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Contudo, como nos lembra Philippe Dubois (1999), mesmo com o uso desse aparato na produção das imagens, ainda assim, os pintores continuam a manter seu poder de intervenção nessa imagem. O gesto de pintá-las permite-lhes imprimir, na própria materialidade da imagem, um traço pessoal. A marca da subjetividade do pintor continua a ser deixada na materialidade da imagem, em sua gênese. O que Arlindo Machado (1984) ressalta, por outro lado, não é a subjetividade do pintor no processo de inscrição da imagem pictórica, mas essa noção de “objetividade” que costuma ser associada à imagem que se configura em perspectiva, sobretudo pelo uso da câmara obscura (ou suas sucessoras, a câmera fotográfica, cinematográfica, videográfica e mesmo a digital). Ele reconhece o vínculo existencial que seu uso estabelece entre a imagem e o real, mas ressalta que, por si só, ele não é suficiente para garantir a essa imagem o poder de dizer a verdade sobre o real. O autor observa que essa trajetória da luz obedece a uma lógica muito particular quando entra no aparato técnico; uma lógica que, em última instância, visa obter um resultado específico na configuração da imagem. Arlindo Machado (1984) pretende, portanto, denunciar a artificialidade desse “código visual” implícito na imagem que se configura em perspectiva, mesmo que essa configuração seja conseguida de uma maneira automática, pelo uso da câmara obscura. Pode-se argumentar que o modo como a luz é manipulada pelo aparato assemelha- se ao modo como ela se processa no olho humano. Mas mesmo neste caso, se os processos ópticos que ocorrem no interior da câmara obscura se assemelham aos processos ópticos que ocorrem no olho humano, isto se dá porque o dispositivo foi aperfeiçoado para esta direção, no sentido de se obter este resultado. Assim, mesmo que o resultado nos pareça natural, não se pode ignorar o fato de que essa imagem que se projeta no interior do aparato e que será fixada pela mão do artista é, e sempre será, uma imagem produzida por meio de mecanismos que o homem engendrou. Como salienta Arlindo Machado (1984), ela resulta da aplicação de um “código visual” concebido por homens que pertencem a uma época e que, portanto, estão comprometidos com um modo específico de perceber e representar o mundo que os cerca. “Sabe-se hoje que todos os sistemas perspectivos são relativos e condicionados historicamente, de forma que a perspectiva central do Renascimento não é senão uma decorrência de uma concepção de espaço e de certos deslocamentos gnosiológicos que se processavam na época.” (Machado, op. cit., p. 66) 30

Ao enfatizar o processo ótico que dá origem à imagem em perspectiva Arlindo Machado (1984) pretende denunciar a artificialidade da imagem, romper com a aparente neutralidade de seu processo de codificação, colocando em cheque a noção de objetividade que acompanha essas imagens, sobretudo as fotográficas e cinematográficas, cuja credibilidade em sua capacidade de serem fiéis à realidade aparente passa a ser enfatizada pela intervenção do processo químico na técnica de fixação da imagem. “Se a fixação [química] da informação luminosa na película é tomada como princípio do processo fotográfico, é de se supor que em toda fotografia deve intervir uma verdade originária, pois é o próprio objeto focalizado que „imprime‟ os seus sinais nos grãos de prata do negativo. Assim, ignorando os códigos pictóricos historicamente formados que estão implícitos na concepção do sistema óptico da câmara obscura, esse ponto de vista menospreza os processos de refração que modificam a informação luminosa fixada na película e se faz cego ao arbítrio da convenção fotográfica.” (ibidem, p. 32 et seq.) Arlindo Machado (1984) diverge, neste ponto, de alguns teóricos da imagem considerados “realistas” por acreditarem na capacidade da imagem fotográfica de apresentar-se como uma “emanação do referente” (Barthes, 1984, passim), e com outros, tidos como “idealistas”, por reconhecerem nela uma “objetividade essencial” fundada na própria “gênese” da imagem (Bazin, 1983, passim). Mais do que isso, alguns chegam a apontar para a capacidade dessa imagem de dizer alguma verdade sobre o referente que escapa a qualquer codificação, de permitir-lhe a “inscrição” do real, deixando ali uma “ferida” (Barthes, 1984, passim). Não nos parece, contudo, que esses autores com os quais Arlindo Machado dialoga ignorem a codificação dessa imagem, fundada em processos óticos operados pelo aparato técnico. O que nos parece é que, ao priorizarem o enfoque de suas observações no processo químico, eles percebem nessa imagem algo além da realidade visível codificada; percebem nela um outro aspecto: um modo de inscrição que deixa ali um rastro do real que foge a qualquer codificação. Esse rastro do real não codificado, apesar de presente na imagem como uma marca, não se confunde, segundo nos parece, com o realismo da imagem, mas remete a outro traço, próprio à imagem fotográfica, implícito em seu modo de materializar-se, de se constituir; em sua “ontologia”, portanto. “Hoje, entre os comentaristas da fotografia (sociólogos e semiólogos), a moda é a da relatividade semântica: nada de „real‟ (grande desprezo pelos „realistas‟ que não vêem que a foto é sempre codificada), apenas artifício: Thesis, não Phisis; a fotografia, dizem eles, não é um analogon do mundo; o que ela representa é fabricado, porque a óptica fotográfica está submetida à 31

