Adelson Silva dos Santos - Conpedi
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RESUMO<br />
DA BIOPIRATARIA À BIOPARANÓIA<br />
3<br />
<strong>Adelson</strong> <strong>Silva</strong> <strong>dos</strong> <strong>Santos</strong> ∗<br />
Este artigo aborda a biopirataria no contexto das chamadas teorias conspiratórias. O autor<br />
demonstra através de exemplos que o alarde da biopirataria camufla o real problema da<br />
Amazônia: a falta de política de Estado para a região. Sem esse divisor crítico a propalada<br />
biopirataria não passa de bioparanóia, um medo irracional de um inimigo que no final das<br />
contas somos nós mesmos. Inversão de capital público e privado para desenvolver de<br />
modo sustentável e sustentado a região; aplicação de dinheiro em ciência e tecnologia e<br />
participação popular, eis o projeto capaz de superar o desafio e a oportunidade de estar<br />
sobre uma riquíssima biodiversidade e dar vida digna para to<strong>dos</strong> que nela vivem.<br />
PALAVRAS-CHAVE: BIOPIRATARIA – BIOPARANÓIA - BIODIVERSIDADE DA<br />
AMAZÔNIA.<br />
RESUMEN<br />
Estima el productor qué la biopirataria és uma discusión del llamada teorías conspiratórias.<br />
El maker ella manifestar a través de ejemplos qué el ostentación de biopirataria olvida el<br />
real problema de Amazônia : el falta de póliza de Estado por región. Sin esto divisible<br />
crítico el revelar biopirataria no cambia de bioparanóia , un miedo irracional por un hostil<br />
qué al fin del cuentas somos nosotros mismos. Inversión de capital público i privado hasta<br />
revelar para sustainable i apoyo el región ; aplicación de dinero em ciencia tecnologia &<br />
participación popular eis el proyecto capaz de superar el desafío & el ocasión de ser por un<br />
riquíssima biodiversity & entregar vida condescender por todo el mundo qué en él viven.<br />
PALABRAS-CLAVE: BIOPIRATARIA – BIOPARANÓIA - BIODIVERSITY DE<br />
AMAZÔNIA.<br />
∗ Mestrando em direito ambiental pela UEA. Juiz do trabalho e psicólogo. Professor de filosofia e psicologia<br />
jurídica na UNIP – Universidade Paulista.
INTRODUÇÃO<br />
A Amazônia por sua biodiversidade se presta à aplicação das chamadas teorias<br />
conspiratórias. Conspiração para internacionalização da Amazônia, biopirataria (tráfico de<br />
animais, plantas e microorganismos), mapeamento via satélite das riquezas minerais da<br />
região por grupos estrangeiros, ansiedade do mercado internacional por produtos da<br />
Amazônia, entre outras panacéias parecem elevar a região a celeiro e última fronteira de<br />
tudo. A comunidade internacional não tem outra preocupação senão pensar na Amazônia e<br />
como tomá-la das mãos <strong>dos</strong> brasileiros e colocá-la nas garras do grande capital.<br />
Talvez seja preciso exorcizar tais teorias conspiratórias de nossas mentes e ter uma<br />
visão mais clara e realista da Região. Separar o que é verdade, na teoria e na prática, do<br />
que é pura paranóia (mania de perseguição, ver inimigos em todas as iniciativas, colocar<br />
no imaginário do outro aquilo que está em si próprio etc.).<br />
Como qualquer região viável do Planeta, a Amazônia é uma área de expansão<br />
humana. Ora, onde há existência humana, a vida precisa ser construída em sua acepção<br />
mais básica: moradia, alimentação, vestuário, lazer e educação. Trata-se da reprodução<br />
social da vida, que passa necessariamente pelo desenvolvimento da economia. A economia<br />
se move na relação com o meio ambiente: a moradia precisa de espaço e material, com o<br />
necessário desflorestamento e extração mineral; a alimentação é obtida pelas atividades<br />
agrícolas, extrativas, entre outras, a partir de recursos naturais renováveis; o vestuário<br />
também é elaborado a partir de insumos da natureza. O lazer também ocupa espaço e<br />
interfere nos ciclos normais do meio ambiente natural, e assim por diante.<br />
Ou seja, a atividade antrópica interfere nos ciclos da natureza e não mantém o meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado, do ponto de vista da ciência ecológica. A questão<br />
econômica básica, da escassez <strong>dos</strong> recursos versus as necessidades ilimitadas <strong>dos</strong> seres<br />
humanos, tanto por forças endógenas (ex: fome), como exógenas (as necessidades<br />
externadas socialmente), é resolvida com o uso <strong>dos</strong> recursos naturais, com tudo que isso<br />
significa de implicação ao meio ambiente.<br />
De fato, o ser humano ocupa as mais variadas regiões da terra, nem sempre por<br />
processo de adaptação natural, mas sim pelo desenvolvimento de adaptação artificial,<br />
propiciada pela cultura adquirida, com a conseqüente criação de seu espaço vital. Está<br />
sujeito, às mesmas leis da natureza como qualquer organismo, porém a ampla capacidade<br />
de adaptação o qualifica de forma impar a ocupar o planeta, sem comparação com<br />
qualquer outro ser vivo. O homem, ademais, não se enquadra na regra ecológica de que<br />
4
“para determinado tempo existem limites à diversidade da população que são<br />
estabeleci<strong>dos</strong> pelo fluxo de energia e pelo nível trófico da espécie” 1 . Essa regra ecológica<br />
não se aplica cabalmente ao ser humano face o meio artificial que cria para si. Em outros<br />
termos, o ser humano consome energia além <strong>dos</strong> limites do ecossistema, porque não segue<br />
o ritmo de absorção <strong>dos</strong> impactos pela natureza. Desse modo, sua relação com a natureza é<br />
sempre geradora de desequilíbrio, implicando degradação ambiental (qualquer população<br />
humana, inclusive os povos indígenas).<br />
A Amazônia não escapa dessa evidência intrínseca da realidade humana. Também<br />
a região é oportunidade do acontecer humano e de aproveitamento de seus recursos. Nada<br />
mais natural, pois, que os agentes econômicos possam se interessar por esse palco de tão<br />
vasta biodiversidade (pena que o interesse esteja voltado no mais das vezes à extração de<br />
madeira, jogando no lixo o conhecimento e a possibilidade de negócios com bioprodutos).<br />
Todavia, de qualquer modo, mister se faz que a economia da Região leve em<br />
consideração o viés ambiental. Como sustenta Derani 2 , “[...] não é possível ver a ordem<br />
econômica dissociada do meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Realmente, não<br />
existe desenvolvimento econômico sem exploração <strong>dos</strong> recursos da natureza, sejam<br />
renováveis ou não, e sempre mediatiza<strong>dos</strong> (decidi<strong>dos</strong>) por políticas públicas que mais ou<br />
menos controlam os agentes econômicos, no jogo do poder social de decisão, no qual toda<br />
