AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...

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no, das coisas vãs, e encerra o monge no qual me tornei. Mas aceitando a teofania material, inviabilizo a confirmação da asserção. Porém, vestido em meu hábito surrado, pobre em ornamentos, assemelho-me aos mendigos, aos maltrapilhos, aos esmoleiros, aos sem-sorte. Meu hábito surrado me iguala, aparentemente, com estes aos quais pretendo me igualar. Tudo não passa de aparência, pois há entre nós o diferencial da escolha. Aqui, a máxima se cumpre. Meu hábito não encerra o monge no qual me tornei: quem sabe um nobre cavalheiro de Deus. Ainda assim, um sinal me distingue daqueles aos quais quero me assemelhar, o sinal dos que passaram pela conversão interior para unir-se às coisas superiores 5 . Carrego, preso em meu pescoço, um tau. Singela madeira com desenho-inscrição invisível. Sinal Santo dos eleitos. Sinal Santo da diferença. Se sou Francisco, creio que nem a traça nem a espada acabarão jamais com a alma 6 e, contudo, glorifico o gozo estendido no meu próprio corpo. Se sou Francisco, persigo a ascese e preparo-me para receber as graças insignes. Serão minhas as chagas de Cristo, do Cristo encarnado, tornado um meu semelhante como prova do amor maior. As cinco chagas do corpo-sofredor. As cinco chagas materializando a imensa dor de minha alma. Ou antes, as cinco chagas que, de tão torturantes, podem me levar à dor da alma. Se sou Francisco não vivo o dilema posto entre matéria e alma, pois tudo foi criado à imagem e semelhança. Co- mungo do corpo do Deus vivo, matéria-símbolo, em memória. Creio na transubstanciação. Se sou Francisco. Para que o mundo se dobre sobre si mesmo, as formas de representação tornam-se complexas, numa refinada sobreposição de faces, tramadas por signos às vezes inalcançáveis aos não-iniciados, criando uma ordem material-imaterial em paralelo à ordem material. Os critérios que asseguram tais hierarquias são antagônicos, porém sustentados pelos mesmos princípios que outrora implantaram a separação entre as ordens. 5 Tau é a figura heráldica em forma de T, adotada pelos cônegos de Santo Antão, e que em função de ser a última letra do alfabeto hebraico é considerada símbolo do fim e da plenitude. Alguns estudiosos afirmam que São Francisco de Assis teria participado do Quarto Concílio de Latrão, e tendo ouvido o discurso do papa Inocêncio III, adotou o tau como símbolo sagrado. O tau passou a ser emblema da reforma, depois que o papa citou a passagem bíblica. “E o Senhor disse-lhes: Passa pelo meio da cidade, pelo meio de Jerusalém, e com um tau marca a fronte dos homens que gemem e que se doem de todas as abominações que se fazem no meio dela. E aos outros disse, ouvindo-o eu: Passai pelo meio da cidade, seguindo-o, e feri; não sejam compassivos os vossos olhos, nem tenhais compaixão alguma. O velho, o jovem e a donzela, o menino e as mulheres, matai todos, sem que nenhum escape; mas não mateis nenhum daqueles sobre quem virdes o tau” (Ez, 9, 4-6). Jacques Le Goff esclarece que nunca foi confirmada a participação de São Francisco neste Concílio. De qualquer forma, o tau foi adotado pelo santo no seu dia-a-dia. Cf: LE GOFF, JACQUES. São Francisco de Assis. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 80. 6 LARRAÑAGA, Inácio. O Irmão de Assis. Trad. Frei José Carlos Corrêa Pedroso. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 341. 28

