Cristina Toshie Lucena Nishio - Biblioteca Digital de Teses e ...

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nesse sentido, a expressão visual dessa noção clássica de tempo linear, mensurável e abstrato. No próprio modo de funcionamento da câmera, há a necessidade de medir o tempo de exposição do material sensível; período no qual uma parte do dispositivo se abre para que a luz penetre na objetiva e atinja a superfície do material sensível, formando, assim, a imagem latente. A reação química do material sensível à luz precisa desse controle do tempo. Nesse sentido, o funcionamento da câmera prevê um mecanismo para medir o tempo que é muito similar ao relógio mecânico. Nesse mecanismo, o tempo passa a ser dividido em unidades constantes, matemáticas. Ele se transforma em algo “duro”, que não se estende ou se distende aleatoriamente, mas se mantém preso em unidades abstratas. 61 Por outro lado, há o referente fotográfico. E, com ele, o punctum da imagem definido por Barthes (1984). Há um pedaço do real que ficou representado na imagem, que se inscreveu na matéria que lhe serve de suporte. A fotografia se sugere como um rastro deixado pelo real pela ação da luz sobre a matéria foto-sensível. Ela é uma marca deixada pelo real, na qual ele ficou congelado em um instante de seu devir. Ela dá visibilidade, portanto, a um momento do real. O estado em que ele se encontrava no momento em que a 61 Segundo o físico Géza Szamosi (1988), a noção de tempo compreendido como independente do ambiente ganha mais popularidade com a invenção dos relógios mecânicos. Antes destes, havia os relógios biológicos, que indicavam as fases por que passavam as transformações da natureza. A passagem do dia para a noite, da noite para o dia, as fases da Lua, a passagem das estações do ano, são alguns exemplos de padrões de tempo fundamentados na experiência sensorial. Um tempo associado às transformações do ambiente. Os calendários tentam codificar esse tempo. Mas há um problema de difícil solução: as fases variam, um dia nunca é igual ao outro. Os anos não são exatos. De qualquer modo, como o próprio físico Géza Szamosi (1988) nos sugere, a construção dos calendários serviu para as sociedades humanas estabelecerem um ritmo nos acontecimentos sociais mais independente dos ritmos da natureza. No entanto, ainda assim havia uma sintonia entre ambos. Segundo ele, o descolamento dos ritmos dos homens perante os ritmos da natureza só aconteceu mesmo com a invenção do tempo clássico. Antes disso, porém o surgimento dos primeiros relógios mecânicos já no século IX, na China, e no século XIV, na Europa começam a divulgar essa noção abstrata de tempo. Esses relógios começam a ser usados muito antes de Galileu propor a noção de tempo independente do movimento, linear, constante e, portanto, mensurável. Além disso, o físico Szamosi (1988) nos sugere ainda que a noção de tempo clássica só pode surgir no meio científico após o desenvolvimento da música secular, que começa a surgir já no século XI, com os Cantos Gregorianos. Os músicos buscavam formas de representar suas composições musicais em escritas visuais: formas simbólicas que fossem capazes de representar e comparar a duração das notas, que pudessem regular as melodias por unidades de tempo e estabelecer relações claras entre elas. Essa busca propõe uma manipulação simbólica das durações. E, a partir dela, o seu controle. Fundou-se então a cronometria musical. A Escola de Notre Dame destacou-se nesse intento, com seus conhecidos “modos rítmicos”. E, desde então, a teoria musical não cessou de ser aperfeiçoada e até reavaliada. De qualquer modo, o que vale aqui observar é que, segundo o físico, a música secular estendeu o domínio dos homens para o fluxo temporal, manipulando as durações e engendrando novos ritmos; ritmos independentes do ambiente; ritmos abstratos. Ela familiarizou os homens cultos da época a essa nova noção de tempo e ritmo, manipuláveis e controláveis por unidades de medida constantes. 114

câmara foi acionada pelo dedo do fotógrafo 62 fica congelado na imagem. Para que esse registro do real possa se viabilizar, é necessário um tempo de exposição do material sensível à luz. É,pois, a necessidade desse tempo de exposição que nos leva a reconhecer uma espécie de inscrição do tempo real na imagem fotográfica. 63 Em última instância, a imagem remete a um determinado momento do tempo que foi real. Esse momento fotográfico passa a ser entendido então como um instante do tempo real, que se sucede ao infinito. Um ponto do tempo que foi capturado pelo aparato fotográfico e que viabilizou a imagem fotográfica. Um instante do tempo real que ficou congelado na representação. A imagem passa então a ser compreendida como uma “emanação do referente” (Barthes, 1984). Ela dá expressão visual ao tempo real com o noema isso foi definido por Roland Barthes. Contudo, essa expressão do tempo real na fotografia é destituída do movimento. A imagem remete ao tempo real, mas subtrai dele sua mobilidade. Ela aponta para o real: “isso foi” real. Mas ao mesmo tempo em que traz de volta um momento que foi real, não lhe possibilita mais a mudança, a transformação. Ela expressa, portanto, uma noção de tempo real na qual a “duração” foi extraída. Nela, nada mais acontece. Nada de novo pode ocorrer além do próprio acontecimento que ficou ali registrado em imagem. Ao registrar um momento do tempo real, a fotografia funciona, então, como uma “memória artificial” 64 que não deixa o ser consciente esquecer aquele momento. Ela oferece ao olhar a representação de um acontecimento real que não se desdobra mais, que ficou ali congelado na imagem. Ela traz de volta uma imagem do presente que não se transforma, que não evolui, pois está fora da duração. Ela está fora não só do tempo real, como também da memória, dos afetos, pois ficou congelada em uma representação que insiste em se manter 62 “Para mim o órgão do fotógrafo não é o olho (ele me terrifica), é o dedo: o que está ligado ao disparador da objetiva, ao deslizar metálico das placas (quando as máquinas ainda as tem).” (Barthes, 1984, p. 30) 63 “Em toda imagem fotográfica há necessariamente inscrição do tempo. Mesmo nas maiores velocidades de obturação que podem hoje ser obtidas, o intervalo de exposição do filme à luz sempre resulta suficientemente longo para registrar uma duração, portanto, uma evolução do objeto no tempo. Se isso não é perceptível na prática cotidiana da fotografia é porque sempre se busca uma compatibilidade entre velocidade de obturação e velocidade do motivo fotografado, de modo a obter como resultado o intervalo exato para congelamento desse último.” (Machado, 1997, p. 62) 64 Emprego o termo “memória artificial” na acepção que lhe dá Pierre Lévy, em As tecnologias da inteligência (1993). Nesse sentido, sugiro que a fotografia se propõe como um tipo de memória que se sustenta em um suporte material distinto do corpo humano; uma memória que não se opera por “processos minemônicos”. Uma memória que não nos deixa esquecer esse passado, uma memória imutável. E, além de tudo, uma memória que, como salienta Philippe Dubois (1994), apresenta qualidades de índice e de ícone. Ou seja, uma memória que tem uma ligação existencial com o passado e que, além disso, guarda semelhanças visuais com aquilo que ela representa. 115

