AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...

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04.06.2013 Views

Aproprio-me tanto das teorias de Villaça quanto das de Perniola para pensar as duas proposições acima citadas, sublinhando aspectos do fetiche. No caso da proposição “Super- fícies”, percebo que o invólucro, ou carcaça, coloca-se como representação de um fantasma, exemplar, distante. O modelo seguido assemelha-se, primeiramente, ao modelo teatral gre- go: evita o corpo-atuante, e põe em seu lugar um corpo-extra, remetente a um corpo- subjetividade de outrem. Depois, reproduz uma ação, de forma simbólica, mantendo uma das regras das três unidades do teatro grego, a unidade da ação. Optei, em “Superfície”, por uma ação velada, que não se mostra à vista dos espectadores e, contudo, reporta-se à ação feita fora do palco com verossimilhança. Em confronto com a proposição de Gina Pane, na qual a artista crava espinhos em seu braço e, depois, abre um corte em sua mão, a minha ação em “Superfícies” se mantém no patamar da representação. O corpo sobreposto ao meu ganha características de fetiche, pois desvio a atenção do meu corpo para esse outro corpo, plástico, inorgânico. Ao mesmo tempo em que o relaciono com o meu próprio corpo, também ofereço oportunidade de rela- ção com ele próprio, com sua pele dura, transparente, sem vida. Na ação Superfície a substituição do meu corpo por um corpo-plástico, aludindo ao humano e, ao mesmo tempo, ocultando o corpo vivo, ali presente, reforça a idéia de fetiche ligada à representação. Ou seja, esta proposição problematiza exatamente a questão do feti- che: ao vestir a carcaça visto um objeto tornado fetiche no cotidiano, objeto de veneração que carrega em si um imaginário e tudo o que ali não está. No cotidiano, o objeto manequim é a própria representação das regras rígidas, que de tão rígidas encaminham para um corpo quase inumano. Mas também, no âmbito artístico, acentuo uma passagem comum ao uso do figurino como máscara do corpo: a animação do objeto de modo a torná-lo vivo, apesar de dependente de uma estrutura que possa fazê-lo reconhecível. Se o manequim é um objeto animado pelo meu corpo, tornando a ação teatral, quando mostro ao público que o estou vestindo, desestabilizo esta condição do fetiche na cena teatral, simplesmente por deixar à mostra a substituição, revelando o procedimento. O duplo reporte ao fetiche ganha tom de ironia. A Pele Lembra, de Händeler, utiliza-se de objetos comuns ao imaginário fetichista. Os pregadores de roupa presos em seu corpo quase nu induzem à leitura de um corpo híbrido, coisificado pelos seus extensores. O corpo-Händeler, misturado com a matéria do figuri- no parece estar numa espécie de limbo entre o orgânico e o inorgânico, atravessando as fronteiras de um e outro lado. Do mesmo modo, o objeto, ao “penetrar” o corpo se torna mais orgânico. Validando a teoria de Perniola, este estado límbico é o que permite ao corpo estar 92

vivo, no aqui/agora, em constante transição, em constante relação, em incompletude. Des- prende-se da representação. Está, apenas. Não imita, não se reporta aos fantasmas, não se coloca como exemplar no sentido do aceitável ou do condenável. Há uma inversão das ordens. O fetiche pertence à ordem do simulacro. Quando o corpo-Händeler se torna coisificado, não se torna simulacro, mas arrasta os objetos para a ordem do orgânico, justamente porque este estado lhe torna ativo, vivo, com suas camadas latentes. E porque corpo e figurino não se colocam em representação de outrem, mas se colocam, a si mesmos. Pontos de contato também são passíveis entre A Pele Lembra e as intervenções corporais feitas por Fakir Mustafar, que trazem outras conexões. Em Mustafar há a intenção de encontrar o corpo interior, para conhecê-lo, para percebê-lo. Embora seu corpo se torne coisificado, aquele sentido anterior, apontado por Villaça, é acessado, pois se relaciona também com os aspectos místicos. O corpo penetrado funciona como uma espécie de vodu de si mesmo, sendo representação de si, e não o sendo. No sentido posto por Villaça, a questão temporal se marca como dado importante. Mustafar é considerado o papa dos Modernos- Primitivos, significando que suas ações buscam entrelaçar passado e futuro. De um lado a repetição de ações de seus ancestrais, como ligação à sua “linhagem”. De outro, o desprendimento das heranças histórico-biológicas. No entre, o presente. Por estar no presente, no aqui/agora, distancia-se das causas naturais, pois nesta fração de tempo, seu corpo-objeto em relação com outros objetos, é forma, é veneração do mundo e questiona o orgânico e o inorgânico. Colada com a discussão do fetiche, o sadomasoquismo também se faz presente nas proposições de Händeler e Mustafar. Primeiro pela condição de seus próprios corpos postos em sacrifício, e depois pela cumplicidade que exigem do público. Mas antes de analisar estes dois aspectos abro um parêntese para a leitura de Bryan Turner 39 , em El gobierno del cuer- po, sobre a dissolução do sadomasoquismo no cotidiano. Turner fala sobre a utilização dos espartilhos e as relações entre o corpo, a moral e a sexualidade nas décadas de 1930 a 1980, na Inglaterra. O corpete, como símbolo da classe ociosa, em função da imobilidade que causava ao corpo, também mostrava a submissão da mulher ao homem, uma vez que inibia qualquer movimento ativo. O paradoxo do corpete está na afirmação da beleza feminina e ao mesmo tempo na negação da sexualidade femini- 39 TURNER, Bryan. “El gobierno Del cuerpo”. In: CROCI, Paula; VITALE, Alejandra. Los cuerpos dóciles: hacia un tratado sobre la moda. Buenos Aires: La Marca. Col. Cuadernillos de gêneros, 2000, p. 131-2. 93

