A Evolução do Estado: da Teocracia ao Neoliberalismo - AMB
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ANO 7/Nº 13 - 1 o Semestre de 2004 R E V I S TA D A<br />
c i d a d a n i a e<br />
justiça
Presidente<br />
Cláudio Baldino Maciel – Ajuris (RS)<br />
Secretário-geral<br />
Guinther Spode – Ajuris (RS)<br />
Secretário-geral adjunto<br />
Alexandre Aronne de Abreu<br />
Diretor-tesoureiro<br />
Ronal<strong>do</strong> Adi Castro <strong>da</strong> Silva – Ajuris (RS)<br />
Assessores:<br />
Nelo Ricar<strong>do</strong> Presser – Ajuris (RS)<br />
Ricar<strong>do</strong> Gehling – Amatra IV (RS)<br />
Vice-presidentes<br />
Cláudio Augusto Montalvão <strong>da</strong>s Neves – Amepa (PA)<br />
Douglas Alencar Rodrigues – Amatra X (DF)<br />
Guilherme Newton <strong>do</strong> Monte Pinto – Amam (RN)<br />
Gustavo Tadeu Alkmim – Amatra I (RJ)<br />
Heral<strong>do</strong> de Oliveira Silva – Apamagis (MG)<br />
Joaquim Herculano Rodrigues – Amagis (MG)<br />
Jorge Wagih Massad – Amapar (PR)<br />
Luiz Gonzaga Mendes Marques – Amamsul (MS)<br />
Roberto Lemos <strong>do</strong>s Santos Filho – Ajufesp (SP)<br />
Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro – Amma (MA)<br />
Thiago Ribas Filho – Amaerj (RJ)<br />
Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Estadual<br />
Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço – AMC (SC)<br />
Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Federal<br />
José Paulo Baltazar Júnior – Justiça Federal (RS)<br />
Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Trabalho<br />
Hugo Cavalcanti. - (Amatra VI)<br />
Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Militar<br />
Carlos Augusto C. de Moraes Rego – Amajum (DF)<br />
Coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Aposenta<strong>do</strong>s<br />
Cássio Gonçalves – Amatra III (RJ)<br />
Conselho Fiscal<br />
João Pinheiro de Souza – Amab (BA)<br />
Jomar Ricar<strong>do</strong> Saunders Fernandes – Amazon (AM)<br />
Wellington <strong>da</strong> Costa Citty – Amages (ES)<br />
Revista Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e Justiça<br />
É uma publicação <strong>da</strong> Diretoria de Comunicação Social <strong>da</strong> <strong>AMB</strong><br />
Vice-presidente de Comunicação Social<br />
Thiago Ribas Filho<br />
Conselho Editorial<br />
Felippe Augusto de Miran<strong>da</strong> Rosa (presidente), Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, Antônio J. Dall’Agnol<br />
Júnior, Antônio Rulli Júnior, Benedito Silvério Ribeiro, Cândi<strong>do</strong> Dinamarco, Ester Kosovski, Frederico<br />
José Leite Gueiros, João Baptista Lopes, Joaquim Falcão, José Eduar<strong>do</strong> Olivé Malha<strong>da</strong>s, Kazuo<br />
Watanabe, Paulo Roberto Bastos Furta<strong>do</strong>, Sálvio de Figueire<strong>do</strong> Teixeira e Sérgio Bermudes<br />
Diretor <strong>da</strong> revista<br />
Sérgio Cavalieri Filho<br />
Editor<br />
Jessé Torres Pereira Júnior<br />
Editor executivo<br />
Warner Bento Filho<br />
Tel: 61 328 0166<br />
e-mail: imprensa@amb.com.br<br />
Diagramação<br />
TDA Desenho & Arte<br />
www.t<strong>da</strong>brasil.com.br<br />
Tiragem<br />
16 mil<br />
Foto capa:<br />
Joana França
Apresentação<br />
Como se pode ver, a revista Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e Justiça está de cara nova. Os inova<strong>do</strong>res formato e<br />
linguagem gráfica buscam tornar a leitura ain<strong>da</strong> mais agradável. Acreditamos tratar-se de um<br />
invólucro à altura de seu conteú<strong>do</strong>.<br />
Diferentemente de edições anteriores, optamos por tratar de diversos assuntos, sem deter a<br />
publicação em um único tema. Desta maneira, podemos apresentar artigos sobre questões tão<br />
distintas como a inclusão social de porta<strong>do</strong>res de necessi<strong>da</strong>des especiais, a evolução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, a<br />
reforma trabalhista, e o Poder Judiciário e a democracia, entre tantos outros.<br />
Esta edição traz, ain<strong>da</strong>, parte <strong>da</strong>s palestras proferi<strong>da</strong>s no XVIII Congresso Brasileiro de<br />
Magistra<strong>do</strong>s, realiza<strong>do</strong> pela Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s Brasileiros em Salva<strong>do</strong>r, em outubro de<br />
2003. Esperamos, desta maneira, trazer <strong>ao</strong>s nossos leitores, que não se limitam <strong>ao</strong>s integrantes<br />
<strong>da</strong> magistratura brasileira, mais uma boa colaboração <strong>ao</strong> debate, fun<strong>da</strong>mental na construção de<br />
um Judiciário melhor.<br />
O ano de 2004 anuncia-se importante para a magistratura brasileira, na medi<strong>da</strong> em que se<br />
discute a reestruturação constitucional <strong>do</strong> Poder Judiciário, bem como de alterações na legisla-<br />
ção ordinária que imprimam maior celeri<strong>da</strong>de à prestação <strong>do</strong>s serviços jurisdicionais.<br />
Presente de forma atuante e influente em to<strong>do</strong> esse debate, a <strong>AMB</strong> não esquece <strong>da</strong> necessi-<br />
<strong>da</strong>de de fomentar o debate técnico e teórico, que renove o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> cotidiano <strong>da</strong> magistratu-<br />
ra, qualifican<strong>do</strong>-a ca<strong>da</strong> vez mais para o exercício de sua função social.<br />
Cláudio Maciel<br />
Presidente<br />
Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s Brasileiros<br />
7
Sumário<br />
O poder judiciário no regime democrático 7<br />
Fábio Konder Comparato<br />
Os Valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo Banco Mundial para os judiciários nacionais 17<br />
Ana Paula Lucena Silva Candeas<br />
A reforma trabalhista 41<br />
Grijalbo Fernandes Coutinho<br />
Independencia del poder judicial 47<br />
Luis Lezcano Claude<br />
A justiça na américa latina e os objetivos <strong>da</strong> flam 73<br />
Guinther Spode<br />
A conferência de durban contra o racismo e a responsabili<strong>da</strong>de de to<strong>do</strong>s 79<br />
J. A. Lindgren Alves<br />
Perfeccionismo e o princípio <strong>do</strong> respeito universal 103<br />
Maria Clara Dias<br />
A evolução <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>: <strong>da</strong> teocracia <strong>ao</strong> neoliberalismo 113<br />
José Vi<strong>da</strong>l de Freitas Filho<br />
O formalismo jurídico e o mito <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de estrita 139<br />
Ana Karena Nobre<br />
Judicialização <strong>do</strong>s conflitos familiares 153<br />
Mônica Sifuentes<br />
O crime de roubo segui<strong>do</strong> <strong>do</strong> crime de resistência:<br />
absorção ou desígnios autônomos? 157<br />
Renato Flávio Marcão e Flávio Augusto Maretti Siqueira<br />
A inclusão social <strong>da</strong> pessoa com deficiência e o papel <strong>da</strong> terapia ocupacional 165<br />
Celina Camargo Bartalotti<br />
Arquivo Público: um segre<strong>do</strong> bem guar<strong>da</strong><strong>do</strong>? 175<br />
Ana Paula Mendes de Miran<strong>da</strong><br />
Trabalho Escravo: quem é o escravo, quem escraviza e o que liberta 187<br />
Jorge Antonio Ramos Vieira<br />
Princípio <strong>da</strong> autonomia administrativa e financeira <strong>do</strong><br />
Judiciário e a lei de responsabili<strong>da</strong>de fiscal 195<br />
Luis Felipe Salomão<br />
Ong’s e o judiciário: parceria possível 209<br />
Viviane senna<br />
Princípio constitucional <strong>da</strong> autonomia administrativa e<br />
Financeira <strong>do</strong> poder judiciário e a lei de responsabili<strong>da</strong>de fiscal 213<br />
Romano José Enzweiler
Justiça e<br />
Na I<strong>da</strong>de Moderna, só se pode considerar<br />
democrático o regime político fun<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
na soberania popular, e cujo objetivo<br />
último consiste no respeito integral <strong>ao</strong>s<br />
direitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> pessoa humana.<br />
A soberania <strong>do</strong> povo, não dirigi<strong>da</strong> à<br />
realização <strong>do</strong>s direitos humanos, conduz<br />
necessariamente <strong>ao</strong> arbítrio <strong>da</strong> maioria. O<br />
respeito integral <strong>ao</strong>s direitos <strong>do</strong> homem,<br />
por sua vez, é inalcançável, quan<strong>do</strong> o poder<br />
político supremo não pertence <strong>ao</strong> povo.<br />
O Poder Judiciário, enquanto órgão<br />
de um Esta<strong>do</strong> democrático, há de ser<br />
estrutura<strong>do</strong> em função de ambas essas<br />
exigências. Ressalte-se, contu<strong>do</strong>, que,<br />
diferentemente <strong>do</strong>s demais Poderes<br />
Públicos, o Judiciário apresenta uma<br />
notável particulari<strong>da</strong>de: embora seja<br />
ele, por definição, o principal garante<br />
<strong>do</strong> respeito integral <strong>ao</strong>s direitos<br />
humanos, na generali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s países os<br />
magistra<strong>do</strong>s, salvo raras exceções, não<br />
são escolhi<strong>do</strong>s pelo voto popular.<br />
Democracia<br />
O Poder Judiciário no Regime Democrático<br />
Na ver<strong>da</strong>de, o fator que compatibiliza<br />
Fábio Konder Comparato<br />
o Poder Judiciário com o espírito <strong>da</strong><br />
democracia (no senti<strong>do</strong> que Montesquieu<br />
conferiu <strong>ao</strong> vocábulo) é um atributo<br />
eminente, o único capaz de suprir a<br />
ausência <strong>do</strong> sufrágio eleitoral: é aquele<br />
prestígio público, fun<strong>da</strong><strong>do</strong> no amplo<br />
respeito moral, que na civilização<br />
romana denominava-se auctoritas.<br />
Ora, esta, numa democracia, fun<strong>da</strong>-se<br />
essencialmente na independência e na<br />
responsabili<strong>da</strong>de com que o órgão estatal<br />
em seu conjunto, e os agentes públicos<br />
individualmente considera<strong>do</strong>s, exercem<br />
as funções políticas que a Constituição,<br />
enquanto manifestação original de<br />
vontade <strong>do</strong> povo soberano, lhes atribui.<br />
Se quisermos, portanto, verificar<br />
quão democrático é o Poder Judiciário<br />
no Brasil, devemos analisar a sua<br />
organização e o seu funcionamento,<br />
segun<strong>do</strong> os requisitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong><br />
independência e <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de.<br />
São as duas partes em que se divide a<br />
presente exposição.<br />
11
12<br />
O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />
Independência<br />
Esclareçamos, desde logo, o senti<strong>do</strong> téc-<br />
nico <strong>do</strong> termo. Diz-se que o Poder Judi-<br />
ciário em seu conjunto é independente,<br />
quan<strong>do</strong> não está submeti<strong>do</strong> <strong>ao</strong>s demais<br />
Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Por sua vez, dizem-se<br />
independentes os magistra<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong><br />
não há subordinação hierárquica entre<br />
eles, não obstante a multiplici<strong>da</strong>de de<br />
instâncias e graus de jurisdição. Com<br />
efeito, <strong>ao</strong> contrário <strong>da</strong> forma como é es-<br />
trutura<strong>da</strong> a Administração Pública, os<br />
magistra<strong>do</strong>s não dão nem recebem or-<br />
dens, uns <strong>do</strong>s outros.<br />
A independência funcional <strong>da</strong> magis-<br />
tratura, assim entendi<strong>da</strong>, é uma garantia<br />
institucional <strong>do</strong> regime democrático. O<br />
conceito de garantia institucional foi<br />
elabora<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>utrina publicista alemã<br />
à época <strong>da</strong> República de Weimar, para<br />
designar as formas de organização <strong>do</strong>s<br />
Poderes Públicos, cuja função é assegu-<br />
rar o respeito <strong>ao</strong>s direitos subjetivos fun-<br />
<strong>da</strong>mentais, declara<strong>do</strong>s na Constituição. 1<br />
Desde a nossa primeira Constitui-<br />
ção republicana, seguimos, em matéria<br />
de organização <strong>do</strong>s Poderes Públicos, o<br />
modelo original norte-americano, cujo<br />
pressuposto ideológico foi o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em<br />
delimitar e restringir a competência <strong>do</strong><br />
Poder Legislativo, o qual teria, na opi-<br />
nião <strong>do</strong>s Pais Fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s, uma inclinação natural <strong>ao</strong> abuso<br />
de poder. “O corpo legislativo”, escreveu<br />
Madison, “estende por to<strong>da</strong> parte a es-<br />
fera de sua ativi<strong>da</strong>de, e engole to<strong>do</strong>s os<br />
poderes no seu turbilhão impetuoso”. 2<br />
Acrescentou que o Poder Executivo deve<br />
ser temi<strong>do</strong> num regime monárquico, ou<br />
mesmo quan<strong>do</strong> o povo exerce diretamen-<br />
te a função legislativa. “Mas numa re-<br />
pública representativa”, ponderou, “em<br />
que a magistratura executiva é limita<strong>da</strong>,<br />
tanto na extensão, como na duração <strong>do</strong>s<br />
seus poderes, e onde o poder de legislar<br />
é exerci<strong>do</strong> por uma assembléia cheia de<br />
confiança nas suas próprias forças, pela<br />
certeza que tem <strong>da</strong> sua influência sobre o<br />
povo; [...] em tal esta<strong>do</strong> de coisas é con-<br />
tra as empresas ambiciosas desse poder<br />
que o povo deve dirigir os seus ciúmes e<br />
esgotar to<strong>da</strong>s as precauções.” 3<br />
Acontece que em nosso país - como<br />
na generali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s nações latino-ameri-<br />
canas, de resto - a tradição colonial mol-<br />
<strong>do</strong>u os costumes políticos no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
máxima concentração de poderes na pes-<br />
soa <strong>do</strong> Chefe de Esta<strong>do</strong>. Ao a<strong>do</strong>tarmos,<br />
pois, o regime presidencial de governo,<br />
em que o Chefe de Esta<strong>do</strong> é, <strong>ao</strong> mesmo<br />
tempo, Chefe de Governo, na<strong>da</strong> mais fi-<br />
zemos <strong>do</strong> que criar, sob pretexto de uma<br />
reprodução <strong>do</strong> modelo norte-americano,<br />
um presidencialismo exacerba<strong>do</strong>.<br />
Já durante o regime monárquico, ali-<br />
ás, a pre<strong>do</strong>minância inconteste <strong>da</strong> vontade<br />
imperial sobre to<strong>do</strong>s os órgãos <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>,<br />
e até mesmo acima <strong>da</strong> vontade popular,<br />
pelo exercício <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r, era<br />
1 Sobre o assunto vejam-se, na <strong>do</strong>utrina brasileira, PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., Malheiros Editores, capítulo 15, e na<br />
<strong>do</strong>utrina alemã contemporânea, KLAUS STERN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, tomo III/1, Munique, Verlag C. H. Beck, 1988, § 68;<br />
2 The Federalist, ensaio nº 48, The Modern Library, Nova York, pág. 322.<br />
3 Ibidem, pp. 322/323.
O povo não<br />
foi educa<strong>do</strong><br />
a exercer<br />
direitos e a<br />
exigir justiça,<br />
mas tem si<strong>do</strong><br />
habitualmente<br />
<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong><br />
a procurar<br />
auxílios e<br />
favores.<br />
bem conheci<strong>da</strong>. Como frisou o Marquês<br />
de Itaboraí (Rodrigues Torres), “o Impe-<br />
ra<strong>do</strong>r reina, governa e administra”. Sua<br />
Majestade concentrava em suas mãos to-<br />
<strong>da</strong>s as prerrogativas <strong>do</strong> Poder Executivo, o<br />
qual, como reconheceu Joaquim Nabuco,<br />
sempre foi onipotente, sen<strong>do</strong> esta onipo-<br />
tência, em suas palavras, “o traço saliente<br />
<strong>do</strong> nosso sistema político”. 4<br />
Não era, assim, de admirar que du-<br />
rante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> imperial o Judiciá-<br />
rio se apresentasse como fiel servi<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
governo. Ele era “uma mola <strong>da</strong> máquina<br />
administrativa”, como reconheceu sem<br />
disfarces o Visconde de Uruguai. 5 Nas<br />
palavras candentes de José Antonio Pi-<br />
menta Bueno, o futuro Marquês de São<br />
Vicente e o mais autoriza<strong>do</strong> constitucio-<br />
nalista <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> imperial, “o governo<br />
é quem dá as vantagens pecuniárias,<br />
os acessos, honras e distinções; é quem<br />
conserva ou remove, enfim quem dá os<br />
despachos não só <strong>ao</strong>s magistra<strong>do</strong>s, mas a<br />
seus filhos, parentes e amigos”. 6<br />
A Constituição de 1891, procuran<strong>do</strong><br />
corrigir tais abusos, determinou em seu<br />
art. 57 que “os juízes federais são vitalí-<br />
cios e perderão o cargo unicamente por<br />
sentença judicial”. Acrescentou que “os<br />
seus vencimentos serão determina<strong>do</strong>s<br />
por lei e não poderão ser diminuí<strong>do</strong>s”.<br />
Mas como a Constituição só se referiu,<br />
aí, <strong>ao</strong>s juízes federais, alguns Esta<strong>do</strong>s<br />
resolveram não observar essas garantias<br />
em relação <strong>ao</strong>s seus magistra<strong>do</strong>s. O Su-<br />
4 Um Estadista <strong>do</strong> Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, pág. 239.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
premo Tribunal Federal, chama<strong>do</strong> a se<br />
pronunciar sobre o assunto, julgou que<br />
as garantias de vitalicie<strong>da</strong>de, inamovi-<br />
bili<strong>da</strong>de e irredutibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s venci-<br />
mentos <strong>da</strong> magistratura deviam ser ob-<br />
serva<strong>da</strong>s, como princípio constitucional,<br />
por to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> federação; o que<br />
veio, afinal, a ser consagra<strong>do</strong> pela refor-<br />
ma constitucional de 1926. No entanto,<br />
como tais garantias não se consideravam<br />
aplicáveis <strong>ao</strong>s juízes temporários, essa<br />
escapatória foi largamente aproveita<strong>da</strong>,<br />
não só pela União, como também pelos<br />
Esta<strong>do</strong>s federa<strong>do</strong>s.<br />
Consoli<strong>do</strong>u-se, com isto, o costume<br />
político, segun<strong>do</strong> o qual as relações entre<br />
o Executivo e os demais órgãos estatais<br />
não são de potência a potência, mas de<br />
quase vassalagem destes para com aquele;<br />
ou, mais exatamente, de submissão geral à<br />
pessoa <strong>do</strong> Presidente ou <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r de<br />
Esta<strong>do</strong>; o que representa, de certa forma,<br />
a transposição na esfera estatal <strong>do</strong> tradi-<br />
cional relacionamento <strong>do</strong> coronel <strong>do</strong> in-<br />
terior com os seus agrega<strong>do</strong>s e capatazes. 7<br />
Da mesma forma, entre o povo e o Esta<strong>do</strong>,<br />
personifica<strong>do</strong> na figura <strong>do</strong> Chefe <strong>do</strong> Exe-<br />
cutivo, quase nunca se estabelece uma<br />
relação de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, mas sim uma situa-<br />
ção de dependência ou proteção pessoal,<br />
análoga à que existe entre pais e filhos, ou<br />
entre padrastos e entea<strong>do</strong>s. O povo não foi<br />
educa<strong>do</strong> a exercer direitos e a exigir justi-<br />
ça, mas tem si<strong>do</strong> habitualmente <strong>do</strong>mesti-<br />
ca<strong>do</strong> a procurar auxílios e favores.<br />
5 Ensaio sobre o Direito Administrativo, t. II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862, pág. 261.<br />
6 Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1857, pág. 39.<br />
7 Relembre-se o já clássico ensaio de VICTOR NUNES LEAL, Coronelismo, Enxa<strong>da</strong> e Voto, cuja 1ª edição é de 1949.<br />
13
14<br />
O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />
É isto o que tende a falsear com-<br />
pletamente posição <strong>da</strong> magistratura<br />
em nossa organização de Poderes. É<br />
ingênuo acreditar que a evolução consti-<br />
tucional pôs, finalmente, juízes e tribu-<br />
nais <strong>ao</strong> abrigo <strong>da</strong> avassala<strong>do</strong>ra hegemo-<br />
nia governamental.<br />
Se quisermos, portanto, garantir a<br />
independência <strong>do</strong> Poder Judiciário, pre-<br />
cisamos, sobretu<strong>do</strong>, protegê-lo contra as<br />
indevi<strong>da</strong>s incursões <strong>do</strong> Executivo em seu<br />
território.<br />
É nesse senti<strong>do</strong> que passo a alinhar<br />
algumas sugestões de reforma.<br />
Preenchimento de cargos nos<br />
Tribunais<br />
O Supremo Tribunal Federal deveria<br />
ser composto por quinze Ministros, um<br />
terço <strong>do</strong>s quais por indicação <strong>do</strong> próprio<br />
Tribunal, o outro terço indica<strong>do</strong> pelo Mi-<br />
nistério Público Federal e o último terço<br />
de indicação <strong>da</strong> Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> Brasil. As indicações seriam sempre<br />
feitas em listas tríplices, e a escolha <strong>do</strong>s<br />
Ministros competiria <strong>ao</strong> Sena<strong>do</strong> Federal,<br />
em votação com o quorum qualifica<strong>do</strong> de<br />
<strong>do</strong>is terços <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res.<br />
No Superior Tribunal de Justiça,<br />
manter-se-ia a mesma composição previs-<br />
ta no art. 104, parágrafo único, <strong>da</strong> Cons-<br />
tituição, mas a designação <strong>do</strong>s Ministros<br />
incumbiria também <strong>ao</strong> Sena<strong>do</strong> Federal,<br />
deliberan<strong>do</strong> com o mesmo quorum quali-<br />
fica<strong>do</strong> que se acaba de indicar.<br />
Igualmente para o Tribunal Superior<br />
<strong>do</strong> Trabalho, manter-se-ia a mesma com-<br />
posição determina<strong>da</strong> no art. 111, § 1º, <strong>da</strong><br />
Constituição, mas as indicações seriam<br />
feitas em listas tríplices pelo próprio<br />
Tribunal, o Ministério Público <strong>do</strong> Traba-<br />
lho e a Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil,<br />
com a escolha definitiva sen<strong>do</strong> feita pelo<br />
Sena<strong>do</strong> Federal, nas mesmas condições<br />
acima indica<strong>da</strong>s.<br />
Quanto <strong>ao</strong>s demais tribunais federais<br />
e os tribunais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e <strong>do</strong> Distrito<br />
Federal, quatro quintos <strong>do</strong>s seus inte-<br />
grantes deveriam ser escolhi<strong>do</strong>s dentre<br />
Juízes de Direito, alternativamente por<br />
antigui<strong>da</strong>de e por concurso público, e<br />
o quinto restante na forma <strong>do</strong> disposto<br />
no art. 94 <strong>da</strong> Constituição. Seria, assim,<br />
aboli<strong>do</strong> o critério de escolha por mereci-<br />
mento, o qual enseja uma inevitável mar-<br />
gem de arbítrio por parte <strong>do</strong>s tribunais<br />
de justiça.<br />
Emen<strong>da</strong>s constitucionais<br />
regula<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> organização, <strong>da</strong>s<br />
prerrogativas e <strong>do</strong> funcionamento<br />
<strong>do</strong> Judiciário<br />
Em se tratan<strong>do</strong> de emen<strong>da</strong>r a Cons-<br />
tituição para regular a organização e o<br />
funcionamento <strong>do</strong>s Poderes Públicos,<br />
bem como para a fixação <strong>da</strong>s prerrogati-<br />
vas <strong>do</strong>s seus agentes, a proposta deveria<br />
ser submeti<strong>da</strong> a referen<strong>do</strong> popular. Na<strong>da</strong><br />
é mais característico <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
usurpação <strong>da</strong> soberania <strong>do</strong> povo, esta-<br />
beleci<strong>da</strong> entre nós, <strong>do</strong> que a facili<strong>da</strong>de<br />
com que o impropriamente chama<strong>do</strong><br />
poder constituinte deriva<strong>do</strong> se atribui a<br />
prerrogativa de decidir, em definitivo,<br />
assuntos de tanta relevância para a vi<strong>da</strong><br />
democrática.<br />
Em relação <strong>ao</strong> Judiciário, porém, essa<br />
exigência ain<strong>da</strong> não é bastante. É que, <strong>ao</strong><br />
contrário <strong>do</strong>s demais Poderes, ele tem es-<br />
ta<strong>do</strong>, pela tradição constitucional, alheio<br />
Se quisermos<br />
garantir a<br />
dependência<br />
<strong>do</strong> Poder<br />
Judiciário,<br />
precisamos,<br />
sobretu<strong>do</strong>,<br />
protegê-lo<br />
contra as<br />
indevi<strong>da</strong>s<br />
incursões <strong>do</strong><br />
Executivo em<br />
seu território.
