AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...
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abstraídas desse processo 20 . Aplicando estas considerações de Bohm ao evento de Cage, é possível entendê-lo num sentido mais complexo. Considera-se que o que acontece passa a ser a realidade 21 . Quando Cage intitula o evento como “acontecimento sem título”, inevitavelmente sugere um tom de ironia, ou ao menos de brincadeira, com a idéia corrente de que o título serve para o fechamento, e até síntese, da obra artística 22 . Então, o termo “acontecimento” empregado no título ganha um sentido semelhante ao empregado usualmente no teatro: o acontecimento é a realidade da cena. Em Cage, o acontecimento é a realidade da cena, mas é a realidade da vida. No entanto, seguindo as reflexões de Bohm, acontecimento é o estado de fluxo, e esse estado de fluxo “é”, e todo o seu entorno são abstrações, as quais, por impossibilidade de alcançarmos a es- fera multidimensional, denominamos realidade. Assim sendo, o “acontecimento sem título” se reportaria à realidade, ou às abstrações que chamamos de realidade. Sobre a presença, os dados trazidos por Fischer-Lichte servem como contraponto à idéia de sobredeterminada qualidade de co-presença, analisada por Pavis e Lehmann, pois permitem manter em suspenso as questões da recepção para fazer notar aspectos da presença ainda sob o ponto de vista da performance (a atuação mesma do corpo-atuante). Descolada da obrigatoriedade de produzir significado, a presença do corpo-atuante encontra diferentes fatores motivadores, exigindo do espectador outras percepções. No plano da performance, em “acontecimento sem título”, os atuantes permanecem em constante estado de fluxo, em constante presença. Vale mencionar que outros procedimentos adotados na atualidade também podem ser fonte para a pesquisa do figurino-penetrante, mesmo sublinhando as diferenças nos objeti- vos. Os estudos sobre performance teatral e risco físico, de André Carreira, são exemplos das múltiplas interfaces que podem ser estabelecidas. Carreira argumenta sobre o risco físico como sendo toda a ação corporal que representa a possibilidade de dano físico ou emocional, e utilizado como elemento disparador e organizador do vínculo performer/ especta- dor 23 . A grande maioria das proposições que empregam o figurino-penetrante, de algum modo, faz salientar o estado de risco para o corpo-atuante, bem como intenciona alcançar alguns dos aspectos, levantados por Carreira, na relação com o espectador: A incorporação 20 BOHM, ibdem, p. 61. 21 Segundo o dicionário de língua portuguesa. Cf: FERREIRA, Aurélio A. de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 22 Leva-se em consideração todas as serventias do título, desde induzir a leitura até à complementação da obra, lembrando o caso das pinturas de René Magritte, como por exemplo “Isto não é um cachimbo”. 23 CARREIRA, André. “Performance teatral e risco físico: construção de vínculos e exploração de margens”. In: CARREIRA et AL (Org). Mediações performáticas latino-americanas. Belo Horizonte: Fale/Ufmg, 2003, p. 24. 138
da noção de risco ao espetáculo teatral tem expressado tentativas de fazer deste último uma forma de evento que ofereceria à audiência um material de outra ordem distinta do que a- penas uma narrativa de histórias. O plano vivencial seria então incorporado como lugar de comunhão com a platéia e apareceria uma idéia de jogo fundamentado nas sensações 24 . O termo “presentificação” vem sendo empregado por pesquisadores para acentuar o ato da presença no momento presente, no aqui/agora, e os estados do corpo como fluxo, so- bretudo, desvinculado da responsabilidade de representar um corpo-outrem. Adoto, então, o termo presentificação por considerá-lo mais propício para designar as experiências causadas pelo figurino-penetrante. É importante lembrar que a noção de presentificação primeiramente relaciona-se com a desestabilização das hierarquias da cena por não privilegiar a subjetivação de um corpo inexistente, pautando-se nas questões do corpo-atuante. Além disso, do ponto de vista desta pesquisa, que observa a presentificação facilitada pelo figurino-penetrante, também os ele- mentos da cena se vêem modificados nas suas funções, para assegurar ligação com o corpo. 3.3 Transições: da metáfora ao ajuste Para além da experiência do figurino voltada para o significado, busco observar a relação de sentido para o corpo em atuação. Então, há uma dupla tentativa: primeiramente, manter em suspenso o estado de representação do figurino, adaptando a idéia de “presentificação” (figurino-presentificado) e, depois, burlar a função comum da roupa (no dia-a-dia) de mediar as relações do corpo com o ambiente. Tomo emprestado o processo de criação do vídeo-dança-instalação Entreterritórios, realizado pela bailarina curitibana Marila Velloso, entendendo neste processo etapas e mudanças de funções do figurino. Iniciado em Salvador (BA), em 2006, o projeto tinha como princípio norteador a no- ção de multiplicidade, uma das características aproximativas da noção de rizoma, conforme os estudos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para os autores, é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo 25 . O “Entreterritórios” propunha-se a pensar nas determinações, nas gran- 24 CARREIRA, ibdem, p. 24. 25 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo, 34, 1995, p. 16. 139
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da noção de risco ao espetáculo teatral tem expressado tentativas de fazer deste último uma<br />
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penas uma narrativa de histórias. O plano vivencial seria então incorporado como lugar de<br />
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O termo “presentificação” vem sendo empregado por pesquisadores para acentuar o<br />
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termo presentificação por considerá-lo mais propício para designar as experiências causadas<br />
pelo figurino-penetrante.<br />
É importante lembrar que a noção de presentificação primeiramente relaciona-se com<br />
a desestabilização das hierarquias da cena por não privilegiar a subjetivação de um corpo<br />
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Para além da experiência do figurino voltada para o significado, busco observar a<br />
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(figurino-presentificado) e, depois, burlar a função comum da roupa (no dia-a-dia) de<br />
mediar as relações do corpo com o ambiente. Tomo emprestado o processo de criação do<br />
vídeo-dança-instalação Entreterritórios, realizado pela bailarina curitibana Marila Velloso,<br />
entendendo neste processo etapas e mudanças de funções do figurino.<br />
Iniciado em Salvador (BA), em 2006, o projeto tinha como princípio norteador a no-<br />
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é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma<br />
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imagem e mundo 25 . O “Entreterritórios” propunha-se a pensar nas determinações, nas gran-<br />
24 CARREIRA, ibdem, p. 24.<br />
25 <strong>DE</strong>LEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Trad. Aurélio<br />
Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo, 34, 1995, p. 16.<br />
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