - os pródigos; III - os silvícolas. Parágrafo único: Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar,<br />
estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à<br />
civilização do País. Disponível em: . Acesso em: 14<br />
set. 2009; BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de<br />
uma hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,<br />
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em:<br />
.<br />
Acesso em: 15 jul. 2009.<br />
79 Em relação à visão sobre os indígenas, destacamos o interessante trecho de Eduardo Viveiros de<br />
Castro: “A impressão que tenho é que o ‘Brasil’ até bem pouco não queria saber de índio, e sempre<br />
morreu de medo de ser associado, ‘lá fora’, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa<br />
há muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios<br />
continuam aí, e vão continuar. E, como vemos, eles começam devagarzinho a ser admitidos no<br />
Brasil oficial-midiático, agora que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar<br />
pela Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim”. (SZTUTMAN, Renato.<br />
Encontros Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 85).<br />
17
ecusar trabalho. Ao chamá-los de cruéis, justificam a crueldade que usam<br />
para com eles. Não raro se ouve dizer que o índio deve ser tratado a bala. 80<br />
A presente passagem demonstra como o grupo do “eu” constrói uma imagem<br />
distorcida do “outro”. Ao considerarmos como critério a nossa sociedade<br />
(desenvolvida, com elevado acúmulo de reservas), concebemos as comunidades<br />
indígenas como atrasadas, projetando, por exemplo, seu tipo de economia (de<br />
subsistência) como sinônimo de miséria e pobreza. Dito de outro modo, esquecemos<br />
o contexto no qual tais comunidades estão inseridas. 81<br />
Portanto, diante dos exemplos citados, percebe-se a necessidade de<br />
superação do pensamento etnocêntrico, caso não queiramos cair erros teóricos.<br />
Muito embora seja uma tarefa difícil, ao tentar analisar e compreender o “outro”, é<br />
importante exercitarmos o desprendimento das concepções da nossa própria<br />
cultura, atividade que é possível através da relativização.<br />
1.3 RELATIVISMO CULTURAL<br />
O relativismo cultural é um tema extremamente polêmico e, por essa razão,<br />
não é surpreendente que sobre ele suscitem inúmeras discussões. 82<br />
Conforme afirma Denys Cuche, o relativismo cultural é compreendido de três<br />
maneiras distintas: (a) como uma teoria, na qual é sustentado que cada cultura<br />
forma uma entidade separada das demais, cujas conseqüências mais radicais<br />
seriam a impossibilidade de comparação e de diálogo entre as outras culturas; (b)<br />
como um princípio ético, que exige uma absoluta neutralidade e respeito em relação<br />
à diversidade das culturas; (c) como um princípio metodológico, que privilegia uma<br />
abordagem compreensiva da diversidade, tendo-se em vista a análise completa do<br />
sistema simbólico das culturas. 83<br />
Embora existam essas três concepções sobre o relativismo cultural, para<br />
Denys Cuche, apenas a última é válida. Isso, porque a primeira noção não pode ser<br />
comprovada cientificamente, ou seja, não é razoável pensar que as diferentes<br />
culturas não podem ser comparadas entre si; e a segunda – da neutralidade ética –,<br />
porque serve, muitas vezes, como uma “máscara do desprezo”. 84<br />
Portanto, segundo o autor, o relativismo cultural deve ser considerado como<br />
um princípio metodológico. Nesse sentido:<br />
Recorrer ao relativismo cultural é postular que todo o conjunto cultural tem<br />
uma tendência para a coerência e certa autonomia simbólica que lhe<br />
80<br />
MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 255-256. Neste capítulo da<br />
obra, Melatti expõe também outras visões de como os índios são julgados: do ponto de vista<br />
romântico, da mentalidade estatística, burocrática ou empresarial. (Ibidem, p. 256-261).<br />
81<br />
SAHLINS, apud ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense,<br />
1984, p. 79-80.<br />
82<br />
Cumpre destacar que foi Franz Boas (1858-1942) o responsável pela concepção antropológica do<br />
relativismo cultural. Apesar de não ter cunhado a expressão, em seus textos é notável a idéia de<br />
que as culturas devem ser analisadas em suas particularidades. A primeira pessoa a utilizar a<br />
expressão “relativismo cultural” foi Melville Herskovits nos anos 1930. (CUCHE, Denys. A noção de<br />
cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 44 e 240).<br />
83<br />
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 239-241.<br />
84 Ibidem, p. 239-240.<br />
18
confere seu caráter original singular; e que não se pode analisar um traço<br />
cultural independentemente do sistema cultural ao qual ele pertence e que<br />
lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas, quaisquer que<br />
sejam a priori, sem compará-las e ou “medi-las” prematuramente em relação<br />
a outras culturas. 85<br />
Assim, o relativismo cultural não pode estar associado à trivial idéia de que<br />
“tudo é variável” ou “tudo deve ser aceito”, mas a de que os fatores de uma cultura<br />
necessitam ser primeiramente compreendidos em seus próprios termos, ou seja, a<br />
partir da lógica do sistema simbólico dessa mesma cultura e, vale dizer, não a partir<br />
da lógica do sistema do observador. 86<br />
Na mesma linha, Everardo Rocha destaca que relativizar é “não transformar a<br />
diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na<br />
dimensão de riqueza por ser diferença”. 87 Dessa forma, ao observar o “outro”, as<br />
concepções do grupo do “eu” não podem ser colocadas como o centro de tudo, ou<br />
seja, não podem ser absolutizadas ou universalizadas. Ao contrário, é importante<br />
que o “outro” seja analisado de acordo com os seus elementos, as suas<br />
características e os seus próprios problemas. 88 Ademais, ressalta o autor que o<br />
relativismo é um processo complicado, uma vez que devemos perder de vista<br />
nossas “certezas” etnocêntricas. Todavia, a postura relativizadora permite a reflexão<br />
sobre o “outro” e, até mesmo, a transformação da própria sociedade do “eu”. 89<br />
Em relação à postura de reflexão sobre o “outro”, Roberto DaMatta refere que<br />
essa atividade consiste basicamente no movimento de “transformar o exótico no<br />
familiar e/ou transformar o familiar em exótico”. 90 Eis o processo relativizador.<br />
Na transformação do exótico em familiar, pode-se afirmar que o pesquisador<br />
busca entender o universo de significação do sistema do “outro”, familiarizando-se,<br />
ou seja, conhecendo melhor os aspectos culturais que outrora pareciam exóticos,<br />
incompreensíveis e obscuros. O movimento inverso, a transformação do familiar em<br />
exótico, refere-se ao fato de o pesquisador descobrir o “outro” na sua própria cultura.<br />
Em outras palavras, trata-se de identificar e estranhar os elementos familiares que<br />
estão “petrificados” em nós, ou seja, de realizar um movimento de reflexão sobre<br />
nós mesmos a partir dessa diferença. 91 É justamente essa mútua relação entre o<br />
familiar e o exótico que proporciona a reflexão e, por conseguinte, o diálogo. 92<br />
85<br />
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 241.<br />
86<br />
Sobre esse aspecto, Roque de Barros Laraia ressalta que cada cultura tem a sua lógica própria. A<br />
transposição da lógica de um sistema cultural para outro caracteriza um ato etnocêntrico. Por essa<br />
razão, um traço cultural deve ser observado em conformidade com a coerência de seu próprio<br />
sistema cultural. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 87 e 91).<br />
87<br />
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 20.<br />
88<br />
Ibidem, p. 46.<br />
89<br />
Ibidem, p. 54, 73 e 93.<br />
90<br />
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,<br />
1987, p. 157.<br />
91 Ibidem, p. 157-158.<br />
92 Ibidem, p. 26-27, 158 e 162.<br />
19
Clifford Geertz, diante desse polêmico tema, assume a posição Anti Anti-<br />
Relativista. 93 Esta expressão quer indicar que o autor não possui a pretensão de<br />
defender o relativismo cultural, mas a de atacar o medo infundado que é mantido em<br />
relação a ele. Assim, a dupla negativa [Anti Anti-] refere-se, estritamente, a sua<br />
oposição ao pensamento anti-relativista. 94 Tal pensamento, para Geertz, além de<br />
atribuir conseqüências infundadas ao relativismo cultural, como, por exemplo, o<br />
niilismo (“ou tudo ou nada”) e o subjetivismo (“tudo depende da maneira como você<br />
vê as coisas”), dá uma solução errada a este problema antropológico, qual seja, a de<br />
que precisamos encontrar um aspecto (imutável) do ser humano que esteja acima<br />
da cultura, como a moral ou o conhecimento (a Razão), para, só assim, afastar os<br />
supostos fantasmas da abordagem relativista. 95 Todavia, mesmo que Geertz rejeite<br />
a posição anti-relativista, ele não quer assumir uma posição relativista como uma<br />
teoria antropológica. Nesse sentido, ele destaca que a inclinação relativista dos<br />
antropológicos recebe impulsos não tanto das teorias construídas a partir dos dados<br />
antropológicos (costumes, vestígios arqueológicos, crânios, léxicos, etc.), mas, sim,<br />
a partir destes mesmos dados. 96 Ou seja, o alerta dos relativistas sobre o perigo de<br />
nossas concepções teóricas e atitudes práticas estarem demasiadamente<br />
arraigadas em nossa cultura e, assim, impossibilitarem-nos de entrar em um diálogo<br />
autêntico com outras culturas, não precisa ser erigido ao status de uma teoria,<br />
porque a questão encontra-se em como viver com estes dados antropológicos, que<br />
colocam em questão, constantemente, a cultura na qual advém o antropólogo. 97<br />
Logo, retomando a idéia central do presente capítulo, pode-se afirmar que o<br />
relativismo cultural é um princípio metodológico ou, ainda, um exercício no qual se<br />
busca compreender como os povos deram e dão sentidos diversos aos modelos “da”<br />
e “para” a realidade. Relativizar significa abandonar a forma radical da visão<br />
etnocêntrica, na medida em que se busca interpretar a outra cultura a partir de seu<br />
próprio universo de significação.<br />
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-<br />
CONSTITUCIONAL BRASILEIRA<br />
Antes mesmo de adentrarmos na discussão propriamente dita do Projeto de<br />
Lei n° 1.057/2007, objeto deste trabalho, teceremos alguns breves delineamentos<br />
sobre a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem<br />
jurídico-constitucional brasileira, eis que ela está diretamente relacionada à<br />
justificação do referido projeto de lei. Cumpre ressaltar também que não nos<br />
deteremos a examinar a totalidade das normas que estão relacionadas ao problema<br />
proposto em nosso tema, pois isto envolveria uma análise teórico-jurídica muito mais<br />
ampla do que a prevista, como, por exemplo, a análise da relação entre os direitos<br />
previstos em convenções e declarações internacionais e a respectiva abertura<br />
material do catálogo dos direitos fundamentais da Constituição Federal, bem como<br />
as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, limitar-nos-<br />
93 GEERTZ, Clifford. Anti Anti-Relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar, 2001, p. 47-67.<br />
94 Ibidem, p. 47.<br />
95 Ibidem, p. 61-63.<br />
96 Ibidem, p. 49.<br />
97 Ibidem, p. 49 e 65.<br />
20
emos em refletir sobre o Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana,<br />
uma vez que ele irradia diretrizes a todo o ordenamento jurídico brasileiro.<br />
2.1 A NOÇÃO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-<br />
CONSTITUCIONAL BRASILEIRA<br />
Definir o que seja a dignidade da pessoa humana não é uma tarefa fácil,<br />
tendo em vista a complexidade desta idéia. Isto se deve ao fato de que a dignidade<br />
possui um conceito extremamente impreciso, genérico, vago e ambíguo. 98 Contudo,<br />
há a necessidade de conceituá-la, da maneira mais explícita possível, mesmo que<br />
em linhas gerais. 99<br />
A dignidade da pessoa humana pode ser tida como a qualidade intrínseca de<br />
todo o ser humano, sendo o elemento que o identifica como tal, 100 sem distinções,<br />
ou seja, independentemente de suas características. 101 Como algo inerente a todo e<br />