<strong>ao</strong> procedimento de emen<strong>da</strong> ou reforma<br />
<strong>da</strong> Constituição. Enten<strong>do</strong> que, <strong>da</strong><strong>da</strong> a po-<br />
sição relativamente inferior <strong>do</strong> Judiciário<br />
em relação <strong>ao</strong>s demais Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
no equilíbrio constitucional de compe-<br />
tências, é indispensável estabelecer a<br />
regra de que to<strong>da</strong> e qualquer proposta de<br />
emen<strong>da</strong> à Constituição, relativa <strong>ao</strong> Poder<br />
Judiciário e a magistratura nacional, seja<br />
de iniciativa exclusiva <strong>do</strong> Supremo Tri-<br />
bunal Federal, analogamente <strong>ao</strong> que esta-<br />
belece a Constituição no que concerne <strong>ao</strong><br />
Estatuto <strong>da</strong> Magistratura (art. 93).<br />
Autonomia financeira <strong>do</strong> Poder<br />
Judiciário e fixação <strong>do</strong>s subsídios<br />
<strong>da</strong> magistratura<br />
A Constituição Federal, em seu art.<br />
99, estabeleceu a autonomia administra-<br />
tiva e financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário. Isto<br />
não impediu, contu<strong>do</strong>, que o Executivo,<br />
pressiona<strong>do</strong> pelo Fun<strong>do</strong> Monetário Inter-<br />
nacional, e com a cumplici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Con-<br />
gresso Nacional, promulgasse a chama<strong>da</strong><br />
Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal (Lei<br />
Complementar nº 101, de 4/5/2000), que<br />
fixou limites intransponíveis para as des-<br />
pesas de pessoal <strong>do</strong> Judiciário, sem que<br />
este houvesse participa<strong>do</strong> oficialmente<br />
<strong>do</strong> processo de elaboração <strong>da</strong> lei.<br />
O adequa<strong>do</strong> funcionamento <strong>da</strong> Justi-<br />
ça para a proteção efetiva <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de<br />
humana, princípio supremo <strong>da</strong> ordem ju-<br />
rídica, não se compadece, claro está, com<br />
essa visão fiscalista <strong>da</strong> coisa pública. É<br />
indispensável e urgente iniciar uma vigo-<br />
rosa campanha nacional para a fixação,<br />
por lei complementar, de um número mí-<br />
nimo de juízes de primeira instância, na<br />
União, nos Esta<strong>do</strong>s e no Distrito Federal,<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
em função <strong>do</strong> número efetivo de habitan-<br />
tes, e de uma correspondente proporção<br />
mínima de magistra<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s tribunais de<br />
segun<strong>da</strong> instância, em relação <strong>ao</strong>s juízes<br />
de primeira instância, bem como de um<br />
número mínimo de membros <strong>do</strong>s tribu-<br />
nais superiores, em relação <strong>ao</strong>s integran-<br />
tes <strong>do</strong>s tribunais de segun<strong>da</strong> instância.<br />
Nunca é demais lembrar que a prestação<br />
de justiça é a mais nobre <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des-<br />
fins <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, não poden<strong>do</strong>, portanto,<br />
em hipótese alguma, subordinar-se à<br />
regra instrumental de balanceamento <strong>da</strong>s<br />
contas públicas.<br />
Quanto à fixação <strong>do</strong>s subsídios <strong>da</strong><br />
magistratura, dever-se-ia partir, no plano<br />
federal, <strong>da</strong> regra de que os subsídios <strong>do</strong>s<br />
Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal,<br />
<strong>do</strong> Presidente e <strong>do</strong> Vice-Presidente <strong>da</strong><br />
República, bem como <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s<br />
Federais e Sena<strong>do</strong>res seria feita conjun-<br />
tamente pelos representantes desses três<br />
Poderes.<br />
Competiria, em segui<strong>da</strong>, <strong>ao</strong> Supremo<br />
Tribunal Federal fixar os subsídios <strong>do</strong>s<br />
magistra<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s tribunais superiores, <strong>do</strong>s<br />
Tribunais Regionais Federais, <strong>do</strong>s Tri-<br />
bunais e Juízes Eleitorais, <strong>do</strong>s Tribunais<br />
e Juízes <strong>do</strong> Trabalho, e <strong>do</strong>s Tribunais e<br />
Juízes Militares federais. No plano esta-<br />
dual, haveria análogo procedimento, res-<br />
peita<strong>do</strong>s os limites máximos fixa<strong>do</strong>s pela<br />
Constituição.<br />
Isenção política <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s<br />
Ultimamente, tem-se vulgariza<strong>do</strong> a<br />
prática de magistra<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
tribunais superiores <strong>da</strong> República, fa-<br />
zerem pronunciamentos públicos sobre<br />
assuntos de governo, sem qualquer liga-<br />
15
16<br />
O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />
ção com os interesses <strong>da</strong> magistratura na-<br />
cional. A recente entrevista jornalística<br />
concedi<strong>da</strong> pelo Presidente <strong>do</strong> Supremo<br />
Tribunal Federal, Ministro Maurício<br />
Correia, a uma revista de circulação na-<br />
cional, bem ilustrou esse abuso.<br />
Será ain<strong>da</strong> preciso relembrar que<br />
tais atitudes contribuem fortemente para<br />
destruir o prestígio público e a necessá-<br />
ria aura de imparciali<strong>da</strong>de que é apaná-<br />
gio <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s? Quem não percebe,<br />
afinal, que, depois de pronunciar-se<br />
publicamente, fora <strong>do</strong> contexto de um<br />
litígio judicial, contra ou a favor <strong>da</strong> atu-<br />
ação de governantes ou parlamentares, o<br />
magistra<strong>do</strong> perde a isenção para julgar,<br />
eventualmente, causas em que esses go-<br />
vernantes ou parlamentares se achem,<br />
direta ou indiretamente, envolvi<strong>do</strong>s?<br />
Faz-se mister, portanto, acrescentar<br />
à ve<strong>da</strong>ção constante <strong>do</strong> art. 36, inciso<br />
III, <strong>da</strong> atual Lei Orgânica <strong>da</strong> Magistra-<br />
tura Nacional, 8 mais uma, concernente<br />
a pronunciamentos públicos, feitos por<br />
magistra<strong>do</strong>s fora <strong>do</strong>s processos judi-<br />
ciais, sobre políticas de governo, ou atos<br />
de quaisquer agentes públicos, ressalva-<br />
<strong>da</strong> a crítica impessoal manifesta<strong>da</strong> em<br />
obras <strong>do</strong>utrinárias ou no exercício <strong>do</strong><br />
magistério.<br />
Responsabili<strong>da</strong>de<br />
A essência <strong>do</strong> regime republicano, como<br />
a etimologia indica, é o fato de que o po-<br />
der político não pertence, como um ativo<br />
patrimonial, <strong>ao</strong>s governantes ou agentes<br />
estatais, mas é um bem comum <strong>do</strong> povo.<br />
Res publica, res populi, dizia-se em<br />
Roma. 9 É só neste preciso senti<strong>do</strong> que se<br />
pode falar em poder público.<br />
Ora, o corolário lógico desse princí-<br />
pio fun<strong>da</strong>mental é a necessária correla-<br />
ção existente entre poder e responsabi-<br />
li<strong>da</strong>de. Quanto maior o poder, maior a<br />
responsabili<strong>da</strong>de, entendi<strong>da</strong> esta como o<br />
dever que incumbe <strong>ao</strong> detentor <strong>do</strong> poder,<br />
em nome de outrem, de responder pela<br />
forma como o exerce.<br />
A responsabili<strong>da</strong>de des<strong>do</strong>bra-se, na<br />
ver<strong>da</strong>de, em duas relações: a correspon-<br />
dente <strong>ao</strong> dever de prestar contas (que na<br />
língua inglesa denomina-se accountabi-<br />
lity) e a relação de sujeição às sanções<br />
comina<strong>da</strong>s em lei pelo mau exercício <strong>do</strong><br />
poder (liability).<br />
Numa república democrática, os con-<br />
troles institucionais de abuso de poder<br />
pelos órgãos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> são de duas espé-<br />
cies: o horizontal, liga<strong>do</strong> <strong>ao</strong> mecanismo<br />
<strong>da</strong> separação de Poderes, e o vertical,<br />
fun<strong>da</strong><strong>do</strong> na soberania popular. Na ver-<br />
<strong>da</strong>de, a democracia é o regime político<br />
no qual ninguém, nem mesmo o povo<br />
soberano, exerce um poder absoluto, sem<br />
controles. O poder soberano <strong>do</strong> povo só<br />
pode ser exerci<strong>do</strong>, legitimamente, no<br />
quadro <strong>da</strong> Constituição. E é, justamen-<br />
te, <strong>ao</strong> Poder Judiciário que incumbe a<br />
magna função de interpretar os limites<br />
constitucionais dentro <strong>do</strong>s quais há de<br />
ser exerci<strong>da</strong> a soberania popular.<br />
8 “É ve<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>ao</strong> magistra<strong>do</strong>: ... III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo<br />
depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalva<strong>da</strong> a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício <strong>do</strong> magistério.”<br />
9 Cícero, De re publica, livro I, XXV, 39.
É forçoso<br />
reconhecer<br />
que os<br />
controles<br />
institucionais<br />
<strong>da</strong> ação <strong>do</strong><br />
Judiciário,<br />
em nossa<br />
socie<strong>da</strong>de, são<br />
muito frouxos<br />
e mesmo, em<br />
certos setores,<br />
praticamente<br />
inexistentes.<br />
Se assim é, se o próprio povo sobera-<br />
no tem a sua ação limita<strong>da</strong> nos termos <strong>da</strong><br />
Constituição, com maioria de razão deve<br />
a atuação <strong>do</strong> Judiciário ser submeti<strong>da</strong><br />
a uma fiscalização permanente de sua<br />
regulari<strong>da</strong>de. Ora, é forçoso reconhecer<br />
que os controles institucionais <strong>da</strong> ação<br />
<strong>do</strong> Judiciário, em nossa socie<strong>da</strong>de, são<br />
muito frouxos e mesmo, em certos seto-<br />
res, praticamente inexistentes.<br />
Comecemos pelo controle horizontal.<br />
Se se exige, com razão, total inde-<br />
pendência <strong>do</strong> Judiciário no julgamento<br />
<strong>do</strong>s demais Poderes Públicos à luz <strong>do</strong>s<br />
man<strong>da</strong>mentos constitucionais e legais,<br />
não se compreende por que o corpo de<br />
magistra<strong>do</strong>s não deva se submeter, por<br />
igual, a um controle externo <strong>do</strong> seu com-<br />
portamento por outros órgãos, para efeito<br />
de apuração de suas responsabili<strong>da</strong>des,<br />
tanto no nível penal, quanto no civil e no<br />
disciplinar.<br />
É falacioso objetar que a fiscalização<br />
ab extra <strong>da</strong> ação <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s impor-<br />
taria na per<strong>da</strong> de sua independência de<br />
julgamento e <strong>do</strong> seu poder disciplinar<br />
interno. Em primeiro lugar, porque esse<br />
exame não implica, em hipótese alguma,<br />
uma revisão <strong>da</strong>s decisões processuais ou<br />
de mérito, <strong>da</strong><strong>da</strong>s por juízes e tribunais.<br />
Ele tem por objeto, de um la<strong>do</strong>, o mo<strong>do</strong><br />
como os magistra<strong>do</strong>s se desempenham<br />
no exercício dessa sua função privativa e,<br />
de outro la<strong>do</strong>, a sua conduta pessoal fora<br />
dessa atuação funcional. Em segun<strong>do</strong> lu-<br />
gar, porque o controle externo não pode<br />
jamais abranger a competência de jul-<br />
gamento, assim como a censura judicial<br />
<strong>do</strong>s atos <strong>do</strong> Poder Legislativo e <strong>do</strong> Poder<br />
Executivo não significa a assunção pelo<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Judiciário <strong>da</strong>s funções privativas desses<br />
ramos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Em terceiro lugar, por-<br />
que um mecanismo de exame externo <strong>do</strong><br />
funcionamento <strong>do</strong> Judiciário não acarre-<br />
ta a abolição <strong>do</strong> poder disciplinar interno<br />
<strong>do</strong>s órgãos judiciais, mas o complementa.<br />
Atualmente, existe um poder cen-<br />
sório geral <strong>do</strong> Judiciário, atribuí<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />
Conselho Nacional <strong>da</strong> Magistratura<br />
(Lei Orgânica <strong>da</strong> Magistratura Nacional<br />
- Lei Complementar nº 35, de 14/03/<br />
1979). Mas esse órgão, constituí<strong>do</strong> por<br />
7 (sete) Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribunal<br />
Federal, tem si<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> inoperante,<br />
pois não dispõe, como é óbvio, <strong>da</strong> menor<br />
condição de exercer a fiscalização <strong>do</strong> de-<br />
sempenho funcional de to<strong>do</strong>s os juízes e<br />
tribunais <strong>do</strong> país.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, o mais adequa<strong>do</strong>, numa<br />
democracia, é ter a fiscalização não ju-<br />
dicial <strong>do</strong>s Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> exerci<strong>da</strong><br />
por um órgão de representação popular.<br />
Entre nós, porém, nenhum <strong>do</strong>s órgãos<br />
legislativos existentes apresenta condi-<br />
ções aceitáveis para desempenhar essa<br />
função. O Sena<strong>do</strong> Federal não represen-<br />
ta o povo brasileiro, mas sim os Esta<strong>do</strong>s<br />
federa<strong>do</strong>s e o Distrito Federal. E quanto<br />
à Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s e às Assem-<br />
bléias Legislativas, elas mal dão conta<br />
<strong>da</strong>s funções que lhes foram atribuí<strong>da</strong>s<br />
pela Constituição, e não suportariam,<br />
como é evidente, assumir mais outra, de<br />
tão grande complexi<strong>da</strong>de.<br />
O ideal seria instituir um outro ór-<br />
gão de representação popular, tanto no<br />
nível federal, quanto no estadual, com a<br />
competência exclusiva de exercer to<strong>da</strong>s<br />
as funções de fiscalização e inquérito<br />
atualmente atribuí<strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s órgãos legisla-<br />
17
18<br />
O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />
tivos, além <strong>da</strong> supervisão permanente <strong>do</strong><br />
funcionamento <strong>do</strong> Poder Judiciário.<br />
A segun<strong>da</strong> melhor solução seria ins-<br />
tituir, na União, em ca<strong>da</strong> Esta<strong>do</strong> e no<br />
Distrito Federal, um órgão de controle,<br />
composto de agentes <strong>da</strong>s funções essen-<br />
ciais <strong>da</strong> Justiça, a saber, o Ministério<br />
Público e a advocacia (nesta incluí<strong>da</strong>s a<br />
advocacia e a defensoria públicas). Esse<br />
órgão teria a incumbência de verificar o<br />
cumprimento, por to<strong>do</strong>s os magistra<strong>do</strong>s,<br />
inclusive os Ministros <strong>do</strong> Supremo Tri-<br />
bunal Federal, <strong>do</strong>s deveres funcionais<br />
declara<strong>do</strong>s em lei (atualmente, arts. 35 e<br />
seguintes <strong>da</strong> Lei Orgânica <strong>da</strong> Magistra-<br />
tura), e de encaminhar as conclusões de<br />
seus inquéritos às autori<strong>da</strong>des competen-<br />
tes para a aplicação <strong>da</strong>s sanções legais.<br />
Nessa ordem de idéias, não parece<br />
adequa<strong>do</strong> que, em matéria de crimes<br />
comuns, os Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribu-<br />
nal Federal mantenham o privilégio de<br />
serem julga<strong>do</strong>s pelos seus pares. Poder-<br />
se-ia, assim, cogitar <strong>da</strong> criação de um<br />
órgão judiciário especial para tais casos,<br />
composto pelos cinco Ministros mais<br />
antigos em atuação no Superior Tribunal<br />
de Justiça.<br />
No tocante <strong>ao</strong> controle vertical <strong>da</strong><br />
atuação <strong>da</strong> magistratura, convém recor-<br />
<strong>da</strong>r que a Carta Política <strong>do</strong> Império, em<br />
seu art. 157, instituiu uma ação criminal<br />
contra os juízes de direito, “por suborno,<br />
peita, peculato e concussão”, a qual po-<br />
deria ser intenta<strong>da</strong> “dentro de ano e dia<br />
pelo próprio queixoso, ou por qualquer<br />
<strong>do</strong> Povo, guar<strong>da</strong><strong>da</strong> a ordem <strong>do</strong> Processo<br />
estabeleci<strong>da</strong> na Lei”.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, essa espécie de ação po-<br />
pular criminal, limita<strong>da</strong> exclusivamente<br />
à hipótese em que o réu é magistra<strong>do</strong>,<br />
não mais se justifica nos dias atuais.<br />
Conviria, no entanto, criar uma ação<br />
popular criminal subsidiária, mediante<br />
a<strong>da</strong>ptação <strong>do</strong> disposto no art. 5º, inciso<br />
LIX, <strong>da</strong> Constituição Federal, to<strong>da</strong> vez<br />
que o réu seja um agente público. Em<br />
tal hipótese, a ação penal subsidiária<br />
deveria ser admiti<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o<br />
representante <strong>do</strong> Ministério Público se<br />
recusasse, expressamente, a oferecer a<br />
denúncia.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, não se deve nunca<br />
esquecer de garantir cumpri<strong>da</strong>mente a<br />
to<strong>do</strong>s os jurisdiciona<strong>do</strong>s o respeito <strong>ao</strong><br />
direito fun<strong>da</strong>mental de obter, no Judiciá-<br />
rio, um julgamento isento.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, proponho a a<strong>do</strong>ção de<br />
uma providência processual simples, a<br />
fim de resolver o problema - assaz fre-<br />
qüente, aliás - de os jurisdiciona<strong>do</strong>s se<br />
encontrarem efetivamente priva<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
direito de ser julga<strong>do</strong>s de forma impar-<br />
cial na comarca em que são <strong>do</strong>micilia<strong>do</strong>s.<br />
Suponha-se a hipótese de um juiz de<br />
direito que, em região de agu<strong>do</strong> conflito<br />
agrário, coloque-se objetivamente - de<br />
mo<strong>do</strong> intencional ou não, pouco importa<br />
- <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s proprietários rurais, e se<br />
empenhe em distribuir, mais a torto que<br />
a direito, condenações criminais a man-<br />
cheias contra to<strong>do</strong>s os que atuem, direta<br />
ou indiretamente, a favor <strong>da</strong> reforma<br />
agrária; além de julgar sistematicamen-<br />
te improcedentes as ações possessórias<br />
e reipersecutórias intenta<strong>da</strong>s por essas<br />
mesmas pessoas. As regras processuais<br />
concernentes à suspeição não têm aí apli-<br />
cação, em princípio, pois não se consegue<br />
provar nenhum interesse pessoal <strong>do</strong> ma-
gistra<strong>do</strong> na solução <strong>da</strong>s lides submeti<strong>da</strong>s<br />
à sua decisão.<br />
Para a solução de casos dessa nature-<br />
za, poder-se-ia cogitar de atribuir a qual-<br />
quer parte em juízo, em qualquer espécie<br />
de processo, o direito de obter o desafo-<br />
ramento <strong>do</strong> feito para o juízo que vier a<br />
ser designa<strong>do</strong> pelo tribunal de segun<strong>da</strong><br />
instância. Seria um direito potestativo,<br />
exercitável, portanto, sem que o seu<br />
titular tenha que alegar motivo algum.<br />
A freqüência com que for exerci<strong>do</strong> esse<br />
direito, em determina<strong>do</strong> juízo, serviria<br />
como indício de que o magistra<strong>do</strong> já<br />
não goza <strong>da</strong> indispensável confiança <strong>do</strong>s<br />
jurisdiciona<strong>do</strong>s, haven<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> a sua<br />
auctoritas funcional.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Eis aí as sugestões que me pareceu<br />
importante e oportuno oferecer à consi-<br />
deração geral, como subsídio <strong>ao</strong>s traba-<br />
lhos de aperfeiçoamento <strong>da</strong> organização<br />
<strong>do</strong> Poder Judiciário em nosso país.<br />
São Paulo, 1º de outubro de 2003<br />
Fábio Konder Comparato<br />
Doutor Honoris Causa <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
de Coimbra<br />
Doutor em Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
Paris<br />
Professor Titular <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de<br />
Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo<br />
19
Valores e<br />
A hegemonia <strong>do</strong> sistema econômico capi-<br />
talista se manifesta na construção de con-<br />
sensos quanto a valores liga<strong>do</strong>s à economia<br />
de merca<strong>do</strong> tanto no plano mundial quanto<br />
nos diversos planos nacionais. O discurso<br />
pre<strong>do</strong>minante, em grande parte produzi<strong>do</strong><br />
por organizações econômicas e financeiras<br />
multilaterais, propõe que as instituições<br />
políticas e jurídicas nacionais operem em<br />
favor <strong>da</strong> economia global.<br />
os Judiciários<br />
O Banco Mundial, enquanto organis-<br />
mo internacional especializa<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema<br />
<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, atua como elemento<br />
facilita<strong>do</strong>r <strong>da</strong> economia de merca<strong>do</strong>. Nessa<br />
quali<strong>da</strong>de, promove o debate em torno <strong>da</strong><br />
reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, em particular <strong>do</strong> Judici-<br />
ário, para favorecer um ambiente propício<br />
para os investimentos. O Banco propõe<br />
que o Judiciário combata a “síndrome <strong>da</strong><br />
ilegali<strong>da</strong>de”, proteja a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>,<br />
Os valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo Banco<br />
Mundial para os judiciários nacionais 1<br />
Ana Paula Lucena Silva Candeas 2<br />
garanta o cumprimento <strong>do</strong>s contratos e seja<br />
previsível.<br />
Ativi<strong>da</strong>de paranormativa<br />
Com esse fim, o Banco produz pesquisas<br />
e publicações, promove conferências e fi-<br />
nancia projetos sobre o papel <strong>do</strong>s tribunais<br />
nacionais. Esse esforço reflete uma ativi-<br />
<strong>da</strong>de paranormativa que visa a influenciar<br />
os Judiciários em seus valores e seu modus<br />
operandi com vistas a a<strong>da</strong>ptá-los à econo-<br />
mia globaliza<strong>da</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> Dupuy (1995:146), o conceito<br />
de ativi<strong>da</strong>de paranormativa é quase des-<br />
conheci<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>utrina. Entretanto, na<br />
prática, essa noção é de grande importância<br />
para a harmonização progressiva <strong>da</strong>s le-<br />
gislações nacionais nos <strong>do</strong>mínios técnicos<br />
mais varia<strong>do</strong>s. A ativi<strong>da</strong>de paranormativa<br />
1 Este artigo baseia-se no capítulo 2 <strong>da</strong> dissertação de mestra<strong>do</strong> <strong>da</strong> autora :Juízes para o merca<strong>do</strong>? Os valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo Banco Mundial para<br />
o Judiciário em um mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong>. O objetivo <strong>do</strong> texto é apresentar uma tipologia de valores extraí<strong>da</strong> de <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> Banco Mundial afim de<br />
fomentar o debate sobre suas recomen<strong>da</strong>ções <strong>ao</strong>s Judiciários nacionais.<br />
2 Ana Paula Lucena Silva Candeas é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Ciência Política e Relações Internacionais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
Brasília e pós-gradua<strong>da</strong> em Direito Constitucional francês e Direito Internacional Público pela Université Paris II (Pantheon-Assas).<br />
21
22<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
<strong>da</strong>s organizações internacionais, principal-<br />
mente <strong>da</strong>s instituições especializa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />
Nações Uni<strong>da</strong>s, se traduz na uniformização<br />
de referências, nomenclaturas, linhas di-<br />
retoras, legislações-tipo e códigos diversos.<br />
Essa massa de normas, princípios e valores<br />
é coloca<strong>da</strong> à disposição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s a título<br />
indicativo, seja pela via de resoluções, seja<br />
simplesmente por publicações produzi<strong>da</strong>s<br />
pelos secretaria<strong>do</strong>s dessas organizações.<br />
Essa definição permite compreender<br />
como o Banco Mundial estabelece um pa-<br />
drão para os Judiciários nacionais. O Banco<br />
não atua de maneira direta como outras<br />
instituições <strong>do</strong> sistema <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s<br />
(OMS, OIT ou FAO), que, por sua autori-<br />
<strong>da</strong>de técnica, têm muitas de suas recomen-<br />
<strong>da</strong>ções incorpora<strong>da</strong>s a legislações nacionais.<br />
Ao contrário, o Banco procura padronizar<br />
as concepções de Judiciário e de sistemas de<br />
justiça de forma indireta, “meramente indi-<br />
cativa”, como diz Dupuy.<br />
As ativi<strong>da</strong>des paranormativas buscam a<br />
harmonização de comportamentos <strong>do</strong>s ato-<br />
res sociais, não pela adesão a normas cujo<br />
descumprimento acarretaria sanção, mas a<br />
valores ou idéias, crian<strong>do</strong> consensos para<br />
que se tornem um “entendimento rotineiro”<br />
(Rosenau, 2000: 31).<br />
Um <strong>do</strong>s instrumentos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de pa-<br />
ranormativa são as publicações, <strong>do</strong> que são<br />
exemplos os <strong>do</strong>cumentos a respeito <strong>do</strong> Ju-<br />
diciário pelo Banco Mundial. Uma leitura<br />
destes evidencia uma série de valores des-<br />
tina<strong>do</strong>s a aprimorar o funcionamento <strong>do</strong>s<br />
sistemas judiciais: previsibili<strong>da</strong>de nas de-<br />
cisões, independência, eficiência, transpa-<br />
rência, credibili<strong>da</strong>de, combate à corrupção,<br />
proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, acessibi-<br />
li<strong>da</strong>de (méto<strong>do</strong>s alternativos de solução de<br />
controvérsias) e respeito <strong>ao</strong>s contratos. Com<br />
isso, o Banco busca fazer com que o consen-<br />
so deixe de ser apenas internacional e seja<br />
internaliza<strong>do</strong> pelos Judiciários nacionais.<br />
Muitos desses valores, tais como inde-<br />
pendência, eficiência, transparência e acessi-<br />
bili<strong>da</strong>de já estão incorpora<strong>do</strong>s nos discursos<br />
e na prática <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s brasileiros, que<br />
têm busca<strong>do</strong> aprimoramento institucional.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, entretanto, os magistra<strong>do</strong>s<br />
em geral parecem refratários <strong>ao</strong> valor “previ-<br />
sibili<strong>da</strong>de” <strong>da</strong>s decisões judiciais.<br />
Com efeito, duas percepções se opõem<br />
<strong>ao</strong> que seja previsibili<strong>da</strong>de: a percepção <strong>do</strong>s<br />
economistas e a <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s. A preocu-<br />
pação de alguns economistas e investi<strong>do</strong>res,<br />
refleti<strong>da</strong> nos <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> Banco Mun-<br />
dial, é a de que o Judiciário seja previsível<br />
e eficiente, reduzin<strong>do</strong> a margem de risco,<br />
garantin<strong>do</strong> o cumprimento <strong>do</strong>s contratos,<br />
proferin<strong>do</strong> decisões não-politiza<strong>da</strong>s nem<br />
desestabiliza<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> confiança <strong>do</strong>s in-<br />
vesti<strong>do</strong>res. Por seu turno, os magistra<strong>do</strong>s<br />
estão impregna<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
valores democráticos sob uma perspectiva<br />
de justiça: no processo de formação de seu<br />
convencimento, o juiz busca restabelecer o<br />
equilíbrio <strong>da</strong>s partes, em particular usan<strong>do</strong><br />
o princípio <strong>da</strong> eqüi<strong>da</strong>de no julgamento so-<br />
bre contratos.<br />
Documentos <strong>do</strong> Banco Mundial<br />
sobre reforma <strong>do</strong> Judiciário<br />
Os relatórios anuais <strong>do</strong> Banco Mundial são<br />
publica<strong>do</strong>s desde 1978. Os relatórios que<br />
enfatizam o papel <strong>do</strong> Judiciário são os de<br />
no. 19, de 1997 – “O Esta<strong>do</strong> num mun<strong>do</strong><br />
em transformação” – e o de no. 24, de 2002<br />
– “Instituições para os merca<strong>do</strong>s”. Além<br />
A preocupação<br />
de alguns<br />
economistas<br />
e investi<strong>do</strong>res<br />
é a de que o<br />
Judiciário seja<br />
previsível e<br />
eficiente.
