AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...
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contraria as regras de controle, e levado à cena porta-se como lugar de confluências, no qual não há limites ou regras determinadas. Indo além das formas de preparação corporal do ator, como coloca Cassiano Quilici, é o próprio teatro que deve tornar-se o lugar em que se dá uma transformação orgânica do homem. A cena deixa de ser, como proposto na tradição aristotélica, apenas uma ação mimé- tica, que representa uma narrativa mítica ou ficcional, e passa a reivindicar um poder de atuação sobre o “corpo” como forma de acesso a novas modalidades de ser 12 . A proposta de Artaud dirige-se à um novo teatro, repensado em sua estrutura hierárquica, no qual o corpo encontra possibilidades concretas de se colocar em cena. Mas não só isso. Ainda segundo Quilici, abrange a recriação do homem e do mundo que guarda relações importantes com o universo dos ritos arcaicos, instigando-nos a repensar o lugar da arte no mundo contemporâneo 13 . Se em Spinoza as fronteiras entre matéria/espírito e corpo/mente já se vêem revoga- das, em Artaud a junção se estabelece de forma a fortalecer a noção de uma realidade do corpo, realidade esta instável, lugar de experiências múltiplas e fugidias, difíceis de se en- quadrar em representações totalizantes e unificadoras 14 . Não é binômia, mas parte de um extremo oposto para garantir outras compreensões da própria existência. Pontos de confluências são encontrados entre o projeto político do teatro-peste de Artaud e a busca por um corpo-mutante dos adeptos da body modification. Lucas Zpira es- clarece que a mutação não é um termo comercial, mas um “estado de espírito”, como baliza da fronteira e do legal. A tentativa de “tomar o destino pelas mãos”, embutida nos objetivos da bodmods, em algum sentido mantém diálogo com a noção de corpo sem órgãos, levando em consideração que a proposta de Artaud convida a assumir uma atitude heróica e superior 15 , relutando com o destino, com a conformação. Os corpos abertos dos bodmods, com lacunas entre os órgãos, também visam uma descontinuidade dos organismos, de um mecanismo encadeado e resignado, como a forjar reorganizações, construindo um novo corpo a todo instante, um corpo vicissitudinário. Aber- tos, seus corpos também são a exteriorização de um fundo de crueldade latente através do qual se localizam num indivíduo ou num povo todas as possibilidades perversas do espíri- 12 QUILICI, Cassiano. Antonin Artaud: teatro e ritual. São Paulo: Annablume, 2004, p. 48. 13 QUILICI, ibdem, 2004, p. 31. 14 QUILICI, ibdem, 2004, p. 50. 15 ARTAUD, ibdem, p. 26. 70
to 16 . Abertos, seus corpos buscam fazer vazar os abscessos morais e sociais de que fala Ar- taud. Mas se Artaud alude ao figurino de uso ritual, com proximidade das tradições, figu- rinos número dois, de um corpo duplo, simbólico, os bodmods evitam o invólucro e o sim- bólico, fazendo do figurino o condutor para a busca do corpo sem órgãos. No entanto, seus figurinos-penetrantes, a reorganizar os órgãos, levam a uma imagem semelhante à desejada por Artaud: Há algo de umbilical, de larvar em suas evoluções. E é preciso observar ao mesmo tempo o aspecto hieroglífico de suas roupas, cujas linhas horizontais ultrapassam o corpo, em todos os sentidos. São como grandes insetos cheios de linhas e de segmentos feitos para religá-los a não se sabe que perspectiva da natureza, da qual parecem ser apenas uma geometria destacada 17 . As linhas que ultrapassam os corpos dos bodmods, ou os gan- chos, pregos, barras de metal, agulhas, servem para religá-los a não se sabe que perspectiva da natureza. 2.1 Incompletude Dado que a mutação reavalia as questões postas entre alma e matéria, cabe observar algumas conseqüências no plano da cena artística. Um tópico a ser pensado respeita às camadas do dentro e do fora, do visível e do invisível, e as formas de interferência na compreensão da realidade, sempre justapostas à própria construção de subjetividade. A impossibili- dade do corpo estável, completo, finito nas suas bordas, isolado em si mesmo, ou ao contrário, coletivo no sentido do igualamento, é levada ao extremo pelos adeptos da body modification, desmascarando construções históricas naturalizadas. Numa perspectiva diferente dos artistas da body modification, porém tomando como base esta impossibilidade de completude do corpo, Xavier Le Roy faz evidenciar, em Self Unfinished, a noção de incompletude radical em um processo contínuo, denominado pelo artista de “relação”. 16 ARTAUD, ibdem, p. 24. 17 ARTAUD, ibdem, p. 60. 71
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Mas se Artaud alude ao figurino de uso ritual, com proximidade das tradições, figu-<br />
rinos número dois, de um corpo duplo, simbólico, os bodmods evitam o invólucro e o sim-<br />
bólico, fazendo do figurino o condutor para a busca do corpo sem órgãos. No entanto, seus<br />
figurinos-penetrantes, a reorganizar os órgãos, levam a uma imagem semelhante à desejada<br />
por Artaud: Há algo de umbilical, de larvar em suas evoluções. E é preciso observar ao<br />
mesmo tempo o aspecto hieroglífico de suas roupas, cujas linhas horizontais ultrapassam o<br />
corpo, em todos os sentidos. São como grandes insetos cheios de linhas e de segmentos feitos<br />
para religá-los a não se sabe que perspectiva da natureza, da qual parecem ser apenas<br />
uma geometria destacada 17 . As linhas que ultrapassam os corpos dos bodmods, ou os gan-<br />
chos, pregos, barras de metal, agulhas, servem para religá-los a não se sabe que perspectiva<br />
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Dado que a mutação reavalia as questões postas entre alma e matéria, cabe observar<br />
algumas conseqüências no plano da cena artística. Um tópico a ser pensado respeita às camadas<br />
do dentro e do fora, do visível e do invisível, e as formas de interferência na compreensão<br />
da realidade, sempre justapostas à própria construção de subjetividade. A impossibili-<br />
dade do corpo estável, completo, finito nas suas bordas, isolado em si mesmo, ou ao contrário,<br />
coletivo no sentido do igualamento, é levada ao extremo pelos adeptos da body modification,<br />
desmascarando construções históricas naturalizadas.<br />
Numa perspectiva diferente dos artistas da body modification, porém tomando como<br />
base esta impossibilidade de completude do corpo, Xavier Le Roy faz evidenciar, em Self<br />
Unfinished, a noção de incompletude radical em um processo contínuo, denominado pelo<br />
artista de “relação”.<br />
16 ARTAUD, ibdem, p. 24.<br />
17 ARTAUD, ibdem, p. 60.<br />
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