qualquer ser humano, a dignidade é insubstituível, inalienável e irrenunciável, 102 não<br />
podendo, dessa forma, ser ela substituída, transferida ou mesmo abdicada. Note-se<br />
que a principal tarefa, aqui, é a procura de critérios de delimitação do conceito de<br />
dignidade da pessoa humana.<br />
Nesse sentido, ressalta Sarlet, a dignidade da pessoa humana não é criada,<br />
concedida ou retirada, mas sim reconhecida e protegida pelo Estado. 103 Em outras<br />
palavras, a qualidade que uma pessoa seja digna, não depende do Direito, já que a<br />
dignidade preexiste a ele. Ao mesmo tempo, a dignidade da pessoa humana pode<br />
ser violada e, por essa razão, ao Estado incumbe protegê-la e promovê-la. 104 Assim,<br />
a dignidade é tida como um princípio e não um direito em nosso ordenamento<br />
jurídico, já que não é concedida, mas reconhecida. 105 Sarlet explicita que a<br />
dignidade da pessoa humana deve ser entendida como norma (princípio e regra) e<br />
valor fundamental na ordem jurídico-constitucional. 106<br />
98<br />
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 44.<br />
99<br />
Não nos ateremos em expor aqui a perspectiva histórica da construção da noção de dignidade da<br />
pessoa humana, sendo que, para isso, pode ser consultada a obra de Ingo Wolfgang Sarlet:<br />
(Ibidem, p. 31-44).<br />
100<br />
SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na<br />
Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 45.<br />
101<br />
No contexto dos direitos humanos, Fábio Konder Comparato afirma que se trata de “algo que é<br />
inerente à própria condição humana, sem ligação com particularidades determinadas de indivíduos<br />
ou grupos”. (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São<br />
Paulo: Saraiva, 2005, p. 57).<br />
102<br />
DÜRIG; STERN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,<br />
2009, p. 47.<br />
103<br />
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 47.<br />
104<br />
Ibidem, p. 77-78.<br />
105<br />
Ibidem, p. 78.<br />
106<br />
Sobre o status jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana como norma (princípio e regra)<br />
e valor fundamental, Ingo Sarlet remete o pensamento a Robert Alexy e, em virtude da<br />
complexidade deste raciocínio, não o desenvolveremos aqui. Para isso, conferir: SARLET, Ingo<br />
Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988.<br />
7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 74-84.<br />
21
Em função disso, afirma-se que a dignidade da pessoa humana é, ao mesmo<br />
tempo, limite (função defensiva) e tarefa (função prestacional) do Estado. Limite,<br />
pois, como uma qualidade intrínseca e indisponível de todo o ser humano, obsta que<br />
o poder estatal venha ofendê-la, atuando como uma defesa. E, tarefa, pois ao<br />
Estado cumpre respeitar, preservar e proteger a dignidade da pessoa humana e, em<br />
especial, prestar e proporcionar condições para a sua concretização. 107 Ainda,<br />
aponta Sarlet, que a dignidade assume uma dimensão intersubjetiva, 108 ou seja, não<br />
é tarefa apenas do Estado protegê-la, promovê-la e não a violar, mas também da<br />
comunidade e das próprias pessoas. 109<br />
Em síntese, para Sarlet, a dignidade da pessoa humana pode ser designada<br />
como:<br />
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz<br />
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da<br />
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres<br />
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de<br />
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições<br />
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover<br />
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e<br />
da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido<br />
respeito aos demais seres que integram a rede da vida. 110<br />
Ressalta-se que a dignidade da pessoa humana, embora seja uma qualidade<br />
intrínseca ao ser humano, é concretizada através de um processo históricocultural.<br />
111 Retomando as idéias do capítulo anterior, a afirmação desta qualidade<br />
como um símbolo significante depende da interação dos modelos “da” e “para” a<br />
realidade, de tal modo que seu conceito está em constante desenvolvimento, sendo<br />
isto uma das razões pelas quais não possui um conteúdo fixo. É o contexto histórico<br />
e cultural de um povo que assegura e procura concretizar efetivamente este<br />
elemento intrínseco de cada ser humano. 112 Porém, tal elemento deverá valer para<br />
todo e qualquer ser humano protegido pelo ordenamento.<br />
Além disso, a dignidade da pessoa humana está intimamente ligada à<br />
liberdade. Isto diz respeito à possibilidade de o ser humano exercer sua autonomia e<br />
sua autodeterminação, isto é, de governar a si próprio, bem como definir sua<br />
107 PODLECH; SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,<br />
p. 52-53.<br />
108 KANT, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na<br />
Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 58.<br />
109 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 125.<br />
110 Ibidem, p. 67.<br />
111 HÄBERLE, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />
na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51.<br />
112 De acordo com Sarlet, a dignidade é a qualidade intrínseca ao ser humano, que preexiste ao<br />
Direito, mas que apesar disso “o grau de reconhecimento e proteção outorgado à dignidade da<br />
pessoa por cada ordem jurídico-constitucional e pelo Direito Internacional, certamente irá<br />
depender de sua efetiva realização e promoção” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa<br />
Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do<br />
Advogado, 2009, p. 76).<br />
Sobre este ponto convém lembrar a notável obra de Fábio Konder Comparato, que demonstra,<br />
através de documentos normativos, a construção histórica dos direitos do homem (COMPARATO,<br />
Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005).<br />
22
conduta e escolher as circunstâncias em relação à sua vida. 113 Sobre este aspecto,<br />
José Joaquim Gomes Canotilho refere-se à idéia de o indivíduo ser “conformador de<br />
si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual”. 114 Oportuno frisar<br />
que a dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida a todo o ser humano,<br />
mesmo que a pessoa não possa exercer sua liberdade de maneira autônoma, como<br />
é o caso, por exemplo, dos absolutamente incapazes (portadores de sérias doenças<br />
físicas e/ou mentais, nascituro). Por conseguinte, fala-se que a dignidade humana<br />
está relacionada ao potencial de liberdade. 115<br />
Observa-se, assim, que a dignidade da pessoa humana será efetiva se forem<br />
garantidos – não somente eles, mas principalmente – o direito fundamental à vida e<br />
à liberdade. Nas palavras de Sarlet, eles constituem as “exigências da dignidade da<br />
pessoa humana” (bem como os outros direitos e garantias fundamentais, na medida<br />
em que são concretizações daquela). 116 Nesse sentido, segundo o autor:<br />
Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser<br />
humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem<br />
asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade<br />
e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos<br />
fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não<br />
haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por<br />
sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. 117<br />
Portanto, embora tenhamos traçado em linhas gerais o conceito jurídico de<br />
dignidade da pessoa humana, percebe-se que o mesmo possui, segundo afirma<br />
Sarlet, um caráter multidimensional, 118 visto que a dignidade da pessoa humana é<br />
qualidade intrínseca de todo e qualquer ser humano, com uma dupla função (limite e<br />
tarefa), concretizada em um plano histórico-cultural, e que, como veremos no<br />
próximo tópico, é o princípio embasador do ordenamento jurídico brasileiro.<br />
2.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO E FIM DO<br />
ESTADO E A SUA RELAÇÃO COM OS <strong>DIREITO</strong>S FUNDAMENTAIS<br />
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagrou o valor da<br />
dignidade humana, ao reconhecer em seu preâmbulo e em outros artigos que o<br />
homem possui o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei. Este<br />
documento exerceu grande influência e, a partir disso, a idéia sobre o valor supremo<br />
da dignidade da pessoa humana passou a ser integrada expressamente em diversas<br />
cartas constitucionais. 119 Após um longo processo histórico, o homem figura o<br />
elemento primordial do Estado, isto é, que legitima e justifica o poder estatal.<br />
113 BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />
na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50.<br />
114 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:<br />
Almedina, 2000, p. 225.<br />
115 DÜRIG, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na<br />
Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50-51.<br />
116 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51.<br />
117 Ibidem, p. 65.<br />
118 Ibidem, p. 66.<br />
119 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo:<br />
Saraiva, 2005, p. 222-237.<br />
23
Conforme assinala Bleckmann, “é o Estado que existe em função da pessoa<br />
humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não<br />
meio da atividade estatal”. 120 Para Judith Martins-Costa “a pessoa, considerada em<br />
si e em (por) sua humanidade, constitui o ‘valor fonte’ que anima e justifica a própria<br />
existência de um ordenamento jurídico”. 121 E, segundo Canotilho:<br />
A dignidade humana como base da República significa o reconhecimento do<br />
indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste<br />
sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é<br />
o homem que serve os aparelhos político-organizatórios. 122<br />
Nessa mesma linha, tendo em vista que os direitos protegem a dignidade do<br />
homem, Robert Alexy destaca que:<br />
A observação aos direitos do homem é uma condição necessária para a<br />
legitimidade do direito positivo. Nisto, que o direito positivo deve respeitar,<br />
proteger e fomentar os direitos do homem para ser legítimo, portanto, ser<br />
suficiente à sua pretensão à exatidão, manifesta-se a prioridade dos direitos<br />
do homem. Direitos do homem estão, com isso, em uma relação necessária<br />
com o direito positivo, que está caracterizada pela prioridade dos direitos do<br />
homem. 123<br />
Em suma, o homem pelo simples fato de ser pessoa e, portanto, dotado de<br />
dignidade, não pode ser considerado como um objeto, ou seja, não pode ser<br />
instrumentalizado, servindo como meio do poder estatal. Ao contrário, é a dignidade<br />
da pessoa humana que possibilita e legitima o poder do Estado, uma vez que este<br />
está a serviço do homem, pois, como no pensamento de Kant, “o homem é um fim<br />
em si mesmo”.<br />
Em nosso ordenamento jurídico ela está prevista como princípio fundamental<br />
no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal. S egundo Sarlet, os princípios<br />
fundamentais possuem “a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda<br />
a ordem constitucional”. 124 Desse modo, a dignidade humana constitui o fundamento<br />
e o fim de nosso Estado Social e Democrático de Direito, 125 ideal estabelecido no<br />
caput do referido artigo.<br />
Nesse contexto, os direitos e garantias fundamentais são concretizações ou<br />
desdobramentos – em maior ou menor grau – do Princípio da Dignidade da Pessoa<br />
Humana, uma vez que se referem à proteção e desenvolvimento das pessoas. 126<br />
Assim, a dignidade de cada pessoa humana só pode ser exercida se lhe forem<br />
120<br />
BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />
na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 73-74.<br />
121<br />
MARTINS-COSTA, Judith. As interfaces entre o Direito e a Bioética. In: CLOTET, Joaquim (Org.).<br />
Bioética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 75.<br />
122<br />
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:<br />
Almedina, 2000, p. 225.<br />
123<br />
ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático: para a relação entre<br />
direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista da Faculdade<br />
de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 16, p. 208-209, 1999.<br />
