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Programa Odisseia - Teatro Nacional São João no Porto

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Acaso decorrente das programações, o coreógrafo<br />

Josef Nadj cruza ‑se com Miquel Barceló, o artista<br />

plástico, <strong>no</strong> Festival d’Avig<strong>no</strong>n. Mas à distância.<br />

Em 2006, esses dois artistas tinham oferecido ao<br />

público do festival um espectáculo memorável,<br />

Paso Doble, durante o qual podiam ser vistos a<br />

espojar ‑se na argila tão cara ao artista espanhol,<br />

até ao ponto de formarem uma só massa com essa<br />

matéria. Este a<strong>no</strong>, Barceló está presente na cidade,<br />

na Colecção Lambert e <strong>no</strong> adro do Palácio dos Papas<br />

com uma escultura monumental: um elefante<br />

equilibrando ‑se sobre a própria tromba. Nadj, por<br />

seu lado, ocupa um lugar mais modesto, <strong>no</strong> âmbito<br />

de uma proposta singular, Les Corbeaux, em que<br />

partilha o cartaz com o multi ‑instrumentista e fiel<br />

colaborador Akosh S. Josef Nadj trocou desta vez a<br />

cor quente da argila pelo mais profundo negro, que<br />

surge aos <strong>no</strong>ssos olhos como uma tinta rara. Aliás,<br />

ele faz do seu corpo um instrumento de pintura<br />

para salpicar páginas brancas; com a ponta do nariz<br />

enfarruscado também rabisca. Após Entracte, belo<br />

quarteto datado de 2008, volta, por assim dizer, à<br />

carga, ele que estudou <strong>no</strong> Liceu de Belas ‑Artes de<br />

Novi Sad, em Voivodina, e depois História da Arte<br />

em Budapeste.<br />

Les Corbeaux abre com o intérprete em sombra<br />

chinesa. Uma tela a desfilar sob os seus dedos.<br />

Intrigam as caligrafias que nesse instante ele<br />

imagina. Quase que poderíamos perder ‑<strong>no</strong>s na<br />

confusão de linhas. Depois, Josef Nadj abandona<br />

a escuridão e vem colocar ‑se na frente do palco.<br />

E lá voltará várias vezes, enquanto o saxofone<br />

super agudo do seu parceiro perfura a atmosfera<br />

– e os <strong>no</strong>ssos ouvidos também um pouco. Ele<br />

é o corvo inúmeras vezes observado na sua<br />

terra natal. De fato preto, como sempre, Nadj<br />

desdobra ‑se e os braços quase lhe são estorvo<br />

– asas de uma só <strong>no</strong>ite. Ele é e continua a ser o<br />

prodigioso bailari<strong>no</strong> que alia a graciosidade e a<br />

<strong>Odisseia</strong>: <strong>Teatro</strong> do Mundo<br />

E o corpo transforma ‑se em pincel “Uma cerimónia estranha<br />

e penetrante”<br />

Fabien Bonnieux* Philippe Noisette*<br />

Ao “Sim, eu creio” da cantora Mireille Mathieu,<br />

Josef Nadj responde “Sim, eu crocito”. É inútil<br />

dizermos qual a opção a que damos a <strong>no</strong>ssa<br />

preferência. O coreógrafo ‑bailari<strong>no</strong>, que em<br />

2006 foi artista associado do Festival d’Avig<strong>no</strong>n,<br />

marca uma vez mais a sua presença <strong>no</strong> festival<br />

com um espectáculo de uma intensidade<br />

neurótica: Les Corbeaux. Nem calafrio à maneira<br />

de Hitchcock, nem loira apavorada, apenas<br />

Josef Nadj em pessoa, que, acompanhado pelo<br />

saxofonista e percussionista Akosh S. (que<br />

ouvimos na faixa ‑êxito da banda Noir Désir<br />

intitulada “Le vent l’emportera”), escava as<br />

obsessões pessoais <strong>no</strong> seu próprio corpo. Até<br />

à imersão em 500 litros de guache preto para<br />

desenhar sobre tela com um corpo ‑pincel<br />

dançante. Com o seu inimitável sotaque, ao<br />

mesmo tempo rugoso e plácido, Josef Nadj<br />

explica: “Gosto deste animal porque é negro<br />

e misterioso”. E depois: “Em França, tem uma<br />

imagem negativa, mas na Hungria representa a<br />

sabedoria. Tive a ideia deste espectáculo há uns<br />

a<strong>no</strong>s, <strong>no</strong> Japão. Estava num telhado de Kioto a<br />

