AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...
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ias diversas, orgânicas e inorgânicas, para formar um único corpo, o corpo que se vê. Além disto, o figurino-corpo é um híbrido que materializa a subjetividade de um personagem ine- xistente, como um fantasma que existe apenas no plano da idéia. Porém, em função dos e- xercícios que se pontuam no “eu sou”, este personagem ganha um corpo humano (embora não somente orgânico), já manifestação de uma subjetividade existente, a “alma” do ator. O corpo-ator, com seus sentimentos, suas emoções, que serão disponibilizados para a melhor representação deste ser inexistente, é uma extensão híbrida, extensão de duas idéias de espírito: já existente (humano) e inexistente (e por isso, inumano). A construção do espetáculo Júlio César, anteriormente citado, oferece bases importantes sobre a intenção de adaptar o corpo ao figurino, de modo a naturalizar também a mo- vimentação, quando observado o procedimento de usar os figurinos militares durante todo o dia, ir às ruas, confundir-se com os próprios militares. Na fala de Stanislavski: Aprendemos a usar a capa e dispor das suas pregas, reunindo-as no punho fechado, a atirá-la sobre os ombros ou a cabeça, e dobrá-la no braço, a gesticular, a manter a ponta da capa com as pregas soltas 63 , há a suposição do acostumar-se até chegar ao “natural”. Pensando numa leitura pormenorizada, os primeiros ajustes são os do corpo às rou- pas, às suas formas apertadas, o reconhecimento de suas partes tais como bolsos e acessórios presos. Depois, os ajustes do corpo às armas, aos seus pesos, aos seus mecanismos. E ainda, o ajuste do corpo às roupas e acessórios, juntos, formando uma única coisa. Para, então, pensar neste conjunto em movimento, desde o menor ao mais visível dos gestos. De tanto treinar, o corpo se adapta, se acostuma, encontrando um lugar de conforto, de manobra para os incômodos das musculaturas, e aos poucos, reorganiza seu próprio or- ganismo. Da convivência com os acessórios inorgânicos surge um todo orgânico. Na continuação, o diretor completa sua fala: Criava-se assim entre nós o esquema dos movimentos e dos gestos copiados das estátuas antigas 64 . Constato dois ápices desse excerto. Um ligado ao treinamento do corpo do militar, em trabalho diário, que se visto de uma forma ampliada, como numa lente de aumento, se torna espetacular por seu caráter de corpo-transformado, corpo-extraordinário. O corpo de um militar com seus movimentos condicionados se transforma em um “corpo-militar”. Para o corpo-ator, o treinamento objetiva alcançar este estado diferenciado. Mas, simplificar desta forma significaria perder algumas das sofisticadas faces do as- sunto. Sem a lente de aumento, como comumente se percebe as coisas, o corpo-militar é 63 STANISLAVSKI, ibidem, 1989, p. 354. 64 STANISLAVSKI, ibidem, 1989, p. 354. 52
apenas um corpo com certas musculaturas reforçadas pelo treino específico, não chegando a se destacar de modo espetacular no dia-a-dia, assim como se pensaria nos diferentes corpos adaptados aos costumes exigidos pelas profissões ou afazeres. Porém, levados ao palco, esses movimentos passam a significar, e não podem deixar de ser espetaculares. A intenção da montagem Júlio César de naturalizar os movimentos, viria num sentido oposto ao da espetacularização, não valorizando em demasio as movimentações míni- mas, os esforços contidos no ato de manipular as armas militares, para tornar quase despercebidas todas as adaptações do corpo-ator às situações postas em cena. Quanto à inspiração – os movimentos e gestos das estátuas antigas – suscita, ainda, outra questão. Os movimentos e gestos dos soldados, vistos nas estátuas, se afastavam do cotidiano, do “natural”, uma vez que a escultura da antiguidade clássica se regia pela observância dos cânones, tendo por fim a idealização. Certamente, o imaginário do público no final do século XIX, tanto quanto o imaginário do público atual, era povoado por imagens do período greco-romano bem mais próximos do mundo das estátuas do que da realidade. Para concretizar a ambientação do espaço de modo convincente, talvez não houvesse, ou não há, outra forma senão a do apelo aos ícones, às imagens que se formam de uma realidade, principalmente através da arte. Naturalizar os movimentos do corpo-ator em adaptação aos figurinos e acessórios, por