coletividade está implicada, ativa ou passivamente.<br />
A opção mais consistente para a Amazônia é a via do conhecimento do que seja a<br />
região e do que pode para contribuir no projeto global da humanidade, nos limites do<br />
desenvolvimento sustentado e sustentável. Não se trata de manter intocada essa parte do<br />
Brasil e nem de explorá-la predatoriamente. Ao contrário, apoia<strong>dos</strong> na ciência e na<br />
tecnologia, compatibilizar a preservação e/ou conservação da biodiversidade amazônica às<br />
presentes e futuras gerações, com os postula<strong>dos</strong> da sustentabilidade econômica:<br />
aproveitamento de recursos com tecnologia limpa, para que a população local encontre os<br />
meios necessários, dentro de suas características culturais viáveis, na construção da<br />
própria existência, minimizando os riscos de degradação ambiental e das externalidades<br />
negativas que não possam ser absorvidas plenamente pelo ecossistema.<br />
Dar condições dignas aos que vivem e venham a viver na Amazônia não pode ser<br />
relegado ao segundo plano. E isso é prioridade, pois nunca é demais lembrar que um <strong>dos</strong><br />
1<br />
FORATTINI, Oswaldo P. Ecologia – epidemiologia e sociedade. São Paulo: IEUSP e artmed, 1992, P.<br />
193.<br />
2<br />
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2004, p. 23.<br />
5
fatores mais relevante para a degradação ambiental é a miséria (a vontade de comer, e não<br />
ter como supri-la dignamente). Onde o ser humano passa fome é aviltado em sua<br />
dignidade, e nem tem perspectiva de vida, não havendo espaço á consciência ecológica.<br />
2 A ECONOMIA SUSTENTADA E SUSTENTÁVEL CONTRA A BIOPIRATARIA<br />
Não é porque o modelo de desenvolvimento <strong>dos</strong> países ricos foi e é de depredação<br />
e devastação ambiental que os países pobres devem renunciar a estabelecer bases sólidas<br />
da economia, para deixar intoca<strong>dos</strong> os bens da natureza. A oportunidade do desafio da<br />
qualidade de vida é crescer economicamente sem devastar. Desenvolver sem esbanjar e,<br />
para tanto, faz-se necessário o desenvolvimento de ciência e tecnologia. Se a população na<br />
Amazônia está assentada sobre uma riquíssima biodiversidade, por que isso não se traduz<br />
em desenvolvimento <strong>dos</strong> entes federativos pertinentes, e de seus cidadãos?<br />
Em artigo publicado no jornal do Comércio/AM Ozório 3 escreveu ser inútil a<br />
biodiversidade, se não servir para sustentar dignamente a vida humana na região:<br />
[...] a biodiversidade mal serve para alimentar esperanças<br />
irrealizadas ou serve como figura de retórica em pronunciamentos<br />
panfletários de políticos desprepara<strong>dos</strong> que através dela, acirram<br />
sentimentos de um patriotismo inculto que nada constrói. O café<br />
da manhã, o almoço, o lanche da tarde, o jantar, quase toda nossa<br />
alimentação é feita com organismos exóticos, enquanto nossa<br />
biodiversidade continua como um bem quase inútil.<br />
Se o caboclo não comeu farinha de mandioca, tucumã, paca, anta, pirarucu e outros<br />
frutos e produtos regionais, sequer se beneficiou, no básico (a alimentação), da<br />
biodiversidade. O Amazônida não pode comer, grosso modo, a proteína animal da região,<br />
porque pode ser multado pelo IBAMA e cometer crime federal. O filho da terra vai comer<br />
café, pão, bolacha, frango, carne bovina etc. Tudo produto exótico (importado), porque<br />
não tem direito de viver de seu habitat natural, <strong>dos</strong> recursos biológicos que lhes estão<br />
disponíveis.<br />
Continua o referido articulista, no mesmo artigo jornalístico:<br />
Essa desvalorização da biodiversidade amazônica em benefício de<br />
organismos de outras regiões da terra continua sendo praticada com um<br />
desastroso agravamento causado pela derrubada da floresta no entorno da<br />
cidade e pela destruição irreversível, pelo fogo, de nossa diversidade biológica<br />
e genética [...]. Não nos enganemos. A Amazônia até pode ser uma<br />
preocupação, mas nunca foi prioridade de nenhum Governo. Interiorização da<br />
economia, terceiro ciclo, zona franca verde, são projetos vazios de saberes de<br />
ponta. A única forma de associar biodiversidade e desenvolvimento é utilizar os<br />
últimos avanços da ciência e da tecnologia para fabricar bioprodutos com alto<br />
valor agregado [...].<br />
3<br />
FONSECA, Ozório. Biodiversidade e Desenvolvimento. Jornal do Comércio do Amazonas, edição de 22<br />
de maio de 2005.<br />
6
Três eventos regionais podem ajudar nesta reflexão: o caso das sementes de<br />
seringueira levadas à Inglaterra e cultivadas na Malásia, arruinando o chamado ciclo da<br />
borracha (economia gomífera), o projeto Zona Franca de Manaus e a tentativa da<br />
NOVARTIS de se instalar na região para fazer bioprospecção.<br />
2.1 A biopirataria das sementes da seringueira<br />
A economia gomífera teve seu período áureo entre 1870 e 1913, cuja expansão<br />
impôs um fluxo migratório para a região, transformando o quadro social regional. A tônica<br />
de tal economia era o sistema de aviamento, onde no topo estavam as grandes casas<br />
aviadoras (de fiado) e exportadoras. Segundo Ozório Fonseca, no mesmo artigo acima<br />
citado,<br />
Com o advento da revolução industrial, surgiu o interesse pela goma<br />
elástica, um produto abundante na Amazônia cujo modelo de exploração foi<br />
concebido no exterior e imposto ao Governo brasileiro, sem participação da<br />
inteligência regional (ou nacional). O tal modelo incluía a coleta do látex no<br />
hiterland, uma empresa aviadora nas Capitais, uma empresa internacional de<br />
transporte e uma empresa importadora na Europa. O grande fundamento da<br />
idéia era levar o produto quase ‘in natura’ para centros detentores de tecnologia<br />
onde o látex seria beneficiado adquirindo alto valor agregado, ou para centros<br />
manipuladores <strong>dos</strong> mecanismos de mercado, onde eram defini<strong>dos</strong> os preços.<br />
Com isso, permitiu-se apenas à classe dominante local se apoderar de uma pequena<br />
parte <strong>dos</strong> lucros desse comércio da diversidade biológica da região. Essa pequena parte<br />
<strong>dos</strong> lucros foi usada para esbanjar e construir, no caso de Manaus, uma Paris tropical<br />
caricaturada.<br />
A decadência da fase áurea foi marcada pela retirada de aproximadamente 70.000<br />
sementes de seringueira para a Inglaterra com o fito de desenvolvimento e posterior<br />
plantio na Malásia. Os planos e projetos de valorização e defesa da borracha brasileira no<br />