ensaiar uma performance e um corvo pousou<br />

perto de mim. Tive vontade de lhe falar”. Assim,<br />

após o electrochoque Paso Doble (com o pintor<br />

Miquel Barceló), […] Nadj volta à carga com uma<br />

celebração na fronteira entre o espectáculo de<br />

dança, a instalação de arte contemporânea e a<br />

performance. O voo do corvo. A sua relação com<br />

o chão. O assalto final. E tudo isso partilhado<br />

com Akosh S., músico praticante de uma poética<br />

telúrica cujo trajecto se cruzou com o caminho<br />

de Nadj em 2003. Durante uma escassa hora, o<br />

espectador efectua uma viagem siderante que<br />

roça uma perturbante beleza.<br />

Como, pois, não ver neste turbilhão de<br />

imagens antracites uma carícia da morte? E<br />

damos con<strong>no</strong>sco a imaginar Pierre Soulages<br />

abandonando a sua tela para se transformar num<br />

Jackson Pollock, na variante lapidação imediata.<br />

Radical.<br />

Ao longo dos a<strong>no</strong>s, temos visto a desenhar ‑se<br />

uma realidade muito nítida: Nadj consente, cada<br />

vez mais, em imprimir <strong>no</strong>s seus movimentos<br />

uma pulsação de arte total, rumo a uma fusão<br />

das disciplinas que faz expandir os respectivos<br />

limites. •<br />

* La Provence (21 juil. 2010).<br />

Tradução Regina Guimarães.<br />

19<br />

força. De um duplo cone suspenso, ele faz tombar<br />

poeiras dentro dum feixe de luz.<br />

Esta performance, num primeiro tempo<br />

trabalhada a partir de improvisações,<br />

transforma ‑se, perante os <strong>no</strong>ssos olhos, numa<br />

cerimónia estranha e penetrante. O espectador<br />

tem de ficar concentrado se não quiser perder<br />

o fio à meada. Ver ‑se ‑á Josef Nadj fustigar, com<br />

galhos curtos, mais uma das inúmeras páginas<br />

estendidas em cena, ou atar duas penas aos<br />

calcanhares como uma ave que se dá ares de<br />

anjo. Todos os detalhes são milimetricamente<br />

calculados, talvez até excessivamente.<br />

A tensão sobe para um patamar superior<br />

quando o bailari<strong>no</strong> mergulha, completamente<br />

vestido, num barril de tamanho respeitável.<br />

É como que um banho de tinta – na verdade,<br />

o conteúdo é guache – do qual sai com uma<br />

aparência quase inumana. Mármore vivo se vivo o<br />

mármore pudesse ser, escorrendo tinta por todos<br />

os lados, aquele ser volta a rebolar <strong>no</strong> chão uma<br />

derradeira vez. O tapete foi retirado, aparece<br />

uma folha <strong>no</strong> lugar dele. Josef Nadj apaga‑<br />

‑se finalmente, deixando as marcas negras da<br />

sua passagem. Com a cara coberta de guache,<br />

adivinhamos que respira com dificuldade e o<br />

seu gesto torna ‑se hesitante. O corvo do título<br />

é agora tão ‑só um ser em aflição. A sala contém<br />

a respiração. Nos agradecimentos, juntamente<br />

com Akosh S., Josej Nadj optará por micro‑<br />

‑movimentos. Está manifestamente exausto.<br />

Les Corbeaux é um quadro vivo: um esboço ou<br />

uma tela de mestre? Mistério. Mas intui ‑se que,<br />

na trajectória pessoal do coreógrafo ‑intérprete<br />

instalado em Orleães, este espectáculo ocupa um<br />

lugar à parte. •<br />

* Les Échos (26 juil. 2010).<br />

Tradução Regina Guimarães.

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