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mortalidade_materna

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USA US$ 6.00<br />

CHIRAC NA GUERRA<br />

Por que a França<br />

se opõe a Bush<br />

O casamento de Lula<br />

e Maria de Lourdes, em 1969<br />

EXCLUSIVO<br />

SAÚDE FEMININA<br />

MANOEL CARLOS<br />

o suave lesbianismo<br />

na novela das 8<br />

R$ 5,90 N o 251 10 março 2003 www.epoca.com.br<br />

MODA<br />

MINISSAIA<br />

Pernas sempre à mostra<br />

00251<br />

771415 549002<br />

ISSN 1415-5494 9<br />

A MORTE DA PRIMEIRA<br />

MULHER DE LULA<br />

Maria de Lourdes morreu em 1971, antes de completar 23 anos,<br />

vítima da falta de assistência à maternidade, que até hoje mata<br />

milhares de brasileiras humildes. O atestado de óbito foi<br />

assinado por um médico acusado de fazer laudos falsos para a<br />

ditadura militar. Os responsáveis dizem que não se lembram de nada


ESPECIAL<br />

Há três décadas morria a tecelã<br />

Maria de Lourdes, primeira<br />

mulher do futuro presidente<br />

Luiz Inácio Lula da Silva.<br />

Maria de Lourdes foi vítima da<br />

<strong>mortalidade</strong> <strong>materna</strong>, que mata<br />

milhares de mulheres, todos os<br />

anos. Seu óbito foi assinado por<br />

um médico acusado de falsificar<br />

laudos de presos políticos<br />

assassinados pelo regime de 64<br />

62<br />

ELIANE BRUM<br />

ua mulher está morta.<br />

Seu filho também.” A<br />

sentença foi anunciada<br />

a Luiz Inácio da Silva há<br />

32 anos nos corredores<br />

do Hospital Modelo, em<br />

São Paulo. Ele desabou sobre um sofá. Mais<br />

tarde vomitaria. Descobriu-se, na manhã de<br />

7 de junho de 1971, o único sobrevivente da<br />

família iniciada dois anos antes em um casamento<br />

festejado com churrasco e guaraná num<br />

subúrbio paulistano. Maria de Lourdes Ribeiro<br />

da Silva acabara de morrer aos 22 anos.<br />

Quinze minutos depois do menino de 7 meses,<br />

arrancado a fórceps do ventre. Ninguém poderia<br />

imaginar que a esposa do operário teria<br />

sido a primeira-dama do Brasil. E seu bebê o<br />

primogênito do presidente. Luiz Inácio ainda<br />

não tinha Lula no sobrenome. Sua mulher era<br />

só mais uma Maria.<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003


“Foi o pior momento de toda a minha vida”,<br />

desabafou Lula à historiadora Denise Paraná,<br />

autora da biografia Lula, o Filho do Brasil.<br />

“Ninguém me tira da cabeça que ela morreu<br />

por negligência da rede hospitalar do<br />

Brasil, por problema de relaxamento médico.<br />

Como ela, morrem milhões sem atendimento<br />

neste país.”<br />

Foram três anos de desespero, chorando cada<br />

vez que ouvia uma música lenta, depositando<br />

margaridas no túmulo todo domingo, espichando<br />

os aperitivos. Lula mergulhou na rotina<br />

do sindicato e se transformou no maior líder popular<br />

da história do país. Em 1974 casou-se com<br />

a viúva Marisa Letícia e deu ao primeiro filho<br />

o nome que teria batizado o outro: Fábio Luiz.<br />

De Maria de Lourdes, ou Lourdes, como sempre<br />

foi chamada, restaram fotos esparsas, o<br />

álbum e a aliança do casamento, o livro de catecismo<br />

e uma peruca feita pela mãe, Herminia<br />

de Andrade, com os longos cabelos de graúna<br />

que um dia enroscaram o coração do presidente<br />

do Brasil.<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003<br />

PRIMEIRO AMOR<br />

Lula e Maria de<br />

Lourdes nunca<br />

tinham namorado<br />

antes. Foi um<br />

noivado de<br />

pizza, Love Story<br />

no cinema, mãos<br />

sorrateiras em<br />

serões que<br />

acabavam às<br />

22 horas sob o<br />

olhar de raio X<br />

da sogra de<br />

Lula. Chegaram<br />

ao altar<br />

sonhando com<br />

filhos e casa<br />

própria<br />

Lourdes era uma inocente no período menos<br />

ingênuo da história brasileira. Em 1971, sob o<br />

comando do general Emílio Garrastazu Médici,<br />

a ditadura militar prendia, torturava e matava.<br />

Lourdes, migrante do torrão mais sedento de<br />

Minas Gerais, operária tecelã desde os 16 anos,<br />

ginásio incompleto, nada sabia sobre os porões<br />

do regime. Quando, pouco antes de se casar, Lula<br />

apareceu com a novidade de participar da chapa<br />

do sindicato como representante dos trabalhadores<br />

da Villares, metalúrgica em que trabalhava<br />

como torneiro mecânico, ela buscou<br />

o conselho dos patrões. Ouviu dos donos da tecelagem<br />

que se meter em política era encrenca<br />

certa com a polícia. Lourdes apavorou-se. Descobriu<br />

que no Brasil pessoas eram torturadas por<br />

convicções que ela nem sequer entendia. Decidida<br />

a sobreviver na ordem e progredir sem cobiça,<br />

foi contra a entrada do marido no sindicato.<br />

Lula suou muito, gastou palavras e carícias<br />

para convencê-la de que não corria riscos. Tomou<br />

posse como diretor em 24 de abril de 1969<br />

e casou-se com Lourdes um mês depois. ä<br />

63<br />

Álbum de família


ESPECIAL<br />

Dois anos e 14 dias mais tarde, a mala com as<br />

roupinhas do filho na mão, Lula receberia a notícia<br />

de que Lourdes morrera. E com ela seu primogênito,<br />

um menino grande, de rosto redondo.<br />

“Olha aí, a minha família”, repetia Lula para<br />