mercado internacional foram tími<strong>dos</strong> e não tiveram resulta<strong>dos</strong> porque tinham foco na<br />
situação do mercado e não nos condicionantes da produção, além de não contar com a<br />
ênfase do Governo Central mais preocupado com o setor cafeeiro sulista.<br />
O ciclo da borracha foi um período de riqueza, com base num produto regional,<br />
porém concentrada nas mãos de poucos e de esbanjamento por estes poucos enriqueci<strong>dos</strong>.<br />
Com a descoberta da vulcanização em 1842, eles tiveram uma oportunidade de imprimir à<br />
região um ciclo duradouro, diversificar a economia, trabalhar na reprodução social do<br />
capital e da tecnologia e, ao contrário disso, o fizeram efêmero e sem raízes para a<br />
posteridade, a não ser pela bucólica lembrança de época da qual restaram algumas<br />
7
edificações, como o teatro Amazonas, o porto flutuante etc, mal capitanea<strong>dos</strong> pela<br />
indústria do turismo.<br />
Superada a economia gomífera pela produção racional, competente e conseqüente<br />
da borracha na Malásia, através <strong>dos</strong> ingleses, restou às vozes regionais o lamento de que o<br />
ciclo passou porque sementes da seringueira foram biopirateadas.<br />
Na verdade não houve biopirataria, as sementes saíram pelo porto de Manaus com<br />
to<strong>dos</strong> os selos das autoridades alfandegárias.<br />
Essa acusação de biopirataria é apenas desculpa, um ode expiatório, para ocultar o<br />
descaso do Governo e da elite com a economia da região. Ou mesmo a incompetência em<br />
não transformar um bioproduto, com ampla aceitação no mercado, em alavanca para um<br />
desenvolvimento sustentado e sustentável.<br />
Se foi biopirataria, considerando a época, é bom lembrar que os principais itens da<br />
exportação brasileira incluem espécies vegetais de origem exótica, como a soja, o café, a<br />
cana de açúcar. O Brasil praticou biopirataria por introduzir na sua pauta econômica<br />
espécies exóticas?<br />
Outra coisa: parece crônica a idéia da economia brasileira se mover por ciclos, com<br />
base em apenas um produto. Faltou diversificar a economia. Basear o desenvolvimento<br />
num produto só gera a economia de ciclo. E ciclo é isso mesmo, um primórdio, o auge e o<br />
declínio. Um ciclo somente tem valor real quando dá base para o desenvolvimento, como<br />
ocorreu com São Paulo com a economia cafeeira. A riqueza do café se transformou numa<br />
economia diversificada, sustentada pelo avanço da ciência e da tecnologia, articuladas por<br />
centros de excelência em pesquisa e pensamento, como são reconhecidamente a<br />
Universidade de São Paulo – USP e a UNICAMP – Universidade de Campinas, custea<strong>dos</strong><br />
pelo estado.<br />
2.2 O Projeto Zona Franca de Manaus<br />
No que tange ao evento Zona Franca de Manaus (ZFM), cumpre indagar até que<br />
ponto esse projeto trouxe desenvolvimento sustentável para a região?<br />
O projeto Zona Franca de Manaus, enquanto programa de governo, com respaldo<br />
na Constituição outorgada de 1967, visava contemplar a Região, a partir da década de 60,<br />
com um pólo industrial, comercial e agropecuário. No dizer de Botelho 4 :<br />
[...] ao estabelecer mecanismos de atração de investimentos priva<strong>dos</strong><br />
através de isenções fiscais, assegurada a infra-estrutura básica promovida pelo<br />
Governo federal, contou em promover a ocupação estratégica da Amazônia<br />
4<br />
BOTELHO, Antônio José. Projeto Zona Franca – vetor de interiorização ampliado. Manaus: edição<br />
própria, 2001.<br />
8
Ocidental a partir da geração de empregos e renda para fazer frente à decadente<br />
economia regional baseada nas atividades extrativistas.<br />
O pólo industrial do projeto ZFM foi o que logrou maior sucesso. De fato, a ZFM<br />
teve três fases 5 :<br />
A primeira fase, que vai de 1967 a 1975, correspondente ao Decreto nº 288/67, foi<br />
basicamente comercial. Trata-se do período de investimento empresarial na área de<br />
comércio de importa<strong>dos</strong>. Como o Brasil tinha uma economia fechada, o baixo preço <strong>dos</strong><br />
produtos importa<strong>dos</strong> desonera<strong>dos</strong> de imposto de importação atraía compradores de outras<br />
regiões, em especial do Sudeste. Esse pólo sofreu forte revés, com a abertura do mercado e<br />
políticas restritivas e também pela distância, que encarece o transporte, em especial o<br />
aéreo.<br />
De 1975 a 1991, ocorre a segunda fase, na qual se instalou no País a política de<br />
substituir importação, devido à crise do petróleo. Nessa fase,<br />
é o distrito industrial. Ele não é uma Zona Franca. Ele foi<br />
transformado em uma zona de processamento industrial e substituição de<br />
importações. Antes era possível importar, por exemplo, um kit completo<br />
desmontado de um televisor para aqui montá-lo. A partir do Decreto-Lei nº<br />
1.435/75 e 1.455/76, a indústria estava sujeita a quotas de importação e a<br />
índices mínimos de nacionalização. Por exemplo, o televisor passou a ter um<br />
índice de 75%. Com isso, apenas 25% poderiam ser de componentes<br />
importa<strong>dos</strong> e os 75% restantes tinham que ser nacionais. Deixou de ser possível<br />
a simples montagem do kit. Dessa forma, ao invés de o Brasil gastar US$<br />
1.000,00 para importar um televisor, passou a gastar apenas US$ 250,00 para<br />
ter o televisor disponível, substituindo, portanto, a importação de US$ 750,00,<br />
ou seja, economizando US$ 750,00 de divisas. 6<br />
A terceira fase é a Zona Franca de São Paulo que se tornou a mais lncentivada,<br />
pois os componentes produzi<strong>dos</strong> em São Paulo e internaliza<strong>dos</strong> nas indústrias da Zona<br />
Franca de Manaus estão isentos de ICMS e IPI, além de outras regalias fiscais, de modo<br />
que as empresas paulistas têm mais incentivos do que se estivessem em Manaus.<br />
De qualquer modo, arremata Correia:<br />
é por causa desse fato - em relação aos componentes, os<br />
incentivos fiscais concedi<strong>dos</strong> à Zona Franca de São Paulo são<br />
maiores que os concedi<strong>dos</strong> á Zona Franca de Manaus, mantendo<br />
uma situação inusitada, pois em nome da Zona Franca de Manaus<br />
são da<strong>dos</strong> incentivos à produção de componentes em São Paulo,<br />
impedindo o surgimento, em Manaus, de um pólo de<br />
componentes, fundamental para a consolidação do pólo industrial<br />
(p. 93)<br />
5<br />
Conforme CORREIA, Serafim. Zona Franca de Manaus – histórias, mitos e realidade. Manaus: edição<br />
própria, 2002, p. 91.<br />
6<br />
Idem, p. 92.<br />
9
Mesmo que surja um pólo de componentes ou outro pólo qualquer, a consolidação<br />