disso, merece destaque o Documento Téc-<br />
nico 319S – “El sector judicial en América<br />
Latina y el Caribe: Elementos de Reforma”.<br />
O relatório de 1997 discute o novo papel<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> diante de acontecimentos como a<br />
desintegração <strong>da</strong>s economias planeja<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
ex-União Soviética e <strong>da</strong> Europa Oriental, a<br />
crise fiscal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-Previdência, o papel<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no “milagre” econômico <strong>do</strong> leste<br />
<strong>da</strong> Ásia, a desintegração de Esta<strong>do</strong>s e as<br />
emergências humanitárias em várias partes<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Já o relatório de 2002 trata <strong>da</strong><br />
criação de instituições que promovem mer-<br />
ca<strong>do</strong>s inclusivos e integra<strong>do</strong>s e contribuem<br />
para um crescimento estável e integra<strong>do</strong>,<br />
para melhorar a ren<strong>da</strong> e reduzir a pobreza.<br />
Além desses <strong>do</strong>cumentos, cabe exa-<br />
minar a primeira conferência <strong>do</strong> Banco<br />
Mundial sobre o Judiciário, realiza<strong>da</strong> em<br />
2000: “Comprehensive Legal and Judicial de-<br />
velopment – Toward an agen<strong>da</strong> for a just and<br />
equitable society in the 21st century” 3 . Essa<br />
conferência debateu elementos de um sis-<br />
tema legal e judicial “exitoso” (successful),<br />
alternativas para promover o controle sobre<br />
os governos, acesso à justiça, mecanismos<br />
informais de solução de controvérsias, re-<br />
dução <strong>da</strong> corrupção, apoio <strong>do</strong>s meios de<br />
comunicação à reforma <strong>do</strong> Judiciário, con-<br />
dições para um Judiciário independente,<br />
treinamento para a reforma <strong>do</strong> Judiciário,<br />
compartilhamento <strong>do</strong> conhecimento, parti-<br />
cipação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil e estratégias para<br />
programas legais e judiciais.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e<br />
desenvolvimento<br />
A reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, em suas diversas<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des, apresenta-se como condição<br />
necessária <strong>ao</strong> desenvolvimento <strong>do</strong> capitalis-<br />
mo global. O Banco Mundial, como um <strong>do</strong>s<br />
agentes <strong>da</strong> governança global 4 , reconhece<br />
que os Judiciários nacionais podem exercer<br />
o papel de facilita<strong>do</strong>res ou representarem<br />
óbices <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong> economia de merca-<br />
<strong>do</strong> em escala mundial.<br />
O Banco visa a influenciar os Judici-<br />
ários em <strong>do</strong>is níveis: o institucional e o<br />
individual (juízes). No primeiro, a adesão a<br />
esses valores engajaria os Judiciários em um<br />
processo de modernização, a<strong>da</strong>ptan<strong>do</strong>-os<br />
às deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong> nova economia globaliza-<br />
<strong>da</strong>. No nível individual, a convergência de<br />
valores tornaria os próprios juízes agentes<br />
<strong>da</strong> construção desse consenso no interior de<br />
sua corporação, impulsionan<strong>do</strong> a reforma<br />
<strong>do</strong> Judiciário (Dakolias, 1997:72). Os ma-<br />
gistra<strong>do</strong>s assumiriam o papel de guardiães<br />
de um ambiente propício <strong>ao</strong>s investimentos,<br />
asseguran<strong>do</strong> judicialmente o respeito à pro-<br />
prie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e <strong>ao</strong>s contratos. O Banco<br />
enfatiza que a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não é um<br />
tema puramente nacional, visto que deci-<br />
sões toma<strong>da</strong>s por cortes podem influenciar<br />
fluxos transnacionais.<br />
Como um clima favorável <strong>ao</strong>s investi-<br />
mentos priva<strong>do</strong>s necessita de um ambiente<br />
de estabili<strong>da</strong>de e previsibili<strong>da</strong>de para os<br />
3 Realiza<strong>da</strong> em Washington em junho de 2000. Vale destacar duas palestras: “Rethinking the processes and criteria for success”, apresenta<strong>do</strong> por Bryant<br />
G. Garth, Diretor <strong>da</strong> “American Bar Foun<strong>da</strong>tion”, e “Pending challenges of judicial reform”, de Alfre<strong>do</strong> Fuentes Hernández, Diretor Executivo <strong>da</strong><br />
“Corporação para a Excelência <strong>da</strong> Justiça” <strong>da</strong> Colômbia.<br />
4 Governança traduz o conjunto de funções que precisam ser executa<strong>da</strong>s para <strong>da</strong>r viabili<strong>da</strong>de a qualquer sistema humano, ativi<strong>da</strong>des apoia<strong>da</strong>s em objetivos<br />
comuns; a governança tem um propósito consciente, de natureza política ou econômica, por exemplo, embora não necessariamente tenha origem em<br />
diretrizes formalmente prescritas (Rosenau, 2000:14-16).<br />
23
24<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
negócios, o Banco a impulsiona a reforma<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – e, em particular, <strong>do</strong> Judiciário<br />
– para garantir essa previsibili<strong>da</strong>de, sobre-<br />
tu<strong>do</strong> em matéria contratual 5 . Desse mo<strong>do</strong>,<br />
na visão <strong>do</strong> Banco Mundial, os Judiciários<br />
nacionais não constituiriam fator de risco<br />
para os investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s.<br />
Em reação a esse argumento, o Presi-<br />
dente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>, Cláudio Baldino Maciel,<br />
contesta o merca<strong>do</strong> como mecanismo sufi-<br />
ciente para disciplinar com justiça a vi<strong>da</strong><br />
em socie<strong>da</strong>de e defende que o valor precí-<br />
puo para o Judiciário é a justiça:<br />
o desenvolvimento econômico é, por certo,<br />
finali<strong>da</strong>de a ser obti<strong>da</strong> pelos governos. Mas<br />
não é, decidi<strong>da</strong>mente, tarefa <strong>do</strong> Judiciário<br />
produzir – e não deve produzir - desenvolvi-<br />
mento econômico. O Judiciário produz – e<br />
deve produzir – justiça (Maciel, 2001: 7).<br />
No final <strong>do</strong>s anos oitenta e início <strong>do</strong>s<br />
noventa, o Banco Mundial buscou contribuir<br />
para a implementação <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s refor-<br />
mas de primeira geração (abertura comercial<br />
e financeira, privatizações, desregulamenta-<br />
ção etc.). Em segui<strong>da</strong>, passou a investir nas<br />
reformas de segun<strong>da</strong> geração, de natureza<br />
institucional – a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
O Relatório de 1997 <strong>do</strong> Banco Mundial,<br />
intitula<strong>do</strong> “O Esta<strong>do</strong> num mun<strong>do</strong> em trans-<br />
formação”, liga a atuação <strong>do</strong> Judiciário à<br />
prosperi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s economias, ten<strong>do</strong> em vista<br />
seu papel de resolver disputas entre atores<br />
econômicos. Segun<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento, a pros-<br />
peri<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s economias requer disposições<br />
institucionais que resolvam disputas entre<br />
empresas, ci<strong>da</strong>dãos e governos e esclare-<br />
çam ambigüi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s leis e regulamentos<br />
e imponham sua observância. O Banco<br />
reconhece que nenhum mecanismo é mais<br />
importante <strong>do</strong> que o Judiciário formal, visto<br />
que somente esse Poder tem acesso à autori-<br />
<strong>da</strong>de coercitiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para impor a exe-<br />
cução <strong>do</strong>s seus ditames, e somente ele está<br />
investi<strong>do</strong> de autori<strong>da</strong>de formal para decidir<br />
sobre a legali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s atos <strong>do</strong>s Poderes Le-<br />
gislativo e Executivo. Contu<strong>do</strong>, o Judiciário<br />
só pode desempenhar esse papel se forem<br />
satisfeitas três condições essenciais: inde-<br />
pendência, poder de execução <strong>da</strong>s decisões<br />
e organização eficiente (Banco Mundial,<br />
1997: 105).<br />
Em alguns casos, as operações de em-<br />
préstimo para capacitação e desenvolvi-<br />
mento institucional incluíram componentes<br />
liga<strong>do</strong>s à reforma judicial. Em outros, a<br />
reforma era estipula<strong>da</strong> como condição <strong>do</strong><br />
ajuste estrutural apoia<strong>do</strong> pelo financiamen-<br />
to <strong>do</strong> Banco. Além disso, o Banco apoiou<br />
projetos exclusivamente volta<strong>do</strong>s para a<br />
reforma legal e judicial, habitualmente<br />
conheci<strong>do</strong>s como projetos free-standing. O<br />
Banco colabora ain<strong>da</strong> na formação de con-<br />
sensos em torno <strong>da</strong> reforma <strong>do</strong> Judiciário<br />
financian<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s e seminários.<br />
Segun<strong>do</strong> a AJURIS, o Banco Mundial foi<br />
diretamente influencia<strong>do</strong> pela a agen<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
“Consenso de Washington” em matéria de<br />
5 A assistência técnica e financeira <strong>do</strong> Banco Mundial visa a estabelecer um bom clima para negócio (good business climate) por meio <strong>do</strong>s seguintes<br />
instrumentos: estabelecimento de leis, regulamentos e agências governamentais necessários para a garantia de investimentos priva<strong>do</strong>s; investimento em<br />
infraestrutura (transportes e comunicações); capacitação de governos; privatização de empresas estatais e desmantelamento de monopólios; redução<br />
<strong>do</strong>s riscos políticos <strong>do</strong> investimento (com o crescimento <strong>da</strong> confiança <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>, haveria investimentos em empreendimentos que, de outra forma,<br />
pareceriam arrisca<strong>do</strong>s); estímulo à maior eficiência e competição e menor vulnerabili<strong>da</strong>de à corrupção; e atração de capital priva<strong>do</strong> externo (Banco<br />
Mundial, 1998: 10 e 14).<br />
Operações de<br />
empréstimo para<br />
capacitação e<br />
desenvolvimento<br />
institucional<br />
incluíram<br />
componentes<br />
liga<strong>do</strong>s à reforma<br />
judicial.
eformas estruturais que também deveriam<br />
envolver o Judiciário (AJURIS: 2001). Tais<br />
reformas impunham uma redução <strong>do</strong> papel<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, considera<strong>do</strong> como organiza<strong>do</strong>r<br />
ou regula<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s instâncias sociais, que seria<br />
compeli<strong>do</strong> a ceder lugar <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>. O Pre-<br />
sidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>, Cláudio Baldino Maciel,<br />
também critica a ação <strong>do</strong> Banco Mundial:<br />
o referi<strong>do</strong> banco, que está financian<strong>do</strong> a re-<br />
forma <strong>do</strong> Judiciário em diversos países peri-<br />
féricos, apresenta a cartilha <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>s<br />
investi<strong>do</strong>res estrangeiros. Está ali consgra<strong>da</strong><br />
a necessi<strong>da</strong>de, para os investi<strong>do</strong>res, de maior<br />
previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões judiciais (Maciel,<br />
2001: 3).<br />
Pesquisa de Vianna et alli (1997: 245)<br />
buscou identificar a visão <strong>do</strong>s magistra-<br />
<strong>do</strong>s brasileiros em relação <strong>ao</strong> papel <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> e sua capaci<strong>da</strong>de de intervenção,<br />
temas centrais para o Banco. A maioria<br />
<strong>do</strong>s juízes considerou de alta priori<strong>da</strong>de<br />
“descentralizar as ativi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e<br />
desburocratizá-lo” (56,3 %) e “integrar a<br />
economia brasileira <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong> mundial,<br />
com a supressão <strong>da</strong>s restrições <strong>ao</strong> capital<br />
estrangeiro” (28,6 %). Apenas 9,2% <strong>do</strong>s<br />
juízes defenderam “máximo de intervenção<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”; 15,4% desejaram “mínimo de<br />
intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”; 29% se mostraram<br />
“tendencialmente favoráveis à intervenção<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”; e a grande maioria (46,4%) se<br />
disse “tendencialmente desfavorável à inter-<br />
venção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”.<br />
Os pesquisa<strong>do</strong>res indicaram que a opi-<br />
nião <strong>do</strong>s juízes flutua entre máxima e míni-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
ma intervenção, comportan<strong>do</strong> tendências de<br />
difícil precisão. Na opinião <strong>do</strong>s autores <strong>da</strong><br />
pesquisa, isso poderia indicar uma abertura<br />
<strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s novos processos de com-<br />
posição entre o público e o priva<strong>do</strong>, entre a<br />
socie<strong>da</strong>de e a política em processo no Brasil<br />
e no mun<strong>do</strong> (Vianna et allii, 1997: 242-245).<br />
O merca<strong>do</strong> e a reforma <strong>do</strong><br />
Judiciário<br />
No capitalismo globaliza<strong>do</strong> 6 , o Esta<strong>do</strong> tem<br />
uma relação contraditória com o merca<strong>do</strong><br />
(O’Donnell, 2001: 106). Nessa lógica, incum-<br />
be <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> controlar e inclusive cancelar<br />
alguns efeitos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> com relação <strong>ao</strong>s<br />
setores mais fracos ou vulneráveis de sua<br />
população. Ora, de um la<strong>do</strong>, o segre<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
eficiência <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> é premiar os fortes e<br />
eficientes e eliminar os fracos; por outro la<strong>do</strong>,<br />
parte fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
no regime democrático, é proteger os fracos<br />
<strong>do</strong> excesso de autori<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> (Idem: 107).<br />
O’Donnell vê o para<strong>do</strong>xo: <strong>ao</strong> mesmo<br />
tempo que tende a erodir a autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, a globalização funciona mediante<br />
a expansão <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, que, por sua<br />
vez, necessitam de Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de<br />
autori<strong>da</strong>de para manter a eficácia <strong>do</strong> im-<br />
pério <strong>da</strong> lei, incluin<strong>do</strong> um Poder Judicial<br />
eficiente e honesto (Idem: 107). Neste<br />
senti<strong>do</strong>, para esse autor, defender um<br />
Esta<strong>do</strong> forte é uma atitude que também<br />
favorece o merca<strong>do</strong> (market friendly).<br />
O mesmo para<strong>do</strong>xo aparente aparece<br />
na posição assumi<strong>da</strong> pelo Banco Mundial<br />
6 Globalização é aquí considera<strong>da</strong> o processo (ou conjunto de processos) que compreende uma transformação na organização espacial <strong>da</strong>s relações e<br />
transações sociais, avalia<strong>da</strong> em função de seu alcance, intensi<strong>da</strong>de, veloci<strong>da</strong>de e repercussão, e que gera fluxos e redes transcontinentais ou interregionais<br />
de ativi<strong>da</strong>de, de interação e de exercício de poder (Held et allii, 2002: XLIX).<br />
25
26<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
de que a expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> exige o<br />
aperfeiçoamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – em especial<br />
o fortalecimento <strong>do</strong> Poder Judiciário,<br />
como garante <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de institucional,<br />
<strong>do</strong> respeito <strong>ao</strong>s contratos e de um ambien-<br />
te estável e previsível para os investi<strong>do</strong>res.<br />
Na ver<strong>da</strong>de, o organismo internacional<br />
não favorece a tese <strong>da</strong> dicotomia entre<br />
Esta<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong>; <strong>ao</strong> contrário, o Banco<br />
procura mostrar essas duas enti<strong>da</strong>des<br />
como parceiras <strong>do</strong> desenvolvimento. Para<br />
o Banco, o Esta<strong>do</strong> é essencial para a im-<br />
plantação <strong>do</strong>s fun<strong>da</strong>mentos institucionais<br />
apropria<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s merca<strong>do</strong>s (Banco Mun-<br />
dial, 1997: 4). Merca<strong>do</strong> e Esta<strong>do</strong> não se<br />
situam em posição de competição, mas de<br />
cooperação unidirecional – o Esta<strong>do</strong> deve-<br />
ria fomentar o merca<strong>do</strong>.<br />
A reforma <strong>do</strong> Judiciário, para o Banco,<br />
representa uma reformulação <strong>do</strong> papel <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, para que se torne uma externali<strong>da</strong>-<br />
de não-prejudicial à expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />
O Judiciário seria, nessa lógica, uma exter-<br />
nali<strong>da</strong>de que deveria contribuir para que a<br />
litigiosi<strong>da</strong>de que surge na nova economia se<br />
paute pela proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e<br />
pelo respeito <strong>ao</strong>s contratos.<br />
O relatório de 1997 – “O Esta<strong>do</strong> num<br />
mun<strong>do</strong> em transformação” – discorre sobre<br />
o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> Governo no merca<strong>do</strong><br />
mundial como elementos <strong>da</strong> governança <strong>da</strong><br />
ordem global. Está presente a idéia de que<br />
um sistema normativo bem elabora<strong>do</strong> e um<br />
Judiciário eficiente e moderno podem aju-<br />
<strong>da</strong>r a socie<strong>da</strong>de a influenciar os resulta<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> para fins públicos (Idem: 6). A<br />
premissa é que um Esta<strong>do</strong> eficiente é fun-<br />
<strong>da</strong>mental para a expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />
Enfatiza-se, nesse Relatório, que merca-<br />
<strong>do</strong>s e governos são complementares: o Esta-<br />
<strong>do</strong> é essencial para a implantação <strong>do</strong>s fun-<br />
<strong>da</strong>mentos institucionais apropria<strong>do</strong>s para<br />
os merca<strong>do</strong>s, e a credibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> governo<br />
– a previsibili<strong>da</strong>de de suas normas e políti-<br />
cas e a constância de sua aplicação – pode<br />
ser tão importante para atrair investimentos<br />
priva<strong>do</strong>s quanto o conteú<strong>do</strong> dessas normas<br />
e políticas. Muitos <strong>do</strong>s melhores exemplos<br />
de desenvolvimento mostram Esta<strong>do</strong>s traba-<br />
lhan<strong>do</strong> em parceria com os merca<strong>do</strong>s para<br />
corrigir suas falhas, e não para substituí-los<br />
(Idem: 4 e 25).<br />
O Relatório de 1997 consagra o merca<strong>do</strong><br />
mundial de bens e serviços como um bem<br />
público internacional (Idem: 138). Para<br />
isso, são necessárias instituições formais<br />
de controle social, como um Judiciário<br />
independente, imparcial e eficaz. Caso con-<br />
trário, o Banco não descarta a intervenção<br />
de outros mecanismos de compromisso, até<br />
mesmo extraterritorial (Idem: 75).<br />
Os relatórios assinalam que o merca<strong>do</strong> é<br />
o meio pelo qual as socie<strong>da</strong>des podem atin-<br />
gir o desenvolvimento sustenta<strong>do</strong>, a partir<br />
de uma visão própria <strong>da</strong> relação entre Esta-<br />
<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong>.<br />
O relatório de 2002 busca trazer uma<br />
resposta <strong>do</strong> Banco à necessi<strong>da</strong>de de bases<br />
institucionais para os merca<strong>do</strong>s. Segun<strong>do</strong><br />
o <strong>do</strong>cumento, os “mecanismos externos de<br />
observância”, como os sistemas judiciais<br />
ou a arbitragem, são fun<strong>da</strong>mentais para o<br />
desenvolvimento de merca<strong>do</strong>s integra<strong>do</strong>s<br />
(Banco Mundial, 2002: III, 6 e 7).<br />
Dos vários elementos recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
para a redução <strong>da</strong> pobreza e a obtenção <strong>do</strong><br />
desenvolvimento sustentável, o Banco des-<br />
taca a “base jurídica” e institucional 7 . Para<br />
promover o desenvolvimento, segun<strong>do</strong> o<br />
organismo internacional, o Esta<strong>do</strong> deve pro-<br />
A reforma <strong>do</strong><br />
Judiciário,<br />
para o Banco,<br />
representa uma<br />
reformulação<br />
<strong>do</strong> papel<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
para que se<br />
torne uma<br />
externali<strong>da</strong>de<br />
não-prejudicial<br />
à expansão <strong>do</strong><br />
merca<strong>do</strong>.