124<br />
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 69.<br />
125<br />
Em relação ao conceito de Estado Social e Democrático de Direito, conferir: SILVA, José Afonso<br />
da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 112-122.<br />
126<br />
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Portugal: Coimbra, 2000, v. 4, p. 181.<br />
24
concedidos os direitos e garantias fundamentais, pois, por exemplo, como referido<br />
anteriormente, o direito à liberdade e à integridade física e moral (entre outros)<br />
constituem condições para uma vida digna. Por isso, os direitos fundamentais podem<br />
estar ligados direta ou indiretamente à dignidade da pessoa humana, lembrando que<br />
essa vinculação será mais ou menos intensa de acordo com a importância que o<br />
contexto histórico-cultural de determinada sociedade imprimir aos mesmos. 127 Nessa<br />
linha de raciocínio, Sarlet, com base no pensamento de Geddert-Steinacher, destaca<br />
que a violação de um direito fundamental implica também em uma violação à dignidade<br />
da pessoa humana, tendo em vista o vínculo sui generis estabelecido entre eles e dada<br />
a função da dignidade da pessoa humana como “elemento e medida” dos direitos<br />
fundamentais. 128<br />
2.2.1 A função integradora e hermenêutica do Princípio da Dignidade da<br />
Pessoa Humana<br />
Com efeito, sendo a dignidade da pessoa humana o fundamento da existência e o<br />
fim do próprio Estado, afirma-se que ela constitui um princípio de maior hierarquia<br />
axiológico-valorativa, sendo que a interpretação do ordenamento jurídico deve ser<br />
realizada com vistas a ela. Sobre este aspecto, cumpre referir que, apesar de o Princípio<br />
da Dignidade da Pessoa Humana assumir uma posição privilegiada em nosso<br />
ordenamento jurídico, Sarlet destaca, com base em Robert Alexy, que não existem<br />
princípios absolutos. Assim, não seria possível conceber sua prevalência de forma<br />
absoluta em todos os casos concretos. Havendo colisões, no momento da ponderação, a<br />
dignidade da pessoa humana poderá assumir diversos graus de realizações. 129<br />
Isso significa dizer que, mesmo não sendo princípio absoluto (pois nenhum o<br />
é), a dignidade da pessoa humana assume relevante função no ordenamento<br />
jurídico, pelo o que já exposto, servindo como elemento de conexão dos direitos e<br />
garantias fundamentais, bem como de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Em<br />
outras palavras, o referido princípio tem uma função de integrar o ordenamento<br />
jurídico, de tal forma que o mesmo revele-se coerente internamente como um todo.<br />
Ademais, ele revela-se como parâmetro para o processo de interpretação e<br />
aplicação das normas previstas em nosso sistema. 130 Nesse sentido:<br />
A dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos<br />
fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se<br />
justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de<br />
maior hierarquia axiológico-valorativa. 131<br />
Na medida em que serve de parâmetro para a aplicação, interpretação e<br />
integração não apenas dos direitos fundamentais e do restante das normas<br />
127 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 105.<br />
128 GEDDERT-STEINACHER, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 113.<br />
129 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 82-83 e 89. Em relação a este<br />
ponto, conferir: COELHO, Inocêncio Mártires. Princípio da dignidade da pessoa humana. In:<br />
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires (Org.).<br />
Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 172-177.<br />
130 NIPPERDEY, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais<br />
na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 88.<br />
131 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 119.<br />
25
constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico, imprimindo-lhe, além<br />
disso, sua coerência interna. 132<br />
Tais afirmações podem ser constatadas em face dos limites que o Princípio<br />
da Dignidade da Pessoa Humana pode estabelecer em relação às restrições<br />
realizadas aos direitos fundamentais. 133 Ressalta-se também que o Princípio da<br />
Dignidade da Pessoa Humana pode estabelecer limites aos próprios direitos<br />
fundamentais 134 ou a outras normas previstas no ordenamento jurídico, levando-se<br />
em consideração a ocorrência de eventuais colisões. 135<br />
Portanto, verifica-se que pelo conteúdo e significado do Princípio da<br />
Dignidade da Pessoa Humana, o mesmo “atua simultaneamente como limite e limite<br />
dos limites”. 136<br />
Poder-se-ia, inclusive, dizer que – e aqui novamente retomamos os conceitos<br />
vistos no capítulo anterior –, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um<br />
símbolo de tamanha importância que, em virtude de seu significado e conteúdo,<br />
coordena a interpretação de todos os demais símbolos normativos do ordenamento<br />
jurídico brasileiro, assegurando uma coerência entre eles. Por essa razão, ela não<br />
está unicamente prevista no artigo 1°, inciso III d a Constituição Federal, mas<br />
também expressa ou implicitamente prevista em outras normas – principalmente nos<br />
direitos e garantias fundamentais.<br />
Diante do exposto neste capítulo, questiona-se, agora, sobre a possível<br />
relativização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, isto é, se ele pode ser<br />
aplicado no contexto cultural de algumas comunidades indígenas brasileiras, as<br />
quais possuem diferentes concepções sobre a vida, a morte e o ser humano. Sobre<br />
esta intrigante questão da diversidade cultural e da dignidade da pessoa humana<br />
Sarlet expõe que:<br />
Com efeito, é de perguntar-se até que ponto a dignidade não está acima<br />
das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a<br />
maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da<br />
pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos,<br />
encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de<br />
determinadas comunidades. 137<br />
132 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição<br />
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 88.<br />
133 Ibidem, p. 129.<br />
134 Em relação à limitação à restrição dos direitos e à limitação dos próprios direitos, afirma Sarlet que<br />
“o princípio da dignidade da pessoa humana serve como importante elemento de proteção aos<br />
direitos contra medidas restritivas. [...] Todavia, cumpre relembrar que o princípio da dignidade da<br />
pessoa humana também serve como justificativa para a imposição de restrições a direitos<br />
fundamentais, acabando, neste sentido, por atuar como elemento limitador destes”. (Ibidem, p.<br />
135).<br />
135 O assunto sobre a colisão entre princípios e direitos e a forma pela qual o conflito é resolvido<br />
(ponderação/proporcionalidade/proibição de retrocesso) no âmbito do ordenamento jurídico<br />
brasileiro não serão desenvolvidos no presente trabalho, em virtude da complexidade da questão.<br />
136 SARLET, op. cit., p. 135.<br />
137 A respeito do reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa humana numa ambivalência<br />
multicultural, o autor deixa o estudo em aberto. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa<br />
humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do<br />
Advogado, 2009, p. 62).<br />
26
Dessa forma, passaremos a expor o conteúdo do Projeto de Lei n°<br />
1.057/2007 e as suas justificativas para, assim, podermos refletir sobre a questão da<br />
diversidade cultural relacionada à temática do Direito e da Antropologia.<br />
3 <strong>APROXIMAÇÕES</strong> <strong>ENTRE</strong> <strong>DIREITO</strong> E <strong>ANTROPOLOGIA</strong>: UMA REFLEXÃO A<br />
PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/2007<br />
Até o momento, desenvolvemos as idéias concernentes aos dois panos de<br />
fundo de nosso trabalho: a noção de cultura como um conjunto de sistemas de<br />
símbolos significantes, assim como os elementos que estão ligados a ela, e a<br />
importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana para o<br />
ordenamento jurídico brasileiro. Este raciocínio foi necessário para agora<br />
compreendermos o Projeto de Lei n° 1.057/2007 e as questões que envolvem o<br />
debate entre Direito e Antropologia.<br />
3.1 O PROJETO DE LEI N° 1.057/2007<br />
Sabe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras sacrificam suas<br />
crianças em virtude, por exemplo, de serem portadoras de deficiência física e/ou<br />
mental, serem gêmeos, ou, ainda, serem filhos de mãe solteira ou viúva. Esses<br />
motivos, bem como as circunstâncias da prática e a escolha da decisão de eliminar<br />
a criança, seja pelo grupo seja pela própria mãe, são variáveis, dependendo da<br />
organização (do sistema simbólico) de cada comunidade. 138<br />
Foi diante desses fatos e de outros exemplos semelhantes relacionados ao<br />
tratamento das crianças que o Projeto de Lei n° 1.0 57 foi criado. Então, em maio do<br />
ano de 2007, ele foi apresentado pelo Deputado Henrique Afonso 139 e atualmente<br />
está tramitando na Câmara Federal, sujeito à aprovação. 140<br />
O Projeto ficou conhecido como “Lei Muwaji”, em homenagem à mãe da etnia<br />
Suruwahá (Amazônia), que impediu que sua filha Iganani fosse sacrificada por ter<br />
nascido com paralisia cerebral. Além disso, para que o Projeto de Lei ganhasse<br />
publicidade, o deputado federal Henrique Afonso utilizou-se do filme “Hakani”,<br />
reprodução da história de uma menina da etnia Suruwahá que teria sido salva do<br />
sacrifício pelo seu irmão. 141<br />
138 Ressalta-se que o presente trabalho não possui o intuito de descrever, analisar ou especificar os<br />
motivos das práticas, bem como a sua ocorrência, estatísticas, etc., pois, para isso, demandaria<br />
uma pesquisa entre as comunidades indígenas. Além do que, esses dados não são facilmente<br />
acessíveis em trabalhos ou sites do Governo. Por essa razão, nos ateremos em examinar o<br />
Projeto de Lei n° 1.057 de 2007 e as suas propostas . Para alguns exemplos em relação a esses<br />
acontecimentos nas comunidades indígenas, consultar: HOLANDA, Marianna Assunção<br />
Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena.<br />
2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais,<br />
Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 16-68.<br />
139 Henrique Afonso é componente do Partido Trabalhista do Acre. Sua área de atuação política pode<br />
ser conferida no Portal: . Acesso em: 04 set. 2009.<br />
140 Para acompanhar a tramitação do Projeto de Lei n° 1.057 de 2007, consultar:<br />
. Acesso em: 02 set. 2009.<br />
141 No Brasil, há principalmente duas organizações não-governamentais que atuam contra a prática,<br />
como elas mesmas denominam, do “infanticídio” indígena: ATINI ,<br />
e JOCUM . Tais organizações<br />
27
Pelo o que se depreende da leitura do Projeto de Lei n° 1.057/2007, seu<br />
alcance não se limita somente em inibir o que se convencionou a ser popularmente<br />
chamado de “infanticídio” indígena, mas visa também inibir, entre outras práticas, o<br />
abuso sexual e os maus-tratos a crianças. Sobre este aspecto, cumpre<br />
primeiramente destacar que, muito embora o termo “infanticídio” seja utilizado para<br />
impressionar e, ao mesmo tempo, abreviar a descrição de tal prática, como pode ser<br />
observado no próprio portal da internet do deputado Henrique Afonso, essa<br />
categoria não está incorporada ao texto legal. O artigo 2°, caput do referido Projeto<br />
de Lei, emprega a expressão “práticas tradicionais nocivas”, desvinculando-as,<br />
portanto, da conceituação do crime de infanticídio, previsto no Código Penal, posto<br />
que elas devem ser lidas de acordo com o artigo 231 da Constituição Federal.<br />
Assim, é oportuno ressaltar que o uso do termo “infanticídio” é inadequado ao se<br />
referir às práticas tradicionais indígenas, uma vez que ele se apóia na legislação<br />
penal brasileira, cujo símbolo significante da ação é diverso. Segundo o artigo 123<br />
do Código Penal, o crime de infanticídio significa “matar, sob o estado puerperal, o<br />
próprio filho, durante o parto ou logo após”. 142 O estado puerperal, conforme<br />
Guilherme Nucci é:<br />
O estado que envolve a parturiente durante a expulsão da criança do ventre<br />
materno. Há profundas alterações psíquicas e físicas, que chegam a<br />
