AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...
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ito (fantasma) e, no entanto, com relação ao figurino-corpo o simulacro é grotesco por jun- tar humano e inumano, vida e representação. O fantasma se manifesta no figurino. Porém o corpo-ator formando um único corpo com figurino (em conceito), não se presta mais a ser somente um suporte para o corpo do “outro”. O espírito (fantasma) se manifesta no hábito – sua concretização – como também se materializa nas percepções e sensações do corpo-ator. (Meu monge é um híbrido de naturezas: espírito/fantasma, arte/vida; espíri- to/extensão, invisível/visível; humano/inumano,corpo/figurino-representação, cada vez mais próximo aos mortais. A Natureza Naturante se dissipa na Natureza Naturada.) 1.3 Santa Âmbula 27 Ironicamente os modus subvertem as hierarquias. A organização do poder político europeu no século XVII, principalmente na França, é apontada por Jean-Marie Apostolidès como ponte entre a sociedade de ordens e a sociedade de classes. Este período transitório de uma política na qual o clero, a nobreza e o terceiro estado exercem funções úteis à totalidade (um orando por todos, o outro protegendo-os, o terceiro alimentando-os 28 ) e uma política que comporta o advento da burguesia (importância primordial à ideia de cultura), empenha- se na construção da mitistória do corpo duplo do rei, fundo para a política do absolutismo. Largamente difundido, este pensamento assegurou ao corpo do monarca-humano, o corpo do monarca-encarnação do Estado, representante de Cristo no Estado 29 . Em subtexto, o corpo simbólico do rei, que contempla em si o corpo de uma nação, ou os corpos dos que participam da mitificação, estabelece novos paradigmas e prevê a reorganização das hierarquias. A analogia é propositalmente acentuada. Cristo tornado humano, deixa de ser substância para ser modus da Substância. (Eli, Eli, Lamma sabacthani?). Enquanto o duplo do corpo do rei, metaforicamente, deixa de ser modus da Substância para ser Substância. Do 27 Vasos que guardavam o óleo para ungir os reis da França. A unção fazia do rei uma espécie de sacerdote e taumaturgo e o investia de um poder sobrenatural, transformando-o em uma figura ao mesmo tempo benfazeja e terrível, à maneira de um destino intercalado entre os homens e Deus. In: CHAUSSI- NAND-NOGARET, Guy. A queda de Bastilha: o começo da Revolução Francesa”. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zorge Zahar, 1989, p. 14-5. 28 APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luiz XIV. Trad. Cláudio César Santoro. Rio de Janeiro: José Olympio, DF: Edunb, 1993, p. 09. 29 Peter Burke também assinala esta função destinada ao rei, e acrescenta: “imagens vivas” de Deus. Cf: BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIX. Trad. Maria Luiza da A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 34
Verbo à carne, o corpo-Cristo dilacerado é renúncia do imaterial. (Jesus, tendo tomado o vinagre disse: Tudo está consumado. E inclinando a cabeça, rendeu o espírito). Da carne ao Verbo, o corpo-rei deve ser resguardado, evitando toda espécie de sofrimento, de mácula, em cuidado à integridade do corpo da nação. O corpo-rei é intocável. Incorruptível. E de certa forma, imaterial, inexistente. Sendo simbólico, também é imortal. Perdura em outro corpo, por hereditariedade, escondendo a dissolução do humano 30 . O corpo-Cristo extenuado chega ao limiar: Meu Deus, meus Deus, por que me abandonastes? O último invólucro do corpo-Cristo, o Santo Sudário, é prova cabal da sua existência como modus da Substância, o vestígio. Mas é também prova cabal do corpo imperecedouro. Corpo suscitado-ressuscitado (Jesu Deus noster). O corpo simbólico do rei, suscitado, será reconhecido pelos hábitos distintos. As divisas estão nas vestes, em flores, enfeitando devi- damente as partes do corpo-inumano. Seu cajado em ouro, cuja extremidade se recobre do pó da terra, serve como guia daquela outra ordem, imaterial (Notre visible Dieu). Os sinais reais são códigos que perfazem, por um lado a unificação das ordens, e por outro seu com- pleto desligamento. Unificação pelo simulacro que se reporta à Natureza Naturante, recriando a idéia de Substância primeira, onipresente (em todos os corpos representados) e