Cristina Toshie Lucena Nishio - Biblioteca Digital de Teses e ...
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Mas Barthes nos mostra que o surgimento do processo químico de fixação da imagem – o qual possibilita o nascimento da imagem fotográfica – torna-lhe possível a expressão de um traço do real que escapa ao processo de codificação. Algo do real se inscreve automaticamente na fotografia, sem a intervenção do código. Mesmo após vários autores terem denunciado a “artificialidade” da fotografia (Panofsky, Machado, Couchot, dentre outros), quando concentravam suas análises no processo ótico que se opera no aparato técnico e, por meio dela, argumentavam sobre a codificação arbitrária e ideológica da imagem, Barthes reafirma a tese de Bazin sobre a capacidade dessa imagem em nos transmitir algo sobre o real que escapa à intervenção do seu produtor. Como já observara Bazin, a particularidade da fotografia está em sua “gênese automática”, ou seja, no processo ótico-químico de produção da imagem latente: o material foto-sensível é exposto à luz, quando esta penetra no interior do aparato técnico e lhe transmite informações sobre a realidade material. A mesma luz que atinge o modelo também toca o suporte foto- sensível que servirá de base para sua representação. É ela quem garante o vínculo entre real e representação e permite a esta expressar algo sobre aquele sem que seja submetido ao código visual. Afinal, o que o código visual traduz em imagem é a parte visível do real: a matéria que reflete luz. Mas a dimensão temporal do real é invisível. Como representá-la em imagem? O tempo distinto da matéria seria como a luz movendo-se sem que houvesse corpo físico algum para absorver-lhe, nem refleti-la. Seria como um movimento que seguiria ao infinito sem que nunca chegasse a se manifestar em ponto algum. Para que ela exista enquanto tal, é necessário que interaja com a matéria. Do mesmo modo, o tempo só existe embrenhado na matéria. O movimento só é movimento quando se transforma em uma qualidade da matéria. É essa dimensão do real que conquista a possibilidade de expressão na imagem fotográfica. Como Barthes nos indicou, a fotografia tem esse poder de nos apontar para um instante da matéria em movimento; um instante do tempo real. O noema isso foi. Contudo, ela está fora do tempo. É uma imagem congelada dele. A dimensão temporal do real, para qual a fotografia aponta, não se confunde, portanto, com a parte visível que ficou codificada no espaço da representação. Na fotografia, há uma espécie de tensão constante entre o tempo (que foi) real ao qual ela remete e o espaço (visual) que, de fato, ela consegue disponibilizar para o público como um “espetáculo” (codificado) para o olhar; mas essas instâncias não se misturam, não se fundem. É a “ferida” da fotografia. Ela tem esse poder de “apontar” para essa parte não visível do real – e que, portanto, não se subordina ao código visual, mas permanece absolutamente objetiva 122
– sem, no entanto, trazer essa dimensão do real para o interior da imagem. Instaura-se, então, uma espécie de pressão que tende a romper com a unidade da imagem e forçar-lhe uma abertura, na qual se manifestaria a emergência de uma outra dimensão do sujeito, a qual também já não se encontraria mais subordinado ao código. Todavia, o grande incômodo que ela gera é sua impossibilidade de superar essa tensão e possibilitar o encontro entre o visível e o invisível, uma co-existência entre ambas na própria representação. O cinema traz essa herança da fotografia. Também ele tem esse poder de apontar para um momento do real movente. Mas, como se sabe, ele não paralisa o real em uma representação fixa. Ele tem o poder de restituir o movimento à imagem. E não é um mero efeito de trucagem promovido pelo aparato técnico. Pois, como foi demonstrado ao longo do presente trabalho, o movimento só é, de fato, restituído à imagem com a intervenção efetiva do público em sua própria constituição, quando ele se apropria das imagens expostas na tela e as restitui à duração pela atividade da memória. É de lá que vem o movimento. De lá também surge toda a carga afetiva e singular dessa imagem, que passará a ser única para cada um que se dispuser a participar da “situação cinematográfica”. Eis aí especificidade da imagem cinematográfica. A expressão do tempo só se torna possível à imagem porque ela