a melhor amiga da esposa, Mirtes Magalhães,<br />

apontando para os caixões. Lula não permitiu a<br />

necropsia. “Ninguém vai retalhar a minha mulher.”<br />

Maria, irmã mais velha de Lula, lavou e<br />

vestiu Lourdes e o bebê ao encontrá-los<br />

ensangüentados,<br />

um ao lado do outro, arriados<br />

num leito do hospital. “Nunca<br />

vou esquecer daquela cena,<br />

ela cortada dos dois lados, o<br />

meninão de quase 4 quilos<br />

morto ao lado”, suspira. O<br />

atestado de óbito de número<br />

8.423, lavrado no cartório de<br />

registro civil do 37 o subdistrito<br />

de São Paulo, afirma que<br />

Lourdes morreu de “coma hepático,<br />

provável hepatite”. Na<br />

página seguinte, o documento<br />

de número 8.424 diz que seu filho teve morte<br />

intra-uterina.<br />

A assinatura do óbito cruza o destino da operária<br />

Maria de Lourdes da Silva com o médico<br />

Sérgio Belmiro Acquesta, personagens típicos<br />

de um país à sombra do arbítrio. Paulistano de<br />

ascendência italiana formado em medicina pela<br />

primeira turma do campus de Sorocaba da<br />

PUC/SP em 1956, Acquesta ingressou no departamento<br />

médico da Villares nos anos 60. Permaneceu<br />

até o início da década de 90. No mesmo<br />

período, fez carreira como legista no Instituto<br />

Médico-Legal de São Paulo, funcionário público<br />

concursado. Quando Lourdes morreu, ele era<br />

gerente do departamento médico da Villares e<br />

acompanhava os casos mais graves dos trabalhadores<br />

e familiares. Nos plantões do IML, atuava<br />

nas necropsias de presos políticos em companhia<br />

de outros colegas citados no relatório do<br />

projeto Brasil Nunca Mais, levantamento coordenado<br />

pela Arquidiocese de São Paulo sobre<br />

a tortura praticada na ditadura.<br />

Reprodução<br />

Sérgio Belmiro Acquesta (foto) exercia<br />

duas funções no regime militar:<br />

médico-chefe da Villares e legista do<br />

IML/SP. Está na lista de profissionais<br />

que atuaram nos laudos da repressão<br />

SUICÍDIO O marinheiro Grenaldo de Jesus, segundo<br />

relatos de presos políticos, foi executado por<br />

agentes do DOI-Codi após ser imobilizado<br />

MORTO DE EMOÇÃO<br />

José Maria Araújo (Edson<br />

Sardinha) tombou no pau-dearara.<br />

Acima, documentos<br />

contraditórios do delegado. Ao<br />

lado, a conclusão do legista<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003<br />

Fotos: reprodução Arquivo do Estado/Dops-SP


enos de um ano antes de assinar o<br />

atestado de óbito de Lourdes, Acquesta<br />

fez a necropsia de José Maria Ferreira<br />

Araújo, militante da Vanguarda<br />

Popular Revolucionária (VPR), preso em 23<br />

de setembro de 1970 pelo DOI-Codi de São<br />

Paulo, sob o nome falso de Edson Cabral Sardinha.<br />

Conhecido pelo codinome de Aribóia, ele<br />

morreu nas mãos dos torturadores, suplício testemunhado<br />

pelos presos políticos que aguardavam<br />

a vez. Tinha 29 anos. A família nunca encontrou<br />

o corpo.<br />

No laudo necroscópico, seu nome é identificado<br />

com um “T”, em vermelho, uma senha para<br />

diferenciar o “terrorista” dos presos comuns.<br />

A morte de Araújo é descrita nos documentos<br />

do arquivo do Dops/SP de duas maneiras diferentes<br />

pelo mesmo delegado, Alcides Cintra<br />

Bueno Filho. No primeiro, ele morre em “tiroteio”.<br />

No segundo, de “mal súbito”. Autor da<br />

necropsia, Acquesta concluiu que a morte de<br />

Araújo teve “causa indeterminada”.<br />

Nos meses seguintes à morte de Lourdes,<br />

o médico organizou uma série de reuniões<br />

com as gestantes da Villares para amainar a<br />

tempestade de boatos gerada pela tragédia<br />

da dupla morte na maternidade. “Não se preocupem,<br />

o que aconteceu com ela não teve nada<br />

a ver com a gravidez. Foi uma infecção”,<br />

repetia às mulheres, como lembram a assistente<br />

social Runilda Riedmiller e a enfermeira<br />

Iracema Fonseca Zaina, funcionárias da metalúrgica.<br />

Quase um ano depois, em 30 de<br />

maio de 1972, em sua segunda atividade,<br />

Acquesta assinou mais uma necropsia de conclusão<br />

curiosa. Preso pelos agentes do DOI-<br />

Codi ao tentar seqüestrar um avião no Aeroporto<br />

de Congonhas, o maranhense Grenaldo<br />

de Jesus, expulso da Marinha em 1964, foi<br />

executado com um tiro na cabeça após ser<br />

imobilizado. Os detalhes do assassinato foram<br />

amplamente narrados pelos policiais aos<br />

presos políticos detidos no órgão como instrumento<br />

de pressão habitual. Grenaldo tinha 31<br />

anos. A causa da morte apontada por Acquesta<br />

foi “suicídio”. Três anos depois um colega<br />

daria a mesma explicação para o assassinato<br />

de um preso político mais famoso, o jornalista<br />

Wladimir Herzog.<br />

A vida seguiu misturando violência e miséria.<br />

Em 1975, José Ferreira de Melo, o Frei<br />

Chico, irmão de Lula, metalúrgico e militante<br />

do PCB, foi preso e torturado nos porões<br />

do DOI-Codi. Em 1980, quando Lula estava<br />

preso pelas greves do ABCD, morreu sua mãe,<br />

dona Lindu, de câncer no útero, doença de<br />

fácil diagnóstico. Décadas antes, quando Lula<br />

era menino, a mãe havia permanecido mais<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003<br />