transtornar a mãe, deixando-a sem plenas condições de entender o que<br />
está fazendo. [...] O puerpério é o período que se estende do início do parto<br />
até a volta da mulher às condições pré-gravidez. 143<br />
Portanto, na prática indígena não se trata, de modo algum, do ato de matar a<br />
criança sob o estado puerperal, senão por outros fatores que possuem origens<br />
culturais, constituídos por uma significação simbólica diferente.<br />
Do mesmo modo, como tais práticas não são vistas como criminosas, os<br />
autores diretos não são criminalizados. Ressalta-se, nesse sentido, que, ao contrário<br />
da posição de Rita Segato, 144 o Projeto de Lei n° 1.057/2007 procura inibir tais<br />
“práticas tradicionais nocivas”, uma vez que elas contrariam os direitos<br />
fundamentais, previstos no ordenamento jurídico brasileiro, e os direitos humanos,<br />
reconhecidos internacionalmente.<br />
A polêmica sobre a criminalização das práticas tradicionais é esclarecida no<br />
site do deputado federal Henrique Afonso: “O Projeto de Lei não pretende<br />
criminalizar o índio ou a mulher indígena e sim qualquer pessoa ou autoridade que<br />
tenha ou tinha conhecimento que uma criança corre ou corria o risco de morte e<br />
exerceram grande influência no Projeto de Lei. O filme “Hakani” foi produzido por David L.<br />
Cunningham, filho do fundador da organização JOCUM, e desde a sua veiculação tem recebido<br />
inúmeras críticas. O filme também foi transmitido na Câmara dos Deputados em 27/11/2008.<br />
. Acesso em: 04 set. 2009.<br />
142 BRASIL. Código Penal. 10. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 277.<br />
143 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 7. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 565.<br />
144 Em seu texto sobre o assunto, Rita Laura Segato diz o seguinte: “No me dedicaré aquí a hacer<br />
una crítica del Proyecto de Ley en términos jurídicos. Baste decir que he repetidamente indicado<br />
que esa ley ‘ultra-criminaliza’ el infanticidio indígena porque, por un lado, repite la sanción<br />
que pesan sobre acciones ya debidamente encuadradas en la Constitución y el Código<br />
Penal y, por el otro, incluye en la acusación no sólo a los autores directos del acto sino a<br />
todos sus testigos reales o potenciales, es decir, toda la aldea en que el acto ocurre, y otros<br />
testigos como, por ejemplo, el representante de la FUNAI, el antropólogo, o agentes de salud,<br />
entre otros posibles visitantes.” [grifos nossos]. [Material por e-mail pessoal], p. 6.<br />
28
nada fez ou faz para impedir o seu sacrifício”. 145 Portanto, pode-se dizer que o<br />
Projeto de Lei n° 1.057/2007 é, de certo modo, rela tivizador, pois compreende que<br />
tais práticas são tradicionais (e não crimes), sendo elas analisadas de acordo com o<br />
artigo 231 da Constituição Federal. Além disso, propõe que todas as medidas<br />
previstas no Projeto de Lei para o combate das práticas tradicionais nocivas serão<br />
realizadas através “da educação e do diálogo”, consoante o artigo 7°.<br />
A única pena estabelecida encontra-se no artigo 4° do Projeto de Lei e referese<br />
à omissão de socorro, a qual remete ao artigo 135 do Código Penal. Neste caso,<br />
em conformidade com os artigos citados e o artigo 3° do Projeto, qualquer pessoa<br />
(indígenas, antropólogos, agentes dos órgãos do Estado, visitantes, etc.) que souber<br />
de alguma prática tradicional nociva deverá comunicá-la a uma autoridade<br />
competente (FUNAI, FUNASA, Conselho Tutelar, autoridade judiciária ou policial),<br />
sob pena de ser responsabilizada. Caso as autoridades competentes não tomarem<br />
as devidas medidas em relação aos casos também incorrerão no crime de omissão<br />
de socorro, de acordo com o artigo 5° do mesmo Proj eto de Lei. 146<br />
O texto do Projeto de Lei n° 1.057/2007 dispõe sobr e “o combate a práticas<br />
tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas,<br />
bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais”. Por “práticas<br />
tradicionais nocivas” entende-se aquelas atentatórias à vida e à integridade físicopsíquica<br />
(das crianças). Nesse sentido, o artigo 2° visa coibir não apenas o<br />
“infanticídio”, mas elenca as práticas tradicionais nocivas em um rol exemplificativo,<br />
de acordo com a seguinte classificação: (a) homicídio de recém nascidos (incisos I a<br />
IX); (b) abuso sexual (inciso X); (c) maus-tratos (inciso XI); (d) regra em aberto<br />
(outras práticas tradicionais que, culposa ou dolosamente, ofendam a vida ou a<br />
integridade físico-psíquica da criança). Observa-se, portanto, que o referido Projeto<br />
não abrange apenas o denominado homicídio de recém-nascidos, mas também o<br />
abuso sexual e os maus-tratos, assim como práticas atentatórias, estendendo-se às<br />
crianças indígenas e às pertencentes a sociedades ditas não tradicionais. 147<br />
Em casos extremos, quando não houver um acordo entre as autoridades<br />
competentes e as partes envolvidas na prática, dispõe o artigo 6° que se deverá<br />
afastar os genitores do convívio da criança ou, então, retirá-la provisoriamente,<br />
mantendo-a em abrigos autorizados. O parágrafo único do mesmo artigo permite,<br />
ainda, que, no caso de ser frustrada a medida de afastamento, deve a criança ser<br />
encaminhada à adoção, tendo em vista a necessidade de preservação do direito<br />
fundamental à vida e da integridade físico-psíquica.<br />
145 Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2009.<br />
146 Poder-se-ia talvez aqui realizar um paralelo com o artigo 58 da Lei n° 6.001/1973 (Estatuto do Índio) , o<br />
qual não prevê punição ao indígena que adquire bebidas alcoólicas, mas a quem vender a ele. O<br />
referido artigo preceitua: “Art. 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena: [...] III –<br />
propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos<br />
tribais ou entre índios não integrados. Pena – detenção de seis meses a dois anos.” Disponível em:<br />
. Acesso em: 01 nov. 2009.<br />
Sobre a significação do uso de bebidas alcoólicas entre comunidades indígenas, conferir o<br />
trabalho de: CAMPOS, Jankiel de. Envio do artigo “O uso abusivo de bebidas alcoólicas entre os<br />
Macuxi e Wapishana de Roraima” (Jankiel de Campos) [Material por email pessoal]. Mensagem<br />
recebida por jankiel@prrr.mpf.gov.br em 09 maio 2009.<br />
147 Caberia, no entanto, perguntar aqui se o conceito de sociedades não-tradicionais englobaria as<br />
sociedades não-indígenas, já que o Projeto de Lei n° 1.057/2007 não o especifica.<br />
29
Dentre as principais justificativas teóricas do Projeto de Lei n° 1.057/2007 está<br />
a proteção à vida, eis que é o “direito por excelência”, bem maior a ser tutelado pelo<br />
ordenamento jurídico brasileiro. Em outras palavras, independentemente do sistema<br />
simbólico que o indivíduo está inserido, deve prevalecer o Princípio da Dignidade da<br />
Pessoa Humana, o direito fundamental à vida e à saúde em oposição, no caso, ao<br />
direito de exercer a prática tradicional que seria válida em virtude do direito ao<br />
reconhecimento da diversidade cultural. Por essa razão, estabelece o referido<br />
Projeto de Lei – e este é o ponto cerne da reflexão – que o artigo 231 da<br />
Constituição Federal deve ser interpretado em conformidade com o ordenamento<br />
jurídico brasileiro, e não de maneira isolada. Nesse sentido, prevê o artigo 1°:<br />
Reafirma-se o respeito e o fomento a práticas tradicionais indígenas e de<br />
outras sociedades ditas não tradicionais, sempre que as mesmas estejam<br />
em conformidade com os direitos humanos fundamentais, estabelecidos na<br />
Constituição Federal e internacionalmente reconhecidos.<br />
Por conseguinte, são reconhecidas as práticas tradicionais englobadas pelo<br />
artigo 231 da Constituição Federal, desde que as mesmas não infrinjam o<br />
ordenamento jurídico brasileiro. Salienta o texto do Projeto que as tradições são<br />
reconhecidas e devem ser respeitadas, no entanto, não são legitimadas quando<br />
violam os direitos humanos e fundamentais, conforme também preceitua o artigo 8°,<br />
n. 2, da Convenção n° 169 da OIT. Verifica-se, port anto, que há uma limitação ao<br />
direito constitucional de reconhecimento à diversidade cultural. Assim, o objetivo do<br />
Projeto de Lei é resguardar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,<br />
justificando-se em uma interpretação dos direitos e princípios constitucionais e das<br />
demais diretrizes de proteção à criança. É por isso, então, que foi desenvolvido o<br />
Capítulo anterior, a fim de expormos tal entendimento.<br />
Logo, cabe agora analisarmos as propostas do Projeto de Lei n° 1.057/2007 e<br />
as críticas dirigidas a ele.<br />
3.2 O OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE O PROJETO DE LEI N° 1.057/2007<br />
Como vimos, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 refere-s e à nocividade de<br />
algumas práticas tradicionais indígenas, com base no Princípio da Dignidade da<br />
Pessoa Humana. Porém, o que significam essas práticas para as próprias<br />
comunidades indígenas? A resposta a esta pergunta só pode ser realizada a partir<br />
de um trabalho antropológico e, como destacado anteriormente, não temos o intuito<br />
de trazer descrições sobre elas, até porque esta tarefa demandaria um estudo mais<br />
aprofundado, o qual não nos cabe aqui. Assim, para compreendermos melhor a<br />
necessária aproximação entre Direito e Antropologia, exporemos a pesquisa de<br />
Marianna Assunção Figueiredo Holanda, que evidencia a significação dos sistemas<br />
simbólicos de algumas comunidades indígenas em relação a determinados interditos<br />
da vida.<br />
Afirma a autora que a vida entre os ameríndios – de uma forma geral – é<br />
construída. É construída, pois é através do vínculo com a comunidade que a criança<br />
torna-se aos poucos pessoa: pela aquisição de alimentos, pelo cuidado, pela<br />
30
socialização, resumidamente, pelo saber “ser social”. 148 Nesse sentido, a construção<br />
da pessoalidade é “um processo contínuo de aprender a ser humano”. 149 Observase,<br />
assim, a importância do social e do coletivo para a concepção de vida ameríndia.<br />
De acordo com Marianna Holanda:<br />
[...] o projeto indígena de criação de vidas só se efetiva pela elaboração do<br />
social como um espaço de trocas, reciprocidades e interações. Fora disso<br />
não há social, não há possibilidade de vida humana sem vínculos afetivos,<br />
consangüíneos e/ou afins. Não há possibilidade de vidas nuas. 150<br />
Segundo Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, o corpo desempenha<br />
importante função para refletir a concepção de ser humano e para desenvolver a<br />
organização das sociedades indígenas brasileiras. 151 A idéia de indivíduo recai sobre<br />
o aspecto social e coletivo, tendo em vista que a noção de pessoa está atrelada à<br />
corporalidade, relação baseada nas trocas inter-pessoais de fluídos (sêmen, sangue,<br />
leite), de alimentos e na convivência social. 152 Nesse sentido, a pessoa é construída<br />
pela sociedade, ou seja, pelo processo de socialização. Portanto, nesses sistemas<br />
simbólicos, o nascimento implica em diversas transformações, afetando a vida<br />
prática dessas sociedades e as relações de parentesco e de troca. 153<br />
Dessa forma, por exemplo, os povos Araweté e Yanomami dão o nome à<br />
criança apenas quando ela está envolvida nos laços sociais, ou seja, quando ela<br />
consegue interagir com o meio social (falar, andar, alimentar-se, etc., de maneira<br />
autônoma). 154<br />
Ocorre que alguns recém-nascidos não possuem condições desse “saber<br />
ser”, pois estão impedidos, de alguma forma, de viver no grupo. Por essa razão,<br />
muitos deles não são considerados seres, são considerados não-humanos. 155 Em<br />
outras palavras, os “entes”, nesses casos, não existem. 156 Dentre as razões de as<br />
crianças não serem consideradas humanas, apresentam-se alguns fatos, como por<br />
exemplo, a criança não ter pai, 157 o número ideal de filhos e o planejamento familiar,<br />
148 Segundo Marianna Holanda, “uma criança que ‘nasce’ não é imediatamente feita humana e,<br />
portanto, a procriação não é garantia de parentesco. Isso porque, para eles, a consubstancialidade<br />
que nos faz consangüíneos e parentes não é fato, não é um dom, mas uma condição a ser<br />