porcionar o que chama de “infra-estrutura<br />
institucional” – direitos de proprie<strong>da</strong>de,<br />
paz, lei e ordem, regras – capaz de incenti-<br />
var o investimento eficiente a longo prazo<br />
(Banco Mundial, 1997: 33).<br />
Nessa lógica, a determinação de certe-<br />
zas e de comportamento previsíveis é muito<br />
mais responsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que <strong>do</strong><br />
merca<strong>do</strong>, visto que, para expandir-se, este<br />
último necessita de um ambiente de esta-<br />
bili<strong>da</strong>de política e institucional. O Esta<strong>do</strong><br />
se torna, assim, prove<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s ingredientes<br />
para o comportamento <strong>do</strong>s agentes econô-<br />
micos. Nesse quadro, o Judiciário é insti-<br />
tuição chave para a manutenção desse am-<br />
biente quan<strong>do</strong> decide de maneira previsível<br />
e quan<strong>do</strong> obriga a cumprir contratos. No<br />
Relatório de 2002, o Banco Mundial afirma<br />
que a ausência de instituições judiciais sóli-<br />
<strong>da</strong>s eleva o risco <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des econômicas<br />
(Banco Mundial, 2002: Prefácio, III): as<br />
instituições, dessa forma, estão em função<br />
<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. O setor priva<strong>do</strong> depende <strong>da</strong><br />
confiabili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> eficácia de instituições<br />
como o prima<strong>do</strong> <strong>da</strong> lei e a proteção <strong>do</strong>s<br />
direitos de proprie<strong>da</strong>de (Banco Mundial,<br />
1997: 34). De fato, os agentes econômicos,<br />
<strong>ao</strong> estabelecerem seus índices de risco-país,<br />
observam o comportamento <strong>do</strong> Judiciário.<br />
Segun<strong>do</strong> o Relatório 2002, as reformas<br />
de Esta<strong>do</strong> não são somente iniciativa <strong>do</strong>s<br />
governos nacionais. Indivíduos, empresá-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
rios, companhias multinacionais e organi-<br />
zações multilaterais podem pressionar o<br />
governo no senti<strong>do</strong> de sua a<strong>do</strong>ção (Banco<br />
Mundial, 2002: 11).<br />
A visão que o Banco Mundial tem <strong>da</strong><br />
atuação <strong>do</strong>s Judiciários nacionais <strong>do</strong>s países<br />
em desenvolvimento é de crítica. Em uma<br />
pesquisa em que se investigou 3.600 firmas<br />
em 69 países (Banco Mundial, 1997: 35),<br />
a visão de investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s aju<strong>do</strong>u a<br />
construir alguns indica<strong>do</strong>res <strong>da</strong> “percepção<br />
de incerteza” 8 .Dentre eles figuram: a previsi-<br />
bili<strong>da</strong>de na formulação de normas, a estabi-<br />
li<strong>da</strong>de política, a punição de crimes contra a<br />
pessoa e a proprie<strong>da</strong>de, a ausência de corrup-<br />
ção e a i<strong>do</strong>nei<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema judiciário.<br />
Segun<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento, o setor priva<strong>do</strong><br />
não admite um Judiciário que impõe arbi-<br />
trariamente a aplicação <strong>da</strong>s regras. Sem um<br />
sistema judiciário bem desenvolvi<strong>do</strong>, as em-<br />
presas e os indivíduos tendem a buscar outros<br />
meios de fazer valer os contratos e resolver as<br />
controvérsias, incluin<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>s e mecanis-<br />
mos informais de coação (Idem: 36, 47 e 38)<br />
O Banco explicita quais os elemen-<br />
tos mais importantes para os Judiciários:<br />
independência para realizar nomeações,<br />
avaliações e sistemas de disciplinamento;<br />
administração judicial – tribunais, casos e<br />
códigos de procedimento; acesso à justiça;<br />
mecanismos alternativos de resolução de<br />
disputas; consultórios jurídicos; tribunais<br />
7 Os outros ingredientes são: um clima político propício, com estabili<strong>da</strong>de macroeconômica, investimentos em recursos humanos e infra-estrutura, proteção<br />
<strong>do</strong>s grupos vulneráveis, e proteção <strong>do</strong> meio ambiente (Banco Mundial,1997: 43).<br />
8 Na opinião <strong>da</strong>s empresas examina<strong>da</strong>s no Relatório, o sistema judiciário brasileiro é excessivamente complica<strong>do</strong>. As empresas afirmaram que o processo<br />
judicial é muito lento, devi<strong>do</strong> principalmente à complexi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> procedimento de apelação. Pesquisas <strong>do</strong> IDESP são mais detalha<strong>da</strong>s a esse respeito,<br />
e demonstram amiúde as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s empresas nacionais em seu relacionamento com o Judiciário. Apesar disso, segun<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento, “por mais<br />
complica<strong>do</strong> que seja, o sistema jurídico brasileiro parece proporcionar um recurso judicial seguro para as transações comerciais. A maioria <strong>da</strong>s empresas<br />
acha que o Judiciário é razoavelmente justo e previsível”. (Banco Mundial, 1997: 48). Um <strong>do</strong>s motivos disso é a existência de dispositivos priva<strong>do</strong>s<br />
que coíbem o oportunismo nas transações comerciais sem ter de passar por procedimentos judiciais, como o sistema de proteção de crédito, que publica<br />
informações sobre os maus paga<strong>do</strong>res.<br />
27
28<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
de pequenas causas; educação jurídica <strong>do</strong><br />
público em geral; e capacitação de advoga-<br />
<strong>do</strong>s e juízes (Dakolias, 1997: xii).<br />
O princípio <strong>da</strong> separação de poderes e a<br />
independência <strong>do</strong> Judiciário são considera-<br />
<strong>do</strong>s elementos essenciais <strong>ao</strong> controle <strong>da</strong> ação<br />
arbitrária e <strong>da</strong> corrupção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (Banco<br />
Mundial, 1997: 105). Já o combate à síndrome<br />
<strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de e a proteção <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />
priva<strong>da</strong> se conectam <strong>ao</strong> respeito <strong>ao</strong>s contratos.<br />
Quanto à observância <strong>do</strong> cumprimento <strong>do</strong>s<br />
contratos, o Banco lembra que sem institui-<br />
ções judiciais sóli<strong>da</strong>s que obriguem a cumprir<br />
os contratos, os empresários consideram que<br />
muitas ativi<strong>da</strong>des são demasia<strong>do</strong> arrisca<strong>da</strong>s<br />
(Banco Mundial, 2002: III, 64 e 77).<br />
O Banco apresenta que um Judiciário<br />
ideal que interprete e aplique a lei com<br />
eqüi<strong>da</strong>de e eficiência deve apresentar<br />
previsibili<strong>da</strong>de no resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s casos;<br />
acessibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> população <strong>ao</strong>s tribunais,<br />
independentemente de seu nível de ren<strong>da</strong>;<br />
termos “razoáveis” de resolução; e senten-<br />
ças apropria<strong>da</strong>s (Dakolias, 1997:4).<br />
A Primeira Conferência <strong>do</strong> Banco Mun-<br />
dial sobre o Judiciário, de 2000, detectou<br />
sinais contraditórios sobre a reforma <strong>do</strong><br />
Judiciário: um otimismo persistente <strong>do</strong>s<br />
reforma<strong>do</strong>res e conclusões negativas em<br />
torno <strong>do</strong> sucesso <strong>do</strong>s programas de reforma.<br />
Foram elenca<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s fatores respon-<br />
sáveis pelo reduzi<strong>do</strong> êxito <strong>da</strong>s reformas, que<br />
produzem dissensos entre magistra<strong>do</strong>s e<br />
outros atores infra-estatais: falta de vontade<br />
política, poder <strong>do</strong>s interesses entrinchei-<br />
ra<strong>do</strong>s, corrupção e pouca participação de<br />
ONGs locais e globais (Garth, 2001: 13).<br />
A conferência discorreu sobre o fracasso<br />
<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “movimento lei e desenvol-<br />
vimento”, realiza<strong>do</strong> nas déca<strong>da</strong>s de 1960<br />
e 1970, que consistiu em um esforço de<br />
“exportar” um conjunto de instituições e<br />
práticas, a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s sobretu<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s, que seriam supostamente capazes<br />
de viabilizar maior respeito à lei (Idem: 14).<br />
Esse movimento levantou críticas de “impe-<br />
rialismo legal”. Garth sublinha as “compli-<br />
cações estruturais” que limitam a eficácia<br />
<strong>da</strong>s reformas basea<strong>da</strong>s na importação de leis<br />
estrangeiras (Idem: 16) 9 . Primeiro, pelo fato<br />
de que a reforma de “instituições legais” é<br />
muito mais difícil <strong>do</strong> que, por exemplo, a<br />
reforma de bancos centrais. Embora o autor<br />
não explicite, seu argumento deixa claro<br />
que as reformas de segun<strong>da</strong> geração são<br />
mais difíceis de internalização <strong>do</strong> que as re-<br />
formas de primeira geração, ten<strong>do</strong> em vista<br />
a resistência de membros <strong>da</strong> elite política.<br />
Outra dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> importação <strong>da</strong>s<br />
reformas legais é o fato de que o papel <strong>da</strong><br />
lei e <strong>do</strong> sistema judiciário é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo<br />
significa<strong>do</strong> dessas instituições no sistema<br />
norte-americano, <strong>ao</strong> passo que o “modelo<br />
europeu” de Esta<strong>do</strong> forte e de supremacia<br />
legislativa seria mais a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> no resto <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> (Idem: 17). Apesar disso, o autor<br />
indica que há uma tendência de fortaleci-<br />
mento <strong>do</strong> papel judicial no Esta<strong>do</strong>.<br />
Na conferência “Pending challenges of<br />
judicial reform”, Alfre<strong>do</strong> Fuentes Hernández<br />
9 Garth discor<strong>da</strong>, entretanto, que esse movimento tenha si<strong>do</strong> um fracasso completo (Idem: 15). Cita o caso <strong>do</strong> Brasil, que aproveitou <strong>do</strong>s programas<br />
de cooperação <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> para ganhar acesso a “tecnologias legais, credenciais e contatos” <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Além disso, o País estabeleceu leis e<br />
instituições inspira<strong>da</strong>s no sistema norte-americano – normas de seguros, combate à corrupção e proprie<strong>da</strong>de intelectual. Segun<strong>do</strong> o autor, embora os esforços<br />
de reforma <strong>da</strong>s leis brasileiras com base na “expertise” <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s não tenham mu<strong>da</strong><strong>do</strong> de forma “dramática” o “lugar <strong>da</strong> lei” no Brasil, abriram<br />
o caminho para os esforços de reforma que ocorreriam uma geração mais tarde.<br />
O Banco lembra<br />
que sem<br />
instituições<br />
judiciais sóli<strong>da</strong>s<br />
que obriguem<br />
a cumprir os<br />
contratos, os<br />
empresários<br />
consideram<br />
que muitas<br />
ativi<strong>da</strong>des são<br />
demasia<strong>do</strong><br />
arrisca<strong>da</strong>s.
afirma a reforma judicial como componente<br />
essencial <strong>do</strong> fortalecimento <strong>da</strong> democracia e<br />
<strong>da</strong> redefinição <strong>da</strong>s interações entre o Esta<strong>do</strong><br />
e seus ci<strong>da</strong>dãos (Hernández, 2001: 342). A<br />
falta de uma visão empresarial na adminis-<br />
tração <strong>da</strong>s cortes e <strong>do</strong>s processos judiciais é<br />
aponta<strong>da</strong> como um <strong>do</strong>s objetivos <strong>da</strong> reforma.<br />
A conferência assinala que o sucesso de pro-<br />
jetos de reforma <strong>do</strong> Judiciário dependerá <strong>da</strong><br />
superação de “impedimentos culturais” que<br />
opõem obstáculos a tais reformas; trata-se<br />
de restrições informais profun<strong>da</strong>mente “en-<br />
trincheira<strong>da</strong>s” nas tradições e nos padrões<br />
de comportamento institucional que geram<br />
atitudes contrárias às mu<strong>da</strong>nças (Idem:<br />
344). Tais elementos mostram um Judiciário<br />
conserva<strong>do</strong>r, contra o que devem ser usa<strong>do</strong>s<br />
“méto<strong>do</strong>s criativos” (Idem: 345).<br />
Os valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo<br />
Banco Mundial<br />
Os valores identifica<strong>do</strong>s abaixo encontram-se<br />
nas recomen<strong>da</strong>ções <strong>do</strong> Banco Mundial diri-<br />
gi<strong>do</strong>s à reforma <strong>do</strong>s Judiciários 10 . O Banco<br />
recomen<strong>da</strong> uma série de valores: acesso à jus-<br />
tiça (acessibili<strong>da</strong>de), credibili<strong>da</strong>de, eficiência,<br />
transparência, independência, previsibili<strong>da</strong>de,<br />
proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e respeito <strong>ao</strong>s<br />
contratos. Após a apresentação de ca<strong>da</strong> um des-<br />
ses valores na perspectiva <strong>do</strong> Banco, será dis-<br />
cuti<strong>da</strong> a reação <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s brasileiros, no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> aceitação ou rejeição desses valores.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
a) Acesso à Justiça (acessibili<strong>da</strong>de)<br />
Esse valor é recomen<strong>da</strong><strong>do</strong> de maneira<br />
mais evidente no <strong>do</strong>cumento 319 S. Não se<br />
trata <strong>do</strong> acesso <strong>da</strong> população <strong>ao</strong> Judiciário,<br />
mas <strong>do</strong> acesso à Justiça 11 . Isso porque, na<br />
concepção proposta pelo Banco, a idéia <strong>do</strong><br />
monopólio <strong>da</strong> administração <strong>da</strong> justiça é<br />
mitiga<strong>da</strong> por outras esferas que competem<br />
com o Judiciário como, por exemplo, os<br />
MARD (Mecanismos Alternativos de Reso-<br />
lução de Disputas).<br />
O Banco compreende que o acesso pode<br />
ser avalia<strong>do</strong> por meio de fatores como o<br />
tempo requeri<strong>do</strong> para sentenciar um caso,<br />
os custos diretos e indiretos incorri<strong>do</strong>s pelas<br />
partes em litígio, o conhecimento a com-<br />
preensão e o seguimento <strong>do</strong>s procedimentos<br />
por parte <strong>do</strong>s usuários potenciais e mesmo<br />
o acesso físico <strong>ao</strong>s tribunais. Em outras pa-<br />
lavras, um sistema judicial pode apresentar<br />
barreiras econômicas, psicológicas, infor-<br />
mativas e físicas (Dakolias, 1997: 42).<br />
A conferência <strong>do</strong> Banco Mundial sobre<br />
o Judiciário identifica obstáculos opera-<br />
cionais e estruturais <strong>ao</strong> acesso à justiça por<br />
parte <strong>do</strong>s grupos sociais mais vulneráveis.<br />
Os primeiros compreendem os obstáculos<br />
relaciona<strong>do</strong>s à eficiência e à eficácia <strong>da</strong> admi-<br />
nistração <strong>do</strong> sistema de justiça. Entre os obs-<br />
táculos estruturais figuram a organização <strong>do</strong><br />
Judiciário (que pode “<strong>da</strong>r as costas <strong>ao</strong> povo”),<br />
a situação de vulnerabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s pobres e a<br />
falta de conscientização <strong>do</strong>s grupos vulnerá-<br />
10 Alguns <strong>do</strong>cumentos, como o relatório de 1997, enfatizam mais a previsibili<strong>da</strong>de e o respeito à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e <strong>ao</strong>s contratos. Já a ênfase <strong>do</strong><br />
Relatório de 2002 foi a eficiência, o acesso à justiça (destacan<strong>do</strong>-se os méto<strong>do</strong>s alternativos de resolução de disputas) e a transparência. O <strong>do</strong>cumento 319<br />
S retoma os mesmos valores repertoria<strong>do</strong>s nos <strong>do</strong>cumentos anteriores.<br />
11 Confrontan<strong>do</strong>-se os valores de acessibili<strong>da</strong>de e eficiência, é possível dizer que questão mais prioritária que “entrar na justiça” é como “sair <strong>da</strong> justiça”<br />
– como produzir sentenças em tempo adequa<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> o Ministro <strong>do</strong> STJ, Paulo Costa Leite, o interesse maior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de não é o mero acesso <strong>ao</strong><br />
Judiciário, mas sua eficiência: “não adianta garantirmos o direito de bater às portas <strong>do</strong> Judiciário, temos que garantir que a decisão será coloca<strong>da</strong> em<br />
prática em tempo razoável” (Jornal <strong>do</strong> Commercio-RJ, 2/2/2002).<br />
29
30<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
veis (Abregú 2001: 57-59). Além disso, o Judi-<br />
ciário é visto como assenta<strong>do</strong> sobre as bases de<br />
suas próprias necessi<strong>da</strong>des corporativas e de<br />
sua própria lógica, o que produz “barrica<strong>da</strong>s”<br />
<strong>ao</strong>s agentes externos que preten<strong>da</strong>m “ultra-<br />
passar o ‘território judicial’” (Idem: 60).<br />
Algumas dessas “barrica<strong>da</strong>s” seriam<br />
localização geográfica <strong>do</strong>s tribunais, arqui-<br />
tetura <strong>do</strong>s edifícios que sediam as cortes,<br />
desenvolvimento de linguagem judicial e<br />
reificação <strong>do</strong>s clientes.<br />
O Banco Mundial considera que os<br />
MARD são um meio capaz de <strong>da</strong>r maior<br />
acesso à justiça (Banco Mundial 2002: 126).<br />
Tais mecanismos seriam instrumentos de<br />
competição com o Judiciário, aumentan<strong>do</strong><br />
as pressões sobre a eficiência desse Poder.<br />
Para ser competitivo, o sistema judicial<br />
deve se mostrar mais atraente que os meca-<br />
nismos tipicamente priva<strong>do</strong>s de resolução<br />
de conflitos e de imposição <strong>do</strong> estabeleci-<br />
mento de acor<strong>do</strong>s (Pinheiro, 2000: 25).<br />
Os MARD não são tão dissimina<strong>do</strong>s no<br />
sistema judicial brasileiro. Um <strong>do</strong>s mecanis-<br />
mos previstos é a arbitragem, a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> desde<br />
1996 12 . As decisões arbitrais têm força obriga-<br />
tória entre as partes, equivalen<strong>do</strong> a um título<br />
executivo extra-judicial. A maior parte <strong>da</strong>s<br />
empresas multinacionais instala<strong>da</strong>s no País,<br />
principalmente as trazi<strong>da</strong>s pelo processo de<br />
privatização a<strong>do</strong>tam o juízo arbitral em seus<br />
contratos. Antes, as multinacionais criavam<br />
cláusulas contratuais estabelecen<strong>do</strong> um foro<br />
internacional para as pendências judiciais.<br />
Não é possível afirmar se os juízes bra-<br />
sileiros são contra ou a favor os MARD. O<br />
que é certo é que têm busca<strong>do</strong> a simplifica-<br />
ção de procedimentos como uma forma de<br />
preservar o monopólio <strong>do</strong> juris dictio.<br />
Exemplos relevantes de mecanismos<br />
de ampliação <strong>do</strong> acesso <strong>ao</strong> Judiciário são as<br />
câmaras de conciliação prévia, os juiza<strong>do</strong>s<br />
especiais e a mediação. Em 2001 foi lança<strong>do</strong><br />
projeto <strong>da</strong> Escola Nacional de Magistratura<br />
para a criação <strong>do</strong>s media<strong>do</strong>res. Quanto <strong>ao</strong>s<br />
juiza<strong>do</strong>s especiais, destina<strong>do</strong>s a produzir<br />
decisões ágeis e baratas para pequenos con-<br />
flitos, o Tribunal de Justiça-DF pôs em prá-<br />
tica, em 1999, um criativo sistema integra<strong>do</strong><br />
por um juiza<strong>do</strong> volante para questões de<br />
trânsito e um juiza<strong>do</strong> central criminal, que<br />
consegue <strong>da</strong>r sentenças no mesmo dia.<br />
Em São Paulo, o Judiciário local nego-<br />
ciou parceria com a FIESP, o SEBRAE e a<br />
Associação Comercial para poder atender<br />
o aumento de deman<strong>da</strong> de causas de até 40<br />
salários mínimos.<br />
Outra ilustração é a justiça itinerante<br />
em Brasília, que vai <strong>ao</strong>s bairros <strong>da</strong> periferia<br />
com ônibus transforma<strong>do</strong> em tribunal 13 .<br />
b) Credibili<strong>da</strong>de<br />
No relatório de 1997, é sublinha<strong>da</strong> a<br />
importância de uma instituição ser perce-<br />
bi<strong>da</strong> como confiável. A credibili<strong>da</strong>de está<br />
relaciona<strong>da</strong> com outros valores, como pre-<br />
visibili<strong>da</strong>de, transparência e constância <strong>da</strong><br />
instituição (Banco Mundial, 1997: 4). Além<br />
12 Lei de Arbitragem (no 9.307/96). O Decreto 4.311, publica<strong>do</strong> no Diário Oficial de 24/7/2002, insere o Brasil na Convenção de Nova York de 1959,<br />
firma<strong>da</strong> no âmbito <strong>da</strong> ONU, principal acor<strong>do</strong> mundial sobre arbitragem, que trata <strong>do</strong> reconhecimento e execução <strong>da</strong>s sentenças arbitrais estrangeiras.<br />
13 O ônibus tem sala de audiência e ante-sala para os concilia<strong>do</strong>res. Integram a equipe, além <strong>do</strong> juiz, concilia<strong>do</strong>res, escrivão e atendente judiciária. Um<br />
celular aju<strong>da</strong> a localizar testemunhas e acusa<strong>do</strong>s. Os<br />
concilia<strong>do</strong>res conseguem resolver 60% <strong>da</strong>s pendências na hora. Os casos mais complexos são julga<strong>do</strong>s em menos de 30 dias. No ano de seu lançamento<br />
(2000), o ônibus-tribunal atendeu a mais de 6 mil pessoas e proferiu mais de 1.200 decisões.
