No processo <strong>de</strong> percepção da matéria, a consciência está sempre diante do presente. O tempo físico que rege a matéria apresenta-se à percepção consciente enquanto um tempo presente. Todavia, segundo a tese <strong>de</strong> Bergson, po<strong>de</strong>mos inferir que, sem a participação da memória no processo <strong>de</strong> percepção do mundo, este se tornaria irrepresentável. O presente puro, nesse sentido, é irrepresentável. Ele po<strong>de</strong> atingir o corpo vivo em infinitas direções, mas este será incapaz <strong>de</strong> formular qualquer representação <strong>de</strong>le enquanto um tempo puro, enquanto puro presente. E sem representação, o corpo não po<strong>de</strong> agir. 47 É pela produção <strong>de</strong> representações do mundo, portanto, que o ser vivo torna possível sua ação. Mas essas representações já não apresentam apenas imagens do mundo físico. Elas estão misturadas a outras imagens oriundas da memória. Na verda<strong>de</strong>, é a intervenção da memória no processo <strong>de</strong> percepção consciente do universo material que viabiliza sua representação . Por outro lado, é graças à representação que ela se atualiza no presente. Po<strong>de</strong>mos, então, concluir que é na percepção consciente que o presente se fun<strong>de</strong> e confun<strong>de</strong> com o passado. E, se o presente remete ao universo da matéria, enquanto que o passado, à memória, então, a representação é já resultante do encontro <strong>de</strong> ambos. Ora, o dispositivo cinematográfico se fundamenta justamente nesse encontro. Como pu<strong>de</strong>mos observar, ao acompanhar o pensamento <strong>de</strong> Bergson, a memória não é um armazém <strong>de</strong> representações esquecidas, alocadas em algum lugar do cérebro. Ela não tem materialida<strong>de</strong>. É virtual. Está fora do corpo. Ela é o passado <strong>de</strong>sconhecido pelo ser. Mas um passado que não se confun<strong>de</strong> com o tempo físico. Pois, como vimos, o tempo físico é o presente puro. O passado pertence já a uma outra realida<strong>de</strong>. São duas dimensões diferentes que se encontram e se tocam no processo <strong>de</strong> percepção consciente e que se fun<strong>de</strong>m na produção <strong>de</strong> representações. Nesse sentido, po<strong>de</strong>-se inferir que o dispositivo 47 Po<strong>de</strong>ríamos, então, arriscar uma comparação <strong>de</strong>ssa situação i<strong>de</strong>alizada com aquela que reconhecemos nas rochas, nos minerais, passivos como o são à ação do mundo físico. Diferentes dos minerais, os seres vivos possuem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar-se a si mesmos e ao mundo ao redor <strong>de</strong> seu corpo, e, graças à representação que constroem do mundo, eles po<strong>de</strong>m agir. Haveria, portanto, uma tensão no corpo vivo que o impulsionaria criar mecanismos capazes <strong>de</strong> viabilizar a ação sobre o mundo físico que o atinge incessantemente. Somos levados, portanto, a comparar essa tendência natural do corpo vivo à ação como um modo <strong>de</strong> resistir ao <strong>de</strong>sgaste natural da matéria. Em outras palavras, essa reação do corpo às imagens que o atingem – movimentos da matéria sobre a matéria – po<strong>de</strong> ser compreendida como uma luta do corpo contra a finitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua integrida<strong>de</strong> física, contra sua <strong>de</strong>sagregação enquanto uma unida<strong>de</strong> viva e relativamente autônoma; ou seja, uma luta contra a morte inevitável. Esse esforço que levaria o corpo vivo à representação seria, nesse sentido, antes <strong>de</strong> tudo, manifestação do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> viver, ou sobreviver à morte. Por outro lado, a força capaz <strong>de</strong> impulsioná-lo a produzir mecanismos capazes <strong>de</strong> permitir-lhe engendrar uma ação possível sobre o universo viria <strong>de</strong>sses estado afetivos gerados no contato do corpo vivo com o mundo; ou seja, essa situação traumática do ser diante <strong>de</strong> um mundo absolutamente inapreensível e, no entanto, atuante sobre ele. Em última instância, essa força viria da memória, dos afetos, da dor <strong>de</strong> sentir a ação do mundo sobre si mesmo sem que se possa reagir a ele. Uma dor não conhecida, pois tudo se passa, então, em um nível anterior a qualquer percepção consciente. 96
cinematográfico fundamenta-se no encontro entre o real e o virtual. Não é, portanto, a soma <strong>de</strong> vários fotogramas projetados na tela que possibilita o surgimento da imagem cinematográfica, mas o encontro entre o passado, virtual, imóvel, e o presente, real, móvel. Na verda<strong>de</strong>, ela é já uma representação, um fato psíquico: resulta <strong>de</strong> movimentos da matéria que foram manipulados pelo dispositivo técnico e que, ao atingirem nosso corpo, foram absorvidos como estímulos visuais e re-elaborados pelo pensamento com o acionamento da memória a fim <strong>de</strong> serem restituídos ao movimento enquanto uma ação convertida em representação. Veremos, contudo que tal afirmação, que nos parece relativamente simples em um primeiro momento, apresentar-se-á com nuances bem mais sutis e nem um pouco óbvias. Detenhamo-nos, então, um pouco mais diante da questão. 97
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