resulta desse encontro entre o visível – sustentado no “duplo palco” (Oudart), previsto no funcionamento do código, e para o qual tanto o real, quanto o sujeito, são submetidos – e o invisível – que passa a remeter, enfim, a uma outra dimensão deles, do real e do sujeito, que não se sujeita à tradução, que não se subjuga ao código. Essa é a abertura da imagem que lhe possibilita desdobrar-se, transformar-se com a atuação da “vida interior” de cada espectador. Do ponto de vista da técnica, o aparato que instaura a possibilidade desse encontro entre o visível e o invisível é o projetor. É por meio dele que são criadas condições técnicas que viabilizam a “situação cinematográfica”. Na verdade, como vimos, ele remete à tradição da lanterna mágica, apreciada pelo público ocidental desde o século XVII. Quando, em fins do século XIX, surge o cinematógrafo de Lumière, ocorre essa espécie de fusão entre a câmara obscura, a lanterna mágica, e as técnicas de produção de imagens mutáveis, as quais haviam sido desenvolvidas ao longo do século XIX e foram associadas à lanterna mágica na produção de imagem luminosas e mutáveis antes mesmo do surgimento da imagem cinematográfica. O surgimento de cinematógrafo marca, enfim, 123
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Mas Barthes nos mostra que o surgimento do processo químico <strong>de</strong> fixação da<br />
imagem – o qual possibilita o nascimento da imagem fotográfica – torna-lhe possível a<br />
expressão <strong>de</strong> um traço do real que escapa ao processo <strong>de</strong> codificação. Algo do real se<br />
inscreve automaticamente na fotografia, sem a intervenção do código. Mesmo após vários<br />
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<strong>de</strong>ntre outros), quando concentravam suas análises no processo ótico que se opera no<br />
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Bazin, a particularida<strong>de</strong> da fotografia está em sua “gênese automática”, ou seja, no<br />
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à luz, quando esta penetra no interior do aparato técnico e lhe transmite informações sobre<br />
a realida<strong>de</strong> material. A mesma luz que atinge o mo<strong>de</strong>lo também toca o suporte foto-<br />
sensível que servirá <strong>de</strong> base para sua representação. É ela quem garante o vínculo entre real<br />
e representação e permite a esta expressar algo sobre aquele sem que seja submetido ao<br />
código visual. Afinal, o que o código visual traduz em imagem é a parte visível do real: a<br />
matéria que reflete luz. Mas a dimensão temporal do real é invisível. Como representá-la<br />
em imagem? O tempo distinto da matéria seria como a luz movendo-se sem que houvesse<br />
corpo físico algum para absorver-lhe, nem refleti-la. Seria como um movimento que<br />
seguiria ao infinito sem que nunca chegasse a se manifestar em ponto algum. Para que ela<br />
exista enquanto tal, é necessário que interaja com a matéria. Do mesmo modo, o tempo só<br />
existe embrenhado na matéria. O movimento só é movimento quando se transforma em<br />
uma qualida<strong>de</strong> da matéria. É essa dimensão do real que conquista a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
expressão na imagem fotográfica. Como Barthes nos indicou, a fotografia tem esse po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> nos apontar para um instante da matéria em movimento; um instante do tempo real. O<br />
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dimensão temporal do real, para qual a fotografia aponta, não se confun<strong>de</strong>, portanto, com a<br />
parte visível que ficou codificada no espaço da representação. Na fotografia, há uma<br />
espécie <strong>de</strong> tensão constante entre o tempo (que foi) real ao qual ela remete e o espaço<br />
(visual) que, <strong>de</strong> fato, ela consegue disponibilizar para o público como um “espetáculo”<br />
(codificado) para o olhar; mas essas instâncias não se misturam, não se fun<strong>de</strong>m. É a<br />
“ferida” da fotografia. Ela tem esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “apontar” para essa parte não visível do real –<br />
e que, portanto, não se subordina ao código visual, mas permanece absolutamente objetiva<br />
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