vezes, é buscar um caminho distante do natural, mas é, também, por em dúvida o natural e o não-natural, o orgânico e o inorgânico. Vale lembrar que muitos dos encenadores do início do século XX que se contrapuseram à estética naturalista, chegando a proferir comentários duros sobre as escolhas de Stanislavski (a exemplo de Appia, Craig e Meyerhold), jamais negaram, contudo, a organicidade das cenas por ele dirigidas. Tomando como aporte os estudos de Angelo Maria Ripellino 65 sobre a trajetória das encenações de Stanislavski, é possível entender melhor o papel do naturalismo na dissemi- nação da função do figurino como caracterização, sobretudo, firmando-se a ideia de psicolo- gização. A tipificação serviu ao teatro grego e à Commedia dell’Art como facilitador do re- conhecimento das expressões do caráter das personagens. No teatro naturalista, a tipificação se dilui num processo elaborado para assegurar um lugar que ultrapassa o verossímil, agora sem idealização, e ainda responsabilizando-se em materializar estados psicológicos. Ripellino evidencia que a intenção das propostas de Stanislavski era partir do interior para o exterior, ou seja, primeiramente achava-se o personagem psicológico e depois se bus- 65 Cf: “O teatro como atelier das minúcias”. In: RIPELLINO, Angelo Maria. O truque e a alma. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Perspectiva, 1996. 53
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ias diversas, orgânicas e inorgânicas, para formar um único corpo, o corpo que se vê. Além<br />
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xistente, como um fantasma que existe apenas no plano da idéia. Porém, em função dos e-<br />
xercícios que se pontuam no “eu sou”, este personagem ganha um corpo humano (embora<br />
não somente orgânico), já manifestação de uma subjetividade existente, a “alma” do ator. O<br />
corpo-ator, com seus sentimentos, suas emoções, que serão disponibilizados para a melhor<br />
representação deste ser inexistente, é uma extensão híbrida, extensão de duas idéias de espírito:<br />
já existente (humano) e inexistente (e por isso, inumano).<br />
A construção do espetáculo Júlio César, anteriormente citado, oferece bases importantes<br />
sobre a intenção de adaptar o corpo ao figurino, de modo a naturalizar também a mo-<br />
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dia, ir às ruas, confundir-se com os próprios militares. Na fala de Stanislavski: Aprendemos<br />
a usar a capa e dispor das suas pregas, reunindo-as no punho fechado, a atirá-la sobre os<br />
ombros ou a cabeça, e dobrá-la no braço, a gesticular, a manter a ponta da capa com as<br />
pregas soltas 63 , há a suposição do acostumar-se até chegar ao “natural”.<br />
Pensando numa leitura pormenorizada, os primeiros ajustes são os do corpo às rou-<br />
pas, às suas formas apertadas, o reconhecimento de suas partes tais como bolsos e acessórios<br />
presos. Depois, os ajustes do corpo às armas, aos seus pesos, aos seus mecanismos. E ainda,<br />
o ajuste do corpo às roupas e acessórios, juntos, formando uma única coisa. Para, então, pensar<br />
neste conjunto em movimento, desde o menor ao mais visível dos gestos.<br />
De tanto treinar, o corpo se adapta, se acostuma, encontrando um lugar de conforto,<br />
de manobra para os incômodos das musculaturas, e aos poucos, reorganiza seu próprio or-<br />
ganismo. Da convivência com os acessórios inorgânicos surge um todo orgânico.<br />
Na continuação, o diretor completa sua fala: Criava-se assim entre nós o esquema<br />
dos movimentos e dos gestos copiados das estátuas antigas 64 . Constato dois ápices desse<br />
excerto. Um ligado ao treinamento do corpo do militar, em trabalho diário, que se visto de<br />
uma forma ampliada, como numa lente de aumento, se torna espetacular por seu caráter de<br />
corpo-transformado, corpo-extraordinário. O corpo de um militar com seus movimentos<br />
condicionados se transforma em um “corpo-militar”. Para o corpo-ator, o treinamento objetiva<br />
alcançar este estado diferenciado.<br />
Mas, simplificar desta forma significaria perder algumas das sofisticadas faces do as-<br />
sunto. Sem a lente de aumento, como comumente se percebe as coisas, o corpo-militar é<br />
63 STANISLAVSKI, ibidem, 1989, p. 354.<br />
64 STANISLAVSKI, ibidem, 1989, p. 354.<br />
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