onisciente. Já o com- pleto desligamento se dá por um processo de construção mais demorado, não premeditado, mas que ao se juntar com outros fatores se desvirtua para o crescimento da individualidade de cada um dos corpos. Apostolidès descreve em seus estudos os vínculos mantidos pelos nobres com o monarca, traduzidos nos sistemas de divisas e iniciadores de uma era de espetáculo 31 . Não mais restrito aos rituais, o espetáculo é um cerimonial incessante, permanente, estendido no dia-a- dia em cada gesto, fala, adorno, e ocupando a totalidade da vida francesa. Já o filósofo Gilles Lipovetsky aborda sobre esse período como um rompimento com as tradições. Segundo o autor, nas eras de tradição a aparência permanecia na continuidade 30 APOSTOLIDÈS, ibidem, p. 15. Segundo o autor: “Seu sucessor não traja luto porque o rei não poderia morrer. [O cerimonial de morte] tem por função tornar visível o imaginário do corpo simbólico”. 31 APOSTOLIDÈS, ibidem, p. 40. A título de exemplificação transcrevo um excerto sobre o uso dos escudos: “O escudo de monsieur mostra uma lua com as palavras Uno sole minor (somente o sol é maior que eu); Conde, chefe dos turcos, ostenta uma forma de lua crescente que tem por divisa Crescit ut ascipitur (aumenta à medida que se olha): a glória dos Condés cresce não quando se rebelam, mas quando sabem atrair os olhares favoráveis do príncipe). O duque de Enghien tem uma estrela com as palavras Magno de lumine lumen (luz que vem de uma maior)”. 35
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somente um suporte para o corpo do “outro”. O espírito (fantasma) se manifesta no hábito –<br />
sua concretização – como também se materializa nas percepções e sensações do corpo-ator.<br />
(Meu monge é um híbrido de naturezas: espírito/fantasma, arte/vida; espíri-<br />
to/extensão, invisível/visível; humano/inumano,corpo/figurino-representação, cada vez mais<br />
próximo aos mortais. A Natureza Naturante se dissipa na Natureza Naturada.)<br />
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Ironicamente os modus subvertem as hierarquias. A organização do poder político<br />
europeu no século XVII, principalmente na França, é apontada por Jean-Marie Apostolidès<br />
como ponte entre a sociedade de ordens e a sociedade de classes. Este período transitório de<br />
uma política na qual o clero, a nobreza e o terceiro estado exercem funções úteis à totalidade<br />
(um orando por todos, o outro protegendo-os, o terceiro alimentando-os 28 ) e uma política<br />
que comporta o advento da burguesia (importância primordial à ideia de cultura), empenha-<br />
se na construção da mitistória do corpo duplo do rei, fundo para a política do absolutismo.<br />
Largamente difundido, este pensamento assegurou ao corpo do monarca-humano, o<br />
corpo do monarca-encarnação do Estado, representante de Cristo no Estado 29 . Em subtexto,<br />
o corpo simbólico do rei, que contempla em si o corpo de uma nação, ou os corpos dos que<br />
participam da mitificação, estabelece novos paradigmas e prevê a reorganização das hierarquias.<br />
A analogia é propositalmente acentuada. Cristo tornado humano, deixa de ser substância<br />
para ser modus da Substância. (Eli, Eli, Lamma sabacthani?). Enquanto o duplo do<br />
corpo do rei, metaforicamente, deixa de ser modus da Substância para ser Substância. Do<br />
27 Vasos que guardavam o óleo para ungir os reis da França. A unção fazia do rei uma espécie de sacerdote<br />
e taumaturgo e o investia de um poder sobrenatural, transformando-o em uma figura ao mesmo<br />
tempo benfazeja e terrível, à maneira de um destino intercalado entre os homens e Deus. In: CHAUSSI-<br />
NAND-NOGARET, Guy. A queda de Bastilha: o começo da Revolução Francesa”. Trad. Lucy Magalhães.<br />
Rio de Janeiro: Zorge Zahar, 1989, p. 14-5.<br />
28 APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luiz XIV. Trad. Cláudio<br />
César Santoro. Rio de Janeiro: José Olympio, DF: Edunb, 1993, p. 09.<br />
29 Peter Burke também assinala esta função destinada ao rei, e acrescenta: “imagens vivas” de Deus. Cf:<br />
BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIX. Trad. Maria Luiza da<br />
A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.<br />
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