Contudo, como nos lembra Philippe Dubois (1999), mesmo com o uso <strong>de</strong>sse<br />

aparato na produção das imagens, ainda assim, os pintores continuam a manter seu po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> intervenção nessa imagem. O gesto <strong>de</strong> pintá-las permite-lhes imprimir, na própria<br />

materialida<strong>de</strong> da imagem, um traço pessoal. A marca da subjetivida<strong>de</strong> do pintor continua a<br />

ser <strong>de</strong>ixada na materialida<strong>de</strong> da imagem, em sua gênese.<br />

O que Arlindo Machado (1984) ressalta, por outro lado, não é a subjetivida<strong>de</strong> do<br />

pintor no processo <strong>de</strong> inscrição da imagem pictórica, mas essa noção <strong>de</strong> “objetivida<strong>de</strong>” que<br />

costuma ser associada à imagem que se configura em perspectiva, sobretudo pelo uso da<br />

câmara obscura (ou suas sucessoras, a câmera fotográfica, cinematográfica, vi<strong>de</strong>ográfica e<br />

mesmo a digital). Ele reconhece o vínculo existencial que seu uso estabelece entre a<br />

imagem e o real, mas ressalta que, por si só, ele não é suficiente para garantir a essa<br />

imagem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> dizer a verda<strong>de</strong> sobre o real. O autor observa que essa trajetória da luz<br />

obe<strong>de</strong>ce a uma lógica muito particular quando entra no aparato técnico; uma lógica que,<br />

em última instância, visa obter um resultado específico na configuração da imagem.<br />

Arlindo Machado (1984) preten<strong>de</strong>, portanto, <strong>de</strong>nunciar a artificialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse “código<br />

visual” implícito na imagem que se configura em perspectiva, mesmo que essa<br />

configuração seja conseguida <strong>de</strong> uma maneira automática, pelo uso da câmara obscura.<br />

Po<strong>de</strong>-se argumentar que o modo como a luz é manipulada pelo aparato assemelha-<br />

se ao modo como ela se processa no olho humano. Mas mesmo neste caso, se os processos<br />

ópticos que ocorrem no interior da câmara obscura se assemelham aos processos ópticos<br />

que ocorrem no olho humano, isto se dá porque o dispositivo foi aperfeiçoado para esta<br />

direção, no sentido <strong>de</strong> se obter este resultado. Assim, mesmo que o resultado nos pareça<br />

natural, não se po<strong>de</strong> ignorar o fato <strong>de</strong> que essa imagem que se projeta no interior do<br />

aparato e que será fixada pela mão do artista é, e sempre será, uma imagem produzida por<br />

meio <strong>de</strong> mecanismos que o homem engendrou. Como salienta Arlindo Machado (1984),<br />

ela resulta da aplicação <strong>de</strong> um “código visual” concebido por homens que pertencem a uma<br />

época e que, portanto, estão comprometidos com um modo específico <strong>de</strong> perceber e<br />

representar o mundo que os cerca.<br />

“Sabe-se hoje que todos os sistemas perspectivos são relativos e<br />

condicionados historicamente, <strong>de</strong> forma que a perspectiva central do<br />

Renascimento não é senão uma <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma concepção <strong>de</strong> espaço e<br />

<strong>de</strong> certos <strong>de</strong>slocamentos gnosiológicos que se processavam na época.”<br />

(Machado, op. cit., p. 66)<br />

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