AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...
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o Ideal, em sua própria impossibilidade, “falta-de-gozo que é a vida 29 . O padre operava o terceiro sacrifício, fantasma ou mil e uma noites, cento e vinte dias, enquanto os homens do leste cantavam: sim, nós seremos vosso fantasma, vosso ideal e vossa impossibilidade, os vossos e os nossos também 30 . Com a carcaça mantenho a plenitude do corpo, fechado em sua individualidade, pre- so à sua superfície. Mesmo nos movimentos de acariciar a parte interna do corpo-extra, só me relaciono com o limite que a carcaça representa. Apenas me cubro de camadas fazendo durar a hierarquia entre o visível e o invisível. Aqui há uma dupla simbologia, que abrange vida e arte: o corpo buscado na intervenção cirúrgica e o corpo artístico. Preferi a superfície. Preferi o figurino-invólucro, o figurino-máscara do corpo. Um corpo-extra. Contudo, neste mesmo contexto participei como assistente de palco de outra proposição, tendo oportunidade de presenciar um corpo entregue à dor e o prazer de si mesmo, sem invólucros. Nesta proposição, que descrevo a seguir, o figurino penetrou o fino contorno delimitador para fazer emergir aspectos escondidos do corpo, e a imagem que suscita é de um corpo ainda por se completar. 2.3 Corpo nômade Na proposição “A Pele Lembra: entre a dor e o prazer, uma Diva try-sexual em estado de in-beetwen-ness tentando salvar o mundo”, Frank Händeler aparece vestido por um robe vermelho, com saliências em algumas partes do corpo, óculos de natação, sapatos de salto alto. Senta-se à mesa e inicia seu jogo com a platéia. O jogo típico de programas de auditório: voz de comando e reação dos comandados. Contudo, o performer se comunica em língua inglesa. A assistente, tanto quanto a platéia ali presente, não consegue entender os comandos. O jogo se desvia dos objetivos iniciais, gerando um novo jogo. Depois de um tempo considerável nesta situação caótica, Händeler se levanta, retira o robe, mostrando as saliências feitas por pregadores de roupa que pressionam vários pontos de seu corpo. Com a ajuda da assistente, coloca outros pregadores, agora em pontos extra-sensíveis. A superfície de sua pele, já agredida, marcada, assinala a presença do mórbido. Händeler caminha, vai até a platéia. Dança. A platéia responde lentamente. Grita. A platéia acompanha. O grito, cada vez mais alto, se torna histérico. Os pregadores se desprendem de sua pele. Res- 29 DELEUZE, ibdem, p. 15. 30 DELEUZE, ibdem, p. 15. 84
ta o eco do grito e a marca dos pregadores. A marca dos instintos carnais. Marca- estímulos. Nada é suave. Os pregadores não penetram sua pele. Mas as penetrações acon- tecem sem as penetrações. A superfície branca de Händeler é penetrada. A epiderme está visível. O mesoderma e a ectoderma estão latentes, quentes, estimuladas. Por momentos, não há separação entre a matéria- figurino (pregadores) e a matéria-corpo. Estão amalgamados. Ao refletir sobre esta proposição, volto-me ao texto de Foucault, lembrando-me que as atitudes que fazem com que as leis e os códigos de conduta sejam fixados são mais fortes do que o próprio conteúdo da lei e suas condições de aplicação. Então, imagens me perpassam, e guiada pela curiosidade do autor percorro por entre os espaços de Sodoma e Gomor- ra, por entre corpos gordos, cheios de carne, expostos, condenados ao fogo do inferno, corpos que burlam códigos e, por isto mesmo, exemplares, num extremo oposto ao de um outro corpo, exemplar, coberto, inexistente em meio aos tecidos esculpidos em mármore, de faces pálidas, cujas expressões perambulam pelos vales da dor, da entrega, e se modificam num alívio. Êxtase. Modelos do que se pune. Modelo a ser seguido. Mas me fixo apenas nas grandes dobras do tecido de mármore, me espalho na concretude de seu volume, me perco em seus detalhes. Detalhes. Algo em mim se modifica. Deixo o detalhe tomar conta de mim. Depois subo até a face. A face de Santa Tereza. Êxta- se. Encontro-me em sua dor, em sua