AMABILIS DE JESUS DA SILVA FIGURINO-PENETRANTE: UM ...

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04.06.2013 Views

cantes relatos de atuações, nas mais diversas estéticas. Contudo, o domínio de si esteve liga- do, na cena, à representação de outrem, em detrimento do corpo-atuante. Retomo os procedimentos do Teatro de Arte de Moscou, mais exatamente o processo de criação do espetáculo “Júlio César”, em busca de subsídios. Por certo, as capas militares, dispostas em pregas que não se prendem ao corpo, ofereciam desconforto aos atuantes, exigindo adaptações do corpo como um todo. E se esta tese propõe que o encontro entre as maté- rias do figurino e as matérias do corpo, como incômodo, podem ser topos de criação e, neste sentido, desestabilizam uma hierarquia rígida, também se poderia pensar que mesmo na montagem de Júlio César há este período de “encontro”, de ajustes. O diferencial proposto aqui diz respeito ao aproveitamento deste incômodo como pro- cesso de criação, não como acontece na montagem referida, na qual o esforço vem em tentativa de aproximação do que se entende por um corpo “natural”, com modos determinados de caminhar, andar, sentar-se, deitar-se, pentear-se, enfim, todas as movimentações comuns no cotidiano. Perde-se o momento do “encontro” das matérias em favor de uma possível natura- lização. Como já dito anteriormente, o corpo-atuante dispõe-se a repetir as movimentações marcadas pelas regras do social, assimilam e acabam por simulá-las até entrarem num estado que se possa reconhecer como “verdadeiras”. As técnicas de domínio de si, em Júlio César aparecem como conformação às regras, e mesmo necessitando do corpo-atuante, de suas e- moções e sensações, ainda assim, referem-se a um modelo exemplar. Das propostas do início do século XX, também é interessante observar os treinamentos voltados para a biomecânica, de Vsevolod Meyerhold, por opor-se aos métodos introspectivos de Stanislavski. A aplicação da mecânica ao corpo humano, com estímulos exteriores traz, em seu tempo, conceitos renovadores. Em Enunciados sobre a biomecânica evidencia-se como prescindível o domínio de si. No item nº 8, Meyerhold estabelece: a coordenação no espaço e sobre a área de representação, a capacidade de encontrar-se a si mesmo em fluxo de massa, a faculdade de adaptação, de cálculo e de justeza do golpe de vista são as exigências de base da biomecânica 54 . Não se trata de reprodução de movimentos cotidianos, já que estes devem ser convencionados. Porém, para chegar em movimentos convencionados, o ator cria uma espécie de repertório, trabalhando com a fixação dos gestos, das poses. Diferente disto, esta pesquisa se propõe olhar para as propostas que de alguma forma partem do pressuposto do domínio de si, mas sem que o corpo trabalhe a partir de um repertório pré-estabelecido, ou, 54 MEYERHOLD, Vsevolod. “Enunciados sobre a biomecânica”. Trad. Para o francês de Béatrice Picon- Vallin, in: Buffonneries, nº 18-19, Lecture, 1989, p. 215-219. Trad. Para o português de Roberto Mallet. Disponível em WWW.grupotempo.com.br/tex_biomecanica.html, acesso em 20/04/2009. 100

como no caso dos exercícios da biomecânica, convencionados, criando distância do corpo cotidiano. O item nº14 da biomecânica elucida: Cada um deve possuir a posição convincente de um homem em equilíbrio, cada um deve ter uma reserva de atitudes, de poses e de diferentes recursos que permitam-lhe manter o equilíbrio. Cada um deve buscar por si mesmo o equilí- brio necessário ao momento dado. Esta reserva de atitudes adquirida com o treinamento é que serve, aqui, como avesso, para sinalizar melhor a noção pretendida de pré-identidade, aquela que é ainda anterior à construção da subjetividade. O texto “Gilbert Simondon: o indivíduo e sua gênese físico-biológica” – no qual De- leuze faz uma leitura do princípio de individuação posto por Simondon – discute sobre a difi- culdade de se falar da individuação, por estar sempre reportada ao indivíduo já constituído. Em função disto, a individuação é tomada como o caráter coextensivo do ser. Faz-se dele todo o ser e o primeiro momento do ser fora do conceito. Para Simondon, o indivíduo só pode ser contemporâneo de sua individuação, e por sua vez, a individuação é contemporânea do princípio genético, não de reflexão. Esta constatação leva à noção de que a individuação já não é coextensiva ao ser; ela deve representar um momento que não é nem todo o ser nem o primeiro. Ela deve ser situável, determinável em relação ao ser, num movimento que nos levará a passar do pré-individual ao indivíduo 55 . Neste sentido é que a presente pesquisa evita processos pautados em exercícios de repertório pré-determinado. Ainda no tocante às estratégias de Artaud para alcançar um corpo sem órgãos, ressalto que seguindo suas indicações sobre figurino, também se evidencia uma distância dos propósi- tos desta pesquisa. A simbologia pretendida nos elementos de cena não privilegia a relação do figurino com o corpo, mas o uso metafórico, recaindo na assinalação. E uma correlação com as técnicas e domínios de si de São Francisco, e mais tarde as heranças simbólicas deixadas para seus seguidores talvez esclareçam o que pretendo sublinhar. As aflições do corpo-Francisco originadas, sobretudo, pelos longos jejuns são situa- ções de corpo em risco. Francisco utilizava-se das simbologias cristãs, a exemplo do Tau e do cordão, mas seu corpo padecia, em busca da ascese. Séculos depois, os Irmãos da Ordem Terceira de São Francisco de Assis partem das simbologias como uma possível norma de conduta para também alcançar a ascese. O manual desta ordem, de 1934, é explicativo: 55 In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 116. 101