LUA-DE-MEL<br />

Lula e Lourdes<br />

recém-casados em<br />

Poços de Caldas<br />

“Não lembro<br />

de nada”<br />

FAUSTO BARACAT,<br />

obstetra e<br />

ginecologista<br />

de um mês em coma por complicações no parto<br />

de gêmeos. As crianças morreram por falta<br />

de cuidados.<br />

Nas últimas semanas antes da morte Lourdes<br />

tinha uma fogueira no estômago e vomitava<br />

tudo o que comia. Cada profissional que<br />

consultava repetia o mesmo refrão, alguns<br />

brincando, outros enfadados: “Gravidez é assim<br />

mesmo. Dá enjôo”. Mandavam que caminhasse<br />

e comesse gelatina. Na quinta-feira<br />

3 de junho, como não suportasse a pressão<br />

das cólicas, Lourdes procurou pela terceira<br />

vez o médico do bairro, na Vila das Mercês,<br />

o clínico geral João Gimenez, que, assustado,<br />

determinou a internação.<br />

Quando ela chegou ao Hospital Modelo,<br />

o departamento médico da<br />

Villares foi acionado para assumir<br />

o atendimento, como<br />

determinava o convênio entre<br />

a empresa e a rede hospitalar.<br />

O obstetra e ginecologista<br />

Fausto Farah Baracat,<br />

chefe das internações hospitalares<br />

na Villares de 1966 a<br />

1974 e responsável pelo prénatal<br />

de Lourdes, foi chamado<br />

para atender a paciente.<br />

No sábado, a família foi informada<br />

do diagnóstico de uma<br />

suposta hepatite e Lourdes ä<br />

Heitor Hui/AE<br />

65<br />

Álbum de família


ESPECIAL<br />

foi isolada. “Mãe, estou mal”, queixou-se.<br />

Herminia procurou o médico. Ele irritou-se:<br />

“A senhora nunca teve um filho? Ela está com<br />

dor de parto, é normal. Está no isolamento<br />

por causa da hepatite, mas a dor é normal”.<br />

A última pessoa a vê-la com vida foi a cunhada<br />

Soledade Morales, na noite do domingo 6<br />

de junho. Lourdes agarrou sua mão e implorou:<br />

“Estou morrendo, Sole. Eles vão me deixar<br />

morrer. Não me deixa sozinha”. Soledade foi<br />

arrancada do quarto. Apesar das súplicas de<br />

Lula, os médicos não permitiram a permanência<br />

de nenhum familiar. Às 7 horas da segunda-feira,<br />

Lourdes e o bebê estavam<br />

mortos. Ela havia atravessado<br />

a derradeira noite de<br />

sua vida gritando e vomitando<br />

sangue.<br />

A assistente social Runilda<br />

Riedmiller, supervisora de benefícios<br />

da Villares de 1963 a<br />

1990, agilizou os trâmites e<br />

providenciou o funeral. “Lembro<br />

de o doutor Fausto dizer<br />

que a situação era muito crítica<br />

e de que o Acquesta estava<br />

quase transparente de preocupação”,<br />

conta, aos 65 anos.<br />

“Mas nunca ouvi falarem de<br />

hepatite, só de infecção.” No<br />

velório, realizado na casa em<br />

reformas para abrigar o quarto<br />

do bebê, o chão afundou ao<br />

peso do caixão. Enlouquecida<br />

de dor, a mãe de Lourdes estraçalhou<br />

com as unhas a camisa<br />

do médico João Gimenez,<br />

chamado às pressas para<br />

atendê-la. Foi dopada.<br />

Enfermeira-chefe da Villares<br />

por 28 anos, Iracema Fonseca<br />

Zaina nunca esqueceu da<br />

moça humilde, doce, que comparecia<br />

ao ambulatório todo mês. “Acho que<br />

não foi culpa de ninguém. Foi uma infecção<br />

que se desenvolveu nela, uma coisa estranha,<br />

sem muita explicação. Foi muito chocante para<br />

a equipe médica, que foi pega de calças curtas”,<br />

avalia hoje, aos 64 anos. “Lourdes fez o<br />

pré-natal direitinho. Quando ficou mal, os médicos<br />

acharam que era da gravidez. Naquele<br />

tempo não tinha tanta tecnologia nem se aconselhava<br />

fazer radiografia em mulher grávida.<br />

Ela foi atendida pelo doutor Fausto, que fez<br />

o parto, e pelo doutor Acquesta. Ele disse que<br />

foi uma infecção tão grave que não deu tempo<br />

de fazer nada. Nunca falou de hepatite,<br />

só de septicemia.”<br />

66<br />

ROMANCE<br />

INTERROMPIDO<br />

Lula e Maria de<br />

Lourdes choraram<br />

de saudade das<br />

respectivas mães<br />

na noite de<br />

núpcias. Voltaram<br />

da lua-de-mel seis<br />

dias antes do fim<br />

A memória de Lourdes foi sumindo aos poucos.<br />

O Hospital Modelo, dirigido pela Samcil,<br />

afirma que “os prontuários médicos são<br />

guardados por 15 ou 16 anos” e depois incinerados.<br />

A ficha médica também não foi encontrada<br />

no arquivo-morto da Villares. O médico<br />

Fausto Farah Baracat, hoje eminente especialista<br />

em câncer de mama em São Paulo,<br />

admite ter sido o responsável pelo atendimento<br />

hospitalar dos pacientes da Villares durante<br />

os oito anos em que trabalhou na empresa,<br />

mas afirma não se lembrar nem de Lourdes<br />

nem de Lula. “Eu atendia 30 mulheres no ambulatório<br />

todo dia, mais outro<br />

tanto no hospital. Tudo isso<br />

em quatro horas”, justifica.<br />

Aos 68 anos, filosofa: “A medicina<br />

tem tragédias e alegrias.<br />

Não marco nenhuma<br />

delas”. O clínico geral João<br />

Gimenez, aos 74 anos, ainda<br />

atende diariamente a clientela<br />

do bairro por ordem de chegada.<br />

“Desculpa, mas não<br />

consigo lembrar. Atendo 30<br />

pessoas por dia e só guardo as<br />

fichas por cinco anos.”<br />

É possível que a enfermeira<br />

Leonor Bondezan, hoje<br />

com 76 anos, chefe do berçário<br />

do Hospital Modelo de<br />

1955 a 1981, tenha razão:<br />

“Só me recordo de um feto<br />

morto e de uma mulher com<br />

infecção de qualquer coisa.<br />

Todas elas gritam na maternidade,<br />

isso não chamava a<br />

atenção. Lula não era famoso,<br />

a gente lembra do pessoal<br />

mais classificado. Pobre, sabe<br />

como é, a gente trata<br />

bem, mas não tem aquela recomendação<br />

exagerada”.<br />

Sérgio Belmiro Acquesta nunca precisou<br />

responder pela operária Maria de Lourdes.<br />

Foi assombrado apenas pelos fantasmas da<br />

repressão. Na década de 90, o Grupo Tortura<br />

Nunca Mais do Rio de Janeiro e a Comissão<br />

de Familiares de Mortos e Desaparecidos<br />

Políticos de São Paulo entraram com pedido<br />

de investigação contra 44 médicos-legistas<br />

no Rio e 66 em São Paulo. Acquesta estava<br />

entre eles. O processo disciplinar de número<br />

2.505-151 do Conselho Regional de Medicina<br />

de São Paulo tem data de 1994. Em 16<br />

de janeiro de 1995, aos 65 anos, já aposentado<br />

do IML mas dono de boa reputação profissional<br />

entre os legistas, Acquesta foi abri-<br />

Fotos: álbum de família<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003


gado no Ministério Público de São Paulo como<br />

assistente-técnico da promotoria 1, cargo<br />

de confiança na gestão do procurador-geral<br />

José Emmanuel Burle Filho. Nesse período<br />

realizou o sonho de conhecer a Europa com<br />

a esposa. Às 13h30 de 7 de agosto de 1999, o<br />

CRM/SP absolveu Acquesta por insuficiência<br />

de provas. Os laudos de José Maria Ferreira<br />

Araújo não constavam do processo.<br />

m 6 de janeiro de 2000, o médico<br />

desligou-se do órgão. Nos cinco anos<br />

em que permaneceu no Ministério<br />

Público, o católico Acquesta deixava<br />

o prédio todos os dias, vestido em ternos de<br />

tons claros, para comparecer à missa vespertina.<br />

Nunca o ouviram citar o nome de Lula.<br />

Não falava de política. Seus assuntos preferidos<br />

eram família e religião. Morreu de câncer<br />

em 3 de junho de 2000, aos 70 anos, como<br />

um admirador de Maria, a mãe de Jesus.<br />

Lourdes era uma filha de Maria por gosto<br />

de sua mãe. Moça pobre e trabalhadora, era<br />

mais bonita que a maioria na pele cor de jambo,<br />

longas pernas esguias que gostavam de<br />

dançar. Seu luxo era uma penteadeira lotada<br />

de cremes e perfumes da Avon. O primeiro<br />

sapato foi comprado quando a família pegou<br />

o trem para fugir da seca. Lourdes teve febre<br />

na primeira noite em São Paulo porque o pai,<br />

João Evangelista dos Santos, agricultor doente<br />

dos pulmões, colocava os quatro filhos em<br />

todas as filas na Estação da Luz pensando<br />

que era comida. Era vacina. Aos 3 anos, o braço<br />

de Lourdes inchou de tanta picada.<br />

Quando conheceu Lula, vizinho de casa e<br />

de enchente nos arredores de São Paulo, Lourdes<br />

sentiu pena “do moço que tinha perdido<br />

o dedo”. Levou uma semana para responder ao<br />

pedido de namoro feito num baile depois de Lula<br />

ter engolido três rabos-de-galo para amealhar<br />

coragem, sob a ameaça de perdê-la para<br />

um japonês mais decidido. Casou virgem, embrulhada<br />

em metros de organdi de seda, cachos<br />

negros na cabeça. A lua-de-mel em Poços de<br />

Caldas era para ter durado dez dias. Acabou em<br />

quatro por saudade e um bocado de susto.<br />

Lourdes labutava aos sábados na tecelagem<br />

no ganho das horas extras para comprar a casa<br />

própria com Lula e, quando conseguiu, a<br />

mantinha tão impecável que pedia para as visitas<br />

tirarem os sapatos antes de entrar. Tudo<br />

o que Lourdes queria era um lar com toalhinhas<br />

sobre os móveis, filhos correndo pelo<br />

quintal e seu marido. Morreu sem compreender<br />

a face brutal do país que Lula um dia<br />

governaria. O vestido de noiva foi doado aos<br />

pobres no santuário de Aparecida. n<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003<br />