do Pólo Industrial de Manaus não está significando uma possibilidade real de<br />
autosustentabilidade para o desenvolvimento econômico da região amazônica. Não existe<br />
desenvolvimento sem a posse do capital que implementa os investimentos e da tecnologia<br />
que possibilita a produção de bens e serviços numa escala que viabilize a reprodução<br />
daquele mesmo capital. Os fatores de produção fundamentais, o capital, enquanto<br />
poupança própria, e tecnologia, configurada na massa crítica científica a serviço da<br />
nacionalização da economia, são imprescindíveis para que a economia regional não fique<br />
tão ancorada no viés <strong>dos</strong> incentivos fiscais, sempre pendente da polítIca “do pires na mão”<br />
perante o poder central do Brasil. Em outros termos, sem poupança interna, enquanto<br />
investimento, e aplicação da ciência e tecnologia, não se pode falar em desenvolvimento<br />
sustentável.<br />
Como assevera Botelho, 7 ao qual se filia essa análise:<br />
[...] não se deseja negar o crescimento econômico que Manaus<br />
experimenta, mas sim caracterizar que estamos longe do desenvolvimento<br />
econômico, o que pressupõe uma dada auto-sustentabilidade, isto é, tecnologias<br />
próprias. Quando tal se configurar, aliada a uma vontade política baseada em<br />
ética e moral, certamente haverá menos favelas, enquanto moradias<br />
desprovidas de saneamento básico, menos menores de rua, enquanto crianças<br />
desprovidas de suas famílias, estas destruídas pelo desemprego, e aquelas<br />
afastadas de suas escolas, por não terem livros, haverá mais saúde em cada<br />
cidadão, porque haverá mais comida e remédios disponíveis, enfim, haverá<br />
mais qualidade de vida distribuída à sociedade como um todo através de uma<br />
efetiva justiça social.<br />
Claro que os efeitos positivos da ZFM podem continuar sendo incentiva<strong>dos</strong>. Não<br />
há problema em abrigar um grande pólo eletroeletrônico na Região. Mas em termos<br />
econômicos é necessário o desenvolvimento da poupança e da base do consumo regional,<br />
com melhor distribuição da riqueza que permaneca na região e utilização <strong>dos</strong><br />
conhecimentos científicos disponíveis para viabilizar as potencialidades e vocações<br />
regionais para fins de produção em escala para o mercado. Em resumo, extemalizar as<br />
virtudes próprias dessa região para integrá-la ao conteúdo sócio-econômico nacional e<br />
intemacíonal.<br />
Se o atual ciclo econômico guarda enorme similaridade com o da borracha,<br />
também o seu ocaso pode ter tal paradigma. No ciclo da borracha o produto era regional e<br />
trouxe benefícios para uma elite, que ficava com uma pequena fatia <strong>dos</strong> lucros, cuja maior<br />
parte migrava para a poupança externa (leia-se Inglaterra). Os recursos financeiros<br />
7 Op. cit., p. 56/57.<br />
10
carrea<strong>dos</strong> para a região nesse ciclo da borracha não foram para o desenvolvimento<br />
econômico auto-sustentado. Esgotado o ciclo da borracha pela competição e competência<br />
externa, restaram apenas monumentos históricos (Teatro Amazonas, Alfândega, Porto de<br />
Manaus, entre outros), que até a atualidade são mal capitanea<strong>dos</strong> para a indústria do<br />
turismo. Manaus se viu devastada economicamente e socialmente.<br />
A Zona Franca de Manaus não tem sequer o produto regional como marca<br />
registrada. Tudo é estrangeiro.<br />
Como já foi alinhavado e não é demais repetir, como no ciclo da borracha, os<br />
recursos financeiros arrecada<strong>dos</strong> por intermédio do modelo ZFM não são usa<strong>dos</strong> para<br />
vislumbrar, ao menos, uma solução econômica independente, por meio do<br />
desenvolvimento tecnológico de insumos e potencialidades regionais com aplicabilidade<br />
industrial. De que adianta estar inserido em grande riqueza em termos de recursos naturais<br />
e da biodiversídade, se isso não significa possibilidade digna de construção da existência<br />
da gente amazônica, reprodutora em si e para si.<br />
É claro, porém, que é um mito pensar no Pólo Industrial de Manaus como apenas<br />
galpões onde parte e peças são montadas. Segundo Corrêia, 8 o Pólo Industrial de Manaus<br />
tem mais de 398 empresas que empregam cerca de 50.000 trabalhadores. Dessas empresas,<br />
194 são certificadas na forma do ISO 9000, ou seja, é um complexo industrial<br />
considerável, com mão-de-obra treinada e competente. O faturamento desse pólo em 2000<br />
chegou a 10 bilhões de dólares e significou também uma fatia de 55% de toda a<br />
arrecadação federal na Região Norte. O problema, como dito, é internalizar essa riqueza<br />
no desenvolvimento da Região.<br />
Alguns falam que, no Amazonas, a floresta equatorial continua mais preservada do<br />
que nos outros Esta<strong>dos</strong> da Região. Mas isso é um efeito acidental e colateral do modelo.<br />
Ou seja, a ZFM atraiu migrações do interior, urbanizando a capital do Estado e esvaziando<br />
o interior. A migração teria o efeito de preservar a floresta, por sua concentração na cidade<br />
de Manaus. Porém, é preciso admitir que as correntes migratórias para Manaus decorreram<br />
por falta de opção no local de origem. Falta interiorizar o modelo ou instituir outro para<br />
fixar a população no local de origem, sem perder de vista a defesa do meio ambiente.<br />
Quanto à interiorização, basta, por enquanto, a pena de Botelho: 9<br />
8 Op. Cit., p. 199/200.<br />
9 Op. Cit., p. 64.<br />
[...] deve-se colocar, além da necessidade de consolidar os<br />
empreendimentos instala<strong>dos</strong> e reestruturá-la para os que virão, a importância de<br />
interiorizar seu aspecto desenvolvimentista e aproveitamento das<br />
11
potencialidades regionais. Ou seja, deve-se trabalhar para ampliar a geração de<br />
trabalho e renda no interior da Amazônia Ocidental, fomentando as atividades<br />
economicamente viáveis, mediante o uso sustentável <strong>dos</strong> recursos naturais, com<br />
ênfase nas atividades agrosilvopastoris e agroindustriais, e fazendo salientar as<br />
áreas de livre comércio administradas pela SUFRAMA.<br />
Tudo observado o princípio do desenvolvimento sustentável, no qual a ordem<br />
econômica é informada pela proteção ambiental.<br />
O fato é que a Amazônia parece não ser levada a sério. As vozes que lutam contra a<br />
internacionalização da Amazônia, a biopirataria e outras conspirações, são as mesmas que<br />
sequer oferecem alternativa econômica viável e sustentada para a região.<br />
2.3 O CASO NOVARTIS – PARCERIAS CONTRA A BIOPIRATARIA<br />
No que tange ao terceiro evento, mais uma vez evoca-se a pena lúcida de Ozório<br />
