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pirâmide visual para onde todas as retas convergiriam. Essas retas eram chamadas de “raios visuais”. O espaço pictórico se organizava e se unificava, portanto, por meio dessas linhas de projeção que se prolongavam na aparente profundidade do campo visual, até se encontrarem no ponto de fuga. Com efeito, ao configurar o espaço pictórico de tal modo a gerar essa forma particular de impressão de profundidade de campo, o que, de fato, a perspectiva artificialis consegue produzir na imagem é um efeito visual de aparente naturalidade e realismo da cena. A imagem pictórica passa a assemelhar-se às imagens que nosso sistema visual nos fornece naturalmente no contato direto como o mundo visível. E isso é conseguido através da aplicação de regras matemáticas baseadas na geometria euclidiana que traduzem parcialmente os processos óticos que ocorrem no olho humano. Essas regras já eram conhecidas desde a Antigüidade, mas só foram aplicadas na configuração da imagem pictórica durante o Renascimento. 1 Vejamos, então, como se operam os processos óticos no olho humano: nele, a córnea viabiliza a convergência da maior parte dos raios luminosos; a íris, um músculo localizado atrás da córnea, contrai ou se dilata, interferindo no diâmetro da pupila, que se encontra em seu centro; no cristalino, ocorre, enfim, uma melhor acomodação desses raios luminosos. É eloqüente a semelhança entre esse processo ótico de convergência dos raios luminosos, que ocorre no olho durante a percepção visual do mundo físico, e as regras matemáticas que fundamentam a perspectiva artificialis na elaboração de um espaço pictórico fundado na convergência dos raios visuais dentro de uma pirâmide visual imaginária. Devemos lembrar, contudo, que o processo de percepção visual do mundo físico não se restringe às operações óticas descritas acima. Além delas, há outras, de natureza química, nervosa e mesmo psíquica. Além disso, como demonstra Bergson (1990), para que a imagem se constitua enquanto uma representação mental, para que ela tenha algum sentido, é necessária a participação não só do corpo como também do espírito, como veremos na segunda parte do nosso trabalho. No entanto, o que interessa àqueles pintores renascentistas decididos a aplicar em suas imagens esse novo código visual é o efeito visual de realismo da cena; e para que ele seja obtido basta a tradução em código visual de apenas uma dessas várias fases da percepção visual humana: a fase das operações óticas que ocorrem no olho humano. A esse respeito, o pesquisador Arlindo Machado nos fala: 1 Segundo Jacques Aumont (1993), em torno de 300 a.C., Euclides, “o pai da geometria”, foi um dos fundadores da óptica e um dos primeiros teóricos da visão. 22

“Dizia-se, naquela época, que por ser um sistema de representação fundado nas leis científicas (leia-se euclidianas) de construção do espaço, a perspectiva renascentista deveria nos dar a imagem mais justa e fiel da realidade visível. Dizia-se mais: essa mesma perspectiva deveria corresponder à visão da natureza mais próxima daquela que o olho obtém através do seu mecanismo óptico.” (id, 1984, p. 63 et seq.) Deve-se levar em conta, contudo, que a perspectiva artificialis traduz em regras matemáticas as operações óticas que ocorrem em um único olho humano durante o processo de percepção visual do mundo físico, enquanto que o sistema visual humano pressupõe a conciliação da atuação de dois olhos. Nesse contexto, reconhece-se que, apesar de traduzir matematicamente suas operações óticas, o código renascentista não é completamente fiel ao sistema visual humano, o qual é marcado pela binocularidade. Essa diferença, contudo, não chega a interferir substancialmente no efeito visual de realismo da cena representada, obtido com a aplicação do código visual renascentista. Pois, muito embora tenhamos dois olhos, as imagens ligeiramente diferenciadas que cada um deles nos viabiliza – visto estarem os olhos ligeiramente deslocados um em relação ao outro – complementam-se e se fundem em uma única imagem, a qual passa então a nos fornecer uma sensação de profundidade peculiar: uma profundidade estereoscópica. 2 Profundidade essa que aos poucos – na medida em que vamos aprendendo a lidar com nosso corpo – passamos a decodificar e a utilizar na hierarquia entre as diferentes distâncias que passam a ter os objetos percebidos em relação ao nosso posicionamento dentro do espaço, possibilitando-nos um deslocamento mais coordenado nele. A respeito do sistema visual humano, Jacques Aumont comenta: “Subjetivamente, esse objeto é visto em uma única direção, situada „entre‟ os dois olhos: é designada como „direção subjetiva‟, que liga o objeto a um „olho ciclópico‟ situado de modo fantasmático entre os dois olhos.” (1d., 1993, p. 46) Esse único “olho ciclópico”, comentado por Aumont, pode ser comparado ao ponto fixo implícito na perspectiva artificialis. Entretanto, o próprio autor adverte: 2 Aumont (1993, p. 47), entretanto nos adverte que “nenhuma [teoria] é universalmente aceita, mas a mais concorrente hoje é a da „fusão‟, que supõe que cruzamentos de conexões nervosas „fabricam‟ uma informação única, „fundida‟ a partir das duas informações diferentes dadas pelas duas retinas. (Fusão não é acumulação: a teoria prevê certa „rivalidade‟ entre os dois olhos e, se são apresentados em laboratório objetos incompatíveis aos dois olhos, um dos dois predominará, e a imagem por ele imposta será vista como única, e como vista pelos dois olhos.)” 23