LUTO DE MÃE<br />

Maria de Lourdes<br />

era a única menina<br />

entre três filhos<br />

homens de Herminia<br />

de Andrade.<br />

Convidada por Lula,<br />

a ex-sogra<br />

compareceu à<br />

posse em Brasília<br />

sonhando que era a<br />

filha que poderia<br />

estar acenando<br />

para o Brasil ao<br />

lado do presidente<br />

VIDA DE MOÇA<br />

Maria de Lourdes<br />

aos 4 anos, com<br />

o primeiro sapato.<br />

Acima, aos 15, na<br />

formatura de corte<br />

e costura com<br />

o irmão Jacinto<br />

Ribeiro dos Santos,<br />

o Lambari, um dos<br />

melhores amigos de<br />

Lula. Ao lado, com<br />

a mãe, já casada e<br />

estreando o novo<br />

corte de cabelo<br />

Fotos: álbum de família<br />

Maurilo Clareto/ÉPOCA


ESPECIAL<br />

O elevado índice de <strong>mortalidade</strong><br />

<strong>materna</strong> no Brasil revela o<br />

desprezo pela saúde da mulher e<br />

assinala a desigualdade social: a<br />

maioria das vítimas ganha até dois<br />

salários mínimos, faz pré-natal,<br />

mas não sabe onde vai dar à luz<br />

68<br />

CRISTIANE SEGATTO<br />

gravidez que termina em morte<br />

<strong>materna</strong> é ferida que não fecha.<br />

A perda da mãe durante a<br />

sublime experiência de perpetuar<br />

a vida subverte a lógica familiar<br />

e condena os filhos sobreviventes<br />

a uma existência atormentada.<br />

Até meados do século passado, a sina era relativamente<br />

comum no Brasil (matava mais<br />

de 150 mulheres a cada 100 mil nascidos vivos)<br />

e abatia-se sobre lares modestos e abastados.<br />

O índice de <strong>mortalidade</strong> <strong>materna</strong> caiu<br />

bastante nas últimas décadas, mas ainda é<br />

muito elevado (51 a cada 100 mil, mais que<br />

o dobro do considerado tolerável pela Organização<br />

Mundial de Saúde. A desigualdade<br />

de acesso aos recursos médicos transformou<br />

a morte durante a gestação, o parto ou<br />

nos 42 dias seguintes em exclusividade da<br />

pobreza. A maioria das vítimas vive com até<br />

dois salários mínimos e perece por falta de<br />

“A <strong>mortalidade</strong><br />

<strong>materna</strong> é<br />

o melhor<br />

indicador do<br />

tratamento que<br />

um país<br />

reserva<br />

às mulheres”<br />

MARIA JOSÉ ARAÚJO,<br />

secretária nacional<br />

de Saúde da Mulher<br />

Mirian Fichtner/ÉPOCA<br />

cuidados triviais. Como 98% dos óbitos são<br />

considerados evitáveis, o índice é um excelente<br />

indicador da atenção que os governos<br />

reservam à saúde da mulher.<br />

“Nossa taxa é inaceitável se considerarmos<br />

o desenvolvimento tecnológico do país”, admitiu<br />

a ÉPOCA o ministro da Saúde, Humberto<br />

Costa. Segundo os números oficiais, cerca de<br />

1.800 mulheres morrem a cada ano em conseqüência<br />

da gravidez. Ciente da subnotificação<br />

e das falhas de preenchimento das declarações<br />

de óbito (o médico atesta que a paciente<br />

morreu de hipertensão, mas não menciona<br />

que ela estava grávida, por exemplo), o<br />

governo admite que o desperdício de vidas<br />

chegue a 3.600 por ano. Pelos critérios do Fundo<br />

das Nações Unidas para a Infância (leia<br />

o quadro na página 70), o total de vítimas no<br />

ano passado pode ter atingido 5.400. Baseada<br />

na média dos casos relatados entre 1985 e<br />

2001, a instituição estima que a <strong>mortalidade</strong><br />

<strong>materna</strong> no Brasil seja o triplo do declarado<br />

(160 a cada 100 mil nascidos vivos).<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003


A frieza das estatísticas oculta dramas como<br />

o da menina Alice da Silva Pimentel Teixeira,<br />

de 5 anos, que vive com a avó, a doméstica Maria<br />

de Lourdes, em Belford Roxo, na Baixada<br />

Fluminense. A saudade da mãe, Alyne, morta<br />

aos 28 anos em novembro, produz diálogos desconcertantes:<br />

– Vó, que dia vamos ver a mamãe lá no céu?<br />

Maria de Lourdes, de 53 anos, engole em seco,<br />

segura as lágrimas e diz que qualquer dia as duas<br />

fazem uma visita. A evasiva não satisfaz.<br />

– E como é que a gente vai? Voando?<br />

Alyne, vendedora de bijuterias, estava grávida<br />

de seis meses da segunda filha. O enxoval,<br />

escolhido com a ajuda da mais velha, permanece<br />

imaculado. Na manhã do dia 13 de novembro,<br />

Alyne sentia-se fraca e notou que os chutes<br />

do bebê haviam cessado. Procurou a Casa de<br />

Saúde e Maternidade XV de Agosto, conveniada<br />

ao SUS. Uma ultra-sonografia revelou que a<br />

criança havia morrido e o parto foi induzido.<br />

Dois dias depois, o marido de Alyne, o auxiliar<br />

de serviços gerais Adriano Teixeira da Con-<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003<br />

Álbum de família<br />

“A cada<br />

óbito<br />

notificado<br />

há pelo menos<br />

um que<br />

ninguém fica<br />

sabendo”<br />

ANA CRISTINA<br />

TANAKA,<br />

professora da<br />

Faculdade de Saúde<br />

Pública da USP<br />

SAUDADE Alice, de 5 anos,<br />

não desgruda do boneco Emanuel<br />

desde que perdeu a mãe, em novembro.<br />

Alyne (ao lado) tinha 28 anos e esperava<br />

a segunda filha em Belford Roxo, no Rio.<br />

O bebê morreu no sexto mês de gravidez<br />

e o parto foi induzido. Alyne sofreu<br />

hemorragia e esperou oito horas até<br />

conseguir atendimento em uma UTI<br />

ceição, de 27 anos, foi avisado de que a moça<br />

sofrera uma hemorragia digestiva e precisava<br />

de um hospital com mais recursos. “Tentamos<br />

fazer uma lavagem gástrica para estancar o sangue,<br />

mas não deu certo”, diz o diretor da clínica,<br />

Marcos Macedo. Começou então o calvário<br />

atrás de vaga e de uma ambulância com UTI,<br />

que só terminaria oito horas depois. Alyne chegou<br />

ao Hospital Geral de Nova Iguaçu com pressão<br />

arterial inaudível, já em estado de coma.<br />

O atendimento foi improvisado no corredor, com<br />

a instalação de equipamentos de terapia intensiva.<br />

Era tarde demais.<br />

Em números absolutos, as mortes <strong>materna</strong>s<br />

podem parecer irrelevantes quando comparadas<br />

a outros algozes da saúde feminina. Em<br />

2000, as doenças cardíacas, circulatórias e os<br />

derrames cerebrais mataram 13 mil brasileiras<br />

entre 10 e 49 anos. Em seguida, vieram o<br />

câncer (11 mil óbitos) e os acidentes e as agressões<br />

físicas (10 mil). A <strong>mortalidade</strong> <strong>materna</strong> aparece<br />