Fonseca, a quem foi solicitado permissão para resumir-lhe algumas idéias, em especial nos<br />
dois artigos publica<strong>dos</strong> também no Jornal do Comércio, de 14/12/2004.<br />
O articula menciona que Amazônia é um imenso território que abriga uma enorme<br />
quantidade e diversidade de formas de vida no Mundo. Sustenta que para a região é<br />
preciso configurar um programa de base biotecnológica, voltado para a pesquisa e<br />
fabricação de bioprodutos com melhor valor agregado, com participação eficiente e eficaz<br />
do Estado. O Estado criando centros de biotecnologia, ou com parcerias, deveria implantar<br />
uma infraestrutura científica e tecnológica de apoio a projetos de pesquisa básica e<br />
formação de um parque bioindustrial que usaria como matéria prima, os produtos<br />
resultantes do metabolismo das espécies biológicas que compõem a megadiversidade<br />
amazônica.<br />
Para viabilizar tal projeto de Estado para a Amazônia, indispensável os acor<strong>dos</strong> e<br />
convênios nacionais e internacionais com organismos públicos e priva<strong>dos</strong> de indiscutível<br />
capacidade científica e tecnológica. Nesse sentido, o acordo que estava sendo costurado<br />
com a NOVARTIS, empresa suíça, líder mundial em pesquisa e desenvolvimento de<br />
produtos farmacêuticos, era satisfatório para a Amazônia. O acordo previa investimentos<br />
em pesquisa, laboratórios modernos e formação de recursos humanos.<br />
Um grupo político vociferou contra tal acordo, alegando biopirataria, atentado à<br />
soberania, usurpação do conhecimento tradicional, tocando fundo no ufanismo inculto da<br />
população. O Governo brasileiro cancelou o acordo, editou uma medida provisória que<br />
colocou intransponíveis dificuldades para a pesquisa biológica, sem escutar a comunidade<br />
científica brasileira.<br />
Resultado, a NOVARTIS saiu em busca de um país com dirigentes lúci<strong>dos</strong> e<br />
vacina<strong>dos</strong> contra a demagogia e o nacionalismo ultrapassado. Continua o professor<br />
12
Ozório: Agora chegou a notícia de que a NOVARTIS inaugurou um Instituto de pesquisa<br />
em Cingapura, com orçamento de 200 milhões de francos suíços por ano (R$ 480<br />
milhões/ano) pelos próximos oito anos, onde produzirá remédios contra a dengue e<br />
tuberculose e formará jovens cientistas. Esse Instituto de Pesquisa integra o Parque<br />
científico e biotecnológico que o governo cingapuriano criou com investimentos de U$ 1,7<br />
bilhões de dólares/cingapura (R$ 2,8 bilhões).<br />
O Brasil nem tem condições e nem a classe dirigente se dispõe a fazer tais<br />
investimentos. Sem parcerias, ademais, tais investimentos não seriam possíveis. E esse<br />
processo não pode ficar estancado por medo de biopirataria.<br />
Parece que é preciso estar repetindo: não basta estar sobre uma megariqueza de<br />
biodiversidade, é preciso traduzir isso em vida e dignidade para a população local.<br />
3 PATENTES E REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS<br />
Mas qual o tratamento jurídico que o Estado brasileiro adota para viabilizar o uso<br />
da sua biodiversidade, a fim de desenvolver o país?<br />
São dois os principais instrumentos. A lei de patentes (lei nº 9.279/96) e a medida<br />
provisória 2.186-16/2001 (proteção do patrimônio genético e do conhecimento tradicional<br />
associado).<br />
Ambos os instrumentos inviabilizam um programa de desenvolvimento sustentado<br />
e sustentável para a região.<br />
O primeiro instrumento porque afasta os pesquisadores. De fato, a lei de patentes<br />
determina, entre outras hipóteses, que a proteção <strong>dos</strong> direitos relativos à propriedade<br />
industrial efetua-se, num primeiro nível, pela concessão de patentes de invenção e de<br />
modelo de utilidade (art. 2º, I). A invenção é trazer novidade e apresenta inventividade<br />
quando não é decorrência óbvia do estado da técnica (art. 13). Vale constar, a comunidade<br />
científica, técnica ou industrial deve perceber que naquilo a patentear há um real<br />
progresso.<br />
Assim, a invenção patenteável deve atender aos requisitos de novidade, atividade<br />
inventiva e ter aplicação industrial (está se pensando na economia e não na mera<br />
admiração do novo), conforme o art. 8º, do mencionado diploma legal.<br />
Aqui interessa saber o que pode ser protegido por patente, pois é isso que espanta o<br />
avanço da pesquisa no país.<br />
Não podem ser consideradas invenções e nem modelo de utilidade, e portanto, são<br />
deixadas de fora da proteção da concessão de patentes, entre outros itens, “o todo ou parte<br />
13
de seres vivos naturais e materiais biológicos encontra<strong>dos</strong> na natureza, ou ainda que dela<br />
isola<strong>dos</strong>, inclusive o genoma ou o germoplasma de qualquer ser vivo natural e os<br />
processos biológicos” (art. 10, IX, da lei de patentes). Não precisa ser vidente para<br />
adivinhar que nenhum pesquisador lúcido vai querer fazer bioprospecção nessas<br />
condições. Imagine um pesquisador que encontra um novo microorganismo no Brasil e<br />
não pode aqui patenteá-lo, para que vale o seu esforço?<br />
Realmente, qual o interesse do pesquisador e <strong>dos</strong> laboratórios de fazerem<br />
bioprospecção com essa exclusão? Esse dispositivo legal é um tiro no pé. Continuando<br />
assim, o país jamais será detentor de um <strong>dos</strong> principais fatores de produção que é a<br />
tecnologia (ao lado do capital, da mão de obra e <strong>dos</strong> insumos).<br />
A patente confere ao seu titular, nos termos do art. 42, da referida lei, o direito de<br />
propriedade imaterial, podendo impedir que terceiros, sem o seu consentimento,<br />
produzam, usem, vendam ou importem produto ou processo patentea<strong>dos</strong>. Como o direito à<br />
propriedade privada está na base da economia capitalista, quem for titular de patente tem<br />
crédito, pode montar empresa, ou transformar o produto ou processo em investimento e<br />
lucrar. Sem essa motivação a economia não se movimenta, nem a ciência posta a serviço<br />
do capital.<br />
Por seu turno, a medida provisória de proteção do patrimônio genético afasta as<br />
empresas sérias de promoverem investimentos no Brasil. Segundo tal lei, o acesso ao<br />
patrimônio genético ocorre em laboratórios, conforme orientação técnica do CGEN nº<br />
01/2003. O problema é a bioprospecção, na qual o estigma da biopirataria está sempre a<br />
rondar. Para proceder com a bioprospecção, o laboratório tem de estar em acordo, e com<br />
todas as licenças possíveis, com a comunidade local. Se houver conhecimento tradicional<br />