Aproprio-me tanto das teorias de Villaça quanto das de Perniola para pensar as duas<br />

proposições acima citadas, sublinhando aspectos do fetiche. No caso da proposição “Super-<br />

fícies”, percebo que o invólucro, ou carcaça, coloca-se como representação de um fantasma,<br />

exemplar, distante. O modelo seguido assemelha-se, primeiramente, ao modelo teatral gre-<br />

go: evita o corpo-atuante, e põe em seu lugar um corpo-extra, remetente a um corpo-<br />

subjetividade de outrem. Depois, reproduz uma ação, de forma simbólica, mantendo uma<br />

das regras das três unidades do teatro grego, a unidade da ação. Optei, em “Superfície”, por<br />

uma ação velada, que não se mostra à vista dos espectadores e, contudo, reporta-se à ação<br />

feita fora do palco com verossimilhança.<br />

Em confronto com a proposição de Gina Pane, na qual a artista crava espinhos em<br />

seu braço e, depois, abre um corte em sua mão, a minha ação em “Superfícies” se mantém<br />

no patamar da representação. O corpo sobreposto ao meu ganha características de fetiche,<br />

pois desvio a atenção do meu corpo para esse outro corpo, plástico, inorgânico. Ao mesmo<br />

tempo em que o relaciono com o meu próprio corpo, também ofereço oportunidade de rela-<br />

ção com ele próprio, com sua pele dura, transparente, sem vida.<br />

Na ação Superfície a substituição do meu corpo por um corpo-plástico, aludindo ao<br />

humano e, ao mesmo tempo, ocultando o corpo vivo, ali presente, reforça a idéia de fetiche<br />

ligada à representação. Ou seja, esta proposição problematiza exatamente a questão do feti-<br />

che: ao vestir a carcaça visto um objeto tornado fetiche no cotidiano, objeto de veneração<br />

que carrega em si um imaginário e tudo o que ali não está. No cotidiano, o objeto manequim<br />

é a própria representação das regras rígidas, que de tão rígidas encaminham para um corpo<br />

quase inumano. Mas também, no âmbito artístico, acentuo uma passagem comum ao uso do<br />

figurino como máscara do corpo: a animação do objeto de modo a torná-lo vivo, apesar de<br />

dependente de uma estrutura que possa fazê-lo reconhecível. Se o manequim é um objeto<br />

animado pelo meu corpo, tornando a ação teatral, quando mostro ao público que o estou<br />

vestindo, desestabilizo esta condição do fetiche na cena teatral, simplesmente por deixar à<br />

mostra a substituição, revelando o procedimento. O duplo reporte ao fetiche ganha tom de<br />

ironia.<br />

A Pele Lembra, de Händeler, utiliza-se de objetos comuns ao imaginário fetichista.<br />

Os pregadores de roupa presos em seu corpo quase nu induzem à leitura de um corpo híbrido,<br />

coisificado pelos seus extensores. O corpo-Händeler, misturado com a matéria do figuri-<br />

no parece estar numa espécie de limbo entre o orgânico e o inorgânico, atravessando as fronteiras<br />

de um e outro lado. Do mesmo modo, o objeto, ao “penetrar” o corpo se torna mais<br />

orgânico. Validando a teoria de Perniola, este estado límbico é o que permite ao corpo estar<br />

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