em oitavo lugar entre os principais vilões,<br />

mas nenhum outro índice é tão revelador das ä<br />

69


ESPECIAL<br />

70<br />

88<br />

BRASIL<br />

319<br />

BRASIL<br />

Argentina<br />

Bolívia<br />

Chile<br />

Colômbia<br />

Índia<br />

México<br />

EUA<br />

França<br />

Reino Unido<br />

Japão<br />

Norte<br />

51<br />

63<br />

Renda per<br />

capita bruta<br />

– em US$<br />

3.060<br />

6.960<br />

940<br />

4.350<br />

1.910<br />

460<br />

5540<br />

34.870<br />

22.690<br />

24.230<br />

35.990<br />

O FLAGELO DA MATERNIDADE<br />

Óbitos maternos a cada 100 mil nascidos<br />

vivos – em 1981 e 2000<br />

Acesso ao<br />

pré-natal<br />

– em %<br />

95**<br />

69<br />

95**<br />

91<br />

60<br />

86<br />

99**<br />

99**<br />

–.–<br />

–.–<br />

Partos assistidos<br />

por pessoal de<br />

saúde – em %<br />

98<br />

59<br />

100<br />

86<br />

43<br />

86<br />

99<br />

–.–<br />

99<br />

100<br />

Fonte: Ministério da Saúde<br />

O Ministério da Saúde e o Unicef adotam critérios diferentes.Seja qual<br />

for o índice considerado, a situação do Brasil é chocante<br />

112<br />

Centro-Oeste<br />

Sul<br />

71<br />

39<br />

53<br />

Sudeste<br />

71<br />

97<br />

Nordeste<br />

46<br />

57<br />

Taxa de<br />

<strong>mortalidade</strong><br />

<strong>materna</strong>*<br />

86 88 160<br />

41<br />

390<br />

23<br />

80<br />

540<br />

55<br />

8<br />

10<br />

7<br />

8<br />

* Número de óbitos maternos a cada 100 mil nascimentos ** Dados incompletos ou fora do padrão<br />

