AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...

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do passado, signo da primazia da legitimidade ancestral 32 . A mudança ocorrida, tornada regra permanente dos prazeres da alta sociedade 33 fortalecerá o efêmero, o fugidio, o superficial, e será esta a base constitutiva da vida mundana. Lipovetsky também entende que o fenômeno advindo com a era do espetáculo, a moda, proporcionou pensar na “personalidade aparente”. A vaidade humana passa a ser vista pelo viés da estética e, individualizada, é um instrumento de salvação, sendo uma finalidade de existência 34 . Egrete, fall ou galant, manga bufante de lingerie, cintura marcada pelo bibombée, steinkirk preso ao buttonhole, petticoat-breeches 35 , acompanhados de longas mesuras. Tudo devidamente estudado. O protagonista da comédia-bailado de Molière, O burguês ridículo, confirma a regra, mas denuncia os meandros do ethos da corte francesa. Todos os desejos do Sr. Jourdain condensam-se em um único: integrar a alta sociedade. Ignorante dos modos de exibição não percebe que é necessário muito mais do que o acúmulo dos ornamentos, sendo os seus excessos destoantes dos excessos exigidos. (Entreabre o roupão e mostra uns calções estreitos de veludo vermelho, e uma camisola de veludo verde, que traz no corpo) 36 . Não obstante seu jeito simplório, o Sr. Jourdain tem carisma e logo conquista o (a) leitor (a) ou espectador (a), e este recurso faz evidenciar uma condição dura, emergente do fenômeno: o desejo de pertencimento debruado em suas vestes. Em seu processo, a hegemonia mascara ou justifica crueldades. (Entram quatro oficiais de alfaiate, dois dos quais lhe arrancam os calções dos exercícios, e outros dois a camisola; em seguida, vestem-lhe a roupa nova; e o Sr. Jourdain passeia entre eles, e mostra-lhes a indumentária, para que vejam se está bem. Desenvolvemse a cena na cadência de toda sinfonia). O monge cada vez mais se faz por seu hábito, deixando que o visível se torne, em absoluto, aparente. (Dêem-me o roupão para ouvir me- lhor... Um momento, creio que ficarei melhor sem roupão... Não; dêem-mo de novo, é preferível) 37 . 32 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia da Letras, 1989, p. 36 33 LIPOVETSKY, ibidem, p. 30. 34 LIPOVETSKY, ibidem, p. 39. 35 Egrete: tufo de plumas nos chapéus, tiaras e peças do vestuário, usados desde o século XVI; fall: forma de decoração pendente, feita com uma cascata de laços drapeados de seda, renda e tufos de fita, para as roupas masculinas e femininas; bibombée: camada de babado; steinkirk: lenço de cambraia ou renda, frouxamente atado, com pontas enfiadas em anéis ou na frente da camisa ou do casaco; buttonhole: fenda para passar o botão ou laço; petticoat-breeches: calção-anágua. Cf: CATELLANI, Regina Maria. Moda ilustrada de A a Z. Barueri, São Paulo: Manole, 2003, p. 99, 105, 143, 221, 31 e 186. 36 O Sr. Jourdain é o protagonista da comédia-bailado de Molière “O Burguês Fidalgo”. A rubrica indica a ação do protagonista quando está mostrando ao Mestre de Dança e ao Mestre de Música a sua roupa caseira para exercícios matinais. Cf: MOLIÈRE. O Tartufo; Escola de Mulheres; O Burguês Fidalgo. Trad. Jacy Monteiro, Millor Fernandes e Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 296. 37 MOLIÈRE, ibidem, p. 297. 38