O Judiciário,<br />
para ser<br />
eficiente, na<br />
perspectiva<br />
<strong>do</strong> Banco,<br />
necessita<br />
maximizar sua<br />
capaci<strong>da</strong>de<br />
de resolver as<br />
deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de.<br />
disso, pesam a percepção de estabili<strong>da</strong>de<br />
política, a proteção em relação a crimes<br />
contra a pessoa e a proprie<strong>da</strong>de, a i<strong>do</strong>nei-<br />
<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema judiciário e a ausência de<br />
corrupção. Para o Banco, um Judiciário con-<br />
fiável é idôneo, não aplica arbitrariamente<br />
as regras, não é imprevisível nem corrupto.<br />
Quan<strong>do</strong> o Banco menciona corrupção,<br />
refere-se <strong>ao</strong> sistema como um to<strong>do</strong>, e não<br />
apenas a juízes individualmente corruptos.<br />
Embora tenha juízes idôneos, o sistema<br />
Judiciário pode ser classifica<strong>do</strong> como pouco<br />
credível pelas empresas, quan<strong>do</strong> estas de-<br />
pendem <strong>da</strong> corrupção para instrumentalizar<br />
o “impulso processual” (agilizar o an<strong>da</strong>-<br />
mento <strong>do</strong>s processos).<br />
Os custos de um sistema judiciário<br />
serão repassa<strong>do</strong>s ou calcula<strong>do</strong>s pelas empre-<br />
sas quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> concretização de negócios e<br />
investimentos.<br />
c) Eficiência<br />
O Banco Mundial utiliza o conceito de<br />
eficiência para qualificar a ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
em relação à expansão <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s. A<br />
marca de um Esta<strong>do</strong> eficiente, além <strong>da</strong> sua<br />
capaci<strong>da</strong>de de facilitar ações coletivas, é<br />
a sua capaci<strong>da</strong>de de estabelecer as regras<br />
que definem os merca<strong>do</strong>s e permitem o<br />
seu funcionamento. O setor priva<strong>do</strong> pode<br />
suplementar os direitos formais de pro-<br />
prie<strong>da</strong>de e contrato, mas não consegue<br />
conduzir os merca<strong>do</strong>s sem a ação <strong>do</strong> Es-<br />
ta<strong>do</strong>. Os governos, segun<strong>do</strong> o Banco, têm<br />
de fazer mais <strong>do</strong> que estabelecer as regras<br />
<strong>do</strong> jogo; também têm de garantir que essas<br />
regras sejam aplica<strong>da</strong>s de maneira coe-<br />
rente, de maneira que os agentes priva<strong>do</strong>s<br />
– empresas, sindicatos, associações de clas-<br />
se – possam confiar em que as regras não<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
sejam mu<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>da</strong> noite para o dia (Banco<br />
Mundial, 1997: 35).<br />
Conforme o Banco, a eficiência <strong>do</strong> Es-<br />
ta<strong>do</strong> deve ser a marca <strong>da</strong> nova economia,<br />
que define sua capaci<strong>da</strong>de de promover de<br />
maneira eficiente ações coletivas em áreas<br />
tais como lei e ordem, saúde pública e infra-<br />
estrutura básica. Relativizan<strong>do</strong> um pouco<br />
a ênfase no merca<strong>do</strong>, o Banco assinala que<br />
a eficiência é o resulta<strong>do</strong> que se obtém <strong>ao</strong><br />
utilizar essa capaci<strong>da</strong>de para atender a<br />
deman<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles bens por parte <strong>da</strong> socie-<br />
<strong>da</strong>de: um Esta<strong>do</strong> pode ser capaz, mas não<br />
muito eficiente, se sua capaci<strong>da</strong>de não for<br />
utiliza<strong>da</strong> no interesse <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de (Banco<br />
Mundial, 1997: 3).<br />
Assim, o Judiciário, para ser eficien-<br />
te, na perspectiva <strong>do</strong> Banco, necessita<br />
maximizar sua capaci<strong>da</strong>de de resolver as<br />
deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. O relatório de<br />
2002 esclarece que os elementos <strong>da</strong> efici-<br />
ência são rapidez, custo, eqüi<strong>da</strong>de e aces-<br />
so à justiça (Banco Mundial, 2001: 118).<br />
A definição de eficiência relaciona<strong>da</strong> <strong>ao</strong><br />
comportamento <strong>do</strong> Judiciário também<br />
está relaciona<strong>da</strong> com o equilíbrio entre es-<br />
ses elementos e a imparciali<strong>da</strong>de. Segun-<br />
<strong>do</strong> o Banco, é necessário que os sistemas<br />
judiciais encontrem um equilíbrio entre a<br />
necessi<strong>da</strong>de de proporcionar una solução<br />
rápi<strong>da</strong> e econômica – acessível – e impar-<br />
cial (Banco Mundial, 2001: 131).<br />
Portanto, um Judiciário eficiente não<br />
é apenas aquele que produz decisões com<br />
rapidez, mas o que combina essa quali<strong>da</strong>-<br />
de com outros valores – <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />
que normalmente ocorre, quan<strong>do</strong> se res-<br />
salta o aspecto <strong>da</strong> rapidez e se negligen-<br />
ciam os custos, a eqüi<strong>da</strong>de e o acesso para<br />
os ci<strong>da</strong>dãos.<br />
31
32<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
O Banco Mundial sugere aplicar o prin-<br />
cípio basilar <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> – a competição<br />
– como vetor para as reformas institucionais,<br />
e, em particular, fator de aprimoramento <strong>da</strong><br />
eficiência <strong>do</strong> sistema judicial. A interpre-<br />
tação que se depreende <strong>do</strong>s textos é que o<br />
Judiciário pode tornar-se mais eficiente <strong>ao</strong><br />
concorrer com outros mecanismos para a<br />
resolução <strong>do</strong>s litígios. Por isso, o Banco esti-<br />
mula a aplicação <strong>do</strong>s MARD (mecanismos<br />
alternativos de resolução de disputas), quais<br />
sejam, arbitragem, mediação, conciliação e<br />
os juízes de paz, para romper com o “mono-<br />
pólio <strong>do</strong> poder judicial” (Dakolias,1997: xiv).<br />
Cumpre ressaltar, nesse senti<strong>do</strong>, que a<br />
percepção <strong>do</strong> Banco quanto <strong>ao</strong>s sistemas de<br />
Justiça não compreende o Judiciário como<br />
detentor <strong>do</strong> monopólio <strong>do</strong> juris dictio. O<br />
organismo internacional argumenta que os<br />
MARD representam, em muitos países, ins-<br />
trumento rápi<strong>do</strong> e econômico para oferecer<br />
justiça. A avaliação é bastante franca:<br />
“La presencia de méto<strong>do</strong>s alternativos de<br />
solución de controversias puede reducir las<br />
oportuni<strong>da</strong>des de corrupción en las econo-<br />
mias en dessarrollo. Un sistema judicial que<br />
compite con otras instituciones tiene menos<br />
posibili<strong>da</strong>des de extraer rentas de los litigan-<br />
tes” (Banco Mundial, 2002:127).<br />
Nessa perspectiva, a competição entre<br />
instituições sobre a resolução de disputas<br />
(Judiciário e os MARD), é salutar, pois elas<br />
buscarão ser mais eficientes para não perder<br />
poder, nem “clientes”. O relatório de 2002<br />
considera que o juiz é “contrata<strong>do</strong>” para<br />
cumprir eficientemente a função de julgar, e<br />
que a presença de instituições complementa-<br />
res (incluin<strong>do</strong> a pressão <strong>do</strong>s meios de comu-<br />
nicação) incentivariam os juízes a atuar com<br />
eficiência (Banco Mundial, 2002: 124).<br />
Além <strong>da</strong> competição entre méto<strong>do</strong>s<br />
alternativos de solução de litígios, o Ban-<br />
co Mundial sublinha a importância <strong>do</strong><br />
princípio <strong>da</strong> separação de poderes e de um<br />
Judiciário forte e independente. O organis-<br />
mo justifica sua posição afirman<strong>do</strong> que a<br />
economia requer mecanismos formais de<br />
controle pelos quais o Esta<strong>do</strong> e suas auto-<br />
ri<strong>da</strong>des sejam responsabiliza<strong>do</strong>s pelos seus<br />
atos. Se a durabili<strong>da</strong>de e a credibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
mecanismos de controle formal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
são fracas, deve-se, segun<strong>do</strong> o Banco, subs-<br />
tituí-los temporariamente por mecanismos<br />
externos, como a adjudicação internacional<br />
(Banco Mundial, 1997: 104-105) 14 . São men-<br />
ciona<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong>, os acor<strong>do</strong>s internacionais<br />
(OMC, ALCA, UE) como mecanismos de<br />
fortalecimento de compromissos externos.<br />
Os magistra<strong>do</strong>s brasileiros têm-se<br />
mostra<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais receptivos <strong>ao</strong> valor<br />
“eficiência”, o que é demonstra<strong>do</strong> pelos<br />
avanços nas seguintes áreas: simplificação<br />
de procedimentos; instauração de juiza<strong>do</strong>s<br />
especiais para causas de pequeno valor eco-<br />
nômico; implantação <strong>da</strong> justiça itinerante<br />
– por exemplo, por via fluvial na Amazônia;<br />
promoção de seminários e estu<strong>do</strong>s sobre<br />
custos e agilização processual; iniciativas<br />
legislativas; e visibili<strong>da</strong>de nos meios de co-<br />
municação por meio de informes publicitá-<br />
rios. Além dessas iniciativas, a preocupação<br />
14 O exemplo de adjudicação posto no relatório é o <strong>da</strong> Jamaica. A confiança <strong>do</strong> sistema judicial desse país, conforme o Banco, é fortaleci<strong>da</strong> por ser o<br />
Conselho Priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> Reino Uni<strong>do</strong> o tribunal de apelação de última instância. Outro exemplo é o caso <strong>do</strong> sistema judicial <strong>da</strong>s Filipinas que, por falta de<br />
credibili<strong>da</strong>de, faz com que empresas nacionais e estrangeiras optem pela adjudicação extraterritorial <strong>do</strong>s seus contratos.<br />
O Banco<br />
Mundial sugere<br />
aplicar o<br />
princípio basilar<br />
<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> – a<br />
competição –<br />
como vetor para<br />
as reformas<br />
institucionais,<br />
e, em particular,<br />
fator de<br />
aprimoramento<br />
<strong>da</strong> eficiência <strong>do</strong><br />
sistema judicial.
maior <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s em matéria de efici-<br />
ência se manifesta na incorporação de novas<br />
tecnologias, sobretu<strong>do</strong> a disponibilização<br />
de alguns atos processuais pela internet nos<br />
sites <strong>do</strong>s órgãos judiciais 15 .<br />
A a<strong>do</strong>ção de avanços tecnológicos, so-<br />
bretu<strong>do</strong> a informatização, para tornar mais<br />
ágil a “rotinização” <strong>do</strong> Judiciário, reduzin-<br />
<strong>do</strong> custos operacionais e administrativos,<br />
merece atenção particular. Apesar de a<br />
digitalização encontrar obstáculo no Código<br />
de Processo Civil, que determina a mate-<br />
riali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo, começam a surgir<br />
novi<strong>da</strong>des como “autos virtuais”, distribui-<br />
ção eletrônica de petições iniciais e troca de<br />
informações entre bancos de <strong>da</strong><strong>do</strong>s 16 . O uso<br />
de “interrogatório on line” pode ser ca<strong>da</strong><br />
vez mais usa<strong>do</strong> 17 . Tribunais propõem código<br />
de barras nos processos a fim de reduzir o<br />
tempo de tramitação <strong>do</strong>s processos, a fim de<br />
evitar que os <strong>da</strong><strong>do</strong>s sejam processa<strong>do</strong>s nova-<br />
mente em ca<strong>da</strong> tribunal. Há também a idéia<br />
de “execução fiscal virtual”, na qual o pro-<br />
cesso de execução não seria mais impresso,<br />
mas ficaria grava<strong>do</strong> no banco de <strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
União. Intimações podem ser envia<strong>da</strong>s por<br />
fax e correio eletrônico.<br />
d) Transparência<br />
Para o Banco Mundial, a definição <strong>da</strong><br />
transparência está conecta<strong>da</strong> com a res-<br />
ponsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízes e a necessi<strong>da</strong>de<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
de prestação de contas (accountability) 18 .<br />
A transparência envolve a prestação de<br />
informações que facilitem a vigilância <strong>do</strong><br />
desempenho judicial e repercutam sobre<br />
reputação <strong>do</strong>s juízes (Banco Mundial, 2002:<br />
132). A transparência, portanto, traduz a<br />
obrigação de render contas à socie<strong>da</strong>de so-<br />
bre a função de julgar. Segun<strong>do</strong> o Banco, a<br />
corrupção encontra incentivo quan<strong>do</strong> uma<br />
autori<strong>da</strong>de dispõe de uma ampla margem<br />
discricionária e pouca obrigação de prestar<br />
contas (Banco Mundial, 1997:109).<br />
Se, de um la<strong>do</strong>, os juízes compõem uma<br />
instituição que não emerge <strong>da</strong>s urnas como os<br />
parlamentares e os titulares <strong>do</strong>s cargos eletivos<br />
<strong>do</strong> Executivo, por outro, os magistra<strong>do</strong>s são<br />
obriga<strong>do</strong>s a justificar exaustiva e racionalmen-<br />
te suas decisões de mo<strong>do</strong> muito mais rigoroso<br />
que os membros de outros Poderes. A respon-<br />
sabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízes é presta<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s órgãos<br />
correcionais <strong>do</strong>s tribunais e a sua corporação.<br />
Na visão <strong>do</strong> Banco, não é o simples au-<br />
mento de recursos financeiros e humanos<br />
que fará <strong>do</strong> Judiciário uma instituição mais<br />
eficiente e útil à expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, mas<br />
a introdução de mecanismos que tornem os<br />
juízes responsáveis perante os usuários <strong>do</strong><br />
sistema (Banco Mundial, 2002: 118-119).<br />
O Banco Mundial define transparência<br />
como o oferecimento de informação que<br />
facilite a vigilância <strong>do</strong> desempenho judicial<br />
e repercuta na reputação <strong>do</strong>s juízes, como,<br />
15 Os prazos para recursos passarão a contar no momento de registro junto <strong>ao</strong> sistema, para o que serão necessárias alterações nos artigos <strong>do</strong>s Códigos de<br />
Processo Civil e de Processo Penal.<br />
16 Acor<strong>do</strong> entre STJ, TRFs, Ministérios <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> e Previdência Social, Procura<strong>do</strong>ria-Geral <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> Nacional e INSS permite a distribuição<br />
eletrônica em processos de execução fiscal.<br />
17 O STJ fez, entretanto, a ressalva de que o procedimento deve ser usa<strong>do</strong> apenas excepcionalmente.<br />
18 “What we mean by accountability is that one official or organization is required to explain and justify its actions to another body or authority,<br />
according to specific criteria, where the body or authority, to which account is given, normally has power to take remedial action” (Galligan, 2000: 31). A<br />
accountability envolve processos externos de supervisão judicial, ombudsmen, inspetores, auditores e tribunais especiais, bem como procedimentos internos<br />
de apelação, recursos e reclamações (Idem: 34 e 35.).<br />
33
34<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
por exemplo, o estabelecimento de bases de<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong>s judiciais que facilitem o seguimento<br />
<strong>do</strong>s casos e dificultem sua manipulação<br />
(Banco Mundial 2002: 124).<br />
A implantação <strong>do</strong> canal de televisão<br />
especial <strong>do</strong> Judiciário, conheci<strong>do</strong> como “TV<br />
Justiça”, em julho de 2002, se insere na estra-<br />
tégia de transparência 19 . A TV teria também<br />
um papel didático, poden<strong>do</strong> ser usa<strong>da</strong> para<br />
treinamento e cursos de aperfeiçoamento.<br />
Sob a coordenação <strong>do</strong> Conselho <strong>da</strong> Justiça<br />
Federal, os 5 Tribunais Regionais e as varas<br />
<strong>da</strong> Justiça Federal em to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s terão<br />
suas matérias televisivas elabora<strong>da</strong>s pela<br />
Rede Minas e afilia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Associação Brasi-<br />
leira de Emissoras de TV Educativa.<br />
A veiculação <strong>da</strong> informação processual<br />
pela rede internet é também uma manifes-<br />
tação de transparência.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, os magistra<strong>do</strong>s em geral<br />
são refratários à prestação de contas como<br />
medi<strong>da</strong> de transparência, no senti<strong>do</strong> de que<br />
implica uma forma de controle externo <strong>ao</strong><br />
Judiciário; encaram a medi<strong>da</strong> como per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
autonomia funcional. Pesquisa <strong>do</strong> IDESP 20<br />
(“A visão <strong>do</strong>s juízes sobre a Reforma <strong>do</strong> Judi-<br />
ciário”) revelou que a resistência <strong>do</strong>s juízes<br />
à criação de um órgão de controle externo <strong>do</strong><br />
Judiciário diminuiu de forma considerável 21 .<br />
e) Independência<br />
Um Judiciário independente será um<br />
alia<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mental contra a corrupção<br />
e contra a arbitrarie<strong>da</strong>de, na opinião <strong>do</strong><br />
Banco. Na ótica <strong>do</strong> Banco, a evolução <strong>do</strong><br />
capitalismo requer um sistema judicial ca-<br />
paz de interpretar e executar as leis de una<br />
maneira eficiente e previsível. O aumento<br />
<strong>da</strong>s transações com pessoas desconheci<strong>da</strong>s<br />
– próprio <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des anônimas – cria<br />
a necessi<strong>da</strong>de de resolução formal de con-<br />
flitos de maneira imparcial e impessoal<br />
(Dakolias, 1997: 3).<br />
No <strong>do</strong>cumento 319 S são descritos três<br />
tipos de independência. O primeiro é a<br />
independência decisória ou funcional, que<br />
implica a capaci<strong>da</strong>de de tomar decisões de<br />
acor<strong>do</strong> com a lei, e não de acor<strong>do</strong> com fato-<br />
res políticos externos (pressões <strong>do</strong>s outros<br />
poderes públicos, <strong>do</strong>s membros <strong>do</strong> sistema<br />
judicial, <strong>da</strong>s relações pessoais ou públicas<br />
com as partes em conflito).<br />
A independência decisória tem duas<br />
definições propostas pelo Banco:<br />
El gra<strong>do</strong> en que los jueces pueden realmente<br />
decidir casos de acuer<strong>do</strong> con sus propias deter-<br />
minaciones de la evidencia, la ley y la justicia,<br />
libres de coerción, lisonjas, intromisiones o<br />
amenazas de las autori<strong>da</strong>des gubernamentales<br />
o los ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos priva<strong>do</strong>s (Roseenn). (…)<br />
El gra<strong>do</strong> en que los jueces creen que pueden<br />
decidir – y asi lo hacen – de acuer<strong>do</strong> a sus<br />
propias actitudes, valores y conceptos sobre el<br />
papel de un juez (en su interpretación de<br />
la ley) (Becker) (apud Dakolias, 1997: 8).<br />
O segun<strong>do</strong> tipo é a independência inter-<br />
na, que se concretiza pela não-interferência<br />
no processo decisório <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s de<br />
órgãos de instâncias superiores. Por último,<br />
19 Trata-se de uma TV a cabo (como a Court TV, canal norte-americano), nos moldes <strong>do</strong> Legislativo e <strong>do</strong> canal universitário, pela qual seriam transmiti<strong>do</strong>s<br />
julgamentos que tenham relevância nacional.<br />
20 Instituto de Estu<strong>do</strong>s Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo.<br />
21 A proposta de criação <strong>do</strong> Conselho Nacional de Justiça para fazer o controle administrativo <strong>do</strong> Poder Judiciário é aprova<strong>da</strong> por 39 % <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s<br />
(em 1993, pesquisa mostrava que 86,5 % eram contra). Valor Econômico, 20/02/2001.<br />
Um Judiciário<br />
independente<br />
será um alia<strong>do</strong><br />
fun<strong>da</strong>mental<br />
contra a<br />
corrupção<br />
e contra a<br />
arbitrarie<strong>da</strong>de,<br />
na opinião <strong>do</strong><br />
Banco.
a independência pessoal, que diz respeito às<br />
prerrogativas <strong>da</strong> carreira de magistra<strong>do</strong> como<br />
segurança em sua nomeação para o exercício<br />
<strong>do</strong> cargo, inamovibili<strong>da</strong>de, irredutibili<strong>da</strong>de de<br />
salários, mesmo quan<strong>do</strong> uma decisão adversa<br />
<strong>ao</strong>s que detêm o poder político ou judicial<br />
(Becker apud Dakolias, 1997: 8).<br />
No relatório de 2002, a aplicação siste-<br />
mática <strong>da</strong> lei com independência aparece<br />
como elemento <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de (Banco<br />
Mundial, 2002: 119).<br />
Flávio Dino, ex–presidente <strong>da</strong> AJUFE,<br />
assinala que a independência implica que<br />
os magistra<strong>do</strong>s desejam decidir livres de<br />
pressões, inclusive aquelas exerci<strong>da</strong>s pe-<br />
los agentes econômicos. As pesquisas <strong>do</strong><br />
IDESP e <strong>do</strong> IUPERJ 22 , por seu turno, con-<br />
cluem que os juízes <strong>da</strong> base <strong>do</strong> sistema são<br />
mais propensos <strong>ao</strong> valor independência que<br />
<strong>ao</strong> valor previsibili<strong>da</strong>de, tal como deseja<strong>da</strong><br />
pelos agentes econômicos.<br />
O valor independência também está li-<br />
<strong>da</strong>go <strong>ao</strong> <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de. Sobre esse aspecto,<br />
Vianna et alli (1996: 74) colocaram diante<br />
<strong>do</strong>s juízes entrevista<strong>do</strong>s duas proposições,<br />
perguntan<strong>do</strong>-lhes com quais mais se inden-<br />
tificavam:<br />
1 - O Poder Judiciário não é neutro; em<br />
suas decisões, o magistra<strong>do</strong> deve interpretar<br />
a lei no senti<strong>do</strong> de aproximá-la <strong>do</strong>s processos<br />
sociais substantivos e, assim, influir na mu-<br />
<strong>da</strong>nça social.<br />
2 - A não-neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário ameaça<br />
as liber<strong>da</strong>des e a mu<strong>da</strong>nça social não deve ser<br />
objeto de apreciação por parte desse Poder.<br />
22 Instituto Universitário de Pesquisas <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
A adesão <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s à primeira<br />
opção se deu nas três instâncias. Com maior<br />
incidência junto <strong>ao</strong>s juízes <strong>do</strong> primeiro grau<br />
– juízes singulares (83,5%); em segui<strong>da</strong>, no<br />
segun<strong>do</strong> grau – desembarga<strong>do</strong>res (79,1%); e,<br />
também com alto nível de incidência, junto<br />
<strong>ao</strong>s Ministros de terceira instância (76,1%).<br />
Segun<strong>do</strong> os autores, os <strong>da</strong><strong>do</strong>s empíricos con-<br />
trariam o senso comum e opinião de abali-<br />
za<strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> jurídico, para<br />
quem o Poder Judiciário é neutro.<br />
Arman<strong>do</strong> Castelar Pinheiro 23 analisa a<br />
não-neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário como um<br />
fenômeno de “politização” <strong>da</strong>s decisões<br />
judiciais. A “politização” também resulta,<br />
segun<strong>do</strong> o autor, <strong>da</strong> tentativa de alguns ma-<br />
gistra<strong>do</strong>s protegerem certos grupos sociais<br />
vistos como partes mais fracas nas disputas<br />
leva<strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s tribunais. Agin<strong>do</strong> assim, conclui<br />
o autor, os juízes seriam parciais, distorcen-<br />
<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> de justiça de forma intencional<br />
e determinista. Os tribunais podem ser<br />
tendenciosos por três fatores: devi<strong>do</strong> à cor-<br />
rupção, por serem politiza<strong>do</strong>s (favorecen<strong>do</strong><br />
a certas classes de litigantes, como membros<br />
<strong>da</strong> elite, trabalha<strong>do</strong>res, deve<strong>do</strong>res, nacio-<br />
nais, etc.) ou por não gozarem de indepen-<br />
dência em relação <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, curvan<strong>do</strong>-se<br />
à sua vontade quan<strong>do</strong> o governo é parte <strong>da</strong><br />
disputa (Pinheiro, 2000: 29).<br />
Na interpretação de Vianna et alli, por<br />
outro la<strong>do</strong>, a “não-neutrali<strong>da</strong>de” ou “politi-<br />
zação” <strong>da</strong>s decisões não significa desrespei-<br />
to <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito e à Constituição por<br />
parte <strong>do</strong>s juízes 24 . Segun<strong>do</strong> esse autor, o juiz<br />
23 Conferência “O Judiciário e a Economia na Visão <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s” proferi<strong>da</strong> no seminário “Reforma <strong>do</strong> Judiciário: Problemas, Desafios e<br />
Perspectivas”, promovi<strong>do</strong> pelo IDESP (Pinheiro, 2001).<br />
24 À não neutrali<strong>da</strong>de aderem 83,0% <strong>do</strong>s juízes, e à neutrali<strong>da</strong>de, 17, 0 % (Vianna et allii, 1997: 260).<br />
35
36<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
brasileiro é influencia<strong>do</strong> por um contexto<br />
de transição e mu<strong>da</strong>nças. Ele não se des-<br />
prende inteiramente <strong>da</strong>s grandes referên-<br />
cias <strong>da</strong> sua formação <strong>do</strong>utrinária, basea<strong>da</strong><br />
no campo <strong>da</strong> civil law e <strong>do</strong> positivismo ju-<br />
rídico, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que se enxerga<br />
como um agente efetivo no processo de pro-<br />
dução <strong>do</strong> Direito, indican<strong>do</strong> sua instalação<br />
no campo político-cultural <strong>da</strong> common law<br />
(Vianna et alli, 1997: 259).<br />
Na pesquisa de Vianna, uma tabela inti-<br />
tula<strong>da</strong> “a atitude em face <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> Poder<br />
Judiciário no País” demonstra o alinhamento<br />
<strong>da</strong>s opiniões <strong>da</strong> seguinte maneira: 14,6% de-<br />
fenderam o “papel ético-moral <strong>da</strong> magistra-<br />
tura”; 10,6% julgaram que esse papel deveria<br />
estar “limita<strong>do</strong> à solicitação <strong>da</strong>s partes <strong>do</strong><br />
conflito”; mas a grande maioria (74,8%) po-<br />
sicionou-se a favor <strong>da</strong> “promoção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
de Direito” (Vianna et alli, 1997: 260).<br />
Sobre a “atitude em face <strong>do</strong> papel <strong>do</strong><br />
Poder Judiciário na consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> demo-<br />
cracia no país”, os índices foram os seguin-<br />
tes: 4,1% consideraram “o Judiciário como<br />
uma elite que exerce ação pe<strong>da</strong>gógica para<br />
elevação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia”; 7,7% definiram “a<br />
magistratura como guardiã <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des”;<br />
61,7% conceituaram “o magistra<strong>do</strong> como fiel<br />
intérprete <strong>da</strong> lei”; e 26,6% afirmaram que “o<br />
Judiciário exerce um papel ativo no senti<strong>do</strong><br />
de reduzir as desigual<strong>da</strong>des sociais”.<br />
Com base nessas respostas, os autores<br />
caracterizaram três tipos de juiz. O primei-<br />
ro seria um tipo caracteriza<strong>do</strong> pela não-<br />
neutrali<strong>da</strong>de, com ênfase nas instituições <strong>da</strong><br />
democracia representativa e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de<br />
Direito. Nessa visão, o ator é o juiz singular,<br />
e não a corporação.<br />
O segun<strong>do</strong> tipo é o juiz que atribui<br />
significa<strong>do</strong> ético moral à intervenção <strong>do</strong><br />
Judiciário, e muito freqüentemente confere<br />
a este Poder um papel ativo na redução <strong>da</strong>s<br />
desigual<strong>da</strong>des sociais.<br />
Nesse caso, o ator é a corporação, e a<br />
ativi<strong>da</strong>de judicante não é neutra. O terceiro<br />
tipo de juiz combinaria a perspectiva <strong>da</strong><br />
defesa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito <strong>ao</strong> tema <strong>da</strong> neu-<br />
trali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário; ademais, a limita-<br />
ção <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de judicante estaria associa<strong>da</strong><br />
à solicitação <strong>da</strong>s partes em conflito em tor-<br />
no de um bem juridicamente disciplina<strong>do</strong><br />
(Viana et allii, 1997: 260-261).<br />
Essa tipologia indica que, apesar <strong>da</strong><br />
maior parte entender a não-neutrali<strong>da</strong>de<br />
como um traço <strong>do</strong> Poder Judiciário, essa<br />
posição não contraria o Esta<strong>do</strong> de Direito.<br />
f) Previsibili<strong>da</strong>de<br />
Observa-se o choque de duas visões so-<br />
bre a previsibili<strong>da</strong>de. Uma, que privilegia o<br />
valor <strong>da</strong> previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões, linha<br />
de pensamento a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> pelo Banco Mun-<br />
dial e pela Nova Economia Institucional 25 .<br />
A outra lógica se constrói em reação à pri-<br />
meira, e enfatiza o valor <strong>da</strong> independência<br />
judicial, considera<strong>do</strong> superior <strong>ao</strong> <strong>da</strong> previ-<br />
sibili<strong>da</strong>de. Essa última tendência é a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong><br />
pela <strong>AMB</strong> (Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s<br />
Brasileiros) e pela AJUFE (Associação <strong>do</strong>s<br />
Juízes Federais <strong>do</strong> Brasil).<br />
25 Os estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Nova Economia Institucional são desenvolvi<strong>do</strong>s no Brasil pelo IDESP, especialmente por Arman<strong>do</strong> Castelar Pinheiro. É possível<br />
observar o confronto dessas duas lógicas no Seminário “Reforma <strong>do</strong> Judiciário: Problemas, Desafios e Perspectivas” promovi<strong>do</strong> pelo IDESP em 2001,<br />
que apresentou e debateu o resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> pesquisa “A visão <strong>do</strong>s juízes sobre as relações entre o judiciário e a economia” (que cobriu 738 juízes de primeira<br />
e segun<strong>da</strong> instâncias).