carências da saúde pública. “Para reduzir essa<br />

marca vergonhosa não é preciso melhorar<br />

o saneamento básico nem as condições de moradia,<br />

como no caso da <strong>mortalidade</strong> infantil”,<br />

diz a professora Ana Cristina Tanaka, da Faculdade<br />

de Saúde Pública da Universidade de São<br />

Paulo. “É só dar atenção ao pré-natal e um bom<br />

parto que a mulher não morre”, conclui.<br />

tragédia decorrente da gravidez é lastimável<br />

porque as vítimas são geralmente<br />

mulheres jovens e saudáveis,<br />

cujo sacrifício poderia ser evitado com<br />

o mínimo de atenção. Estima-se que para cada<br />

caso fatal outros 16 acarretem complicações<br />

debilitadoras: esterilidade, incontinência urinária<br />

e até amputação das pernas por trombose.<br />

A maioria das vítimas (21%) é abatida pela<br />

eclampsia, hipertensão típica da gravidez<br />

que pode ser evitada com um bom acompanhamento<br />

durante a gestação. Em segundo lugar<br />

(12%), vêm hemorragias como a que fulminou<br />

Alyne. “A maioria dos profissionais não<br />

sabe lidar com uma gravidez de risco”, diagnostica<br />

a médica Tizuko Shiraiwa, presidente<br />

do Comitê Estadual de Prevenção e Controle<br />

da Morte Materna e Perinatal, no Rio.<br />

“A mulher faz<br />

o pré-natal<br />

mas não sabe<br />

onde vai<br />

dar à luz.<br />

A peregrinação<br />

mata”<br />

MIRIAM PAIVA,<br />

professora da UFBA<br />

Fonte: Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)<br />

No dia 24 de dezembro, a faxineira Maria Silvania<br />

de Amorim, de 26 anos, fotografou a festa<br />

de aniversário do filho Bruno, que completava<br />

4 anos, no bairro de Mustardinha, no Recife.<br />

Grávida de oito meses, guardou seis chapas para<br />

registrar a chegada do caçula, Marco Gabriel,<br />

em janeiro. Tinha uma cesariana marcada para<br />

o dia 22 no Hospital Jaboatão de Prazeres<br />

porque havia sofrido hipertensão na primeira<br />

gravidez e já ultrapassava os nove meses de gestação.<br />

Para sua tristeza, as dores começaram<br />

dois dias antes e só existia vaga na Maternidade<br />

Oscar Coutinho, onde o primogênito havia<br />

nascido. ”Ela ficou desesperada porque sofreu<br />

muito durante o nascimento do mais velho.<br />

Era gestante de risco e os médicos forçaram o<br />

parto normal”, conta o marido, o cobrador de<br />

ônibus Marco Aurélio Pinagé, de 26 anos. Na<br />

segunda experiência, Silvania fez uma cesariana,<br />

mas não sobreviveu à hemorragia interna,<br />

provocada por ruptura do baço. A família suspeita<br />

que o rompimento fatal tenha sido provocado<br />

por uma cristeler, a abominável tentativa<br />

de forçar o parto normal pressionando a barriga<br />

da paciente. A direção do hospital nega a<br />

utilização do recurso, mas não explica o que teria<br />

provocado a lesão.<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003


ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003<br />

Leo Caldas/Titular<br />

Gestante cuidadosa, Silvania submeteu-se a<br />

nove consultas durante a gravidez, o que contraria<br />

a crença segundo a qual as mulheres morrem<br />

porque não fazem pré-natal. De acordo com o<br />

Ministério da Saúde, 86% das gestantes recebem<br />

acompanhamento durante a gravidez. O<br />

problema é que muitos atendimentos são meramente<br />

ritualistas: o médico anota um distúrbio<br />

cardíaco, mas não encaminha a paciente a um<br />

serviço especializado ou ela não é atendida quando<br />

chega lá. O descalabro não está restrito aos<br />

rincões mais desassistidos. É praxe também em<br />

centros desenvolvidos como a capital paulista. A<br />

professora Ana Cristina Tanaka trabalha no Centro<br />

de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza,<br />

ligado à USP. Nem por isso consegue encaminhar<br />

facilmente suas pacientes de risco. “Temos<br />

de mendigar ajuda, recorrer aos amigos para conseguir<br />

atendimento no Hospital das Clínicas ou<br />

na Beneficência Portuguesa”, conta.<br />

Um pré-natal perfeito torna-se inútil se as informações<br />

não chegarem à equipe que fará o<br />

parto. A maioria das gestantes comparece às<br />

consultas, faz todos os exames disponíveis, mas<br />

não tem a mínima idéia de onde a criança nascerá.<br />

É o avesso do que ocorre com as grávidas<br />

de classe média, para as quais o nascimen-<br />

“A cultura de<br />

dissimulação<br />

dos fatos<br />

prejudica a<br />

produção de<br />

estatísticas”<br />

REGINE BLONDER,<br />

presidente do comitê<br />

de <strong>mortalidade</strong><br />

<strong>materna</strong> de<br />

Pernambuco<br />

Álbum de família<br />

TÍTULO<br />

A HISTÓRIA SE REPETE<br />

Aos 26 anos, a faxineira<br />

pernambucana Maria Silvania<br />

de Amorim temia acabar como<br />

a mãe, que morreu de parto<br />

