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irmão e, além disso, a SIC fazia 20 anos, por isso havia uma data redonda a que valia a pena associarmo-nos. E, por causa da conjugação desses fatores, foi agora. Lux – Socorreu-se de apontamentos da altura? P.C. – Não, não tenho apontamentos, recortes ou cassetes de vídeo... Não guardei nada. Por isso, foi preciso fazer uma pesquisa de arquivos da SIC, do Expresso, da Visão e das coisas que eu fi z. Lendo isso, falando com alguns dos colegas que foram comigo em reportagem e socorrendo-me da minha memória, escrevi as histórias. Lux – Que episódio foi mais doloroso reviver? P.C. – Foi o episódio de uma criança que tinha 4 ou 5 anos e cujas últimas horas de vida eu e o repórter de imagem que estava comigo, o Renato Freitas, acompanhámos, no planalto central de Angola. A população da cidade vivia cheia de carências e nós, por acaso, Casado e pai de dois fi lhos, o jornalista é também avô de um rapaz “Ser avô é muito diferente de ser pai, mas não necessariamente melhor„

O atual diretor de comunicação da ZON diz que agora tem uma carga horária maior do que quando era jornalista, mas que é um trabalho menos stressante “Nunca passei fome, com exceção de uma vez em que, durante umas 36 ou 48 horas, comi uma laranja a dividir por quatro pessoas„ apanhámos a mãe dessa criança a chegar com ela ao hospital. Estávamos ali à espera de uma entrevista com o Savimbi e não tínhamos muito que fazer. O hospital fi cava perto da casa onde estávamos à espera e passávamos algumas horas no hospital a seguir a evolução do estado da criança. Depois fomos a casa e quando voltamos à noite para ver como é que ele estava, tinha morrido... O facto de eu ter passado mais horas junto de uma pessoa e não de um grupo de pessoas indistintas fez com que fosse a situação mais emotiva e que me é mais doloroso recordar. Lux – E ainda hoje se lembra dele? P.C. – Ainda hoje, quando me lembro dele, fi co emocionado. Essa e mais uma criança que, numa vila do sul de Angola, se agarrou à minha perna para eu o levar dali. E tive de o enxotar, de lhe dizer “largue-me”... Não podia levar uma criança desconhecida... Lux – Nesses terrenos é preciso ser frio? P.C. – É preciso ser frio, tentar que as emoções não nos agarrem, não nos abracem. Eu fazia um esforço para não me fixar nos indivíduos, na personalidade. No fundo, é não individualizar o sofrimento que estamos a ver. Na altura incomoda, dói, revolta, mas estamos preparados para aquilo e é preciso seguir em frente. Quando regressamos e começamos a pensar nas coisas, é que elas ganham outra dimensão. Lux – Alguma vez a sua vida esteve em risco? P.C. – A minha vida esteve algumas vezes em risco efetivo, mas na altura não se pensa “Ai que eu vou morrer”. Aconteceu uma vez, num sítio, uma bala bater num gradeamento com um dedo de espessura que estava à minha frente, mas na altura havia muito som de balas e nem reparei nisso. Só quando depois estávamos a ver a gravação é que vimos a bala vir em nossa direção e bater no ferrinho. Se me senti em perigo? Nunca me senti em perigo. Mas se houve pessoas que morreram, é porque havia perigo, é essa a lógica. Lux – Quem vai para esses sítios sabe que vai comer pouco, tomar poucos banhos... P.C. – A tática é comer sempre que há comida e, regra geral, há. Por isso, eu acabava sempre por não emagrecer e às vezes até engordava. Nunca me aconteceu passar fome, com exceção de uma vez, na primeira Guerra do Golfo, em que durante umas 36 ou 48 horas comi uma laranja a dividir por quatro pessoas. Foi a única altura em que senti fome. E, regra geral, há água e conseguimos lavar-nos. Uma vez tomei talvez dois banhos durante um mês, mas foi a única situação em que vivi esse tipo de privação. Lux – Não sente falta da adrenalina do jornalismo? P.C. – Não. Houve uma altura em que eu estava um bocadinho viciado em adrenalina e não

irmão e, além disso, a SIC fazia 20 anos,<br />

por isso havia uma data redonda a que valia<br />

a pena associarmo-nos. E, por causa da<br />

conjugação desses fatores, foi agora.<br />

<strong>Lux</strong> – Socorreu-se de apontamentos da altura?<br />

P.C. – Não, não tenho apontamentos, recortes<br />

ou cassetes de vídeo... Não guardei nada.<br />

Por isso, foi preciso fazer uma pesquisa de<br />

arquivos da SIC, do Expresso, da Visão e<br />

das coisas que eu fi z. Lendo isso, falando<br />

com alguns dos colegas que foram comigo<br />

em reportagem e socorrendo-me da minha<br />

memória, escrevi as histórias.<br />

<strong>Lux</strong> – Que episódio foi mais doloroso reviver?<br />

P.C. – Foi o episódio de uma criança que tinha<br />

4 ou 5 anos e cujas últimas horas de vida eu e<br />

o repórter de imagem que estava comigo, o<br />

Renato Freitas, acompanhámos, no planalto<br />

central de Angola. A população da cidade<br />

vivia cheia de carências e nós, por acaso,<br />

Casado e pai de dois fi lhos,<br />

o jornalista é também avô<br />

de um rapaz<br />

“Ser avô é muito diferente<br />

de ser pai, mas não<br />

necessariamente melhor„

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