associado complica mais ainda o meio de campo.<br />
A empresa farmacêutica ou de cosmético que pretender desenvolver um<br />
bioproduto, com acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado<br />
deverá fazer acordo de repartição de benefícios. Repartição essa que é tanto monetária<br />
como não-monetária. Aqui é que reside o desmotivador, a medida provisória determina a<br />
transferência de tecnologia. Qual q empresa que tem interesse em transferir tecnologia? A<br />
quem pagar confiavelmente a parte monetária, sabendo que neste país, muitos aportes de<br />
recursos resvalam no bueiro da corrupção e na aplicação festiva do capital empenhado.<br />
14
Penso aqui no caso do projeto Yawanawa-Aveda de Urucum. De Carlo e Drummond 10<br />
analisaram o projeto. Esses estudiosos apontaram que o projeto foi uma iniciativa<br />
empresarial entre uma empresa americana e uma comunidade indígena na Amazônia<br />
brasileira. Em apertada síntese, a empresa Aveda Corporation, do ramo de fabricação de<br />
cosméticos, sediada em Minneapolis, nos EUA, negociou com a comunidade indígena<br />
Yawanawá, a aquisição de urucum, obtido em sistema de produção ecologicamente<br />
sustentável, com possibilidade do uso de imagem dessa etnia para fins de marketing no<br />
emergente mercado verde (consumidores com preocupação ecológica).<br />
“A Aveda criou então uma linha chamada ‘uruku’ de batons e brilho para os lábios,<br />
cujo preço unitário para o consumidor <strong>dos</strong> EUA girava em torno de US$ 13,00 por<br />
unidade em 1996” (p. 38).<br />
Com esse interesse, a Aveda financiou a plantação de urucuzal <strong>dos</strong> Yawanawás,<br />
enviando-lhes recursos (em forma de doação e empréstimo). “Esses recursos foram gastos<br />
no plantio, na compra de ferramentas e máquinas, em assistência técnica e em transporte,<br />
mas parte foi gasta na construção de uma aldeia – Nova Esperança – custo inicialmente<br />
não previsto no acordo” (p. 39). Quer dizer, começa a falta de seriedade, ou melhor,<br />
orientação. O que eles tinham que gastar com construção de aldeia? Não é por acaso que<br />
no item de avaliação no critério de saber se o projeto gera ou apóia atividade econômica<br />
suficiente para prover os bens necessários aos membros da comunidade foi baixo. Houve<br />
problema de estocagem e falta de compradores. É claro, o dinheiro foi gasto fora <strong>dos</strong><br />
objetivos e estrategicamente mal aplicado, de modo que a análise <strong>dos</strong> referi<strong>dos</strong><br />
pesquisadores não poderia ser outra: “[...] o conjunto de indicadores do tópico de<br />
sustentabilidade, o projeto obtém escore alto em questões ecológicas e culturais; médio em<br />
questões de participação, e baixo ou incerto nas questões de viabilidade econômica e bem<br />
estar social. [...]. O problema mais grave, no entanto, é a falta de confiabilidade<br />
econômica, causada por três fatores inter-relaciona<strong>dos</strong>: 1) falta de equipamentos<br />
adequa<strong>dos</strong> de estocagem de sementes; 2) grandes distâncias e dificuldades de transportes e<br />
3) merca<strong>dos</strong> consumidores incertos” (p. 59).<br />
10 DRUMMOND, José Augusto; DE CARLO, Sandra. O Projeto Yawanawá-Aveda de Urucum: uma<br />
parceria de regócios em busca de sustentabilidade para uma comunidade indígena na Amazônia brasileira.<br />
In: SAYAGO, Dóris et al (orgs). Amazônia: cenas e cenários. Brasília: Universidade de Brasília, 2004, p.<br />
31/69.<br />
15
A Aveda captou ganhos no marketing, não comprou a produção de 1996, pois foi<br />
buscar em outra fonte, talvez por problemas operacionais. A aldeia construída era de<br />
difícil acesso.<br />
De qualquer modo, a interpretação dessa parceria é que até pode haver interesse na<br />
biodiversidade amazônica, mas colocar um bioproduto no mercado parece ser uma tarefa<br />
hercúlea e somente com muito incentivo, desde a bioprospecção até a produção e<br />
circulação é que essa via terá sucesso.<br />
Ora, a lei não facilita a bioprospecção, impõe muitos óbices para os investidores,<br />
coisa que não são impostas quanto ao bioproduto madeira, a ponto de já estar aprovado um<br />
projeto de lei de concessão florestal.<br />
A Amazônia interessa desde que o lucro seja rápido e fácil. Desenvolver uma<br />
economia diversificada, com aplicação de recursos na biotecnologia, não interessa, daí a<br />
elaboração de lei inexeqüível e desestimuladora.<br />
Com tudo isso, quero dizer que o problema na Amazônia não é a biopirataria, que<br />
sequer é tipificada penalmente. O problema é o projeto de estado para a Amazônia, a falta<br />
de vontade política e a estreita visão <strong>dos</strong> que alardeiam a cobiça internacional e apontam<br />
para a multidão de biopiratas, sem cortar na própria carne.<br />
Um exemplo disso e para concluir é o discurso da Shiva (2001). Trata-se de obra<br />
de referencia sobre biopirataria. A autora sustenta que a pilhagem da natureza e do<br />
conhecimento reproduz o colonialismo do passado. Em outros termos, assim como no<br />
passado as potências européias pilharam os povos coloniza<strong>dos</strong>, tomando suas terras e<br />
riquezas, sob o argumento de que eram inciviliza<strong>dos</strong>, também hoje, o imperialismo busca<br />
manter sua dominação controlando o conhecimento sobre a natureza e usurpando o saber<br />
não-ocidental, patenteando a vida, para colocá-la como produto no mercado, submetendo a<br />
to<strong>dos</strong> por suas regras.<br />
A autora aborda com muito senso crítico o problema da biopirataria. Transformar<br />
tudo em mercadoria, inclusive a estrutura da vida, para lucro de empresas, em detrimento<br />
das comunidades locais envolvidas e com desrespeito aos conhecimentos tradicionais, não<br />
é ético. Nem sempre o lucro pode ser um fim si mesmo. Quando se trata de bens que<br />
dizem respeito ao básico para a manutenção da vida humana digna, o lucro deve ser<br />
apenas meio para aferir a saúde da atividade humana pertinente. Esses bens não são<br />
mercadorias e sim necessidade a ser suprida a to<strong>dos</strong>. De qualquer forma, a ciência deve<br />
estar a serviço da vida e não simplesmente do capital e o direito não pode ser manipulado<br />
para patentear a vida.<br />
16
Os instrumentos jurídicos a serviço da vida devem ser elabora<strong>dos</strong> com muita<br />
negociação, amplo consenso, sem imposições, respeitando sempre um mínimo ético:<br />
Ameaçou a vida humana, qualquer tratamento jurídico das relações sociais encontra óbices<br />
instransponíveis.<br />
Entretanto, ressalto que a autora apesar do senso crítico, pareceu-me um tanto<br />