cantes relatos de atuações, nas mais diversas estéticas. Contudo, o domínio de si esteve liga-<br />

do, na cena, à representação de outrem, em detrimento do corpo-atuante.<br />

Retomo os procedimentos do Teatro de Arte de Moscou, mais exatamente o processo<br />

de criação do espetáculo “Júlio César”, em busca de subsídios. Por certo, as capas militares,<br />

dispostas em pregas que não se prendem ao corpo, ofereciam desconforto aos atuantes, exigindo<br />

adaptações do corpo como um todo. E se esta tese propõe que o encontro entre as maté-<br />

rias do figurino e as matérias do corpo, como incômodo, podem ser topos de criação e, neste<br />

sentido, desestabilizam uma hierarquia rígida, também se poderia pensar que mesmo na montagem<br />

de Júlio César há este período de “encontro”, de ajustes.<br />

O diferencial proposto aqui diz respeito ao aproveitamento deste incômodo como pro-<br />

cesso de criação, não como acontece na montagem referida, na qual o esforço vem em tentativa<br />

de aproximação do que se entende por um corpo “natural”, com modos determinados de<br />

caminhar, andar, sentar-se, deitar-se, pentear-se, enfim, todas as movimentações comuns no<br />

cotidiano. Perde-se o momento do “encontro” das matérias em favor de uma possível natura-<br />

lização. Como já dito anteriormente, o corpo-atuante dispõe-se a repetir as movimentações<br />

marcadas pelas regras do social, assimilam e acabam por simulá-las até entrarem num estado<br />

que se possa reconhecer como “verdadeiras”. As técnicas de domínio de si, em Júlio César<br />

aparecem como conformação às regras, e mesmo necessitando do corpo-atuante, de suas e-<br />

moções e sensações, ainda assim, referem-se a um modelo exemplar.<br />

Das propostas do início do século XX, também é interessante observar os treinamentos<br />

voltados para a biomecânica, de Vsevolod Meyerhold, por opor-se aos métodos introspectivos<br />

de Stanislavski. A aplicação da mecânica ao corpo humano, com estímulos exteriores traz, em<br />

seu tempo, conceitos renovadores. Em Enunciados sobre a biomecânica evidencia-se como<br />

prescindível o domínio de si. No item nº 8, Meyerhold estabelece: a coordenação no espaço e<br />

sobre a área de representação, a capacidade de encontrar-se a si mesmo em fluxo de massa,<br />

a faculdade de adaptação, de cálculo e de justeza do golpe de vista são as exigências de base<br />

da biomecânica 54 . Não se trata de reprodução de movimentos cotidianos, já que estes devem<br />

ser convencionados. Porém, para chegar em movimentos convencionados, o ator cria uma<br />

espécie de repertório, trabalhando com a fixação dos gestos, das poses. Diferente disto, esta<br />

pesquisa se propõe olhar para as propostas que de alguma forma partem do pressuposto do<br />

domínio de si, mas sem que o corpo trabalhe a partir de um repertório pré-estabelecido, ou,<br />

54 MEYERHOLD, Vsevolod. “Enunciados sobre a biomecânica”. Trad. Para o francês de Béatrice Picon-<br />

Vallin, in: Buffonneries, nº 18-19, Lecture, 1989, p. 215-219. Trad. Para o português de Roberto Mallet.<br />

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