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O atual diretor de comunicação da ZON diz que agora tem uma carga horária<br />
maior do que quando era jornalista, mas que é um trabalho menos stressante<br />
“Nunca passei fome, com exceção de uma vez<br />
em que, durante umas 36 ou 48 horas, comi<br />
uma laranja a dividir por quatro pessoas„<br />
apanhámos a mãe dessa criança a chegar<br />
com ela ao hospital. Estávamos ali à espera<br />
de uma entrevista com o Savimbi e não<br />
tínhamos muito que fazer. O hospital fi cava<br />
perto da casa onde estávamos à espera<br />
e passávamos algumas horas no hospital<br />
a seguir a evolução do estado da criança.<br />
Depois fomos a casa e quando voltamos à<br />
noite para ver como é que ele estava, tinha<br />
morrido... O facto de eu ter passado mais<br />
horas junto de uma pessoa e não de um<br />
grupo de pessoas indistintas fez com que<br />
fosse a situação mais emotiva e que me<br />
é mais doloroso recordar.<br />
<strong>Lux</strong> – E ainda hoje se lembra dele?<br />
P.C. – Ainda hoje, quando me lembro dele, fi co<br />
emocionado. Essa e mais uma criança que,<br />
numa vila do sul de Angola, se agarrou à<br />
minha perna para eu o levar dali. E tive de<br />
o enxotar, de lhe dizer “largue-me”... Não<br />
podia levar uma criança desconhecida...<br />
<strong>Lux</strong> – Nesses terrenos é preciso ser frio?<br />
P.C. – É preciso ser frio, tentar que as emoções<br />
não nos agarrem, não nos abracem. Eu<br />
fazia um esforço para não me fixar nos<br />
indivíduos, na personalidade. No fundo, é não<br />
individualizar o sofrimento que estamos a<br />
ver. Na altura incomoda, dói, revolta, mas<br />
estamos preparados para aquilo e é preciso<br />
seguir em frente. Quando regressamos e<br />
começamos a pensar nas coisas, é que elas<br />
ganham outra dimensão.<br />
<strong>Lux</strong> – Alguma vez a sua vida esteve em risco?<br />
P.C. – A minha vida esteve algumas vezes<br />
em risco efetivo, mas na altura não se pensa<br />
“Ai que eu vou morrer”. Aconteceu uma vez,<br />
num sítio, uma bala bater num gradeamento<br />
com um dedo de espessura que estava à<br />
minha frente, mas na altura havia muito som<br />
de balas e nem reparei nisso. Só quando<br />
depois estávamos a ver a gravação é que<br />
vimos a bala vir em nossa direção e bater<br />
no ferrinho. Se me senti em perigo? Nunca<br />
me senti em perigo. Mas se houve pessoas<br />
que morreram, é porque havia perigo, é essa<br />
a lógica.<br />
<strong>Lux</strong> – Quem vai para esses sítios sabe que vai<br />
comer pouco, tomar poucos banhos...<br />
P.C. – A tática é comer sempre que há comida<br />
e, regra geral, há. Por isso, eu acabava sempre<br />
por não emagrecer e às vezes até engordava.<br />
Nunca me aconteceu passar fome, com exceção<br />
de uma vez, na primeira Guerra do Golfo, em<br />
que durante umas 36 ou 48 horas comi uma<br />
laranja a dividir por quatro pessoas. Foi a<br />
única altura em que senti fome. E, regra geral,<br />
há água e conseguimos lavar-nos. Uma vez<br />
tomei talvez dois banhos durante um mês,<br />
mas foi a única situação em que vivi esse<br />
tipo de privação.<br />
<strong>Lux</strong> – Não sente falta da adrenalina do jornalismo?<br />
P.C. – Não. Houve uma altura em que eu estava<br />
um bocadinho viciado em adrenalina e não