Cristina Toshie Lucena Nishio - Biblioteca Digital de Teses e ...

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ser negado, que faz parte de um arché. 19 A imagem cinematográfica traz consigo essa herança da fotografia: a possibilidade de se apresentar como um vestígio do real, como um rastro visual deixado pelo movimento constante da matéria. Também ela traz consigo essa qualidade, essa “objetividade essencial” que Bazin (1983) detecta na imagem fotográfica. Ela remete ao tempo real, ao devir da matéria. Mas o vestígio de real que o cinema apresenta em imagem difere daquele possibilitado pela fotografia, visto que o devir da matéria encontra um modo mais pleno de se manifestar na imagem cinematográfica. Não são apenas instantes do tempo, congelados em imagem, imutáveis, que se manifestam na situação cinematográfica; é um pedaço do real em plena mutação, em pleno devir, que ganha visibilidade com a aparição da imagem mutável. No cinema, “a imagem das coisas é também a imagem da duração delas” (Bazin, 1983). A violência de que falava Barthes sobre a insistência da imagem fotográfica em permanecer a mesma diante do nosso olhar, em não se desdobrar, em não se transformar, é suavizada, no cinema, quando a imagem adquire essa nova qualidade – o movimento – , transmutando-se para o público. Mas essa possibilidade de mutação das formas detectada na imagem cinematográfica gera conseqüências que vão além do efeito visual. A imagem cinematográfica adquire a qualidade de não apenas apontar para o real que se encontra vinculado à representação – um real que para nós, pertence ao passado – , de afirmar isso foi (Barthes, 1984, passim) – ou seja, isso foi real – , mas inclusive de restituir na representação o seu devir, de trazer para a imagem a vitalidade do real; ou seja, de afirmar ainda que isso é real, um outro tipo de real. No caso da fotografia, a presença insistente da imagem diante do público coloca-se como uma “ferida”, à medida que aponta para o real que foi no passado e que, no entanto, não é mais, a não ser enquanto representação. Ela aponta, em imagem, para esse real que foi e que agora é passado, impedindo, com isso, que o público consiga se esquecer dele. 20 No entanto, ela não pode trazê-lo de volta, a não ser enquanto imagem, enquanto representação. Diante dela, estamos cientes de que estamos lidando com uma 19 Termo empregado por Schaeffer (1987) para designar um saber sobre a gênese da imagem fotográfica que é comungado pelos integrantes da sociedade que a manipula. Um saber que se encontra socializado, que não precisa ser dito, não precisa ser confirmado, pois já está supostamente implícito na imagem. 20 A imagem fotográfica como contra-lembrança. Ela não permite a lembrança porque não deixa esquecer. 66

epresentação; no entanto, ela remete a algo que sabemos que foi real. Ela nos traz de volta ao olhar um pedaço do real que agora é passado. É a evidência desse vínculo existencial entre a imagem fotográfica e o real o que violenta tanto o público, o que o assombra. Um vínculo que não pode ser negado. 21 É esse vínculo que confere à imagem fotográfica um dom particular de se apresentar como um documento, como uma prova. Como assinala Barthes (1984), ele confere um valor jurídico à fotografia. Há, nessa imagem, uma proximidade entre o real e a representação; mais que uma proximidade, um ponto de contato. Concomitante a isso, ela reafirma a distância real entre o referente da imagem e o público que se encontra diante dela, o spectator (Barthes, op. cit., passim). É a tensão que tanto dilacera Barthes (1984). A “ferida” em imagem. Na imagem cinematográfica, por outro lado, algo de diferente se estabelece. Também ela apresenta esse vínculo com o real ao qual ela remete em sua própria gênese. No entanto, esse vínculo ganha novos traços. Ele adquire um novo valor. Pois a possibilidade do movimento, a expressão do devir na imagem, acaba por oferecer a ela uma autonomia muito maior perante esse real ao qual se encontra inegavelmente vinculada. A inscrição do real na imagem mutável é muito mais intensa, pois o movimento do real ganha expressão na imagem; mas essa nova qualidade da imagem, de poder se transformar, de poder se transmutar, acaba por lhe oferecer maior autonomia perante o real ao qual ela remete, na medida em que passa a se apresentar para o público como uma outra realidade, uma realidade de outra natureza, possuidora de uma duração própria. Há, na imagem cinematográfica, uma espécie de descolamento do real que deu lhe origem. Ela parece adquirir vida própria. 22 Ela passa a expressar, na verdade, 21 Talvez até se consiga atenuar essa evidência em casos particulares. Penso aqui, por exemplo, em alguns anúncios publicitários, nos quais há uma tendência em se amenizar esse traço essencial da imagem fotográfica . No entanto, ele não pode ser totalmente apagado na imagem; ele faz parte de um saber, de um arché, caso se prefira utilizar um termo cunhado por Schaeffer (1987). 22 O poeta russo Máximo Gorki nos deixou um relato interessante das impressões que essa imagem lhe causou, ao presenciar umas de suas primeiras aparições, em fins do século XIX: “Ontem à noite, eu estava no Reino das Sombras. (...) Quando as luzes se apagam, na sala onde nos mostram a invenção dos irmãos Lumière, uma grande imagem cinza – sombra de uma má gravura – aparece, de repente, na tela; é Une rue de Paris (Uma rua de Paris). Examinando-a, vêem-se automóveis, edifícios, pessoas, todos imóveis; pressupõese, então, que esse espetáculo nada trará de novo: vista de Paris que já vimos várias vezes? E, de repente, um curioso clique parece se produzir na tela: a imagem nasce para a vida. Os automóveis, que estavam ao fundo da imagem, vêm direto sobre você. Em alguma parte longínqua, pessoas aparecem, e quanto mais se aproximam, mais crescem. No primeiro plano, crianças brincam com um cachorro, ciclistas passam e pedestres procuram atravessar a rua. Tudo isso se agita, tudo respira vida e, de repente, tendo atingido o limite da tela, desaparece não se sabe para onde. (...) Seus movimentos são plenos de energia vital e tão rápidos que mal são percebidos (...) Uma vida nasce em sua frente, uma vida privada do som e do espectro das cores (...) A gente termina por ficar perturbado e deprimido por essa vida silenciosa e cinzenta. Acreditase que ela quer dar qualquer aviso e que ela o envolve num incerto significado sinistro; isso enfraquece o 67