“Dizia-se, naquela época, que por ser um sistema <strong>de</strong> representação fundado<br />

nas leis científicas (leia-se euclidianas) <strong>de</strong> construção do espaço, a<br />

perspectiva renascentista <strong>de</strong>veria nos dar a imagem mais justa e fiel da<br />

realida<strong>de</strong> visível. Dizia-se mais: essa mesma perspectiva <strong>de</strong>veria<br />

correspon<strong>de</strong>r à visão da natureza mais próxima daquela que o olho obtém<br />

através do seu mecanismo óptico.” (id, 1984, p. 63 et seq.)<br />

Deve-se levar em conta, contudo, que a perspectiva artificialis traduz em regras<br />

matemáticas as operações óticas que ocorrem em um único olho humano durante o<br />

processo <strong>de</strong> percepção visual do mundo físico, enquanto que o sistema visual humano<br />

pressupõe a conciliação da atuação <strong>de</strong> dois olhos. Nesse contexto, reconhece-se que, apesar<br />

<strong>de</strong> traduzir matematicamente suas operações óticas, o código renascentista não é<br />

completamente fiel ao sistema visual humano, o qual é marcado pela binocularida<strong>de</strong>.<br />

Essa diferença, contudo, não chega a interferir substancialmente no efeito visual <strong>de</strong><br />

realismo da cena representada, obtido com a aplicação do código visual renascentista. Pois,<br />

muito embora tenhamos dois olhos, as imagens ligeiramente diferenciadas que cada um<br />

<strong>de</strong>les nos viabiliza – visto estarem os olhos ligeiramente <strong>de</strong>slocados um em relação ao<br />

outro – complementam-se e se fun<strong>de</strong>m em uma única imagem, a qual passa então a nos<br />

fornecer uma sensação <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> peculiar: uma profundida<strong>de</strong> estereoscópica. 2<br />

Profundida<strong>de</strong> essa que aos poucos – na medida em que vamos apren<strong>de</strong>ndo a lidar com<br />

nosso corpo – passamos a <strong>de</strong>codificar e a utilizar na hierarquia entre as diferentes<br />

distâncias que passam a ter os objetos percebidos em relação ao nosso posicionamento<br />

<strong>de</strong>ntro do espaço, possibilitando-nos um <strong>de</strong>slocamento mais coor<strong>de</strong>nado nele.<br />

A respeito do sistema visual humano, Jacques Aumont comenta:<br />

“Subjetivamente, esse objeto é visto em uma única direção, situada „entre‟ os<br />

dois olhos: é <strong>de</strong>signada como „direção subjetiva‟, que liga o objeto a um<br />

„olho ciclópico‟ situado <strong>de</strong> modo fantasmático entre os dois olhos.” (1d.,<br />

1993, p. 46)<br />

Esse único “olho ciclópico”, comentado por Aumont, po<strong>de</strong> ser comparado ao ponto<br />

fixo implícito na perspectiva artificialis. Entretanto, o próprio autor adverte:<br />

2 Aumont (1993, p. 47), entretanto nos adverte que “nenhuma [teoria] é universalmente aceita, mas a mais<br />

concorrente hoje é a da „fusão‟, que supõe que cruzamentos <strong>de</strong> conexões nervosas „fabricam‟ uma<br />

informação única, „fundida‟ a partir das duas informações diferentes dadas pelas duas retinas. (Fusão não é<br />

acumulação: a teoria prevê certa „rivalida<strong>de</strong>‟ entre os dois olhos e, se são apresentados em laboratório objetos<br />

incompatíveis aos dois olhos, um dos dois predominará, e a imagem por ele imposta será vista como única, e<br />

como vista pelos dois olhos.)”<br />

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