e deixou-a entregue ao pai<br />

alcoólatra e à madrasta<br />

violenta. Mãe dedicada de<br />

Bruno, de 4 anos, deu à luz<br />

Marco Gabriel no fim de<br />

janeiro após uma cesariana<br />

complicada. Morreu horas<br />

depois com hemorragia e uma<br />

mal explicada ruptura no<br />

baço. O viúvo, Marco Aurélio,<br />

transferiu-se com os filhos<br />

para a casa da mãe, Iraci<br />

to de um filho é uma superprodução calculada<br />

em seus mínimos detalhes. Elas se submetem<br />

a uma bateria grandiosa de exames, fazem<br />

cursos na maternidade onde darão à luz, agendam<br />

o parto e até encomendam para o quarto<br />

privativo um enfeite de porta com o nome do<br />

bebê. Para que a gravidez termine em tragédia<br />

nessa fatia da população é preciso que haja uma<br />

grave doença preexistente, uma barbeiragem<br />

médica ou o estritamente imponderável.<br />

A atenção durante o trabalho de parto tem<br />

sido negada às mulheres pobres, que desperdiçam<br />

horas cruciais enquanto procuram vagas<br />

nos hospitais. Funcionária há 20 anos da Escola<br />

Paulista de Medicina, a auxiliar de escritório<br />

Celia Aparecida de Camargo Epaminondas, de<br />

42 anos, fez todo o acompanhamento da gravidez<br />

na instituição. O lembrete impresso em sua<br />

carteira de gestante remete a uma das principais<br />

causas de sacrifício materno. “O fato de ter feito<br />

pré-natal aqui não garante vaga no momento<br />

do parto.” Pela idade e por sucessivos abortos<br />

sofridos recentemente, era paciente de risco. Nem<br />

por isso a mãe de Diego, de 17 anos, Camila,<br />

de 14, e Paulo Henrique, de 10, conseguiu ser<br />

atendida no Hospital São Paulo, mantido pela<br />

universidade, durante o nascimento de Samira, ä<br />

71


ESPECIAL<br />

Márcio Lima/ÉPOCA<br />

hoje com 4 meses. A filha veio ao mundo de parto<br />

normal, longo e doloroso, na instituição filantrópica<br />

Amparo Maternal. Celia passou por<br />

uma curetagem para extração de restos de placenta.<br />

Recebeu alta e, ao chegar em casa, reclamou<br />

de dores abdominais e febre ao marido,<br />

o torneiro mecânico Valter Epaminondas de<br />

Souza, de 43 anos. Levada às pressas ao Hospital<br />

Público Municipal de Diadema, os médicos<br />

constataram que o útero continuava expelindo<br />

resíduos placentários. Celia morreu de<br />

infecção generalizada 23 dias depois do parto.<br />

Caso tivesse sobrevivido, teria perdido as duas<br />

pernas, comprometidas pela trombose. Segundo<br />

o diretor-médico do Amparo Maternal, Renato<br />

Abreu Filho, a completa extração da placenta<br />

72<br />

VILÕES DA SAÚDE FEMININA<br />

As principais causas de óbito de<br />

mulheres entre 10 e 49 anos em 2000<br />

Doenças cardíacas e derrames 13.077<br />

Câncer 11.609<br />

Acidentes e agressões 10.541<br />

Doenças respiratórias 3.987<br />

Doenças digestivas 2.850<br />

Doenças infecciosas e parasitárias 2.733<br />

Aids 2.699<br />

Gravidez, parto e puerpério 1.642<br />

Diabetes 1.591<br />

Fonte: Ministério da Saúde<br />

“Choro quando<br />

vejo o quarto<br />

do bebê vazio.<br />

As roupas<br />

e os brinquedos<br />

intactos<br />

continuam lá”<br />

SIFREDO ALMEIDA,<br />

viúvo de Rosemari<br />

Santos, de 20 anos<br />

NA FLOR DA IDADE<br />

A baiana Rosemari<br />

tinha 20 anos e<br />

esperava a primeira<br />

filha, Kerolaine, com<br />

o empresário Sifredo<br />

(à esq.), de 56 anos.<br />

Não resistiu à<br />

hemorragia e à falta de<br />

bancos de sangue e UTI<br />

na Ilha de Itaparica.<br />

O bebê também morreu<br />

pode ter sido prejudicada devido aos sucessivos<br />

abortos. Abreu Filho diz que a paciente recebeu<br />

alta porque não havia nenhum indício<br />

de que algo pudesse dar errado.<br />

Celia investia energia e economias nas lajes<br />

em construção sobre a casa da mãe, Lucia<br />

Natel de Camargo, em Diadema. Pretendia mudar-se<br />

com o marido e os quatro filhos para o<br />

andar de cima e dar um pouco de sossego à aposentada<br />

de 71 anos. A morte precoce confiscou<br />

os sonhos da família. Enquanto Valter dá<br />

duro nos tornos da fábrica, Lucia desdobra-se<br />

para cuidar dos quatro netos. “Minha filha só<br />

pôde amamentar a Samira por uns poucos dias,<br />

mas ela continua procurando o seio de toda mulher<br />

que se aproxima”, conta Lucia.<br />

A falta da mãe produz impacto social incalculável.<br />

O núcleo familiar se desfaz e os filhos<br />

costumam ser distribuídos entre os parentes.<br />

Para combater essas repercussões, a Promotoria<br />

de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços<br />

de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público<br />

do Distrito Federal, investe pesado contra<br />

a <strong>mortalidade</strong> <strong>materna</strong>. Dos 700 casos de reclamações<br />