ser negado, que faz parte <strong>de</strong> um arché. 19 A imagem cinematográfica traz consigo essa<br />

herança da fotografia: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se apresentar como um vestígio do real, como um<br />

rastro visual <strong>de</strong>ixado pelo movimento constante da matéria. Também ela traz consigo essa<br />

qualida<strong>de</strong>, essa “objetivida<strong>de</strong> essencial” que Bazin (1983) <strong>de</strong>tecta na imagem fotográfica.<br />

Ela remete ao tempo real, ao <strong>de</strong>vir da matéria.<br />

Mas o vestígio <strong>de</strong> real que o cinema apresenta em imagem difere daquele<br />

possibilitado pela fotografia, visto que o <strong>de</strong>vir da matéria encontra um modo mais pleno <strong>de</strong><br />

se manifestar na imagem cinematográfica. Não são apenas instantes do tempo, congelados<br />

em imagem, imutáveis, que se manifestam na situação cinematográfica; é um pedaço do<br />

real em plena mutação, em pleno <strong>de</strong>vir, que ganha visibilida<strong>de</strong> com a aparição da imagem<br />

mutável. No cinema, “a imagem das coisas é também a imagem da duração <strong>de</strong>las” (Bazin,<br />

1983). A violência <strong>de</strong> que falava Barthes sobre a insistência da imagem fotográfica em<br />

permanecer a mesma diante do nosso olhar, em não se <strong>de</strong>sdobrar, em não se transformar, é<br />

suavizada, no cinema, quando a imagem adquire essa nova qualida<strong>de</strong> – o movimento – ,<br />

transmutando-se para o público.<br />

Mas essa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mutação das formas <strong>de</strong>tectada na imagem<br />

cinematográfica gera conseqüências que vão além do efeito visual. A imagem<br />

cinematográfica adquire a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não apenas apontar para o real que se encontra<br />

vinculado à representação – um real que para nós, pertence ao passado – , <strong>de</strong> afirmar isso<br />

foi (Barthes, 1984, passim) – ou seja, isso foi real – , mas inclusive <strong>de</strong> restituir na<br />

representação o seu <strong>de</strong>vir, <strong>de</strong> trazer para a imagem a vitalida<strong>de</strong> do real; ou seja, <strong>de</strong> afirmar<br />

ainda que isso é real, um outro tipo <strong>de</strong> real.<br />

No caso da fotografia, a presença insistente da imagem diante do público coloca-se<br />

como uma “ferida”, à medida que aponta para o real que foi no passado e que, no entanto,<br />

não é mais, a não ser enquanto representação. Ela aponta, em imagem, para esse real que<br />

foi e que agora é passado, impedindo, com isso, que o público consiga se esquecer <strong>de</strong>le. 20<br />

No entanto, ela não po<strong>de</strong> trazê-lo <strong>de</strong> volta, a não ser enquanto imagem, enquanto<br />

representação. Diante <strong>de</strong>la, estamos cientes <strong>de</strong> que estamos lidando com uma<br />

19 Termo empregado por Schaeffer (1987) para <strong>de</strong>signar um saber sobre a gênese da imagem fotográfica que<br />

é comungado pelos integrantes da socieda<strong>de</strong> que a manipula. Um saber que se encontra socializado, que não<br />

precisa ser dito, não precisa ser confirmado, pois já está supostamente implícito na imagem.<br />

20 A imagem fotográfica como contra-lembrança. Ela não permite a lembrança porque não <strong>de</strong>ixa esquecer.<br />

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