continuamente produzida pelas trocas e relações”. (HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo.<br />
Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f.<br />
Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de<br />
Brasília, Brasília, 2008, p. 16).<br />
149 Ibidem, p. 17.<br />
150 Ibidem, p. 135.<br />
151 SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto; CASTRO, Eduardo Viveiros de. A construção da pessoa<br />
nas sociedades indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de Oliveira (Org.).<br />
Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987, p. 13.<br />
152 Ibidem, p. 20-21.<br />
153 HOLANDA, op. cit., p. 37-38.<br />
154 Ibidem, p. 27.<br />
155 Ibidem, p. 17.<br />
156 Marianna Holanda destaca que alguns neonatos, por carecerem do “saber ser”, não são inseridos<br />
nas relações sociais. Tal motivo justifica a sua denominação a eles como “entes”, ao invés de<br />
“seres”. (Ibidem, p. 17).<br />
157 IRELAND, apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos?<br />
Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em<br />
Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 25;<br />
REVISTA TERRA apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos<br />
31
a gemeleidade, a deficiência física e/ou mental, a preferência pelo sexo da criança, a<br />
criança ser concebida fora do casamento, os filhos de viúva, 158 entre outros.<br />
Conforme salienta Marianna Holanda, “são as relações que vão dizer quem<br />
está apto ou não a transformar-se, a humanizar-se ou a não fazer sentido<br />
socialmente”. 159 De acordo com José Otávio Catafesto de Souza, para os indígenas,<br />
a questão maior é a do sofrimento. Para eles, uma vida sofrida é uma vida indigna,<br />
razão pela qual a morte é vista como um mal menor. Assim também destaca Rita<br />
Segato, com base em alguns estudos, que em determinadas circunstâncias avaliase<br />
se a vida do neonato vale a pena ser vivida ou não. 160<br />
Logo, consoante Marianna Holanda, se a criança, devido a alguma das<br />
circunstâncias mencionadas, é considerada incapaz de se tornar humana, então,<br />
não poderá continuar vivendo. Nesse sentido, argumenta-se que não há morte e,<br />
portanto, não há crime, pois, para isso, a criança deveria ser considerada pessoa e,<br />
assim, pertencer à sociedade – o que não ocorre. 161 Afirma Marianna Holanda:<br />
Isso indica que, no intuito de pensar a negação do status de pessoa a alguns<br />
entes não estamos falando em morte, nem de crime, nem de movimento.<br />
O despertencimento do universo social é um processo tão gradual como a<br />
aquisição de humanidade; esta é, inclusive, a função dos ritos funerários,<br />
retirar o consubstancial. Ritos que não são efetuados para neonatos que<br />
nunca vieram a pertencer. Nenhuma marca social é registrada nestes entes.<br />
[...] Contudo, é justamente por estarem fora do sistema de relações que<br />
compõe o mundo, inclusive do sistema vida e morte, humanos e nãohumanos<br />
que, paradoxalmente, podem ser constitutivos de toda esta sóciológica<br />
ameríndia: eles falam de tudo que se ausentam. 162<br />
Ao contrário, ressalta a autora, se a criança já está socializada, se já pertence<br />
ao grupo, a retirada de sua vida significa a morte e, neste caso, são procedidos os<br />
rituais funerários 163 e a respectiva punição.<br />
Portanto, podemos perceber que a cultura indígena possui um sistema de<br />
símbolos significantes muito diferente do nosso. E é a partir desta tese que o olhar<br />
antropológico irá criticar o Projeto de Lei n° 1.05 7/2007. Agora, com o intuito de refletir<br />
melhor sobre o assunto, ordenamos as principais considerações de Rita Segato e<br />
Marianna Holanda, 164 restringindo-nos a explicar somente as críticas concernentes ao<br />
direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em<br />
Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 42.<br />
158<br />
HOLANDA, op. cit., respectivamente p. 48-49 e 64; 50-55 e 62-63; 59-60; 62; 61; 61.<br />
159<br />
Ibidem, p. 44.<br />
160<br />
SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />
Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />
ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />
globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material<br />
por e-mail pessoal], p. 9.<br />
161<br />
HOLANDA, op. cit., p. 44.<br />
162<br />
HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />
criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia<br />
Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 44.<br />
163<br />
Ibidem, p. 60.<br />
164<br />
Rita Laura Segato é antropóloga e professora da UnB e, em agosto de 2007, foi convocada pela<br />
Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso Nacional para participar da Audiência<br />
32
direito, tais como: (a) a necessária superação do pensamento monista do Estado; (b) o<br />
ideal universalista dos Direitos Humanos; (c) as práticas, as quais o Projeto de Lei n°<br />
1.057/2007 denomina como “nocivas”, não possuem o mesmo significado para as<br />
comunidades indígenas; (d) o Projeto de Lei “ultra-criminaliza” as práticas, pois legisla o<br />
que já foi legislado; (e) o caráter intervencionista e colonizador do Projeto de Lei; (f) as<br />
comunidades indígenas devem participar efetivamente na deliberação sobre uma lei, a<br />
qual elas estão englobadas; (g) o papel do Estado e a necessidade de um projeto de<br />
pluralismo jurídico no Brasil.<br />
Segundo Holanda, o direito ao reconhecimento à diversidade cultural só<br />
poderá ser efetivamente garantido se for superado o pensamento monista do<br />
Estado, ou seja, de que ele não é o único produtor de juridicidade. Tendo em vista<br />
as diferenças culturais, é de notar-se que não existe apenas uma única concepção<br />
do que é a vida, morte, ética e ser humano. 165 Ressalta a autora que o problema<br />
está na interpretação desses direitos tidos como universais, isto porque “a teia moral<br />
que balizou e sustenta os Direitos Humanos foi se constituindo também pela<br />
imposição de inumanidade às alteridades, sempre portadora de falhas morais a<br />
serem corrigidas”. 166 Assim, a imposição de valores universais tem por conseqüência<br />
a minimização das diferenças. Esse ideal de igualdade sustentado pelo Estado e<br />
dissociado da compreensão da alteridade reflete um racismo institucional, 167 que<br />
abafa a voz do “outro” e exige ao mesmo uma adaptação à forma do Estado, que<br />
nem sempre corresponde a sua própria forma de organização. 168 Em outras<br />
palavras, evidencia-se a postura etnocêntrica do Estado em relação às<br />
peculiaridades culturais dessas comunidades indígenas.<br />
Nesse sentido, algumas comunidades indígenas revelam possuir outra<br />
significação de vida e de morte, razão pela qual suas práticas não deveriam ser<br />
consideradas pelo Projeto de Lei n° 1.057/2007 como “nocivas”. Como já referido,<br />
pode-se dizer que a elaboração da vida para algumas comunidades indígenas se dá<br />
através da construção da rede social, na qual os indivíduos precisam ter condições<br />
de viver em comunidade. 169 Acerca deste tema, sustenta Segato:<br />
Constatamos una vez más, que no es la ignorancia lo que se esconde<br />
detrás de la diferencia en el tratamiento de la vida recién nacida en<br />
sociedades originarias del Nuevo Mundo, sino otra concepción de lo que es<br />
humano y de las obligaciones sociales que lo manufacturan. 170<br />
Pública sobre o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Maria nna Holanda é antropóloga e foi orientada por<br />
Rita Segato em sua dissertação de mestrado, trabalho já referido aqui. Por serem as pessoas<br />
envolvidas neste assunto e que possuem material publicado a respeito, exporemos suas idéias e<br />
críticas em relação ao referido projeto de lei.<br />
165 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />
criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia<br />
Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008. p. 143.<br />
166 Ibidem, p. 10.<br />
167 STAVENHAGEN, apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos<br />
direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em<br />
Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 10.<br />
168 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />
criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) –<br />
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 10-11.<br />
169 Ibidem, p. 135.<br />
170 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />
Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />
33
Ademais, para Rita Segato, o referido projeto de lei “ultra-criminaliza” as<br />
práticas indígenas, uma vez que estabelece diretrizes já previstas no ordenamento<br />
jurídico brasileiro, como as normas da Constituição Federal e do Código Penal, além<br />
das reconhecidas internacionalmente. 171 Assim, para a antropóloga, não haveria<br />
sentido promulgar uma lei com este conteúdo, porque isso implicaria em legislar<br />
sobre o que já está devidamente legislado. 172 Em sua opinião, o projeto de lei ligado<br />
às campanhas humanitárias promovidas por algumas organizações nãogovernamentais<br />
(como ATINI e JOCUM), que atuam em prol da vida das crianças<br />
indígenas, mascaram uma propaganda anti-indígena. Isso porque eles criam uma idéia<br />
de que os povos indígenas são bárbaros, ignorando a significação de seus sistemas<br />
simbólicos, com o fundamento de que as crianças devem ser salvas da incapacidade<br />
cultural de seus povos. Tal fato origina uma abertura para a intervenção, na qual muitas<br />
vezes ocorre de maneira inadequada. Nesse sentido, alega Rita Segato:<br />
Tanto las noticias plantadas por esta organización en diarios y revistas de<br />
amplia distribución nacional como la conmovedora entrada en el auditorio<br />
del Congreso en que se desarrollaba la sesión resultan naturalmente en una<br />
imagen de las sociedades indígenas como bárbaras, homicidas y crueles<br />
para con sus propios e indefensos bebés. Imagen contrapuesta a la de un<br />
movimiento religioso que afirma “salvar los niños” de pueblos que los<br />
asesinan. La legítima defensa de la vida de cada niño y el deseo de una<br />
buena vida para todos se transformaba así en una campaña proselitista<br />
anti-indígena y en la prédica de la necesidad de incrementar la supervisión<br />
de la vida en las aldeas. 173<br />
Igualmente, Marianna Holanda refere que:<br />
Isso faz das missões e da forma de atuação das missões um debate que<br />
deve ser posto na cena política nacional. A violência com que muitas delas<br />
atuam em aldeias indígenas no Brasil é encoberta por uma filantropia e<br />
protegida por uma moralidade que não se sustenta mais [...] Mudar as<br />
culturas “em seus aspectos sombrios e negativos” é o desejo trágico destas<br />
missões. [...] Um humanismo que insiste no que, por séculos, os Povos<br />
Indígenas no Brasil vêm demonstrando: que não se dobram à colonização<br />
persistente. 174<br />
ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />
globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008. p. 12.<br />
[Material por e-mail pessoal].<br />
171<br />
Em relação às diretrizes de proteção à criança que já possuiriam previsão legal, se poderia<br />
destacar: artigo 1°, inciso III (dignidade da pesso a humana); artigo 5°, caput (direito à vida); artigo<br />
5°, inciso III (tratamento desumano ou degradante); artigo 227, caput (dever do Estado em<br />
assegurar o direito à vida e à saúde às crianças) – todos da Constituição Federal; artigo 121<br />
(homicídio); artigo 129 (lesão corporal); artigo 135 (omissão de socorro); artigo 136 (maus-tratos) –<br />
todos do Código Penal; o artigo 7° (direito e prote ção à vida e à saúde); artigo 13 (maus-tratos);<br />
artigo 15 (dignidade da pessoa humana); artigo 17 (integridade física, psíquica e moral), todos do<br />
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069 de 1990). (SEGATO, Rita Laura. "Que cada<br />
pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo Jurídico en diiálogo didáctico con<br />
legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María<br />
Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e<br />
Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 6.<br />
172<br />
Ibidem, p. 14.<br />
173<br />
Ibidem, p. 5.<br />
174<br />
HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a<br />
criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia<br />
Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 145.<br />
34
Aliás, este também é o posicionamento da Associação Brasileira de<br />
Antropologia, ao declarar que o Projeto de Lei n° 1 .057/2007 simboliza uma<br />
renovação do preconceito e, por isso, merece ser arquivado pelo Congresso<br />
Nacional. 175<br />
Conforme afirma João Pacheco de Oliveira, representando a Comissão de<br />
Assuntos Indígenas da ABA, as publicações sobre as práticas indígenas nos meios<br />
de comunicação (internet, televisão, revistas e jornais) demonstram nada mais do<br />
que um discurso desprovido de qualquer fundamentação científica, tornando-se uma<br />
perigosa estratégia retórica para criminalizar as comunidades indígenas, estando aí<br />
implícita a consideração da irracionalidade e da perversão desses povos. 176 O<br />
antropólogo compara tal discurso àquele da época da colonização da América, onde<br />
os atos eram justificados por diversas pretensões “humanitárias”. Por trás disso há,<br />
em realidade, interesses de intervenção. 177<br />
Da mesma forma, segundo o antropólogo, o Projeto de Lei n° 1.057/2007<br />
apóia-se em informações da mídia e registros não confiáveis. A questão que ele<br />
coloca é: como, então, legislar sobre o assunto, impondo um “parâmetro de<br />
fiscalização” e “outros modos de socialização” sobre essas coletividades? 178 Logo,<br />
João Pacheco de Oliveira declara:<br />
Tal intervenção pode resolver problemas de consciência de algumas<br />
pessoas, mas decididamente cria um falso problema e propõe soluções<br />
lastimáveis. Pior ainda, contribui para estimular uma visão negativa,<br />
ultrapassada e mesmo racista desse segmento da população brasileira. 179<br />
João Pacheco de Oliveira destaca ainda que a Declaração Universal dos<br />
Direitos do Homem serve como um instrumento para proteger os cidadãos, e não<br />
para afirmar a superioridade moral de alguns povos sobre outros. Nesse contexto,<br />
afirma que a Constituição Federal de 1988 teve justamente a proposta de romper<br />
com as barreiras autoritárias da tradição colonial, promovendo um Estado Social de<br />
Direito, ao reconhecer e proteger as coletividades culturalmente distintas. Contudo, o<br />
que aparenta estar acontecendo é que o Brasil está na “contramão da história”,<br />
renovando o preconceito através deste Projeto de Lei. Segundo o antropólogo, essa<br />
pretensão de um movimento interventor poderia ser convertida em um diálogo<br />
175 Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>. Infanticídio<br />
entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em:<br />
Acesso em: 25/06/2009. p. 4.<br />
176 O antropólogo João Pacheco de Oliveira afirma que atualmente as práticas em questão são raras<br />
entre as comunidades indígenas brasileiras e que não existem registros confiáveis e consistentes<br />
sobre elas. Além disso, comenta que o filme “Hakani”, veiculado no Youtube, trata-se de uma<br />
encenação produzida para obter fundos para as missões das instituições “pilantrópicas”.<br />
Ressalta-se que o objetivo deste trabalho não é investigar os dados etnográficos e estatísticos da<br />
questão, mas expor os debates teóricos em torno do tema.<br />
Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>.<br />
Infanticídio entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do<br />
preconceito? Disponível em: . Acesso em: 25 jun.<br />
2009, p. 1 e 3.<br />
177 Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>. Infanticídio<br />
entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em:<br />
Acesso em: 25 jun. 2009, p. 3.<br />
178 Ibidem, p. 3.<br />
179 Ibidem, p. 3.<br />
35
intercultural, o qual obviamente deverá contar com a efetiva participação das<br />
comunidades indígenas afetadas por esta polêmica discussão. 180<br />
De acordo com essa abordagem, Rita Segato alega que o Estado não possui<br />
legitimidade, capacidade e responsabilidade para intervir nas comunidades<br />
indígenas afetadas pelo Projeto de Lei n° 1.057/200 7. Diante desse pensamento, ela<br />
relembra as “cicatrizes” deixadas pelo impacto colonial sobre os povos indígenas,<br />
período profundamente marcado pela exploração, violência e ganância. 181<br />
Segundo Rita Segato, as conseqüências da promulgação deste Projeto de Lei<br />
seriam, no mínimo, nefastas. Em primeiro lugar, porque essas práticas, como o<br />
“infanticídio”, poderão virar emblemas da diferença, ou seja, essas práticas tornar-seiam<br />
um símbolo representativo com uma conotação extremamente negativa, sendo as<br />
comunidades indígenas “marcadas” e lembradas apenas por esses atos. Em segundo<br />
lugar, pois o cumprimento das diretrizes estabelecidas no Projeto de Lei poderá permitir<br />
a intervenção das forças públicas para vigiar e fiscalizar os atos das comunidades<br />
indígenas, interferindo, conseqüentemente, na sua autonomia e intimidade. 182<br />
Explica a antropóloga que o papel do Estado deveria ser mais o de proteger e<br />
promover a vitalidade dos povos indígenas, bem como a sua autonomia, do que<br />
atuar com um caráter preponderantemente punitivo e interventor. 183 O foco da<br />
discussão para Rita Segato é o direito dessas comunidades como sujeitos<br />
coletivos 184 , ou seja, o direito de condição como povos, o qual ainda não teria sido<br />
objeto de maior desenvolvimento no ordenamento jurídico brasileiro. 185 Assim, é<br />
necessária que seja restituída e garantida a liberdade às comunidades indígenas<br />
para que elas possam resolver seus próprios conflitos de acordo com seus usos,<br />
costumes e tradições. Só assim, continua Segato, será possível que esses povos<br />
dialoguem a seu modo com os parâmetros estabelecidos no Brasil e<br />
internacionalmente. 186<br />
180<br />
Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE <strong>ANTROPOLOGIA</strong>. Infanticídio<br />
entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em:<br />
. Acesso em: 25 jun. 2009, p. 3.<br />
181<br />
Estes são alguns questionamentos colocados por Rita Segato: “¿Qué Estado es ese que hoy<br />
pretende legislar sobre como los pueblos indígenas deben preservar sus niños? ¿Qué estado es<br />
ese que hoy pretende enseñarles a cuidarlas? ¿Qué autoridad tiene ese Estado? ¿Qué<br />
legitimidad y qué prerrogativas? ¿Qué credibilidad ese Estado tiene al intentar, mediante esta<br />
nueva ley, criminalizar a los pueblos que aquí tejían los hilos de su historia cuando fueron<br />
interrumpidos por la violencia y la codicia de los cristianos?”. (SEGATO, Rita Laura. "Que cada<br />
pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo Jurídico en diálogo didáctico con<br />
legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María<br />
Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e<br />
Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 17 e 20).<br />
182<br />
Ibidem, p. 21.<br />
183<br />
Ibidem, p. 17-18.<br />
184<br />
Em relação ao direito ao reconhecimento da diversidade cultural, há a discussão sobre a<br />
legitimidade dos sujeitos coletivos de direito. Não abordaremos tal assunto aqui. Sobre isso,<br />
consultar: SOUZA, Rosinaldo Silva de. Direitos Humanos através da história recente em uma<br />
perspectiva antropológica. In: DE LIMA, Roberto Kant; NOVAES, Regina Reyes (Org.).<br />
Antropologia e Direitos humanos. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001, p. 47-79.<br />
185<br />
SEGATO, op. cit, p. 15.<br />
186 Ibidem, p. 18.<br />
36
Portanto, conforme expõe a autora, não cabe ao Estado, através da coerção,<br />
impor o curso que esses povos devem seguir. Ao Estado compete respeitar e<br />
proteger a capacidade que cada sistema simbólico possui, como sujeitos coletivos<br />
de direito, de construir a sua história, livre de intromissões autoritárias. 187 Nesse<br />
sentido, a posição final de Rita Segato é que o Projeto de Lei n° 1.057/2007, ao<br />
“criminalizar” as práticas aqui já mencionadas, coloca o “outro” em uma posição de<br />
inimigo, impedindo que as comunidades indígenas deliberem internamente sobre o<br />
curso de sua tradição, em outras palavras, que “teçam os fios de sua história”. 188 Em<br />
conformidade com a antropóloga:<br />
Por eso, esa ley es, antes que nada, anti-histórica, ya que una de las<br />
preocupaciones centrales de nuestro tiempo es la de valorizar y preservar la<br />
diferencia, la reproducción de un mundo en plural que, para existir, necesita del<br />
desarrollo del derecho de sujetos colectivos. Cuidar de ellos es central inclusive<br />
porque, a pesar de nuestras agresiones constantes en el curso de estos 500<br />
años, esos pueblos no solamente sobrevivieron mediante sus propias<br />
estrategias y lógicas internas, sino también porque es posible imaginar que nos<br />
superarán en esa capacidad de sobrevivencia. 189<br />
Além disso, Rita Segato discute que a tentativa de criminalizar as<br />
comunidades indígenas através deste Projeto de Lei viola o direito constitucional que<br />
garante e protege a diversidade cultural e desrespeita a autodeterminação e os<br />
Direitos Próprios desses povos, garantias asseguradas na Convenção 169 da OIT, a<br />
qual o Brasil ratificou. 190<br />
A ênfase, portanto, da crítica de Rita Segato está na legitimidade do Estado<br />
na intervenção, na desnecessidade de legislar sobre o que já está previsto no<br />
ordenamento jurídico brasileiro, na eficácia dessa pretensa criminalização e,<br />
também, na não-participação das comunidades indígenas na redação das leis, como<br />
é o caso do Projeto de Lei n° 1.057/2007.<br />
Diante dessas circunstâncias, a antropóloga aponta a necessidade de um<br />
projeto de pluralismo jurídico 191 no Brasil, isto é, a possibilidade de uma abertura<br />
para que os povos da nação resolvam e deliberem internamente sobre os seus<br />
conflitos e trilhem o seu próprio caminho. 192 Tendo em vista o mundo multicultural e<br />
globalizado da atualidade, nada mais sensato do que permitir a esses povos esta<br />
187<br />
SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />
Jurídico en diálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />
ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />
globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material<br />
por e-mail pessoal], p. 22.<br />
188<br />
Ibidem, p. 18.<br />
189<br />
Ibidem, p. 18.<br />
190<br />
Nas palavras de Rita Segato: “Esos datos imponen nuevos interrogantes al respecto de las<br />
motivaciones que los legisladores podrían entretener al insistir en una ley que criminaliza los pueblos<br />
indígenas y vuelve más distante su acceso a un Derecho Propio y a una jurisdicción propia para la<br />
solución de conflictos y disensos dentro de las comunidades, contraviniendo así el Convenio 169 de la<br />
OIT, plenamente vigente en Brasil desde 2002.” (Ibidem, p. 19).<br />
191<br />
Sobre o assunto do pluralismo jurídico, conferir a obra: WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo<br />
Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994.<br />
192<br />
SEGATO, op. cit, p. 20.<br />
37
garantia de liberdade, a fim de que não sejam objetos de ações fundamentalistas por<br />
outros setores da sociedade. 193<br />
Essa proposta, contudo, não significa que o Estado deverá ausentar-se. Ao<br />
contrário, seu papel deverá ser o de promover o diálogo entre os povos e os poderes<br />
estatais, assim como o diálogo interno. Em suma, a intervenção estatal será no<br />
sentido de restituir e garantir a liberdade das comunidades indígenas, através de um<br />
projeto de pluralismo jurídico, que possibilite a deliberação de forma justa e o<br />
exercício da justiça própria. 194<br />
Neste tópico, vimos que a discussão está baseada na interpretação do artigo<br />
231 da Constituição Federal. Por um lado, conforme a justificativa do Projeto de Lei<br />
n° 1.057/2007, tal artigo deve ser interpretado de acordo com o artigo 1°, III e com o<br />
artigo 5° da Constituição. Por outro, o olhar antropológico refere que os artigos<br />
mencionados devem ser lidos de acordo com o artigo 231, tendo em vista que a<br />
concepção de pessoa é relativa aos sistemas de símbolos significantes.<br />
Agora, passaremos a expor algumas propostas concernentes ao problema.<br />
3.3 O DIÁLOGO INTERCULTURAL E A HERMENÊUTICA DIATÓPICA<br />
Diante do polêmico assunto que expomos neste trabalho, é possível observar<br />