bioparanóica (vê o imperialismo ocidental em tudo que é lugar ).<br />
A economia mundial é majoritariamente capitalista, e atualmente de viés<br />
neoliberal. Nada mais normal que as empresas integrantes do mercado busquem todas as<br />
oportunidades para obterem lucro.<br />
A indústria de cosméticos e a farmacêuticas buscam lucrar com novos produtos<br />
liga<strong>dos</strong> à bioprospecção e ao chamado conhecimento tradicional. Além disso, as empresas<br />
buscam patentear seus produtos e processos, para garantir-lhe propriedade exclusiva. Não<br />
existe capitalismo sem propriedade privada. Nem sem lucro. Os instrumentos jurídicos de<br />
apropriação do patrimônio genético e do patrimônio cultural passam pela questão da<br />
propriedade privada e pelo lucro. O atual instrumento é o de patente. Mas como nada<br />
nesse mundo é absoluto, pode haver muita negociação. Nesse sentido, o problema não<br />
vem só das empresas que buscam lucro, mas da falta de instâncias de negociação, que se<br />
fundamente na proteção do meio ambiental, no mínimo ético mencionado, no respeito ao<br />
conhecimento tradicional e na forma de repartição de benefícios menos inibidora <strong>dos</strong><br />
investidores.<br />
Por outro lado, a autora também me pareceu maniqueísta: ocidente e empresas<br />
transnacionais a parte má da história, e os países pobres e as comunidades tradicionais a<br />
parte boa. A dependência econômica e a exploração <strong>dos</strong> países ricos sobre os pobres<br />
explicam muita coisa, mas o restante do mundo não é um pobre coitado que nada pode<br />
fazer para sair da situação de indigência. Muito da miséria <strong>dos</strong> países pobres se deve à<br />
corrupção, à falta de modernização de sua vida social e política (exemplo: o sistema de<br />
casta da índia, o frágil jogo democrático no Oriente). A destruição da natureza também é<br />
produto do subdesenvolvimento sócio-econômico, não só da insensatez das empresas que<br />
impactam o meio ambiente.<br />
Discurso marxista de imperialismo, crítica ao desenvolvimento científico<br />
ocidental, retorno aos méto<strong>dos</strong> naturais e orgânicos, entre outros pontos de uma ecologista<br />
ideológica não leva a lugar nenhum. O Mundo é grande há espaço para todas as tribos e<br />
idéias, desde que no respeito ao diferente. O sentido é que a ciência, as empresas<br />
capitalistas, os produtores orgânicos, os verdes podem ocupar seus espaços, pois de<br />
17
qualquer modo atualmente não dá para se desligar da problemática ambiental, e isso não<br />
conhece ideologia. To<strong>dos</strong> são chama<strong>dos</strong> a um ajustamento.<br />
4 O DISCURDO ÉTICO AMBIENTAL VERSUS A BIOPARANÓIA<br />
De fato, a questão ambiental abriga uma tomada de posição ética de primeira<br />
ordem. O fundamento último da ética é a vida humana. De todas as estimativas adotadas<br />
pela pessoa humana, a vida aparece como o primeiro e principal valor. Sem vida humana<br />
não há ética, porque faltará o substrato material para sua realização. Mas igualmente, sem<br />
o meio ambiente não há possibilidade de existir vida humana. Ou seja, o meio ambiente<br />
porque possibilita a vida humana, tem um sentido ético da mais fundamental importância.<br />
Ao abrigar a vida, em todas as suas formas, incluindo a humana, o meio ambiente<br />
torna-se objeto da reflexão ética. A ética é um modo de refletir que visa a felicidade<br />
humana. Essa felicidade, anseio humano pelo bem estar psicológico e material, não pode<br />
prescindir da visão da pessoa humana como ser de relação. A via real da felicidade passa<br />
pelo diálogo, pela convivência, pelo respeito, pela consideração do outro, na<br />
autotranscendência, da mesmidade para a alteridade. E isso se dá de forma consistente no<br />
princípio básico da ética: o cuidado.<br />
Sendo indispensável à vida humana, também o meio ambiente deve ser objeto do<br />
cuidado ético. Não cuidar do meio ambiente é um mal ético (infelicidade) tão intrínseco<br />
que pode significar o fim da existência humana na face da terra. A indagação que persiste<br />
é como resolver o conflito entre a proteção (cuidado ético) do meio ambiente, às presentes<br />
e futuras gerações, com a produção econômica indispensável para a manutenção da<br />
existência humana.<br />
Não é uma indagação simples. Não se resolve o caso invocando meramente a<br />
aplicação do princípio do desenvolvimento sustentável, pois aí também há um horizonte<br />
de interpretações, aplicabilidade, escolhas, envolvendo mesmo ausência de consenso. A<br />
solução parece estar numa ampla frente que, sem esgotar as hipóteses, envolve desde o<br />
aprimoramento do conhecimento científico até a montagem de tecnologias ecologicamente<br />
corretas. Passa, sem sombra de dúvidas, pela educação ambiental. Envereda pela formação<br />
de um novo padrão de consumo, contrário ao desperdício, à propaganda enganosa e à<br />
danosidade ao meio ambiente. Não dispensa a redefinição do lucro que de fim em si<br />
mesmo deveria passar a ser meio. Trata-se, enfim, de mudar de mentalidade e de<br />
transformar as atuais estruturas da sociedade, através da valorização de uma cultura de<br />
18
solidariedade, consciência e participação política. Mas como se dá tal crescimento que<br />
reflete no desenvolvimento do país?<br />
Milaré 11 explana com acerto as implicações desse crescimento:<br />
De outro lado, o processo de desenvolvimento <strong>dos</strong> países se realiza,<br />
basicamente, à custa <strong>dos</strong> recursos naturais vitais, provocando a deterioração das<br />
condições ambientais em ritmo e escala até ontem desconheci<strong>dos</strong>. A paisagem<br />
natural da Terra está cada vez mais ameaçada pelas usinas nucleares, pelo lixo<br />
atômico, pelos dejetos orgânicos, pela ‘chuva ácida’, pelas indústrias e pelo<br />
lixo químico. Por conta disso, em todo Mundo – e o Brasil não é nenhuma<br />
exceção -, o lençol freático se contamina, a água escasseia, a área florestal<br />
diminui, o clima sofre profundas alterações, o ar se torna irrespirável, o<br />
patrimônio genético se degrada, abreviando os anos que o homem tem para<br />
viver sobre o Planeta.<br />
Ou como disse Maurice Strong, Secretário Geral da Rio 92 (apud Milaré) 12 :<br />
[...] do ponto de vista ambiental o planeta chegou quase ao<br />
ponto de não retorno. Se fosse uma empresa estaria à beira da<br />
falência, pois dilapida seu capital, que são os recursos naturais,<br />
como se eles fossem eternos. O poder de autopurificação do meio<br />
ambiente está chegando ao limite.<br />
Em Estocolmo, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente<br />