câmara foi acionada pelo <strong>de</strong>do do fotógrafo 62 fica congelado na imagem. Para que esse<br />

registro do real possa se viabilizar, é necessário um tempo <strong>de</strong> exposição do material<br />

sensível à luz. É,pois, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse tempo <strong>de</strong> exposição que nos leva a reconhecer<br />

uma espécie <strong>de</strong> inscrição do tempo real na imagem fotográfica. 63 Em última instância, a<br />

imagem remete a um <strong>de</strong>terminado momento do tempo que foi real. Esse momento<br />

fotográfico passa a ser entendido então como um instante do tempo real, que se suce<strong>de</strong> ao<br />

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imagem fotográfica. Um instante do tempo real que ficou congelado na representação. A<br />

imagem passa então a ser compreendida como uma “emanação do referente” (Barthes,<br />

1984). Ela dá expressão visual ao tempo real com o noema isso foi <strong>de</strong>finido por Roland<br />

Barthes.<br />

Contudo, essa expressão do tempo real na fotografia é <strong>de</strong>stituída do movimento. A<br />

imagem remete ao tempo real, mas subtrai <strong>de</strong>le sua mobilida<strong>de</strong>. Ela aponta para o real:<br />

“isso foi” real. Mas ao mesmo tempo em que traz <strong>de</strong> volta um momento que foi real, não<br />

lhe possibilita mais a mudança, a transformação. Ela expressa, portanto, uma noção <strong>de</strong><br />

tempo real na qual a “duração” foi extraída. Nela, nada mais acontece. Nada <strong>de</strong> novo po<strong>de</strong><br />

ocorrer além do próprio acontecimento que ficou ali registrado em imagem. Ao registrar<br />

um momento do tempo real, a fotografia funciona, então, como uma “memória artificial” 64<br />

que não <strong>de</strong>ixa o ser consciente esquecer aquele momento. Ela oferece ao olhar a<br />

representação <strong>de</strong> um acontecimento real que não se <strong>de</strong>sdobra mais, que ficou ali congelado<br />

na imagem. Ela traz <strong>de</strong> volta uma imagem do presente que não se transforma, que não<br />

evolui, pois está fora da duração. Ela está fora não só do tempo real, como também da<br />

memória, dos afetos, pois ficou congelada em uma representação que insiste em se manter<br />

62 “Para mim o órgão do fotógrafo não é o olho (ele me terrifica), é o <strong>de</strong>do: o que está ligado ao disparador da<br />

objetiva, ao <strong>de</strong>slizar metálico das placas (quando as máquinas ainda as tem).” (Barthes, 1984, p. 30)<br />

63 “Em toda imagem fotográfica há necessariamente inscrição do tempo. Mesmo nas maiores velocida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

obturação que po<strong>de</strong>m hoje ser obtidas, o intervalo <strong>de</strong> exposição do filme à luz sempre resulta suficientemente<br />

longo para registrar uma duração, portanto, uma evolução do objeto no tempo. Se isso não é perceptível na<br />

prática cotidiana da fotografia é porque sempre se busca uma compatibilida<strong>de</strong> entre velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obturação<br />

e velocida<strong>de</strong> do motivo fotografado, <strong>de</strong> modo a obter como resultado o intervalo exato para congelamento<br />

<strong>de</strong>sse último.” (Machado, 1997, p. 62)<br />

64 Emprego o termo “memória artificial” na acepção que lhe dá Pierre Lévy, em As tecnologias da<br />

inteligência (1993). Nesse sentido, sugiro que a fotografia se propõe como um tipo <strong>de</strong> memória que se<br />

sustenta em um suporte material distinto do corpo humano; uma memória que não se opera por “processos<br />

minemônicos”. Uma memória que não nos <strong>de</strong>ixa esquecer esse passado, uma memória imutável. E, além <strong>de</strong><br />

tudo, uma memória que, como salienta Philippe Dubois (1994), apresenta qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> índice e <strong>de</strong> ícone. Ou<br />

seja, uma memória que tem uma ligação existencial com o passado e que, além disso, guarda semelhanças<br />

visuais com aquilo que ela representa.<br />

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