que um questionamento torna-se saliente: afinal, os direitos humanos e<br />
fundamentais poderiam assumir um caráter universal, no sentido de deverem estar<br />
presentes em todos os sistemas simbólicos da cultura brasileira, apesar das<br />
especificidades culturais?<br />
O Projeto de Lei n° 1.057/2007 é apenas um dentre o utros exemplos que<br />
poderíamos ter evidenciado sobre os casos que envolvem a problemática dos<br />
direitos humanos e fundamentais e a diversidade cultural e que indica a importante e<br />
necessária reflexão sobre o Direito e a Antropologia.<br />
Tentaremos desenvolver esse raciocínio a partir da tese de Boaventura de<br />
Souza Santos, a qual discute a aplicação dos direitos humanos em tempos de uma<br />
era globalizante. Ressaltamos que não temos o objetivo de fornecer respostas, mas<br />
de apenas impulsionar reflexões.<br />
Os direitos humanos tidos como universais, na visão de Boaventura de Souza<br />
Santos, são fruto da construção do mundo ocidental. 195 Essa construção concebe a<br />
193 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo<br />
Jurídico en diálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.<br />
ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de<br />
globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material<br />
por e-mail pessoal], p. 20-21.<br />
194 Ibidem, p. 23.<br />
195 De acordo com a exposição de Boaventura de Souza Santos: “O conceito de direitos humanos<br />
assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais,<br />
designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a<br />
natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante da realidade; o indivíduo possui<br />
uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a<br />
autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como<br />
soma de indivíduos livres”. (PANIKKAR, apud SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção<br />
38
existência de uma natureza humana universal e a dignidade da pessoa humana<br />
como qualidade intrínseca. No entanto, percebe-se que outras culturas não<br />
compreendem a natureza humana e a dignidade humana da mesma forma, pois<br />
alguns povos sequer contemplam essas noções como direitos humanos. Nota-se,<br />
dessa forma, que os direitos humanos não são universais em sua aplicação. Desse<br />
modo, as políticas dos direitos humanos são políticas baseadas em pressupostos<br />
culturais específicos. 196 Nesse sentido, eles tendem a atuar como localismo<br />
globalizado, razão pela qual é indispensável um redirecionamento dos direitos<br />
humanos à forma do cosmopolitismo.<br />
Para Boaventura de Souza Santos, a globalização, a partir de uma<br />
perspectiva social, cultural e política, compreende-se em diferentes conjuntos de<br />
relações sociais e, por serem diferentes, geram também diferentes modos de<br />
globalização. Por essa razão, segundo o autor, existem fenômenos de<br />
globalizações, no plural, e não no singular. Seguindo este raciocínio, há quatro<br />
modos de produção de globalização que dão origem a quatro formas de<br />
globalização: (a) o localismo globalizado, que ocorre quando um fenômeno local<br />
consegue se estender ao resto do globo, como é o caso dos fast-food, por exemplo;<br />
(b) o globalismo localizado, que ocorre quando um fenômeno global causa impacto<br />
nas condições locais e, assim, essas passam a se adaptar com o novo imperativo,<br />
como por exemplo, a transformação da agricultura de subsistência em agricultura do<br />
tipo exportação; (c) o cosmopolitismo, que ocorre quando as formas de dominação<br />
transnacional são utilizadas de forma não imperativa em prol dos interesses comuns<br />
dos Estados-nação, como é o caso das ONG´s; (d) o patrimônio comum da<br />
humanidade, processo no qual abrange todo o globo, como a discussão sobre a<br />
escassez dos recursos naturais. Diante disso, Boaventura de Souza Santos<br />
classifica as globalizações em: de-cima-para-baixo, isto é, com pretensões<br />
hegemônicas (localismo globalizado e globalismo localizado), e as globalizações debaixo-para-cima,<br />
ou seja, com pretensões contra-hegemônicas (cosmopolitismo e<br />
patrimônio comum da humanidade). 197<br />
Esse raciocínio se faz necessário para entender a tese de Boaventura de<br />
Souza Santos. Segundo o autor, os direitos humanos podem assumir essas formas<br />
de globalização. Contudo, é necessário que a concepção de direitos humanos revele<br />
a forma de cosmopolitismo, ou seja, como uma globalização contra-hegemônica que<br />
opere de-baixo-para-cima. O autor pensa os direitos humanos não como universais,<br />
mas como multiculturais. Este projeto é proporcionado pelo diálogo intercultural e<br />
através do que ele denominou de “hermenêutica diatópica”. 198 Nas palavras de<br />
Boaventura de Souza Santos:<br />
A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos<br />
universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo<br />
multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de<br />
Cultura Contemporânea, n. 39, p. 112, 1997).<br />
Sobre este aspecto, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos<br />
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.<br />
31-44.<br />
196 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua<br />
Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 107 e 112,<br />
1997.<br />
197 Ibidem, p. 107, 109-111.<br />
198 Ibidem, p. 107, 109-111.<br />
39
globalizado – uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre<br />
um instrumento de “choque de civilizações”[...]. A sua abrangência global<br />
será obtida à custa da sua legitimidade local. 199<br />
Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização<br />
de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser<br />
reconceitualizados como multiculturais. 200<br />
Conforme o autor, “todas as culturas tendem a considerar os seus valores<br />
máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a<br />
formulá-los como universais”. 201 Dito de outro modo, cada cultura considera seus<br />
símbolos significantes como os mais abrangentes, entretanto, é característica do<br />
ocidente querer elevar a sua validade ao resto do mundo e, aqui, poderíamos<br />
arriscar em dizer que, talvez, essa atitude demonstra um caráter etnocêntrico.<br />
Assim, à medida que os direitos humanos operarem sob o aspecto universal, isto<br />
é, atuarem como localismo globalizado, pretendendo atingir um âmbito global<br />
(globalização de-cima-para-baixo/hegemônica), a sua abrangência e aplicação se dará<br />
“à custa da sua legitimidade local”, ignorando, muitas vezes, as peculiaridades culturais<br />
dos outros povos, a partir da imposição de valores ao restante do mundo. 202<br />
Por tal razão, de acordo com Boaventura de Souza Santos, os direitos<br />
humanos devem assumir uma política progressista e emancipatória com âmbito<br />
global e legitimidade local. 203 O que isso significa? Significa dizer que os direitos<br />
humanos necessitam operar como forma de cosmopolitismo, isto é, como<br />
globalização contra-hegemônica, assumindo uma dimensão multicultural, ao invés<br />
de universal.<br />
Tendo em vista que o multiculturalismo é requisito para uma vinculação<br />
harmônica entre as relações globais e locais, ele proporcionaria uma política contrahegemônica<br />
de direitos humanos. 204 Logo, para transformar os direitos humanos<br />
universais, ou seja, aqueles decorrentes do localismo globalizado ou de uma<br />
globalização hegemônica (globalização de-cima-para-baixo) em direitos humanos<br />
multiculturais, isto é, aqueles decorrentes do cosmopolitismo ou de uma<br />
globalização contra-hegemônica (globalização de-baixo-para-cima) é preciso do<br />
diálogo intercultural.<br />
De acordo com Santos, o diálogo intercultural caracteriza-se pela troca de<br />
saberes entre universos de sentido diferentes, 205 ou podemos dizer, entre diferentes<br />
sistemas de símbolos significantes. Para que isso ocorra, em primeiro lugar, é<br />
importante: (a) reconhecer que todas as culturas possuem noções de dignidade<br />
humana, embora diversas, mas de forma inteligível; e, principalmente, (b)<br />
reconhecer a incompletude de cada cultura em relação a essas concepções. 206<br />
Dessa forma, é possível construir uma concepção multicultural de direitos humanos,<br />
199 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua<br />
Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 111, 1997.<br />
200 Ibidem, p. 111-112.<br />
201 Ibidem, p. 112.<br />
202 Ibidem, p.111.<br />
203 Ibidem, p. 105 e 107.<br />
204 Ibidem, p. 112.<br />
205 Ibidem, p. 115.<br />
206 Ibidem, p. 114.<br />
40
que “em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação<br />
de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e que se constitui em redes de<br />
referenciais normativas capacitantes”. 207 Trata-se, portanto, de uma concepção de<br />
direitos humanos com âmbito global e com legitimidade local.<br />
Ressalta-se que a proposta de um diálogo intercultural é viabilizada através do<br />
que o autor denominou de “hermenêutica diatópica”. Segundo Boaventura de Souza<br />
Santos, os universos de sentido de cada cultura são compostos por topoi forres,<br />
“lugares comuns teóricos mais abrangentes”, ou seja, premissas de argumentação.<br />
Através dos topoi de cada cultura é possível propor uma produção e troca de<br />
argumentos, isto é, estabelecer o diálogo intercultural. 208 Isso significa que, por<br />
exemplo, a partir das premissas de argumentação sobre dignidade humana de uma<br />
cultura estabelece-se o diálogo com as premissas de argumentação sobre dignidade<br />
humana de outra cultura, como em nosso caso, entre noções indígenas e nãoindígenas<br />
de dignidade humana. Pode-se dizer que ocorre um intercâmbio de<br />
símbolos significantes, ocasião em que cada cultura vê-se a explicar e a justificar os<br />
significados dos símbolos de seu sistema.<br />
A tese de Boaventura de Souza Santos centra-se na idéia de que nenhuma<br />
cultura é completa. Segundo o autor, por mais fortes que sejam os argumentos –<br />
topoi –, eles são tão incompletos, assim como a sua própria cultura. Nesse sentido,<br />
a hermenêutica diatópica seria um instrumento capaz de auxiliar na compreensão da<br />
incompletude dos elementos culturais ou sistemas simbólicos, sem, no entanto, ter a<br />
pretensão de que o diálogo intercultural proporcione a sua completude, pois isso<br />
seria algo impossível. 209 Ao contrário, esse esforço possuiria a ambição de ampliar a<br />
consciência sobre a incompletude de ambas as culturas e, por essa razão, revelar a<br />
necessidade do alargamento do diálogo, “com um pé numa cultura e outro, noutra”.<br />
Eis o caráter diatópico.<br />
Fazendo uso do pensamento de Ruth Benedict, no qual “a cultura é como<br />
uma lente através da qual o homem vê o mundo”, se poderia afirmar que nenhuma<br />
cultura consegue enxergar o mundo sozinha. Todas elas sofreriam de uma miopia,<br />
motivo pelo qual necessitariam dos óculos do “outro”, isto é, do diálogo intercultural<br />
e de um tráfico de símbolos significantes, proporcionando até mesmo uma<br />
(re)significação de seus próprios símbolos.<br />
Portanto, um dos pressupostos para o diálogo intercultural é o<br />
reconhecimento das incompletudes mútuas. 210 Assim, a hermenêutica diatópica<br />
207<br />
SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua<br />
Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 107, 109-115,<br />
1997.<br />
208<br />
Ibidem, p. 115.<br />
209<br />
Ibidem, p. 116.<br />
210<br />
O autor fornece exemplos sobre os topoi dos direitos humanos na cultura ocidental, de dharma na<br />
cultura hindu e de umma na cultura islâmica, demonstrando que todas essas noções possuem<br />
incompletudes em si. Segundo Santos: “A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza<br />
fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o<br />
indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao<br />
narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e<br />
islâmica deve-se ao fato de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma<br />
dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade<br />
41
torna-se um procedimento que engloba um trabalho mútuo, isto é, que envolve a<br />
construção de conhecimento por diversas culturas. 211<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