Em um contexto<br />
de incertezas,<br />
na visão <strong>do</strong><br />
Banco, um<br />
requisito<br />
essencial para<br />
os investi<strong>do</strong>res<br />
é que as<br />
instituições<br />
estatais<br />
proporcionem a<br />
previsibili<strong>da</strong>de<br />
de suas normas<br />
e políticas e a<br />
constância de<br />
sua aplicação.<br />
Arman<strong>do</strong> Castelar Pinheiro desenvolve<br />
o conceito de previsibili<strong>da</strong>de a partir de<br />
duas variáveis: os custos para o merca<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
morosi<strong>da</strong>de processual e a politização <strong>da</strong>s<br />
decisões <strong>do</strong> Judiciário 26 . Já a interpretação<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos juízes é diferente: na opinião de<br />
Flávio Dino, ex-Presidente <strong>da</strong> AJUFE, os<br />
juízes federais entendem que essa argumen-<br />
tação economicista visa a assegurar uma co-<br />
erência <strong>do</strong> conjunto de decisões que garanta<br />
as expectativas <strong>do</strong>s investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s<br />
(entrevista, maio de 2001).<br />
Para o Banco Mundial, o Esta<strong>do</strong> deve<br />
atuar como vetor de certezas. Na opinião<br />
<strong>do</strong> organismo, se um Esta<strong>do</strong> mu<strong>da</strong> fre-<br />
qüentemente as regras ou não esclarece as<br />
regras pelas quais ele próprio se guia, as<br />
empresas e os indivíduos não podem ter<br />
certeza hoje <strong>do</strong> que amanhã será lucrativo<br />
ou não lucrativo, lícito ou ilícito. Nesse<br />
caso, tendem a a<strong>do</strong>tar estratégias arrisca-<br />
<strong>da</strong>s para se protegerem contra um futuro<br />
incerto – ingressan<strong>do</strong>, por exemplo, na<br />
economia informal ou envian<strong>do</strong> capital <strong>ao</strong><br />
exterior, prejudican<strong>do</strong> a economia nacional<br />
(Banco Mundial, 1997: 33).<br />
Em um contexto de incertezas, na visão<br />
<strong>do</strong> Banco, um requisito essencial para os<br />
investi<strong>do</strong>res é que as instituições estatais<br />
proporcionem a previsibili<strong>da</strong>de de suas nor-<br />
mas e políticas e a constância de sua aplica-<br />
ção (Idem: 4). A previsibili<strong>da</strong>de seria ain<strong>da</strong><br />
mais importante que a eficiência (Idem: 47)<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
No Relatório de 1997 é apresenta<strong>do</strong><br />
resulta<strong>do</strong> de pesquisa que explicitou a vi-<br />
são de investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s: nos países em<br />
desenvolvimento, mais de 70% <strong>do</strong>s empre-<br />
sários disseram que a imprevisibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
Judiciário era um grande problema para as<br />
suas ativi<strong>da</strong>des (Idem: 36). A “previsibili<strong>da</strong>-<br />
de <strong>da</strong> imposição judicial <strong>da</strong> lei” é um <strong>do</strong>s 5<br />
indica<strong>do</strong>res 27 aponta<strong>do</strong>s pelos empresários<br />
para a credibili<strong>da</strong>de (Idem: 35, 36 e 186).<br />
Quanto às condições que contribuem para<br />
um ambiente de credibili<strong>da</strong>de para os in-<br />
vestimentos, a previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões<br />
judiciais é menciona<strong>da</strong> reitera<strong>da</strong>mente, de<br />
forma liga<strong>da</strong> à credibili<strong>da</strong>de e <strong>ao</strong> combate à<br />
“síndrome <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de”.<br />
Porém, a previsibili<strong>da</strong>de não traz ele-<br />
mentos objetivos que a expliquem, como<br />
acontece com a eficiência (custos, rapidez,<br />
acesso à justiça). Portanto, um problema é<br />
definir quais os elementos <strong>da</strong> arbitrarie<strong>da</strong>-<br />
de na aplicação <strong>da</strong>s normas (Banco Mun-<br />
dial,1997: 43).<br />
Outro aspecto a ser considera<strong>do</strong> é a pre-<br />
visibili<strong>da</strong>de sistêmica, que se traduz em me-<br />
di<strong>da</strong>s que tornem os tribunais mais previsí-<br />
veis – tais como <strong>da</strong>r maior homogenei<strong>da</strong>de às<br />
decisões <strong>do</strong>s juízes e aumentar a informação<br />
nelas conti<strong>da</strong>. Essa discussão envolve a po-<br />
lêmica sobre os mecanismos centraliza<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> sistema, como súmula vinculante, reper-<br />
cussão geral de recurso especial e incidente<br />
de interpretação de trata<strong>do</strong> ou de lei federal.<br />
26 “As decisões são previsíveis quan<strong>do</strong> a variância ex-ante <strong>do</strong> ganho líqui<strong>do</strong> <strong>do</strong>s custos é pequena <strong>do</strong> ponto de vista <strong>da</strong>s partes. Vale notar que essa variância<br />
é forma<strong>da</strong> tanto pela variância <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> em si (i.e., perde ou ganha), como <strong>do</strong> tempo necessário para se alcançar uma decisão. Ambas representam<br />
fatores indesejáveis e atuam como desincentivos para recorrer <strong>ao</strong> Judiciário. A previsibili<strong>da</strong>de é alta quan<strong>do</strong> a probabili<strong>da</strong>de de se vencer é próxima de<br />
zero ou um e a variância <strong>do</strong> tempo gasto para se tomar a decisão é pequena. Os tribunais podem ser imprevisíveis porque as leis e/ ou contratos são escritos<br />
precariamente, porque os juízes são incompetentes ou mal informa<strong>do</strong>s, ou porque as partes se mostram inseguras em relação <strong>ao</strong> tempo que será necessário<br />
aguar<strong>da</strong>r até que uma decisão seja toma<strong>da</strong>” (Pinheiro et allii, 2000:28-29).<br />
27 Os outros indica<strong>do</strong>res são previsibili<strong>da</strong>de no processo normativo, percepção subjetiva de instabili<strong>da</strong>de política, segurança pessoal e patrimonial e<br />
corrupção.<br />
37
38<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
Essa previsibili<strong>da</strong>de se traduz em me-<br />
canismos de racionalização <strong>do</strong> sistema pelo<br />
vértice (STJ ou STF) repertoria<strong>do</strong>s nos vários<br />
projetos de Reforma <strong>do</strong> Judiciário. Defenso-<br />
res desses mecanismos argumentam que tais<br />
medi<strong>da</strong>s diminuem os incentivos para as par-<br />
tes erra<strong>da</strong>s litigarem (Pinheiro, 2000: 35).<br />
Os Tribunais Superiores defendem tais<br />
mecanismos, <strong>ao</strong> passo que os juízes singu-<br />
lares defendem o modelo atual por meio de<br />
suas associações (<strong>AMB</strong> e AJUFE), que per-<br />
mitiria uma ampla forma de recurso. Uma<br />
crítica à previsibili<strong>da</strong>de sistêmica por meio<br />
<strong>da</strong> súmula vinculante foi feita no discurso<br />
de posse de Cláudio Baldino Maciel:<br />
a súmula vinculante, o mais emblemático<br />
instituto previsto pelo movimento de concen-<br />
tração de poderes na cúpula <strong>do</strong> Judiciário e<br />
de paulatina e constante per<strong>da</strong> de expressão<br />
judicial <strong>da</strong> primeira e segun<strong>da</strong> instâncias<br />
e, com isso, <strong>da</strong> erosão <strong>do</strong> controle difuso <strong>da</strong><br />
constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis, tal instituto <strong>da</strong><br />
súmula vinculante, repito, embora se apresen-<br />
te como a panacéia para o volume de serviço,<br />
serve de fato à pretendi<strong>da</strong> maior previsibili<strong>da</strong>-<br />
de <strong>do</strong> sistema judiciário em suas decisões, tu<strong>do</strong><br />
sob o enfoque <strong>da</strong> eficiência econômica e <strong>do</strong>s<br />
interesses <strong>do</strong> capital. Nota<strong>da</strong>mente <strong>do</strong> capital<br />
estrangeiro e de seus representantes, que exi-<br />
gem, como melhores condições para investir<br />
e lucrar, <strong>do</strong>is movimentos convergentes <strong>do</strong><br />
Judiciário nacional: primeiro, a maior previ-<br />
sibli<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema; segun<strong>do</strong>, o maior grau de<br />
coerção judicial no cumprimento <strong>do</strong>s contra-<br />
tos, quaisquer que sejam eles, afasta<strong>da</strong>s tanto<br />
quanto possível as cláusulas protecionistas que<br />
se destinam a tornar os pactos minimamente<br />
equânimes entre partes por vezes tão dramati-<br />
camente desiguais (Maciel, 2001: 3).<br />
Portanto, o presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong> – e<br />
também o ex–presidente <strong>da</strong> AJUFE, Flávio<br />
Dino – sobrepõem o valor <strong>da</strong> independência<br />
sobre o <strong>da</strong> previsibili<strong>da</strong>de, por desejarem<br />
preservar a “soberania <strong>do</strong> juiz” singular. O<br />
presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong> critica o <strong>do</strong>cumento 319<br />
S <strong>do</strong> Banco Mundial:<br />
Muitas vezes, a interpretação <strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />
um judiciário independente <strong>ao</strong>s postula<strong>do</strong>s<br />
constitucionais e legais constitui estorvo<br />
<strong>ao</strong>s intereses <strong>do</strong>s detentores <strong>do</strong>s capitais e à<br />
globalização econômica. (...) Hoje, contu<strong>do</strong>,<br />
mais <strong>do</strong> que interpretar fatos, podemos ter<br />
acesso a propostas concretas de agências fi-<br />
nanceiras mundiais, que mais <strong>do</strong> que nunca<br />
demonstram o interesse específico, enfático e<br />
crescente no Judiciário <strong>do</strong>s países, digamos,<br />
periféricos. (...)<br />
De acor<strong>do</strong> com o referi<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento [319<br />
S], “muitos países <strong>da</strong> América Latina e <strong>do</strong><br />
Caribe já iniciaram a reforma <strong>do</strong> Judiciá-<br />
rio, aumentan<strong>do</strong> a deman<strong>da</strong> de assistência<br />
e assessoria <strong>ao</strong> Banco Mundial”. (...) os<br />
elementos <strong>da</strong> reforma <strong>do</strong> Judiciário e algu-<br />
mas proprie<strong>da</strong>des preliminares precisam ser<br />
formula<strong>da</strong>s. Quem as está formulan<strong>do</strong>? Os<br />
povos latino-americanos e caribenhos? Seus<br />
juízes, seus opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito? Não.<br />
Quem está formulan<strong>do</strong> tais propostas é o<br />
Banco Mundial (Maciel, 2001:7) 28 .<br />
28 O magistra<strong>do</strong> continua sua crítica: “Tal <strong>do</strong>cumento (...) prevê claramente a necessi<strong>da</strong>de de reformas de fun<strong>do</strong> nos Poderes Judiciários <strong>da</strong> América Latina<br />
e <strong>do</strong> Caribe. Propõe, então, um projeto de reforma global, com a<strong>da</strong>ptações às condições específicas de ca<strong>da</strong> país, mas com a mesma natureza e com a<br />
mesma lógica: quebrar a natureza monopolística <strong>do</strong> Judiciário, melhor garantir o direito de proprie<strong>da</strong>de e propiciar o desenvolvimento econômico e <strong>do</strong> setor<br />
priva<strong>do</strong>, fragilizan<strong>do</strong> a expressão institucional <strong>do</strong> Poder Judiciário e tornan<strong>do</strong>-o menos operante nas garantias de direitos e liber<strong>da</strong>des, desde que estejam<br />
em jogo as necessi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Capital, sobre tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> capital internacional” (Maciel, 2001: 7).
Se o Judiciário<br />
é visto<br />
como “um<br />
subsistema<br />
autônomo”,<br />
seus membros<br />
permanecem<br />
em uma zona<br />
ambígua,<br />
<strong>ao</strong> mesmo<br />
tempo liga<strong>da</strong><br />
<strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>ao</strong><br />
merca<strong>do</strong> e à<br />
socie<strong>da</strong>de civil<br />
em geral.<br />
A oposição <strong>do</strong>s juízes singulares não<br />
ocorre por resistência à harmonia sistêmica<br />
ou à maior previsibili<strong>da</strong>de determina<strong>da</strong> pe-<br />
los Tribunais Superiores, mas porque aque-<br />
les magistra<strong>do</strong>s possuem uma orientação<br />
majoritariamente favorável à soberania <strong>do</strong><br />
juiz no exercício de sua judicatura e dese-<br />
jam manter limita<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de de inter-<br />
venção <strong>do</strong>s Tribunais Superiores (Vianna et<br />
alli, 1997: 292). Portanto, os magistra<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
base <strong>do</strong> sistema têm como valor mais caro a<br />
independência, ain<strong>da</strong> que em detrimento <strong>da</strong><br />
previsibili<strong>da</strong>de.<br />
A fim de exemplificar essa orientação,<br />
Vianna et alli construíram um indica<strong>do</strong>r so-<br />
bre a “atitude em face <strong>da</strong> soberania 29 <strong>do</strong> juiz<br />
e sua relação com as instâncias superiores”.<br />
Os juízes muito pouco orienta<strong>do</strong>s pela idéia<br />
de soberania seriam favoráveis a uma maior<br />
uniformização e harmonização <strong>do</strong> sistema<br />
pelo vértice, ou seja, pelos Tribunais Su-<br />
periores. Já aqueles orienta<strong>do</strong>s ou muito<br />
orienta<strong>do</strong>s pela idéia de soberania, que são<br />
a maioria, vêem com desagra<strong>do</strong> a presença<br />
racionaliza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> vértice <strong>do</strong> sistema 30 .<br />
Vianna et alli estabeleceram uma cor-<br />
relação entre <strong>do</strong>is indica<strong>do</strong>res: o relativo<br />
à soberania <strong>do</strong> juiz e o indica<strong>do</strong>r referente<br />
<strong>ao</strong> padrão de intervenção <strong>do</strong> Judiciário. Os<br />
autores observaram uma correlação positiva<br />
entre a valorização <strong>da</strong> soberania <strong>do</strong> juiz e<br />
a atribuição de um papel ativo à magistra-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
tura nos processos de mu<strong>da</strong>nça social: <strong>do</strong>is<br />
terços <strong>do</strong>s juízes classifica<strong>do</strong>s na categoria<br />
“intervenção alta” 31 se disseram também<br />
“orienta<strong>do</strong>s” e “muito orienta<strong>do</strong>s” pela<br />
noção de soberania <strong>do</strong> juiz (Vianna et allii,<br />
1997: 292).<br />
Se por um la<strong>do</strong> os juízes podem ser<br />
considera<strong>do</strong>s parciais e imprevisíveis em<br />
relação às expectativas <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, por<br />
outro os que reconhecem seu papel pro-<br />
tagônico parecem ver no Poder Judiciário<br />
um subsistema autônomo dentro <strong>da</strong> esfera<br />
estatal, capaz de intervir sobre a reali<strong>da</strong>-<br />
de social (Vianna et alli 1997: 263). Se o<br />
Judiciário é visto como “um subsistema<br />
autônomo”, seus membros permanecem<br />
em uma zona ambígua, <strong>ao</strong> mesmo tempo<br />
liga<strong>da</strong> <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong> e à socie<strong>da</strong>de<br />
civil em geral. Por isso, os argumentos <strong>do</strong>s<br />
que enfatizam a preponderância <strong>do</strong> “valor<br />
independência” em detrimento <strong>do</strong> “valor<br />
previsibili<strong>da</strong>de” não podem ser toma<strong>do</strong>s<br />
como oposição <strong>ao</strong>s valores de merca<strong>do</strong>,<br />
deven<strong>do</strong> ser considera<strong>do</strong>s defensores des-<br />
se padrão ambíguo de intervenção desse<br />
“subsistema estatal autônomo”.<br />
g) Proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e<br />
respeito <strong>ao</strong>s contratos<br />
Como já dito, conforme o Banco Mun-<br />
dial, o Esta<strong>do</strong> e as instituições são responsá-<br />
veis pela preservação de um ambiente pro-<br />
29 Soberania está relaciona<strong>da</strong> <strong>ao</strong> posicionamento <strong>do</strong> juiz vis-à-vis <strong>da</strong>s condições institucionais em que exerce sua ativi<strong>da</strong>de judicante; já a autonomia se<br />
relaciona com a atitude <strong>do</strong>s juízes em face <strong>da</strong> intervenção de outras instituições e agentes no processo de seleção e promoção <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s (Vianna et<br />
allii, 1997: 289).<br />
30 As porcentagens obti<strong>da</strong>s relativas a esse índice foram: 19% se disseram muito pouco orienta<strong>do</strong>s pela idéia de soberania; 22,9% pouco orienta<strong>do</strong>s; 31,7%<br />
orienta<strong>do</strong>s; e 26,6% muito orienta<strong>do</strong>s (Vianna et alli, 1997: 292).<br />
31 Intervenção alta, intervenção baixa e neutrali<strong>da</strong>de foram indica<strong>do</strong>res construí<strong>do</strong>s para medir a atitude <strong>do</strong>s juízes em face <strong>da</strong> intervenção <strong>do</strong> Judiciário.<br />
Os juízes classifica<strong>do</strong>s no indica<strong>do</strong>r intervenção alta são aqueles que se aproximam de uma perspectiva oposta à noção de neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Poder Judiciário<br />
e à ativi<strong>da</strong>de judicante basea<strong>da</strong> no modelo <strong>da</strong> certeza jurídica (intervenção <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> solicita<strong>do</strong> pelas partes <strong>do</strong> conflito, em torno de um bem<br />
juridicamente disciplina<strong>do</strong> e a neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário) (Vianna et allii, 1997: 261-262).<br />
39
40<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
pício <strong>ao</strong>s negócios e à expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />
Para isso, o Esta<strong>do</strong> deve basear-se em <strong>do</strong>is<br />
pilares: o respeito <strong>ao</strong>s contratos e a proteção<br />
à proprie<strong>da</strong>de. Os merca<strong>do</strong>s se sustentam<br />
em alicerces institucionais, que por sua<br />
vez se assentam sobre valores (Banco Mun-<br />
dial,1997:4).<br />
Quanto <strong>ao</strong> respeito <strong>ao</strong>s contratos, as insti-<br />
tuições podem eventualmente interpretar esse<br />
princípio de forma mais ou menos ampla,<br />
corrigin<strong>do</strong> distorções nos merca<strong>do</strong>s para fins<br />
públicos de eqüi<strong>da</strong>de. Porém, não se admite,<br />
no Esta<strong>do</strong> de direito, qualquer interferência<br />
no outro pilar – a proteção à proprie<strong>da</strong>de pri-<br />
va<strong>da</strong> (Banco Mundial, 2002:99).<br />
A proteção contra o roubo, a violência,<br />
os atos pre<strong>da</strong>tórios e os atos arbitrários <strong>do</strong><br />
Governo é considera<strong>da</strong> pelo Banco Mundial<br />
a condição mais importante para a proteção<br />
<strong>do</strong>s direitos de proprie<strong>da</strong>de. Tal condição,<br />
naturalmente, depende de um Judiciário<br />
eficaz. Esse Poder é um <strong>do</strong>s agentes <strong>do</strong> com-<br />
bate à impuni<strong>da</strong>de e impõe limites à ação<br />
<strong>do</strong> Executivo e <strong>do</strong> Legislativo.<br />
O IDESP entrevistou, em 2000, 738<br />
juízes de primeira e segun<strong>da</strong> instâncias <strong>do</strong>s<br />
diversos ramos <strong>da</strong> Justiça em 11 Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
Federação (Sadek, 2001: 2). Nessa investi-<br />
gação, os magistra<strong>do</strong>s foram confronta<strong>do</strong>s<br />
com o seguinte dilema:<br />
Na aplicação <strong>da</strong> lei, existe freqüentemente<br />
uma tensão entre contratos, que precisam<br />
ser observa<strong>do</strong>s, e os interesses de segmentos<br />
sociais menos privilegia<strong>do</strong>s, que precisam<br />
ser atendi<strong>do</strong>s. Consideran<strong>do</strong> o conflito que<br />
surge nesses casos entre esses <strong>do</strong>is objetivos,<br />
duas posições opostas têm si<strong>do</strong> defendi<strong>da</strong>s:<br />
A. Os contratos devem ser sempre respeita-<br />
<strong>do</strong>s, independentemente de suas repercus-<br />
sões sociais;<br />
B. O juiz tem um papel social a cumprir, e<br />
a busca <strong>da</strong> justiça social justifica decisões<br />
que violem os contratos. Com qual <strong>da</strong>s<br />
duas posições o (a) senhor (a) concor<strong>da</strong><br />
mais? (Pinheiro, 2001a: 10)<br />
Os magistra<strong>do</strong>s expressaram que o<br />
papel social <strong>do</strong> juiz é preponderante, e as<br />
decisões devem privilegiar a justiça social<br />
em detrimento <strong>do</strong>s contratos (73,1%). Se<br />
os magistra<strong>do</strong>s estão diante <strong>da</strong>s opções<br />
“respeitar sempre os contratos indepen-<br />
dentemente de suas repercursões sociais”<br />
ou “tomar decisões que violem os contra-<br />
tos na busca <strong>da</strong> justiça social”, a tendên-<br />
cia será “desrespeitar” os contratos. Con-<br />
tu<strong>do</strong>, nota Pinheiro que o posicionamento<br />
<strong>do</strong>s juízes varia conforme a área a que se<br />
refere a causa, sen<strong>do</strong> mais forte em dis-<br />
putas envolven<strong>do</strong> direitos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r,<br />
meio ambiente e disputas trabalhistas e<br />
previdenciárias. Em causas comerciais, os<br />
magistra<strong>do</strong>s posicionaram-se majoritaria-<br />
mente em favor <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de respei-<br />
tar contratos (Pinheiro, 2001a: 10).<br />
A oposição entre a visão <strong>do</strong>s magistra-<br />
<strong>do</strong>s e a <strong>do</strong>s agentes econômicos, em prin-<br />
cípio, pode estar ancora<strong>da</strong> em sistemas<br />
distintos: os primeiros se baseiam no Es-<br />
ta<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> passo que os segun<strong>do</strong>s se assen-<br />
tam no Merca<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, em uma época<br />
imersa no processo de globalização, as<br />
visões <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s economistas<br />
não serão as únicas em oposição. O mais<br />
importante neste contexto é a permanên-<br />
cia <strong>do</strong> diálogo entre esses <strong>do</strong>is segmentos<br />
sociais na esfera nacional para que as<br />
instituições possam ser aprimora<strong>da</strong>s e os<br />
efeitos nocivos <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> possam ser<br />
corrigi<strong>do</strong>s.