Humano, de 1972, foi dado o alerta sobre o gravíssimo quadro ambiental do Mundo. O<br />
modelo de crescimento econômico <strong>dos</strong> países industrializa<strong>dos</strong> degrada o meio ambiente.<br />
Chegou-se até a preconizar o crescimento zero, dado a progressiva escassez de recurso<br />
ambientais. Porém, não dá para propor crescimento zero aos países pobres. Na<br />
Conferência de Estocolmo, aliás, o Brasil liderou um grupo de países que pregava o<br />
desenvolvimento a qualquer custo, por impossibilidade de desviar recursos para proteger o<br />
meio ambiente. A externalidade negativa do crescimento econômico, no campo ambiental,<br />
seria um mal menor. A bem da verdade, conforme noticia Oliveira, 13 a posição brasileira<br />
foi mal compreendida. O Brasil não propôs crescimento a qualquer custo mesmo devendo<br />
pagar o preço de altos padrões de poluição.<br />
Na verdade, o que a posição brasileira defendia era que o principal<br />
sujeito da proteção ambiental deveria ser o Homem, sendo tão danosa para ele<br />
a chamada ‘poluição da pobreza’ (falta de saneamento básico e de cuida<strong>dos</strong><br />
com a saúde pública – alimentação e higiene) como a ‘poluição da riqueza’<br />
(industrial).<br />
11<br />
MILARÉ, E. Direito ao Ambiente: doutrina – jurisprudência – glossário. São Paulo: RT ed., 2004, p.<br />
48.<br />
12<br />
Idem, ibidem.<br />
13<br />
Ver OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à Legislação Ambiental Brasileira e<br />
licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 34.<br />
19
De qualquer modo esse mal entendido foi benéfico, pois o Brasil, em pleno<br />
Regime de ditadura, procurou dar mostra aos países das Nações Unidas que tinha<br />
preocupações com a degradação ambiental e com o uso racional <strong>dos</strong> recursos ambientais,<br />
criando a SEMA – Secretaria Especial do Meio Ambiente, pelo Decreto nº. 73.030, de 30<br />
de outubro de 1973.<br />
Feita tal digressão, cumpre assinalar, conforme Milaré, 14 que no período militar, o<br />
Brasil experimentou níveis eleva<strong>dos</strong> de crescimento econômico.<br />
CONCLUSÃO<br />
Entretanto, essa opção de crescer a qualquer custo levou o brasileiro a<br />
uma impie<strong>dos</strong>a agressão à natureza – ainda não estancada – que, exaurida,<br />
começa a cobrar seu preço, numa guerra de saldo desalentador: manchas<br />
sinistras de desertificação já aprecem no Pampa Gaúcho, na região noroeste do<br />
Paraná, no Nordeste (citando o jornal O Estado de São Paulo de 20.03.98, p. A-<br />
10) e em vários pontos da Amazônia. O país continua perdendo em média 18,6<br />
mil km2 de área verde por ano, segundo relatório sobre desenvolvimento<br />
sustentável, divulgado em 19 de junho de 2002 pelo IBGE (O Estado de São<br />
Paulo. P. C-9, de 20.06.2002). O Estado de São Paulo, economicamente o mais<br />
rico da Federação, perde, a cada ano, no processo de erosão, 190 milhões de<br />
toneladas de terra; a poluição produzida pelas fábricas de Cubatão, apesar <strong>dos</strong><br />
avanços no controle de emissões, fruto da ação enérgica e pioneira do<br />
Ministério Público, abriu grandes ravinas na Serra do Mar, que ainda grita por<br />
socorro e ameaça desabar sobre o pólo petroquímico e os habitantes daquela<br />
cidade.<br />
Dessa forma, qualquer discurso fora de um foco semelhante parece paranóico.<br />
Não basta atacar o capitalismo, a ganância das empresas internacionais nos<br />
bioprodutos e apertar o alarme de que estamos sendo biopiratea<strong>dos</strong>, é necessário apontar<br />
caminhos viáveis e não afastar da região os pesquisadores e as empresas sérias.<br />
Mesmo porque é uma ilusão pensar que a Amazônia guarda bioprodutos que a<br />
comunidade internacional espera ansiosamente por aproveitá-los. Ou ainda, que o grande<br />
capital está alvoroçado pela Amazônia. Sem incentivos governamentais, dificilmente<br />
haverá bons investimentos na região. As leis de patentes e biosegurança nada contribuem<br />
para tanto, restando para o amazônida o atraso e o subdesenvolvimento. A defesa da<br />
Amazônia significa desenvolve-la para o benefício de to<strong>dos</strong> que nela sobrevivem.<br />
Além disso, cumpre tornar a Amazônia um projeto de Estado, com aplicação de<br />
ciência e tecnologia e elaboração de leis que incentivem o desenvolvimento sustentado e<br />
sustentável da Região.<br />
Em suma, o alarde da biopirataria (e outros discursos das chamadas teorias da<br />
conspiração) camufla o real problema da Amazônia: a falta de política de Estado para a<br />
14 MILARÉ, E. Op. Cit., p.49.<br />
20
egião. Sem esse divisor crítico a propalada biopirataria não passa de bioparanóia, um<br />
medo irracional de um inimigo que no final das contas somos nós mesmos. Inversão de<br />
capital público e privado para desenvolver de modo sustentável e sustentado a região;<br />
aplicação de dinheiro em ciência e tecnologia e participação popular, eis o projeto capaz<br />
de superar o desafio e a oportunidade de estar sobre uma riquíssima biodiversidade e dar<br />
vida digna para to<strong>dos</strong> que nela vivem.<br />
6 REFERÊNCIAS<br />
BOTELHO, Antônio José. Projeto ZFM: vetor interiorização ampliado. Manaus: edição<br />
própia, 2001.<br />
CORREIA, Serafim. Zona Franca de Manaus, histórias, mitos e realidade. Manaus:<br />
edição própria, 2002.<br />
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,<br />
2004.<br />
DRUMMOND, José Augusto; DE CARLO, Sandra. O Projeto Yawanawá-Aveda de<br />
Urucum: uma parceria de regócios em busca de sustentabilidade para uma comunidade<br />
indígena na Amazônia brasileira. In: SAYAGO, Dóris et al (orgs). Amazônia: cenas e<br />
cenários. Brasília: Universidade de Brasília, 2004.<br />
FONSECA, Ozório. Biodiversidade e Desenvolvimento. Jornal do Comércio do<br />
Amazonas, edição de 22 de maio de 2005.<br />
_____. Bioamazônia. Idem, edição de 14 de dezembro de 2004.<br />
FORATTINI, Oswaldo P. Ecologia - epidemiologia e sociedade. São Paulo: IEUSP e<br />
Artmed, 1992.<br />
LEGISLAÇÃO: Lei de Patentes (Lei nº 9.279/96) e Medida Provisória nº 2.186-16/2001<br />
(proteção do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado).<br />
MILARÉ, Edis. Direito ao Ambiente: doutrina – jurisprudência – glossário. São Paulo:<br />
Revista <strong>dos</strong> Tribunais, 2004.<br />
21
OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à Legislação Ambiental Brasileira e<br />
licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005.<br />
SHIVA, Vandana. Biopirataria – a pilhagem da natureza e do conhecimento.<br />
Petrópolis/RJ: Vozes, 2001.<br />
22