O conceito antropológico de “cultura”, tal como concebido por Clifford Geertz,<br />
indica um conjunto de sistemas de símbolos significantes, construídos<br />
historicamente. A partir desta perspectiva, a diversidade cultural apresenta-se como<br />
as diferentes interações dos grupos humanos com os modelos “da” e “para” a<br />
realidade. A tarefa antropológica constitui-se, assim, na interpretação de diferentes e<br />
peculiares maneiras de como cada cultura elabora e organiza o seu universo de<br />
símbolos e seus respectivos significados.<br />
Com efeito, neste trabalho pôde-se perceber, através da pesquisa de<br />
Marianna Holanda, que algumas comunidades indígenas brasileiras concebem e<br />
compreendem diferentemente as noções de ser humano, de vida e de morte,<br />
comparativamente à cultura não-indígena, visto que esses símbolos possuem outras<br />
significações.<br />
Não obstante, a justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 centra-se na<br />
exigência da interpretação do artigo 231 da Constituição Federal de acordo com o<br />
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os direitos fundamentais, além de<br />
outras normas de proteção à infância, englobadas no ordenamento jurídico<br />
brasileiro. Isto significaria, a partir do olhar antropológico, a exigência de uma<br />
mesma interpretação ou atitude em relação ao ser humano entre diferentes culturas.<br />
Por outro lado, pode-se afirmar que algumas comunidades indígenas interpretariam<br />
os artigos 1º, inciso III e 5º da Constituição Federal de modo radicalmente diferente,<br />
uma vez que sua concepção de ser humano é compreendida de outra forma.<br />
Observa-se, portanto, um embate gerado pela transposição de categorias de um<br />
sistema simbólico a outro. No entanto, tal embate não traz como conseqüência a<br />
existência de diferentes ordenamentos jurídicos.<br />
Não é de se negar, que existam diferentes culturas em nosso país e que elas<br />
possuem outros universos de significação. Com isso não se quer dizer que as<br />
mesmas não estejam englobadas e protegidas pelo ordenamento jurídico nacional.<br />
Verifica-se no caso do Projeto de Lei, o inquietante debate entre o Direito e a<br />
Antropologia. Mais do que isso, nota-se a importância e a necessidade das<br />
aproximações entre esses dois campos de conhecimento.<br />
Acredita-se que o problema apresentado atinge a interpretação atual da<br />
ordem jurídico-constitucional brasileira, baseada no Princípio da Dignidade da<br />
Pessoa Humana. Nesse sentido, questionam-se as conseqüências de se levar em<br />
consideração a questão da diversidade cultural como sendo tão fundamental quanto<br />
o referido princípio.<br />
não hierarquicamente organizada”. (SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural<br />
de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura<br />
Contemporânea, n. 39, p. 118, 1997).<br />
211 Ibidem, p. 120.<br />
42
Visto que a cultura orienta o comportamento humano, dando sentido à sua<br />
experiência, trata-se, sobretudo, de estabelecer questionamentos e perceber que<br />
existem outras formas de concepção do que seja o ser humano, a vida e a morte no<br />
Brasil, símbolos os quais coordenam alguns sistemas simbólicos indígenas, e que<br />
não podem ser esquecidas ou ignoradas.<br />
Entretanto, frise-se oportunamente que, com tais reflexões, não queremos,<br />
simplesmente, ser a favor ou contra as práticas tradicionais indígenas, mencionadas<br />
no Projeto de Lei n° 1.057/2007. Parafraseando o tí tulo de um artigo de Clifford<br />
Geertz, 212 adotaremos a posição Anti anti-“infanticídio”, ou seja, ao irmos contra as<br />
posições que procuram impedir algumas práticas tradicionais indígenas, como<br />
estabelece o referido Projeto de Lei, não estamos necessariamente adotando uma<br />
posição a favor de tais práticas. Isto significa dizer, como Geertz explica em sua<br />
posição anti anti-relativista, que a dupla negativa “permite rejeitar algo sem que com<br />
isso nos comprometamos com aquilo que este algo rejeita”. 213<br />
A partir de tal posição, encontramos três direções sobre o caso investigado:<br />
(1) as ditas “práticas tradicionais nocivas” devem ser impedidas, pois ferem o<br />
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como as normas de proteção à<br />
infância, previstas no ordenamento jurídico brasileiro; (2) tais práticas, tendo em<br />
vista que estão inseridas em sistemas de símbolos significantes diferentes, não<br />
poderiam sofrer intervenções; (3) seria necessário o estabelecimento de um diálogo<br />
intercultural, tendo por objetivo principal a justificação de tais práticas entre ambas<br />
as culturas e, nesse sentido, elas seriam (3.1) permitidas ou (3.2) proibidas até o<br />
consenso sobre os seus topoi.<br />
Percebe-se, assim, que as duas primeiras direções baseiam-se fortemente<br />
ora na perspectiva jurídica, ora na perspectiva antropológica. Já a terceira procura<br />
um diálogo entre ambas as perspectivas, mas difere essencialmente em sua<br />
resolução inicial. Diante destas propostas, o nosso trabalho procurou mostrar que as<br />
duas primeiras direções são insuficientes. Por essa razão, consideramos válida a<br />
terceira direção, à qual passaremos a justificá-la a seguir.<br />
A perspectiva antropológica revela que, ao se examinar determinados<br />
fenômenos e elementos culturais, é essencial não dissociá-los do contexto do qual<br />
pertencem. Simplesmente “pinçar” um símbolo cultural, desvinculando-o de seu<br />
significado e de seu sistema simbólico, e transpondo outros valores ao mesmo, pode<br />
caracterizar uma atitude etnocêntrica. Dessa forma, o relativismo cultural, como um<br />
princípio metodológico, tem por objetivo compreender o “outro” a partir de seus<br />
próprios termos.<br />
Ressalta-se, no entanto, que, dentro do sistema simbólico indígena, existem<br />
muitos indivíduos que participam diferentemente de sua cultura, sendo algumas<br />
pessoas contrárias às suas próprias práticas tradicionais, razão pela qual elas<br />
reivindicam a proteção das crianças.<br />
A partir da perspectiva jurídica, considera-se de suma relevância a construção<br />
e a conquista histórica dos direitos humanos, as quais desencadearam e<br />
212 GEERTZ, Clifford. Anti anti-relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar, 2001, p. 47-67.<br />
213 Ibidem, p. 48.<br />
43
possibilitaram que diversas cartas constitucionais reconhecessem expressamente<br />
esses direitos e garantias. Além disso, é inegável a importância do Princípio da<br />
Dignidade da Pessoa Humana, bem como a necessidade de serem primordialmente<br />
resguardados os direitos fundamentais à vida, à saúde e à integridade físicopsíquica<br />
das crianças brasileiras, sejam elas indígenas ou não-indígenas.<br />
No caso da “Lei Muwaji”, é evidenciado, por um lado, o seu caráter<br />
relativizador, pois tal projeto não considera as práticas indígenas como crimes,<br />
associando-as ao artigo 231 da Constituição Federal. Contudo, ao mesmo tempo, o<br />
referido projeto de lei pretende impedi-las, defendendo o Princípio da Dignidade da<br />
Pessoa Humana acima das especificidades culturais.<br />
Nesse sentido, observa-se que as propostas do Projeto de Lei n° 1.057/2007<br />
são embasadas em concepções hegemônicas de direitos humanos (e<br />
fundamentais), desconsiderando, por isso, as noções indígenas aqui já<br />
mencionadas. Além disso, verifica-se que a elaboração do referido projeto não<br />
contou com a efetiva participação das comunidades indígenas englobadas nesta<br />
discussão.<br />
Tecidas essas considerações, entende-se que a perspectiva do diálogo<br />
intercultural tem o condão de proporcionar trocas de justificação das práticas<br />
tradicionais. Desse modo, cada sistema simbólico – indígena e não-indígena – vê-se<br />
impelido a explicar e, sobretudo, fundamentar a significação de seus elementos,<br />
expondo-se ao olhar do “outro”. As conseqüências desse argumento indicam que,<br />
nesse caso, tanto a nossa cultura, quanto a cultura indígena precisaria realizar uma<br />
justificação mútua de suas práticas e de suas concepções de vida, sem uma<br />
intervenção enquanto isso não ocorrer. Uma importante pergunta que se poderia<br />
fazer agora, no entanto, é a seguinte: que tipos de justificações seriam aceitas como<br />
razoáveis?<br />
Atualmente, é salutar a reflexão sobre a aplicação dos direitos humanos e<br />
fundamentais, principalmente no cenário nacional, que se caracteriza pela vasta<br />
diversidade de culturas. Nesse sentido, a idéia de Boaventura de Souza Santos<br />
sobre o diálogo intercultural, através da hermenêutica diatópica, fornece uma<br />
interessante proposta para que haja um intercâmbio entre diferentes símbolos<br />
significantes. Assim, os direitos humanos e fundamentais podem assumir um caráter<br />
não-hegemônico, ou seja, multicultural, respeitando, dessa forma, as diferenças.<br />
Com isso, o saber antropológico auxilia a Ciência Jurídica, na medida em que<br />
fornece compreensões de outros universos culturais, isto é, traduz o significado dos<br />
símbolos. Dessa forma, ele pode facilitar o trabalho dos juristas no deslinde de<br />
diversas questões, tais como as indígenas. Conforme mencionam Marcelo Veiga<br />
Beckhausen e José Otávio Catafesto de Souza, a Antropologia surge como a ciência<br />
capaz de narrar e evidenciar os elementos culturais. Os antropólogos são, nesse<br />
sentido, os profissionais responsáveis por isso, uma vez que servem de<br />
intermediadores e tradutores dos símbolos significantes de outras culturas que,<br />
muitas vezes, não estão ao alcance do jurista.<br />
44
Em vista disso, os laudos antropológicos, por exemplo, assumem relevância<br />
nos processos judiciais e administrativos relativos aos direitos socioculturais. 214<br />
Esses instrumentos podem ser requisitados em virtude da realização de perícias ou<br />
para o assessoramento técnico a juízes ou às partes envolvidas nos processos, a<br />
fim de serem contextualizados e avaliados determinados elementos e situações<br />
culturais. 215 Dentre alguns exemplos de laudos antropológicos estão aqueles<br />
relacionados à demarcação de terras indígenas, identificação étnica, impacto<br />
socioambiental, educação, saúde, etc. 216<br />
Em relação ao aspecto do trabalho antropológico, ressaltamos um importante<br />
trecho do Parecer Técnico n° 49/2009 da 6ª Câmara d e Coordenação e Revisão<br />
(Índios e Minorias) do Ministério Público Federal da 4ª Região, o qual sintetiza o<br />
pensamento até então desenvolvido:<br />
O objetivo é trazer para o bojo das ações do Estado perspectivas nãohegemônicas,<br />
na tentativa de arejar e dilatar o alcance das decisões do<br />
poder público em favor da consolidação de direitos diferenciados. O intuito é<br />
evitar, ao máximo, que decisões relativas às vidas de grupos étnicos e<br />
sociais minoritários ocorram baseadas em uma visão etnocêntrica, que<br />
toma apenas as suas próprias categorias de compreensão do mundo como<br />
parâmetro de consideração e julgamento para outros contextos sociais e<br />
culturais. Desse modo, é pertinente que no Brasil a consolidação do<br />
pluralismo jurídico passa, também, pela afirmação das perícias<br />
antropológicas. 217<br />
Por fim, mostra-se imprescindível um diálogo interdisciplinar entre os campos<br />
do direito e da antropologia, que, cada vez mais, vai encontrando espaço nos<br />
ambientes acadêmicos. A Resolução do Conselho Nacional de Educação e da<br />
Câmara de Educação Superior n° 9, 218 por exemplo, institui diretrizes curriculares<br />
nacionais do curso de graduação em Direito e dá outras providências, obrigando o<br />
desenvolvimento de projetos pedagógicos que envolvam o conteúdo sobre<br />
Antropologia.<br />
Retomando o pensamento de Ruth Benedict, o Direito não enxerga o mundo<br />
sozinho e, por isso, muitas vezes precisará dos “óculos” de outras ciências e de<br />
outros campos do saber para resolver a demanda de conflitos, tais como da<br />
Antropologia, Sociologia, Psicologia, Medicina, entre outros.<br />
214<br />
DARELLA, Maria Dorothea Post; MELLO, Flávia Cristina de. Laudos antropológicos e sua<br />
contribuição ao Direito. In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de antropologia jurídica.<br />
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