Os valores<br />
eficiência,<br />
acessibili<strong>da</strong>de,<br />
transparência<br />
e credibili<strong>da</strong>de<br />
norteiam a<br />
ação <strong>do</strong>s<br />
magistra<strong>do</strong>s.<br />
Considerações finais<br />
Por meio <strong>da</strong> “ativi<strong>da</strong>de paranormativa”, o<br />
Banco Mundial procura construir consensos<br />
internacionais que modifiquem o conjunto<br />
de valores sobre os quais se baseiam a ativi-<br />
<strong>da</strong>de processual e a produção de sentenças.<br />
O organismo atua, nesse contexto, como<br />
coadjuvante <strong>do</strong> processo de reforma <strong>do</strong> Ju-<br />
diciário, como parte <strong>da</strong> reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
estimulan<strong>do</strong>, com sua expertise, a constru-<br />
ção de um consenso sobre a necessi<strong>da</strong>de de<br />
mu<strong>da</strong>nças de méto<strong>do</strong>s, forma e de fun<strong>do</strong> no<br />
sistema judicial.<br />
As recomen<strong>da</strong>ções <strong>do</strong>s Relatórios para<br />
o Judiciário devem ser avalia<strong>da</strong>s em termos<br />
internos (administração e condução <strong>da</strong> má-<br />
quina burocrática judicial) – mais evidente<br />
no relatório de 2002 – e externos (reflexo de<br />
suas decisões no merca<strong>do</strong>) – realça<strong>do</strong> no re-<br />
latório de 1997. Ao buscar a modernização<br />
<strong>da</strong> administração <strong>do</strong> processo – recomen<strong>da</strong>-<br />
ção de ação interna –, a instituição judicial<br />
também produziria, na visão <strong>do</strong> Banco,<br />
conseqüências externas, como a diminuição<br />
<strong>do</strong> tempo de demora na solução <strong>do</strong>s litígios<br />
e maior confiabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema, benefi-<br />
cian<strong>do</strong> seus usuários e a socie<strong>da</strong>de em geral<br />
(por exemplo, atrain<strong>do</strong> investimentos).<br />
A política de imagem de demonstrar<br />
que o Judiciário em geral, e os Tribunais<br />
Superiores em particular, estão-se moder-<br />
nizan<strong>do</strong> parte <strong>do</strong>s própios juízes. Os juízes<br />
têm emiti<strong>do</strong> opiniões por meio de artigos,<br />
notifican<strong>do</strong> sua atuação; os Tribunais têm<br />
utiliza<strong>do</strong> suas assessorias de imprensa ou de<br />
comunicação social.<br />
Os valores eficiência, acessibili<strong>da</strong>de,<br />
transparência e credibili<strong>da</strong>de norteiam a ação<br />
<strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s. O Judiciário tem desenvol-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
vi<strong>do</strong> uma política de imagem institucional,<br />
capacita<strong>do</strong> seus quadros e investi<strong>do</strong> em novas<br />
tecnologias para a administração processual<br />
e o fornecimento de informações processuais,<br />
incluin<strong>do</strong> ácordãos e jurisprudência, a fim<br />
de demonstrar que se está modernizan<strong>do</strong>. As<br />
informações divulga<strong>da</strong>s também denotam a<br />
valorização <strong>da</strong> transparência, contribuin<strong>do</strong><br />
para a credibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> instituição. Há ain<strong>da</strong><br />
um ativismo <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s na introdução<br />
de mecanismos de acesso à justiça, que res-<br />
ponde tanto a motivos de afirmação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>-<br />
<strong>da</strong>nia e <strong>da</strong> democracia quanto <strong>ao</strong> interesse de<br />
preservar seu poder de juris dictio frente <strong>ao</strong>s<br />
MARD concorrentes <strong>do</strong> Judiciário.<br />
A preocupação <strong>do</strong> Judiciário brasileiro<br />
com os valores de eficiência, transparência,<br />
credibili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de não está rela-<br />
ciona<strong>da</strong> diretamente com as recomen<strong>da</strong>ções<br />
<strong>do</strong> Banco Mundial, que a maioria <strong>do</strong>s juízes<br />
desconhece. Muitos <strong>do</strong>s valores defendi<strong>do</strong>s<br />
pelo Banco (eficiência, independência,<br />
transparência, acessibili<strong>da</strong>de) são a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />
pelo Judiciário brasileiro, que busca apri-<br />
morar-se institucionalmente, até mesmo<br />
sugerin<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Legislativo elementos <strong>da</strong> Re-<br />
forma <strong>do</strong> Poder Judiciário.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, representantes <strong>do</strong>s<br />
segmentos <strong>da</strong> base <strong>do</strong> Judiciário (<strong>AMB</strong>,<br />
AJUFE) consideram que a a<strong>do</strong>ção de alguns<br />
aspectos convergentes com as recomen<strong>da</strong>-<br />
ções <strong>do</strong> Banco Mundial caracterizariam<br />
“ingerência interna” desse organismo in-<br />
ternacional. Detecta-se, principalmente,<br />
uma tendência de relativo afastamento <strong>do</strong>s<br />
magistra<strong>do</strong>s brasileiros em relação <strong>ao</strong>s pro-<br />
pósitos <strong>do</strong> Banco Mundial em matéria de<br />
previsibili<strong>da</strong>de e respeito <strong>ao</strong>s contratos. Em<br />
contraposição, detectam-se críticas à “poli-<br />
tização” <strong>da</strong>s sentenças, veicula<strong>da</strong>s através<br />
41
42<br />
OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />
MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />
<strong>da</strong> imprensa por parte de agentes econômi-<br />
cos nacionais com conexões globais.<br />
O Banco Mundial valoriza o merca<strong>do</strong><br />
como motor <strong>do</strong> desenvolvimento sem men-<br />
cionar a democracia. Se o modelo proposto<br />
pelo Banco fosse efetivamente implementa-<br />
<strong>do</strong>, os ci<strong>da</strong>dãos, usuários potenciais <strong>do</strong> Ju-<br />
diciário, muito provavelmente pouco se im-<br />
portariam se os magistra<strong>do</strong>s atuassem como<br />
“juízes para merca<strong>do</strong>s”, segun<strong>do</strong> a lógica <strong>do</strong><br />
organismo internacional. Os ci<strong>da</strong>dãos conta-<br />
riam com uma instituição próxima de suas<br />
necessi<strong>da</strong>des. Contu<strong>do</strong>, em um contexto de<br />
desigual<strong>da</strong>des econômicas e sociais, marca-<br />
<strong>da</strong>s por forças de merca<strong>do</strong> que trazem desen-<br />
Bibliografia<br />
volvimento como também exclusão, é impor-<br />
tante que os ci<strong>da</strong>dãos possuam um Judiciário<br />
pauta<strong>do</strong> pelos valores descritos neste artigo,<br />
não simplesmente para o desenvolvimento<br />
<strong>da</strong> economia de merca<strong>do</strong>, mas sobretu<strong>do</strong><br />
para a afirmação <strong>da</strong> democracia.<br />
Ana Paula Lucena Silva Candeas é mestre<br />
em Relações Internacionais pelo Instituto<br />
de Ciência Política e Relações Internacio-<br />
nais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília e pós-gra-<br />
dua<strong>da</strong> em Direito Constitucional francês e<br />
Direito Internacional Público pela Univer-<br />
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_____________________________. Corpo e Alma <strong>da</strong> Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro,<br />
Editora Revan, 1997, 334 p.<br />
43
AReforma<br />
Trabalhista<br />
Instituí<strong>do</strong> o Fórum Nacional <strong>do</strong><br />
Trabalho pelo Presidente <strong>da</strong> República,<br />
pretende o governo discutir com as<br />
enti<strong>da</strong>des sindicais <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e<br />
<strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>res mu<strong>da</strong>nças na legislação<br />
trabalhista, forman<strong>do</strong> propostas a serem<br />
encaminha<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> Congresso Nacional.<br />
Anuncia-se, precipuamente, que as normas<br />
trabalhistas encontram-se ultrapassa<strong>da</strong>s e<br />
por essa razão merecem sofrer processo de<br />
alteração.<br />
Há setores que simplesmente pregam<br />
o fim <strong>do</strong> direito legisla<strong>do</strong> e <strong>da</strong>s normas<br />
protetoras <strong>da</strong> força-de-trabalho, sob o<br />
argumento <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de a<strong>da</strong>ptação <strong>do</strong><br />
país à nova reali<strong>da</strong>de mundial <strong>da</strong>s relações<br />
entre o capital e o trabalho e <strong>ao</strong>s meios<br />
modernos de produção alcança<strong>do</strong>s pela<br />
socie<strong>da</strong>de capitalista nos últimos anos.<br />
Antes de analisar o mérito desta<br />
percuciente questão, devo relatar o senti<strong>do</strong><br />
histórico <strong>do</strong> trabalho, bem como a razão de<br />
ser <strong>do</strong> Direito <strong>do</strong> Trabalho e <strong>do</strong> princípio<br />
básico que o orienta, qual seja, o tutelar.<br />
Grijalbo Fernandes Coutinho<br />
Desde que o homem passou a viver em<br />
socie<strong>da</strong>de, o trabalho é talvez o componente<br />
mais importante nas relações entre<br />
tribos e classes, elemento que distingue<br />
a posição social, econômica e política de<br />
seus membros. Nas épocas <strong>da</strong>s primeiras<br />
tribos, conhecia-se a forma de trabalho<br />
determina<strong>da</strong> pela i<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s pessoas, onde<br />
os mais velhos, cumpri<strong>do</strong> o ritual anterior,<br />
usufruíam <strong>da</strong> força-de-trabalho <strong>do</strong>s mais<br />
jovens, sem que deste fato resultasse<br />
qualquer exploração econômica, mas apenas<br />
a observância de uma rotina opressora<br />
determina<strong>da</strong> pelo fator tempo. Há também<br />
a época <strong>do</strong> comunismo primitivo, com a<br />
divisão de to<strong>da</strong> a produção entre as pessoas,<br />
sem nenhuma exploração econômica.<br />
A primeira efetiva exploração <strong>do</strong><br />
trabalho em larga escala ocorre na<br />
socie<strong>da</strong>de escravista, através <strong>da</strong> qual o<br />
homem sujeita-se à mais degra<strong>da</strong>nte<br />
condição de vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> ser humano, seja pela<br />
coerção física, seja pela coerção econômica.<br />
É interessante notar que na decanta<strong>da</strong><br />
45
46<br />
A REFORMA TRABALHISTA<br />
Democracia Direta Ateniense de poucos<br />
séculos antes de Cristo, o serviço escravo,<br />
fruto <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s inimigos de guerra<br />
e <strong>do</strong> empobrecimento de pessoas antes<br />
considera<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>dãs, era encara<strong>do</strong> com<br />
extrema naturali<strong>da</strong>de e até indispensável<br />
para que os ci<strong>da</strong>dãos cui<strong>da</strong>ssem de tarefas<br />
outras menos desgastantes e mais volta<strong>da</strong>s<br />
para o desenvolvimento <strong>do</strong> intelecto.<br />
O filósofo Sócrates pôs o de<strong>do</strong> em várias<br />
feri<strong>da</strong>s <strong>da</strong> democracia decadente, crítica que<br />
o levou à pena de morte, mas não se rebelou<br />
contra a escravidão reinante, apesar de consi-<br />
derar que to<strong>da</strong>s as pessoas são capazes de en-<br />
tender as ver<strong>da</strong>des filosóficas, bastan<strong>do</strong> para<br />
isso que usem a razão e de que o escravo ti-<br />
nha a mesma razão de um ci<strong>da</strong>dão livre. Em<br />
Sólon, há introdução de leis que estabelecem<br />
limites na exploração <strong>do</strong> trabalho escravo,<br />
com a eliminação <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> patrono sobre<br />
os familiares <strong>do</strong>s clientes e de suas terras.<br />
A socie<strong>da</strong>de romana, herdeira <strong>da</strong> cultu-<br />
ra helenística, valeu-se <strong>do</strong> trabalho escravo<br />
para consoli<strong>da</strong>r o império que <strong>do</strong>minou boa<br />
parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, inclusive no perío<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
República. Logo, a História <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de<br />
está, lamentavelmente, entrelaça<strong>da</strong> com os<br />
serviços força<strong>do</strong>s.<br />
Nos modelos seguintes de socie<strong>da</strong>de, o<br />
trabalho humano continuou a ser explora-<br />
<strong>do</strong>, mas com a pre<strong>do</strong>minância de caracterís-<br />
ticas distintas <strong>da</strong> escravidão. O feu<strong>da</strong>lismo<br />
notabilizou-se pela submissão econômica<br />
<strong>do</strong>s vassalos <strong>ao</strong>s senhores proprietários de<br />
terras, estes apoia<strong>do</strong>s pela nobreza.<br />
Outras formas de trabalho surgiram<br />
com as cruza<strong>da</strong>s, expandin<strong>do</strong>-se o comércio<br />
e forman<strong>do</strong>-se uma nova classe detentora<br />
<strong>do</strong> poder econômico em substituição <strong>ao</strong><br />
<strong>do</strong>mínio até então pertencente <strong>ao</strong>s senhores<br />
feu<strong>da</strong>is: a burguesia. Os iluministas perce-<br />
beram que havia impossibili<strong>da</strong>de de uma<br />
convivência pacífica entre a ordem política<br />
<strong>do</strong>s reis e o regime capitalista <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />
individual, inclusive de trabalho, materia-<br />
lizan<strong>do</strong> essa incongruência na famosa En-<br />
ciclopédia, cujo resulta<strong>do</strong> final foi o acon-<br />
tecimento de uma <strong>da</strong>s maiores revoluções<br />
políticas de to<strong>do</strong>s os tempos: a francesa.<br />
A revolução industrial na Inglaterra,<br />
no século XVIII, consoli<strong>da</strong> o capitalismo de<br />
uma outra fase, revelan<strong>do</strong>, porém, formas<br />
de exploração de trabalho cruéis, mediante<br />
jorna<strong>da</strong>s longas de até 16 horas por dia, tra-<br />
balho de menores e de mulheres, sem qual-<br />
quer proteção à saúde ou social. As reações<br />
propiciaram o surgimento <strong>da</strong>s primeiras<br />
legislações de proteção <strong>ao</strong> trabalho. Marx,<br />
o maior estudioso <strong>do</strong> capitalismo e também<br />
o mais crítico, vislumbrava no excedente<br />
não remunera<strong>do</strong> <strong>da</strong> força-de-trabalho, pelos<br />
patrões, o que denominou de mais-valia,<br />
to<strong>da</strong> a base de sustentação deste regime, a<br />
ser enfrenta<strong>do</strong> na luta pelo fim <strong>da</strong>s classes<br />
sociais e instauração <strong>do</strong> socialismo, estágio<br />
para a socie<strong>da</strong>de comunista.<br />
O nascimento <strong>do</strong> Direito <strong>do</strong> Trabalho<br />
é, pois, fruto <strong>da</strong> reação <strong>da</strong> classe operária<br />
à selvageria <strong>do</strong> capitalismo, como também<br />
atende, em parte, <strong>ao</strong>s anseios <strong>da</strong> burguesia<br />
amedronta<strong>da</strong> com o comunismo que ron<strong>da</strong>-<br />
va a Europa.<br />
No Brasil, o fenômeno retar<strong>do</strong>u <strong>da</strong><strong>do</strong> o<br />
atraso de sua economia, volta<strong>da</strong> para o cam-<br />
po, com a utilização <strong>da</strong> mão-de-obra escrava<br />
durante mais de três séculos. As primeiras<br />
leis de proteção social surgiram no final <strong>do</strong><br />
século XIX e no início <strong>do</strong> século XX, que<br />
foram depois reuni<strong>da</strong>s na denomina<strong>da</strong> Con-<br />
soli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s Leis <strong>do</strong> Trabalho, em 1943.
É forçoso<br />
concluir que<br />
o Esta<strong>do</strong><br />
nunca agiu por<br />
vontade própria<br />
para propiciar<br />
cenário<br />
favorável <strong>ao</strong>s<br />
trabalha<strong>do</strong>res.<br />
É forçoso concluir que o Esta<strong>do</strong>, este<br />
ser abstrato, mas que dispõe <strong>da</strong> força para<br />
criar e fazer valer as normas jurídicas, nun-<br />
ca agiu por vontade própria para propiciar<br />
cenário favorável <strong>ao</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, proce-<br />
den<strong>do</strong> de um ou outro mo<strong>do</strong> pela pressão<br />
política legitimamente exerci<strong>da</strong> por tais<br />
atores sociais. Não foi diferente no Brasil,<br />
em que pese o equívoco de se atribuir a Ge-<br />
túlio Vargas a responsabili<strong>da</strong>de pelas con-<br />
quistas trabalhistas postas na CLT.<br />
Deveria o Esta<strong>do</strong> não apenas zelar<br />
pelo respeito <strong>ao</strong>s direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>-<br />
res previstos na Constituição Federal e na<br />
legislação ordinária, como também lançar<br />
mão de instrumentos hábeis para ampliá-<br />
los, de mo<strong>do</strong> a reduzir as desigual<strong>da</strong>des<br />
sociais. Em senti<strong>do</strong> oposto, tem si<strong>do</strong> o Esta-<br />
<strong>do</strong>, através de seus representantes legais, o<br />
responsável pela instituição de políticas que<br />
eliminam direitos e garantias históricas.<br />
Além deste fato, várias são as normas de<br />
proteção <strong>ao</strong> trabalha<strong>do</strong>r descumpri<strong>da</strong>s ou<br />
não implementa<strong>da</strong>s pela omissão <strong>do</strong>s pode-<br />
res públicos, inclusive pelo Judiciário.<br />
O discurso atual é no senti<strong>do</strong> de que <strong>ao</strong><br />
invés <strong>do</strong> respeito <strong>ao</strong> direito legisla<strong>do</strong> <strong>do</strong> tra-<br />
balho, deve se buscar a flexibilização a fim<br />
de permitir uma relação ``mais moderna``<br />
entre o capital e o trabalho, de preferência,<br />
sem nenhuma intervenção estatal, hipótese<br />
capaz de lançar novos postos de trabalho.<br />
O Governo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so<br />
aprofun<strong>do</strong>u a política neoliberal de desre-<br />
gulamentação <strong>da</strong>s relações de trabalho, <strong>ao</strong><br />
ve<strong>da</strong>r a concessão de reajuste remuneratório<br />
com base na inflação, <strong>ao</strong> criar o contrato de<br />
trabalho a tempo parcial e o banco de ho-<br />
ras, <strong>ao</strong> implantar a prescrição parcial para<br />
o trabalha<strong>do</strong>r rural, além de tantas outras<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
medi<strong>da</strong>s que diminuíram direitos <strong>do</strong>s em-<br />
prega<strong>do</strong>s. Tentou, no último momento, apli-<br />
car a mais dura pena com a prevalência <strong>do</strong><br />
negocia<strong>do</strong> sobre o legisla<strong>do</strong>, não alcança<strong>da</strong><br />
pela reação de várias enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>-<br />
de civil organiza<strong>da</strong>, inclusive a Anamatra.<br />
No setor público, inúmeras conquistas <strong>do</strong>s<br />
servi<strong>do</strong>res desapareceram após a sucessiva<br />
edição de medi<strong>da</strong>s provisórias que altera-<br />
ram dispositivos <strong>da</strong> lei 8.112/90.<br />
Na<strong>da</strong>, porém, é isola<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> reflexo de<br />
um contexto mundial perverso e falacioso que<br />
recomen<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nças na legislação trabalhista.<br />
É inegável que o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> bem estar<br />
social sofreu abalo a partir <strong>do</strong>s anos 70, com<br />
a crise <strong>do</strong> petróleo de 1973 e <strong>do</strong> próprio capi-<br />
talismo de forma mais constante, além <strong>da</strong> al-<br />
teração <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de produção, <strong>do</strong> enfraque-<br />
cimento <strong>do</strong> movimento sindical e <strong>do</strong> fim <strong>do</strong><br />
denomina<strong>do</strong> socialismo <strong>do</strong> Leste Europeu,<br />
tu<strong>do</strong> a autorizar o crescimento <strong>da</strong>s idéias<br />
neoliberais numa espécie de retorno, no que<br />
diz respeito à relação capital X trabalho, <strong>ao</strong><br />
perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> início <strong>da</strong> revolução industrial.<br />
A revolução tecnológica verifica<strong>da</strong> nos<br />
últimos anos, especialmente na área de in-<br />
formática, efetivamente, reduziu algumas<br />
tarefas laborais e retirou muitos postos de<br />
trabalho, avanço que deveria ser comparti-<br />
lha<strong>do</strong> com os emprega<strong>do</strong>s e não apenas para<br />
solidificar a sua apropriação pelo capital.<br />
Não obstante a mu<strong>da</strong>nça de rumo no<br />
mo<strong>do</strong> de produção capitalista, de um mo-<br />
delo fordista-taylorista para o digital-toyo-<br />
tista, o trabalho vivo não desaparecerá, na<br />
precisa lição <strong>do</strong> professor Ricar<strong>do</strong> Antunes,<br />
pois sempre haverá necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> esforço<br />
humano, até mesmo para o funcionamento<br />
<strong>da</strong>s máquinas que reduzem as ativi<strong>da</strong>des<br />
laborais. De um modelo que produzia em<br />
47
48<br />
A REFORMA TRABALHISTA<br />
grande quanti<strong>da</strong>de, passamos a outro diri-<br />
gi<strong>do</strong> a setores específicos e apenas para o<br />
consumo imediato, mediante alta tecnolo-<br />
gia que reduz a utilização <strong>da</strong> mão-de-obra,<br />
com o enfraquecimento sindical pela ter-<br />
ceirização, pelo trabalho de equipe e pelos<br />
programas de quali<strong>da</strong>de total instala<strong>do</strong>s em<br />
pequenos núcleos para legitimar a grande<br />
massa de desemprega<strong>do</strong>s. Desprestigiar<br />
exagera<strong>da</strong>mente a força-de-trabalho, sobre-<br />
tu<strong>do</strong> num país de extremas desigual<strong>da</strong>des e<br />
de eleva<strong>do</strong>s índices de desemprego, é fazer<br />
o caminho inverso <strong>do</strong>s atentos capitalistas<br />
que admitiram a existência de leis traba-<br />
lhistas como forma de salvar a essência: o<br />
regime econômico.<br />
Quero dizer, assim, que as mu<strong>da</strong>nças<br />
verifica<strong>da</strong>s não romperam com o paradigma<br />
justifica<strong>do</strong>r <strong>da</strong> legislação trabalhista, qual<br />
seja, o <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de de forças entre o<br />
capital e o trabalho, <strong>da</strong>í porque a exigência<br />
<strong>do</strong> princípio tutelar <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> trabalho<br />
para proteger o emprega<strong>do</strong>. Apesar <strong>do</strong>s<br />
anos, continua atual a definição <strong>do</strong> francês<br />
Lacor<strong>da</strong>ire, <strong>ao</strong> declarar que “entre o forte e<br />
o fraco, entre o rico e o pobre, é a liber<strong>da</strong>de<br />
que escraviza, é a lei que liberta”.<br />
Não estou propon<strong>do</strong> a postura de sim-<br />
ples manutenção <strong>do</strong> direito positivo vigente<br />
que, muitas vezes, não se aplica a uma par-<br />
cela significativa <strong>da</strong> massa trabalha<strong>do</strong>ra. Há<br />
necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> aprimoramento <strong>da</strong>s relações<br />
sociais para tornar o Direito <strong>do</strong> Trabalho<br />
ver<strong>da</strong>deiro instrumento de emancipação <strong>do</strong><br />
destinatário <strong>da</strong> norma, preservan<strong>do</strong> as suas<br />
bases principiológicas, especialmente a <strong>do</strong><br />
princípio de proteção <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, célula<br />
matriz <strong>da</strong> intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nas rela-<br />
ções de trabalho.<br />
É imprescindível, nesse cenário, con-<br />
sagrar a autonomia priva<strong>da</strong> coletiva como<br />
preceito de emancipação social <strong>do</strong>s traba-<br />
lha<strong>do</strong>res e não como instrumento de pre-<br />
carização de seus direitos, uma vez que o<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> negociação não pode significar<br />
a per<strong>da</strong> <strong>da</strong>s garantias legais e históricas <strong>do</strong>s<br />
ci<strong>da</strong>dãos brasileiros, resultantes de mui-<br />
tas lágrimas e sangue e que, por isso, não<br />
podem ser reduzi<strong>da</strong>s a um singelo anacro-<br />
nismo. A plena liber<strong>da</strong>de sindical requer<br />
o fim <strong>do</strong> imposto compulsório, mas sem<br />
olvi<strong>da</strong>r a necessi<strong>da</strong>de de se repensar os me-<br />
canismos de financiamento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />
de resistência <strong>da</strong>s categorias profissionais,<br />
além <strong>da</strong> legitimação processual <strong>da</strong>s centrais<br />
sindicais para o ajuizamento de ações civis<br />
públicas e coletivas em geral, para tratar de<br />
interesses individuais homogêneos, difusos<br />
e coletivos, com a consagração <strong>da</strong> substitui-<br />
ção processual ampla.<br />
Preocupa-me quan<strong>do</strong> o Presidente Lula<br />
sinaliza que pode propor tratamento dife-<br />
rencia<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ponto de vista legal, <strong>ao</strong>s em-<br />
prega<strong>do</strong>s <strong>da</strong> pequenas e médias empresas<br />
em relação <strong>ao</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s grandes<br />
empresas, mediante o que se convencionou<br />
denominar de “simples trabalhista”, pre-<br />
carização de direitos que a magistratura<br />
trabalhista rejeita. Qualquer distinção entre<br />
emprega<strong>do</strong>res deve estar circunscrita <strong>ao</strong><br />
campo tributário e <strong>ao</strong> Sistema “S”. Não<br />
pode se cogitar de haver no Brasil remune-<br />
ração adequa<strong>da</strong> <strong>da</strong> mão-de-obra ou de que<br />
esta é gera<strong>do</strong>ra de desemprego. Não deve o<br />
Esta<strong>do</strong> patrocinar tal agressão.Os emprega-<br />
<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s grandes empresas devem alcançar<br />
melhores condições através <strong>da</strong> negociação<br />
coletiva, com o fortalecimento <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s<br />
sindicatos, respeitan<strong>do</strong> o mínimo previsto<br />
em lei para quaisquer trabalha<strong>do</strong>res.