No prefácio da comédia de Molière segue o seguinte esclarecimento: Composta em chambord [tecido de lã], para o divertimento do Rei, no mês de outubro de 1670, e apresen- tada em público, em Paris, pela primeira vez, no teatro do Palais-Royal, no dia 23 de no- vembro do mesmo ano de 1670 pela Companhia do Rei 38 . O Rei deve ter se divertido, sem imaginar o quão próximo estava da imagem refletida. (Não me restariam dúvidas. Faria o hábito, seguindo as rubricas, e diante do público como que diria: eis o Sr. Jourdain. Por que então essa insatisfação? Há algo no protagonista que, parece, me escapa. Certa singularidade ...) Dos profícuos ensinamentos da corte francesa, um permanece intrigante, pois culmina a era da monarquia sobrenatural edificada na imaterialidade aparente: a presença dos muscadins no final da Revolução Francesa. A cena da troca dos uniformes não é longa: culottes (calções usados pelos simpatizantes do Antigo Regime) são substituídos pelos sansculottes (calças compridas usadas por artesões, aprendizes e proletários, homens do povo), deflagrando o descontentamento do povo francês com as frivolidades do Antigo Regime. Depois, novamente, quando Robespierre é guilhotinado, e os girondinos restituem o poder do clero e da nobreza, a volta dos culottes. Neste último cenário, lá estão os jovens janotas, os muscadins 39 alheios aos destroços da era do Terror. Patrice Bollon analisa o papel desempenhado por estes jovens, definindo-os como contraventores da “revolução simbólica”. Aparentemente reunidos pelo ódio aos jacobinos, os muscadins circulam pelo Palais-Égalité, proferindo provocações como se fossem eles os seus carrascos. Bollon comenta sobre o longo tempo que os estudiosos levaram para se certi- 38 MOLIÈRE, ibidem, p. 279. 39 Para melhor compreensão da aparência dos muscadins transcrevo, de Bollon, a forma como se vestiam: “A redingote verde-garrafa ou cor-de-lama, de ombros largos e retos, quase pontudos, de abas quadradas cortadas em “rabo de bacalhau” e com largas lapelas em ponta de xale, era quase sempre apertada, aberta na frente e subindo nas costas, dando-lhe um aspecto de corcunda. Os culottes à francesa, brancos e apertados acima do joelho, eram cheios de pregas. E as meias, que desapareciam na cascata de fita multicolidas amarradas abaixo dos culottes, eram mescladas e em saca-rolhas ou então enfeitadas com largas tiras azuis e brancas horizontais – o conjunto dando à perna de cambaio ou de zambro de efeito surpreendente, como pássaros de busto encarquilhado trepados sobre intermináveis pernas de pau curvadas e nodosas. Nos pés usavam longos sapatos estreitos com fivelas e bico quadrado, lembrando calçados da Idade Média. Suas mãos eram excessivamente brancas, manicuradas e perfumadas com óleo de amêndoas. Os cabelos eram longos e empoados, divididos em mechas trançadas com fitas, as “cadenettes”, que lhes batiam nas faces, ou então presas no alto da cabeça com a ajuda de uma travessa, o conjunto coroado por um bicorne em meia lua de abas levantadas em gôndola e que parecia equilibrar-se por um milagre. Quanto ao rosto, brilhante à força de ter sido esfregado, era com dificuldade que emergia da espécie de cartucho formado pela enorme gravata branca estriada cor-de-ferrugem, a gravata “écrouélique”que lhes apertava o pescoço e invadia o queixo, fechada por um delicado fitilho verde com nó trabalhado! Ao que era acrescentado um monóculo ou óculos que faziam questão de usar na ponta do nariz, e uma pesada bengala nodosa, chumbada, o “surrapatife”, que entre eles também era chamado de “poder executivo” e dos quais faziam uso à noite nos jardins do Palais-Égalité (...)”. In: BOLLON, Patrice. A moral da máscara: merveilleux, zazous, dândis, punks, etc. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 22- 3. 39

No prefácio da comédia de Molière segue o seguinte esclarecimento: Composta em<br />

chambord [tecido de lã], para o divertimento do Rei, no mês de outubro de 1670, e apresen-<br />

tada em público, em Paris, pela primeira vez, no teatro do Palais-Royal, no dia 23 de no-<br />

vembro do mesmo ano de 1670 pela Companhia do Rei 38 . O Rei deve ter se divertido, sem<br />

imaginar o quão próximo estava da imagem refletida.<br />

(Não me restariam dúvidas. Faria o hábito, seguindo as rubricas, e diante do público<br />

como que diria: eis o Sr. Jourdain. Por que então essa insatisfação? Há algo no protagonista<br />

que, parece, me escapa. Certa singularidade ...)<br />

Dos profícuos ensinamentos da corte francesa, um permanece intrigante, pois culmina<br />

a era da monarquia sobrenatural edificada na imaterialidade aparente: a presença dos<br />

muscadins no final da Revolução Francesa. A cena da troca dos uniformes não é longa: culottes<br />

(calções usados pelos simpatizantes do Antigo Regime) são substituídos pelos sansculottes<br />

(calças compridas usadas por artesões, aprendizes e proletários, homens do povo),<br />

deflagrando o descontentamento do povo francês com as frivolidades do Antigo Regime.<br />

Depois, novamente, quando Robespierre é guilhotinado, e os girondinos restituem o poder<br />

do clero e da nobreza, a volta dos culottes. Neste último cenário, lá estão os jovens janotas,<br />

os muscadins 39 alheios aos destroços da era do Terror.<br />

Patrice Bollon analisa o papel desempenhado por estes jovens, definindo-os como<br />

contraventores da “revolução simbólica”. Aparentemente reunidos pelo ódio aos jacobinos,<br />

os muscadins circulam pelo Palais-Égalité, proferindo provocações como se fossem eles os<br />

seus carrascos. Bollon comenta sobre o longo tempo que os estudiosos levaram para se certi-<br />

38 MOLIÈRE, ibidem, p. 279.<br />

39 Para melhor compreensão da aparência dos muscadins transcrevo, de Bollon, a forma como se vestiam:<br />

“A redingote verde-garrafa ou cor-de-lama, de ombros largos e retos, quase pontudos, de abas quadradas<br />

cortadas em “rabo de bacalhau” e com largas lapelas em ponta de xale, era quase sempre apertada, aberta<br />

na frente e subindo nas costas, dando-lhe um aspecto de corcunda. Os culottes à francesa, brancos e apertados<br />

acima do joelho, eram cheios de pregas. E as meias, que desapareciam na cascata de fita multicolidas<br />

amarradas abaixo dos culottes, eram mescladas e em saca-rolhas ou então enfeitadas com largas tiras<br />

azuis e brancas horizontais – o conjunto dando à perna de cambaio ou de zambro de efeito surpreendente,<br />

como pássaros de busto encarquilhado trepados sobre intermináveis pernas de pau curvadas e nodosas.<br />

Nos pés usavam longos sapatos estreitos com fivelas e bico quadrado, lembrando calçados da Idade Média.<br />

Suas mãos eram excessivamente brancas, manicuradas e perfumadas com óleo de amêndoas. Os<br />

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dos quais faziam uso à noite nos jardins do Palais-Égalité (...)”. In: BOLLON, Patrice. A moral da máscara:<br />

merveilleux, zazous, dândis, punks, etc. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 22-<br />

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