A cruz do Gólgota, um pedaço de madeira, estacada para que se cumpra a Salvação. A cruz do Gólgota adornada com as mais finas pérolas. Ponho-me diante da cruz e cravo um diamante em seu centro. Um raro diamante ocupando o lugar da ferida. Incrusto o diamante na cruz, banhando em brilho a fronte de Cristo, como o Abade Abbone em suas reflexões: Quando, ao me deitar com todas as belezas desta casa de Deus, o encanto das pedras multicores me arrebatou das lides externas, e uma digna meditação me induziu a refletir, transferindo o que é material para o que é imaterial, sobre a diversidade das virtudes sagradas, então parece que me encontro, por assim dizer, numa estranha região do universo que não está mais de todo encerrada no barro da terra, nem livre de todo na pureza do céu. E parece-me que, por graça de Deus, eu possa ser transportado deste mundo inferior ao superior por via anagógica 7 . Se incrusto o diamante, em zelo à teofania material, também incrusto humanidades, e com o visível ofusco o invisível. Será preciso fé redobrada para não me perder na ação contemplativa do reflexo. Mais do que isso: será preciso o cálculo perfeito dos limites entre a alma e a matéria, e a hierarquia deve ser a separação clara. A alma é substância, entidade em si, experiência interna, e separa-se do corpo, sua extensão. Faço as vestes, cubro a alma. Do monge, pouco conheço, ou nada. Ponho-me, então, em busca do que não conheço. Outros fizeram esse percurso. René Descartes entregou-se, sem descanso, à procura da alma, a substância que em nada participa do que pertence ao corpo 8 . Por instantes estou certa: a alma é inteira e verdadeiramente distinta do corpo e po- de existir sem ele 9 . Portanto, o que procuro, o monge, não é nenhuma das matérias existen- tes, nem um vento, nem um vapor, nem mesmo um ar leve e penetrante, espalhado por to- dos esses membros 10 . Só a experiência interna, a substância pensante. O res cogitans. Quale sit? Permaneço com a questão. Se a alma é substância pensante, qual a sua o- rigem? Será preciso transitar mais entre o material e o imaterial, e duvidar, e crer. Afora Deus, não pode ser dada nem concebida nenhuma substância 11 . Percebo a cilada. Benedic- tus Spinoza acirrou a hierarquia. A substância é o que existe em si, isto é, aquilo cujo con- 7 Trata-se do personagem Abade Abbone, monge beneditino que, em conversa o protagonista Guilherme, justifica as riquezas de sua abadia. Cf: ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Trad. Aurora F. Bernardini, Homero F. de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 171. 8 DESCARTES, René. Meditações metafísicas. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 83. 9 DESCARTES, ibidem, p. 83. 10 DESCARTES, ibidem, p. 46. 11 SPINOZA, Benedictus. Pensamentos metafísicos; Tratado da correção do intelecto; Ética; Trado Político; Correspondência. Trad. Marilena de Souza Chauí [et al]. São Paulo: Abril Cultural. Col. Os Pensadores, 1983, p. 88. 29

A cruz do Gólgota, um pedaço de madeira, estacada para que se cumpra a Salvação.<br />

A cruz do Gólgota adornada com as mais finas pérolas. Ponho-me diante da cruz e cravo um<br />

diamante em seu centro. Um raro diamante ocupando o lugar da ferida. Incrusto o diamante<br />

na cruz, banhando em brilho a fronte de Cristo, como o Abade Abbone em suas reflexões:<br />

Quando, ao me deitar com todas as belezas desta casa de Deus, o encanto das pedras<br />

multicores me arrebatou das lides externas, e uma digna meditação me induziu a refletir,<br />

transferindo o que é material para o que é imaterial, sobre a diversidade das virtudes sagradas,<br />

então parece que me encontro, por assim dizer, numa estranha região do universo<br />

que não está mais de todo encerrada no barro da terra, nem livre de todo na pureza do<br />

céu. E parece-me que, por graça de Deus, eu possa ser transportado deste mundo inferior<br />

ao superior por via anagógica 7 .<br />

Se incrusto o diamante, em zelo à teofania material, também incrusto humanidades, e<br />

com o visível ofusco o invisível. Será preciso fé redobrada para não me perder na ação contemplativa<br />

do reflexo. Mais do que isso: será preciso o cálculo perfeito dos limites entre a<br />

alma e a matéria, e a hierarquia deve ser a separação clara. A alma é substância, entidade em<br />

si, experiência interna, e separa-se do corpo, sua extensão.<br />

Faço as vestes, cubro a alma. Do monge, pouco conheço, ou nada. Ponho-me, então,<br />

em busca do que não conheço. Outros fizeram esse percurso. René Descartes entregou-se,<br />

sem descanso, à procura da alma, a substância que em nada participa do que pertence ao<br />

corpo 8 . Por instantes estou certa: a alma é inteira e verdadeiramente distinta do corpo e po-<br />

de existir sem ele 9 . Portanto, o que procuro, o monge, não é nenhuma das matérias existen-<br />

tes, nem um vento, nem um vapor, nem mesmo um ar leve e penetrante, espalhado por to-<br />

dos esses membros 10 . Só a experiência interna, a substância pensante. O res cogitans.<br />

Quale sit? Permaneço com a questão. Se a alma é substância pensante, qual a sua o-<br />

rigem? Será preciso transitar mais entre o material e o imaterial, e duvidar, e crer. Afora<br />

Deus, não pode ser dada nem concebida nenhuma substância 11 . Percebo a cilada. Benedic-<br />

tus Spinoza acirrou a hierarquia. A substância é o que existe em si, isto é, aquilo cujo con-<br />

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Trata-se do personagem Abade Abbone, monge beneditino que, em conversa o protagonista Guilherme,<br />

justifica as riquezas de sua abadia. Cf: ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Trad. Aurora F. Bernardini,<br />

Homero F. de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 171.<br />

8<br />

<strong>DE</strong>SCARTES, René. Meditações metafísicas. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,<br />

2005, p. 83.<br />

9<br />

<strong>DE</strong>SCARTES, ibidem, p. 83.<br />

10<br />

<strong>DE</strong>SCARTES, ibidem, p. 46.<br />

11<br />

SPINOZA, Benedictus. Pensamentos metafísicos; Tratado da correção do intelecto; Ética; Trado<br />

Político; Correspondência. Trad. Marilena de Souza Chauí [et al]. São Paulo: Abril Cultural. Col. Os<br />

Pensadores, 1983, p. 88.<br />

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