entrega. Percebo, aos poucos, sua pele que se mescla ao tecido de mármore. Pele branquinha, de veias finas, marcada pelo sofrimento. Mas não há sangue. Seu corpo é puro. Não há carne. Está face à face com o sublime. Estou face à face com o sublime. Emociono-me. Desejo ser pura. Desejo o que não vejo. Por momentos, não sou carne. Um anjo lançará o dardo do amor de Deus. Aguardo o instante em que a ponta do dardo tocará a minha pele. Perfuração. Dor e alívio. Os olhos transtornados, e o resto do corpo suportado pelo tecido. Desfez-se. Tornou-se uno. Afasto-me da obra: O Êxtase de Santa Tereza (1645 a 1652). O belo em Bernini. A normatização extremada. Auto-controle e morte. Gozo supremo. Desejo o gozo supremo que Bernini me mostrou. Reconheço traços de loucura. Reconheço a renúncia à vida. Reconheço o estado de martírio constante. Reconheço. Mas Bernini me mostrou o gozo supremo. A representação da dor é mais bela que a representação dos prazeres. O modelo de Bernini me satisfaz. Bernini, artista, corrobora na aplicação das leis sobre o uso dos prazeres, tornando- as dignas de apreciação. Volto para Sodoma e Gomorra. Volto para a exposição da carne. Volto para o corte na mão de Gina, o coração sangrento de Kahlo, a carne exprimida de Magritte, os seios flácidos 85
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o Ideal, em sua própria impossibilidade, “falta-de-gozo que é a vida 29 . O padre operava o<br />
terceiro sacrifício, fantasma ou mil e uma noites, cento e vinte dias, enquanto os homens do<br />
leste cantavam: sim, nós seremos vosso fantasma, vosso ideal e vossa impossibilidade, os<br />
vossos e os nossos também 30 .<br />
Com a carcaça mantenho a plenitude do corpo, fechado em sua individualidade, pre-<br />
so à sua superfície. Mesmo nos movimentos de acariciar a parte interna do corpo-extra, só<br />
me relaciono com o limite que a carcaça representa. Apenas me cubro de camadas fazendo<br />
durar a hierarquia entre o visível e o invisível. Aqui há uma dupla simbologia, que abrange<br />
vida e arte: o corpo buscado na intervenção cirúrgica e o corpo artístico. Preferi a superfície.<br />
Preferi o figurino-invólucro, o figurino-máscara do corpo. Um corpo-extra.<br />
Contudo, neste mesmo contexto participei como assistente de palco de outra proposição,<br />
tendo oportunidade de presenciar um corpo entregue à dor e o prazer de si mesmo, sem<br />
invólucros. Nesta proposição, que descrevo a seguir, o figurino penetrou o fino contorno<br />
delimitador para fazer emergir aspectos escondidos do corpo, e a imagem que suscita é de<br />
um corpo ainda por se completar.<br />
2.3 Corpo nômade<br />
Na proposição “A Pele Lembra: entre a dor e o prazer, uma Diva try-sexual em estado<br />
de in-beetwen-ness tentando salvar o mundo”, Frank Händeler aparece vestido por um<br />
robe vermelho, com saliências em algumas partes do corpo, óculos de natação, sapatos de<br />
salto alto. Senta-se à mesa e inicia seu jogo com a platéia. O jogo típico de programas de<br />
auditório: voz de comando e reação dos comandados. Contudo, o performer se comunica<br />
em língua inglesa. A assistente, tanto quanto a platéia ali presente, não consegue entender<br />
os comandos. O jogo se desvia dos objetivos iniciais, gerando um novo jogo. Depois de um<br />
tempo considerável nesta situação caótica, Händeler se levanta, retira o robe, mostrando as<br />
saliências feitas por pregadores de roupa que pressionam vários pontos de seu corpo. Com<br />
a ajuda da assistente, coloca outros pregadores, agora em pontos extra-sensíveis. A superfície<br />
de sua pele, já agredida, marcada, assinala a presença do mórbido. Händeler caminha,<br />
vai até a platéia. Dança. A platéia responde lentamente. Grita. A platéia acompanha. O<br />
grito, cada vez mais alto, se torna histérico. Os pregadores se desprendem de sua pele. Res-<br />
29 <strong>DE</strong>LEUZE, ibdem, p. 15.<br />
30 <strong>DE</strong>LEUZE, ibdem, p. 15.<br />
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