de mau atendimento à saúde, 70% envolvem<br />

obstetrícia. O papel de “xerife” cabe ao<br />

promotor Diaulas Costa Ribeiro, notabilizado<br />

pelo pedido de prisão preventiva do cirurgião<br />

plástico Denísio Marcelo Caron, responsável pela<br />

mutilação e morte de pacientes em Goiânia<br />

e Brasília. “As políticas contra a cesariana foram<br />

tão exageradas que hoje só as ricas têm<br />

acesso a esse procedimento. Quando a gravidez<br />

se complica, as pobres precisam disputar<br />

Fotos: álbum de família<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003


Maurilo Clareto/Época<br />

o centro cirúrgico com baleados e atropelados<br />

e acabam perdendo”, conta.<br />

No cenário brasileiro, os abortos clandestinos<br />

são outra causa importante de perda de vidas jovens.<br />

A taxa de <strong>mortalidade</strong> na capital baiana é<br />

uma das mais elevadas do país. Oficialmente, morrem<br />

em Salvador 97,3 mulheres a cada 100 mil<br />

nascidos vivos. “A maioria das vítimas tem menos<br />

de 20 anos, mora em bairros muito pobres e<br />

morre em abortos malsucedidos”, afirma Miriam<br />

Santos Paiva, vice-presidente do Conselho Municipal<br />

de Estudo da Mortalidade Materna. Cerca<br />

de 80% de todos os partos são feitos em hospitais<br />

sem UTI obstétrica – os leitos desse tipo são insuficientes<br />

e estão concentrados em três hospitais<br />

da rede pública. Um serviço telefônico inaugurado<br />

recentemente informa às mulheres onde há<br />

vaga quando entram em trabalho de parto. Mas<br />

elas têm duas horas para chegar à instituição. Caso<br />

contrário, perdem a chance de atendimento.<br />

uitos hospitais não dispõem de banco<br />

de sangue, carência que costuma ser<br />

fatal. Em julho do ano passado, Rosemari<br />

Maria dos Santos, de 20 anos, sofreu<br />

hemorragia no Hospital Maria José Silva, na<br />

Ilha de Itaparica. O banco mais próximo ficava<br />

a 100 quilômetros dali, no município de Santo Antônio<br />

de Jesus. UTI só na capital, a uma hora de<br />

ferryboat. Rosemari sucumbiu depois de 12 horas<br />

de sofrimento. A filha Kerolaine nasceu morta por<br />

falta de oxigênio. Segundo o médico Paulo Roberto<br />

Mendonça, a hemorragia foi provocada por hipertensão<br />

e não pôde ser controlada por escassez<br />

ÉPOCA 10 DE MARÇO, 2003<br />

A AVÓ É O ESTEIO<br />

A auxiliar de escritório<br />

Celia Epaminondas<br />

(acima), de 42 anos,<br />

morreu de infecção<br />

generalizada provocada<br />

por restos de placenta.<br />

Diego, de 17, Camila,<br />

de 14, Paulo, de 10,<br />

e Samira, de 4 meses,<br />

vivem com a avó<br />

<strong>materna</strong>, Lucia, de 71<br />

“Peço a Deus<br />

muitos anos de<br />

vida para<br />

cuidar dessas<br />

crianças”<br />

LUCIA CAMARGO,<br />

de 71 anos,<br />

avó e “mãe” de<br />

quatro netos<br />

OS DEZ FANTASMAS DA GRAVIDEZ<br />

Causas mais comuns de morte <strong>materna</strong> – em %<br />

Eclampsia (hipertensão típica da gravidez)<br />

Hemorragias<br />

10,2<br />

12,4<br />

Doença cardíaca complicada pela gestação<br />

Infecção pós-parto<br />

7,0<br />

Doença do aparelho respiratório<br />

Aborto<br />

2,6<br />

4,7<br />

6,9<br />

Embolia pulmonar pós-cesariana<br />

Doença do aparelho digestivo<br />

1,5<br />

Hipertensão preexistente<br />

1,2<br />

Diabetes<br />

1,0<br />

21,2<br />

Fonte: Ministério da Saúde<br />

de recursos. Rosemari passou por quatro consultas<br />

durante a gestação em duas clínicas diferentes<br />

de Salvador. O exame realizado uma semana<br />

antes do parto não detectou nenhum problema,<br />

segundo o viúvo Sifredo Almeida, de 56 anos.<br />

Sem elucidar as razões dessas mortes obscuras<br />

é impossível adotar políticas de saúde eficazes.<br />

Durante cinco anos, a CPI da <strong>mortalidade</strong> <strong>materna</strong><br />

criada na Câmara dos Deputados rastreou<br />

as raízes do problema no Brasil. O resultado, um<br />

catatau de 288 páginas, foi enviado ao Ministério<br />

da Saúde. Uma das principais sugestões é o fortalecimento<br />

dos comitês municipais de investigação,<br />

que deveriam dissecar os fatos e apurar responsabilidades.<br />

”Temos dificuldades de acesso<br />

aos prontuários, alguns são ilegíveis e muitas fichas<br />

não trazem dados do pré-natal”, lamenta a<br />

educadora Regine Blonder, presidente do Comitê<br />

Estadual de Estudo da Mortalidade Materna de<br />

Pernambuco. Segundo Regine, paira nos meios<br />

médicos e até mesmo nos órgãos públicos uma<br />

“cultura de dissimulação dos fatos”. Uma das prioridades<br />

anunciadas pelo ministro Humberto Costa<br />

é o treinamento de assistentes sociais e agentes<br />

de saúde na investigação dos óbitos maternos<br />

e na produção de estatísticas confiáveis. Lançar<br />

luzes sobre o desperdício de vidas é o mínimo que<br />

se pode fazer para combater o flagelo das mortes<br />

de parto em pleno século XXI. n<br />

COM REPORTAGEM DE CARLOS ALBERTO JR.<br />

(BRASÍLIA), CLÓVIS SAINT-CLAIR (RIO),<br />

EDUARDO BURCKHARDT (RECIFE)<br />

E TIAGO CORDEIRO (SALVADOR)<br />

73<br />

Infográficos Marco Vergotti

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