Para enfrentar a<br />
nova reali<strong>da</strong>de,<br />
é preciso discutir<br />
a redução <strong>da</strong><br />
jorna<strong>da</strong> de<br />
trabalho semanal,<br />
sem a diminuição<br />
remuneratória,<br />
ve<strong>da</strong>r a realização<br />
de horas extras<br />
e instituir política<br />
básica de<br />
desenvolvimento<br />
econômico<br />
Esperamos, assim, que <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />
encaminhamento <strong>da</strong><strong>do</strong> pelo Governo Lula<br />
na reforma <strong>da</strong> Previdência, onde fez opção<br />
pelo desmonte <strong>do</strong> serviço público mediante<br />
a privatização <strong>do</strong> sistema em detrimento <strong>do</strong>s<br />
interesses <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res, tenha<br />
ele a percepção de quanto mais se concede <strong>ao</strong>s<br />
grupos financeiros, maior a volúpia em acabar<br />
com os direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />
Para enfrentar a nova reali<strong>da</strong>de, é preciso<br />
discutir a redução <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> de trabalho se-<br />
manal, sem a diminuição remuneratória, ve<strong>da</strong>r<br />
a realização de horas extras e instituir política<br />
básica de desenvolvimento econômico que<br />
privilegie, sem precarização <strong>da</strong> tutela existen-<br />
te, a criação de empregos e de programas de<br />
educação e treinamento <strong>da</strong> mão-de-obra, com<br />
a manutenção <strong>do</strong> sistema de proteção <strong>ao</strong> tra-<br />
balho integra<strong>do</strong> <strong>da</strong>s normas protetoras gerais e<br />
irrenunciáveis conti<strong>da</strong>s nas convenções <strong>da</strong> OIT<br />
e na Constituição <strong>da</strong> República.<br />
Tratan<strong>do</strong> especificamente <strong>do</strong> que já se<br />
encontra em vigor, tenho que o Esta<strong>do</strong> possui<br />
a obrigação de <strong>da</strong>r efetivi<strong>da</strong>de <strong>ao</strong>s direitos<br />
previstos na Constituição Federal e nas de-<br />
mais leis. A regulamentação <strong>da</strong> proteção <strong>ao</strong><br />
emprego contra a despedi<strong>da</strong> arbitrária pode-<br />
ria se <strong>da</strong>r através <strong>do</strong> encaminhamento e apro-<br />
vação de projeto de lei ou ain<strong>da</strong>, por meio <strong>do</strong><br />
cancelamento <strong>da</strong> denúncia <strong>da</strong> Convenção N°<br />
158, <strong>da</strong> OIT, tornan<strong>do</strong> mais democrática a re-<br />
lação entre o capital e o trabalho. Não pode o<br />
Esta<strong>do</strong> fazer letra morta o conceito de salário<br />
mínimo defini<strong>do</strong> pelo inciso IV, d artigo 7°,<br />
<strong>da</strong> CF, fixan<strong>do</strong>-o, pois, em valor que aten<strong>da</strong> as<br />
necessi<strong>da</strong>des ali previstas.<br />
A precarização tem si<strong>do</strong> tão intensa que<br />
mesmo sem alcançar pleno êxito no plano<br />
legislativo, estabelece práticas proibi<strong>da</strong>s por<br />
lei e que estão a deman<strong>da</strong>r atuação firme <strong>do</strong><br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Esta<strong>do</strong> para coibir fraudes no cooperativis-<br />
mo, nas comissões de conciliação de prévia<br />
e na terceirização desenfrea<strong>da</strong>. A marca<br />
maior desta ousadia exterioriza-se na exis-<br />
tência de trabalho escravo em algumas regi-<br />
ões e na utilização <strong>da</strong> mão-de-obra infantil,<br />
sem que o poder público forneça meios<br />
suficientes para enfrentar quadro tão dra-<br />
mático nas relações de trabalho no Brasil,<br />
sequer oferecen<strong>do</strong> segurança <strong>ao</strong>s trabalha-<br />
<strong>do</strong>res, padres, auditores fiscais <strong>do</strong> trabalho,<br />
juizes <strong>do</strong> trabalho, membros <strong>do</strong> MP e outros<br />
agentes públicos ameaça<strong>do</strong>s pela postura de<br />
combate <strong>ao</strong> trabalho escravo.<br />
O Esta<strong>do</strong>, que tem as suas ações deter-<br />
mina<strong>da</strong>s pelos homens e pelos interesses de<br />
grupos na socie<strong>da</strong>de, portanto, na<strong>da</strong> tem de<br />
neutro quanto as suas opções, como sem-<br />
pre aconteceu na História <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />
será movi<strong>do</strong> para garantir os direitos <strong>do</strong>s<br />
trabalha<strong>do</strong>res na mesma veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ca-<br />
paci<strong>da</strong>de de organização <strong>do</strong>s segmentos <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de que pretendem preservá-los.<br />
A reforma trabalhista terá importância<br />
no contexto atual se souber preservar as con-<br />
quistas históricas <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res previstas<br />
nos diversos instrumentos normativos e tor-<br />
nar mais democrática a relação entre o capi-<br />
tal e o trabalho. A sua principal função, no<br />
entanto, será a de mu<strong>da</strong>r conceitos equivoca-<br />
<strong>do</strong>s sobre o custo <strong>do</strong> trabalho e conscientizar<br />
os setores empresariais que é imprescindível<br />
distribuir a ren<strong>da</strong> hoje extremamente con-<br />
centra<strong>da</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> digni<strong>da</strong>de às pessoas e per-<br />
mitin<strong>do</strong> a existência de consumi<strong>do</strong>res, sob<br />
pena <strong>do</strong> colapso <strong>do</strong> próprio sistema.<br />
Grijalbo F. Coutinho<br />
Presidente <strong>da</strong> Anamatra.<br />
49
Independencia<br />
El tema de la independencia del Poder<br />
Judicial debe ser enfoca<strong>do</strong> desde una<br />
<strong>do</strong>ble perspectiva: como independencia<br />
institucional y como independencia<br />
funcional.<br />
Independencia institucional<br />
Cuan<strong>do</strong> hablamos de independencia<br />
institucional hacemos referencia al Poder<br />
Judicial como órgano-institución, como un<br />
poder en relación con los otros poderes que<br />
ejercen las diversas funciones del poder<br />
político en el Esta<strong>do</strong>.<br />
La vinculación del Poder Judicial<br />
con el Poder Ejecutivo, con el Poder<br />
Legislativo, con otros órganos de gobierno,<br />
es lo que vemos al hablar de independencia<br />
institucional del Poder Judicial.<br />
Al respecto, M. Riera Hunter afirma<br />
cuanto sigue:<br />
Luis Lezcano Claude<br />
* Conferencia pronuncia<strong>da</strong> en Chihuahua, México, el 4 de abril de 2003, en ocasión de la III Asamblea General de la Federación Latinoamericana de<br />
Magistra<strong>do</strong>s (FLAM).<br />
del Judicial<br />
Independencia del Poder Judicial*<br />
El fun<strong>da</strong>mento de la independencia<br />
institucional del Poder Judicial radica<br />
indefectiblemente en el principio de<br />
división o separación de Poderes. En<br />
reali<strong>da</strong>d, no existe una división de poderes<br />
puesto que el poder del Esta<strong>do</strong> es uno; lo<br />
que existe es una división, separación o<br />
reparto de funciones que son ejercita<strong>da</strong>s<br />
por órganos diferencia<strong>do</strong>s (Legislativo,<br />
Ejecutivo, Judicial), los cuales deben ser<br />
organiza<strong>do</strong>s de una manera tal que se<br />
encuentren en un esta<strong>do</strong> de ver<strong>da</strong>dero<br />
equilibrio institucional, sin que ninguno<br />
pre<strong>do</strong>mine sobre el otro. El resulta<strong>do</strong><br />
de este equilibrio es la independencia<br />
de los Poderes y, específicamente, la<br />
independencia del Poder Judicial. 1<br />
Se puede apreciar que históricamente<br />
existió una dependencia del Poder<br />
Judicial respecto del órgano ejecutivo. En<br />
consecuencia, la lucha inicial tuvo por<br />
1 Marcos Riera Hunter, La independencia del Poder Judicial. Derecho paraguayo y compara<strong>do</strong>, Asunción, La Ley Paraguaya S.A., 1991, p. 18.<br />
51
52<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
objetivo cortar los lazos que implicaban<br />
una sujeción indebi<strong>da</strong> respecto del Poder<br />
Ejecutivo.<br />
En América Latina, en términos<br />
generales se puede afirmar que durante<br />
la mayor parte del siglo XX se dio una<br />
situación de dependencia del Poder<br />
Judicial.<br />
Las notas peculiares del sistema<br />
político vigente, llevaron a autores como<br />
Jacques Lambert a hablar de “régimen de<br />
preponderancia presidencialista”. Por su<br />
parte, Maurice Duverger sostuvo que en<br />
América Latina existía una “hipertrofia de<br />
los poderes del presidente”. 2<br />
El sistema presidencial, cuya base<br />
inicial era el modelo norteamericano, fue<br />
reforza<strong>do</strong> de manera tal que dio lugar<br />
a un Poder Ejecutivo extrema<strong>da</strong>mente<br />
fuerte. La fuerza extr<strong>ao</strong>rdinaria de que<br />
estaba investi<strong>do</strong> el Ejecutivo se <strong>da</strong>ba<br />
en detrimento del Poder Legislativo,<br />
pero más aún en menoscabo del órgano<br />
jurisdiccional.<br />
La lucha por la independencia del<br />
Poder Judicial empieza en muchos<br />
países de Latinoamérica sólo en la<br />
segun<strong>da</strong> mitad del siglo XX. El “régimen<br />
de preponderancia presidencialista”<br />
se extiende en algunos casos incluso<br />
hasta la déca<strong>da</strong> de los ochentas. Luego<br />
comienzan a delinearse regímenes de<br />
un presidencialismo modera<strong>do</strong>, con una<br />
creciente independencia del Poder Judicial.<br />
La independencia institucional supone,<br />
por una parte, la independencia política,<br />
es decir, la autonomía del Poder Judicial;<br />
y por la otra, la independencia económica,<br />
esto es, la autarquía del Poder Judicial.<br />
Evidentemente aquella sería una ilusión,<br />
sería meramente retórica, si no existiera<br />
la segun<strong>da</strong>. Ambas constituyen aspectos<br />
imprescindibles de la independencia<br />
institucional.<br />
Independencia funcional<br />
Por otra parte tenemos la independencia<br />
funcional. Nos referimos aquí al órgano-<br />
persona, al magistra<strong>do</strong>. Aludimos a la<br />
situación del magistra<strong>do</strong> en particular,<br />
en cuanto a que no pue<strong>da</strong> ser objeto de<br />
presiones en mo<strong>do</strong> alguno en el ejercicio<br />
de sus funciones jurisdiccionales, ya sea<br />
por fuerzas provenientes de fuera del Poder<br />
Judicial, se trate del Poder Ejecutivo, del<br />
Poder Legislativo, de otros órganos de<br />
gobierno, de grupos de presión; ya sea<br />
que las presiones que se ejerzan sobre el<br />
magistra<strong>do</strong> provengan del interior del<br />
mismo órgano judicial, en particular, de<br />
una Corte Suprema o Tribunal Supremo de<br />
Justicia.<br />
Mecanismos constitucionales<br />
para la independencia del Poder<br />
Judicial<br />
La simple consagración del principio de<br />
independencia del Poder Judicial, no es<br />
suficiente. Para que ella sea real y efectiva<br />
es necesario que la Constitución establezca,<br />
como de hecho lo hace, los mecanismos<br />
apropia<strong>do</strong>s para tal efecto.<br />
2 J. Lambert, América Latina, Barcelona-España, Ediciones Ariel, 1978, p. 55; y M. Duverger, Instituciones políticas y Derecho Constitucional,<br />
Barcelona-España, Ediciones Ariel, 1970, p. 213.<br />
La simple<br />
consagración<br />
del principio de<br />
independencia<br />
del Poder<br />
Judicial, no es<br />
suficiente.
Sien<strong>do</strong> la independencia del Poder<br />
Judicial de carácter institucional (política<br />
y económica) y funcional, se han previsto<br />
los medios idóneos para preservarla según<br />
se trate de la independencia del órgano<br />
judicial frente a otros órganos de gobierno,<br />
o de la independencia del magistra<strong>do</strong> en el<br />
ejercicio de su función jurisdiccional. A ello<br />
nos referiremos a continuación.<br />
Mecanismos para la<br />
Independencia política del<br />
Poder Judicial<br />
El principio de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional<br />
En primer lugar tenemos el principio<br />
de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional. El Poder Judicial<br />
tiene la pretensión de monopolizar la<br />
función jurisdiccional. Esto significa que,<br />
en principio, dicha función sólo puede ser<br />
ejerci<strong>da</strong> por órganos judiciales. Visto desde<br />
otra perspectiva, supone no admitir que<br />
ningún órgano extraño al Poder Judicial<br />
pue<strong>da</strong> tener atribuciones para resolver<br />
cuestiones litigiosas.<br />
Pero lo importante es ver los casos que<br />
constituyen excepciones a este principio<br />
y hasta qué punto estas excepciones<br />
significan un desmedro para el Poder<br />
Judicial.<br />
a) Entre las excepciones, podemos<br />
mencionar la jurisdicción administrativa.<br />
Sabemos que existen instancias de<br />
resolución de conflictos en sede<br />
administrativa, es decir, a cargo de órganos<br />
dependientes del Poder Ejecutivo, que<br />
pueden <strong>da</strong>r solución a litigios que se<br />
3 Marcos Riera Hunter, op. cit., p. 24.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
presenten entre particulares y el Esta<strong>do</strong>.<br />
El funcionamiento de estos órganos puede<br />
servir para descargar a los tribunales<br />
evitan<strong>do</strong> que un número importante de<br />
casos litigiosos, al alcanzar solución en<br />
sede administrativa, llegue a instancias<br />
judiciales.<br />
La <strong>do</strong>ctrina admite esta excepción<br />
al principio de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional,<br />
siempre que esté asegura<strong>da</strong> la posibili<strong>da</strong>d<br />
de ocurrir con posteriori<strong>da</strong>d ante órganos<br />
de carácter jurisdiccional, por ejemplo, un<br />
tribunal contencioso- administrativo que se<br />
encuentre dentro del Poder Judicial.<br />
b) Los tribunales constitucionales<br />
constituyen otra excepción, al ser ellos los<br />
órganos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de la facultad de ejercer<br />
el control de constitucionali<strong>da</strong>d y no el<br />
máximo órgano del Poder Judicial.<br />
Sobre el tema se ha afirma<strong>do</strong> lo<br />
siguiente:<br />
Los Tribunales Constitucionales<br />
son el producto de la <strong>do</strong>ctrina que<br />
desestima el control jurisdiccional de la<br />
constitucionali<strong>da</strong>d por entender que tal<br />
función es esencialmente política y, por<br />
ende, rebasa la competencia propia del<br />
Poder Judicial considera<strong>do</strong> de naturaleza<br />
eminentemente jurídica. 3<br />
En relación con este tema se puede<br />
hablar de <strong>do</strong>s tradiciones. Por una parte<br />
está la tradición europea basa<strong>da</strong> en los<br />
tribunales constitucionales, crea<strong>do</strong>s a partir<br />
de las ideas de Kelsen, y en que el control<br />
de constitucionali<strong>da</strong>d que<strong>da</strong> a cargo de un<br />
órgano ubica<strong>do</strong> fuera del Poder Judicial,<br />
53
54<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
como órgano extrapoderes.<br />
Por otra parte existe una tradición<br />
americana, en el senti<strong>do</strong> de esta<strong>do</strong>unidense<br />
y también de to<strong>do</strong>s los países de América,<br />
en que el control de constitucionali<strong>da</strong>d está<br />
a cargo del Poder Judicial y, en particular,<br />
de su máximo órgano. Así tenemos el<br />
caso de los Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, México, la<br />
Argentina, el Uruguay, etc.<br />
Mención aparte merecen algunos casos<br />
en que el control de constitucionali<strong>da</strong>d no<br />
sólo está a cargo del máximo órgano del<br />
Poder Judicial, sino que el pronunciamiento<br />
del mismo produce efectos generales, es<br />
decir, erga omnes. Dichos casos son los<br />
siguientes:<br />
El Salva<strong>do</strong>r. Dentro del sistema<br />
constitucional salva<strong>do</strong>reño, la Sala de lo<br />
Constitucional de la Corte Suprema de<br />
Justicia tiene facultad para declarar la<br />
inconstitucionali<strong>da</strong>d de actos normativos,<br />
con efectos erga omnes. Los preceptos<br />
constitucionales pertinentes son los<br />
siguientes:<br />
Art. 174: La Corte Suprema de Justicia<br />
tendrá una Sala de lo Constitucional, a la<br />
cual corresponderá conocer y resolver las<br />
deman<strong>da</strong>s de inconstitucionali<strong>da</strong>d de las<br />
leyes, decretos y reglamentos ...<br />
La Sala de lo Constitucional estará<br />
integra<strong>da</strong> por cinco Magistra<strong>do</strong>s designa<strong>do</strong>s<br />
por la Asamblea Legislativa ...<br />
Art. 183: La Corte Suprema de Justicia por<br />
medio de la Sala de lo Constitucional será el<br />
único tribunal competente para declarar la<br />
inconstitucionali<strong>da</strong>d de las leyes, decretos y<br />
reglamentos, en su forma y conteni<strong>do</strong>, de un<br />
4 Debe verse igualmente el Art. 336, incisos 1, 2, 3 y 4, de la Constitución venezolana.<br />
mo<strong>do</strong> general y obligatorio, y podrá hacerlo a<br />
petición de cualquier ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>no.<br />
En Panamá, la declaración de<br />
inconstitucionali<strong>da</strong>d de actos normativos,<br />
con efectos erga omnes, corresponde a la<br />
Corte Suprema de Justicia en pleno (Cf.<br />
Art. 203 de la Constitución panameña).<br />
En Venezuela, de acuer<strong>do</strong> con<br />
la Constitución de 1999, la Sala<br />
Constitucional del Tribunal Supremo de<br />
Justicia tiene la atribución de declarar<br />
la nuli<strong>da</strong>d de leyes y otros instrumentos<br />
normativos. Esto equivale a una declaración<br />
de inconstitucionali<strong>da</strong>d con efectos<br />
generales.<br />
El Art. 334 dispone lo siguiente: ...<br />
Corresponde exclusivamente a la Sala Cons-<br />
titucional del Tribunal Supremo de Justicia<br />
como jurisdicción constitucional, declarar<br />
la nuli<strong>da</strong>d de las leyes y demás actos de los<br />
órganos que ejercen el Poder Público dicta<strong>do</strong>s<br />
en ejecución directa e inmediata de la Cons-<br />
titución o que tengan rango de ley. 4<br />
En el Paraguay, la Sala Constitucional<br />
de la Corte Suprema de Justicia ejerce ese<br />
control, con efectos inter partes, y se está<br />
abrien<strong>do</strong> paso la jurisprudencia de que la<br />
Corte en pleno puede ejercer la facultad de<br />
declarar la inconstitucionali<strong>da</strong>d de leyes<br />
con efectos erga omnes.<br />
Como se ve, existe una tradición<br />
americana de conferir al máximo órgano<br />
judicial el control de constitucionali<strong>da</strong>d.<br />
Sin embargo, en América Latina se ha<br />
a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> también la figura del Tribunal<br />
Existe una<br />
tradición<br />
americana<br />
de conferir<br />
al máximo<br />
órgano judicial<br />
el control de<br />
costitucionali<strong>da</strong>d.
Constitucional. Así tenemos la Corte<br />
de Constitucionali<strong>da</strong>d de Guatemala, la<br />
Corte Constitucional de Colombia y los<br />
Tribunales Constitucionales de Ecua<strong>do</strong>r,<br />
Perú, Bolivia y Chile.<br />
A continuación transcribimos las<br />
principales disposiciones constitucionales<br />
que regulan el órgano en los países<br />
menciona<strong>do</strong>s.<br />
Guatemala<br />
Art. 268: La Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d<br />
es un tribunal permanente de jurisdicción<br />
privativa, cuya función esencial es la defensa<br />
del orden constitucional; actúa como tribunal<br />
colegia<strong>do</strong> con independencia de los demás<br />
organismos del Esta<strong>do</strong> y ejerce funciones<br />
específicas que le asigna la Constitución y la<br />
ley de la materia ...<br />
Art. 269: La Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d<br />
se integra con cinco magistra<strong>do</strong>s titulares,<br />
ca<strong>da</strong> uno de los cuales tendrá su respectivo<br />
suplente. Cuan<strong>do</strong> conozca de asuntos de<br />
inconstitucionali<strong>da</strong>d en contra de la Corte<br />
Suprema de Justicia, el Congreso de la<br />
República, el Presidente o el Vicepresidente<br />
de la República, el número de sus integrantes<br />
se elevará a siete, escogién<strong>do</strong>se los otros <strong>do</strong>s<br />
magistra<strong>do</strong>s por sorteo de entre los suplentes.<br />
Los magistra<strong>do</strong>s durarán en sus funciones<br />
cinco años y serán designa<strong>do</strong>s en la siguiente<br />
forma:<br />
Un magistra<strong>do</strong> por el pleno de la Corte<br />
Suprema de Justicia;<br />
Un magistra<strong>do</strong> por el pleno del Congreso de<br />
la República;<br />
Un magistra<strong>do</strong> por el Presidente de la<br />
República en Consejo de Ministros;<br />
Un magistra<strong>do</strong> por el Consejo Superior<br />
Universitario de la Universi<strong>da</strong>d de San<br />
Carlos de Guatemala; y<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Un magistra<strong>do</strong> por la Asamblea del Colegio<br />
de Aboga<strong>do</strong>s.<br />
Simultáneamente con la designación del<br />
titular, se hará la del respectivo suplente,<br />
ante el Congreso de la República ...<br />
Art. 272: La Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d<br />
tiene las siguientes funciones:<br />
Conocer en única instancia de las<br />
impugnaciones interpuestas contra leyes<br />
o disposiciones de carácter general,<br />
objeta<strong>da</strong>s parcial o totalmente de<br />
inconstitucionali<strong>da</strong>d...<br />
Colombia<br />
Art. 233: Los Magistra<strong>do</strong>s de la Corte<br />
Constitucional ... serán elegi<strong>do</strong>s para<br />
un perio<strong>do</strong> de ocho años, no podrán ser<br />
reelegi<strong>do</strong>s y permanecerán en el ejercicio de<br />
sus cargos mientras observen buena conducta,<br />
tengan rendimiento satisfactorio y no hayan<br />
llega<strong>do</strong> a e<strong>da</strong>d de retiro forzoso.<br />
Art. 239: La Corte Constitucional tendrá el<br />
número impar de miembros que determine la<br />
ley. En su integración se atenderá el criterio<br />
de designación de magistra<strong>do</strong>s pertenecientes<br />
a diversas especiali<strong>da</strong>des del derecho.<br />
Los magistra<strong>do</strong>s de la Corte Constitucional<br />
serán elegi<strong>do</strong>s por el Sena<strong>do</strong> de la República<br />
para perío<strong>do</strong>s individuales de ocho años, de<br />
sen<strong>da</strong>s ternas que le presenten el Presidente de<br />
la República, la Corte Suprema de Justicia y el<br />
Consejo de Esta<strong>do</strong>.<br />
Los magistra<strong>do</strong>s de la Corte Constitucional<br />
no podrán ser reelegi<strong>do</strong>s.<br />
Ecua<strong>do</strong>r<br />
Art. 275: El Tribunal Constitucional,<br />
con jurisdicción nacional, tendrá su sede<br />
en Quito. Lo integrarán nueve vocales ...<br />
55
56<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
Desempeñarán sus funciones durante cuatro<br />
años y podrán ser reelegi<strong>do</strong>s ...<br />
Serán designa<strong>do</strong>s por el Congreso<br />
Nacional por mayoría de sus integrantes, de<br />
la siguiente manera:<br />
Dos, de ternas envia<strong>da</strong>s por el Presidente de<br />
la República. Dos, de ternas envia<strong>da</strong>s por la<br />
Corte Suprema de Justicia, de fuera de su<br />
seno. Dos, elegi<strong>do</strong>s por el Congreso Nacional,<br />
que no ostenten la digni<strong>da</strong>d de legisla<strong>do</strong>res.<br />
Uno, de la terna envia<strong>da</strong> por los alcaldes y<br />
los prefectos provinciales. Uno, de la terna<br />
envia<strong>da</strong> por las centrales de trabaja<strong>do</strong>res y<br />
las organizaciones indígenas y campesinas de<br />
carácter nacional, legalmente reconoci<strong>da</strong>s.<br />
Uno, de la terna envia<strong>da</strong> por las Cámaras de<br />
la Producción legalmente reconoci<strong>da</strong>s ...<br />
Perú<br />
Art. 201: “El Tribunal Constitucional es<br />
el órgano de control de la Constitución. Es<br />
autónomo e independiente. Se compone de<br />
siete miembros elegi<strong>do</strong>s por cinco años ... No<br />
hay reelección inmediata. Los miembros del<br />
Tribunal Constitucional son elegi<strong>do</strong>s por el<br />
Congreso de la República ...”<br />
Bolivia<br />
Art. 116. I. El Poder Judicial se ejerce por<br />
la Corte Suprema de Justicia de la Nación,<br />
el Tribunal Constitucional, las Cortes<br />
Superiores de Distrito y demás tribunales y<br />
juzga<strong>do</strong>s que las leyes establecen...<br />
IV. El control de constitucionali<strong>da</strong>d se ejerce<br />
por el Tribunal Constitucional.<br />
Art. 119. I. El Tribunal Constitucional<br />
es independiente y está someti<strong>do</strong> sólo a la<br />
Constitución ...<br />
II. Está integra<strong>do</strong> por cinco magistra<strong>do</strong>s que<br />
conforman una sola sala y son designa<strong>do</strong>s por<br />
el Congreso Nacional por <strong>do</strong>s tercios de votos<br />
de los miembros presentes ...<br />
V. Desempeñan sus funciones por un perio<strong>do</strong><br />
personal de diez años improrrogables y<br />
pueden ser reelectos pasa<strong>do</strong> un tiempo igual<br />
al que hubiesen ejerci<strong>do</strong> su man<strong>da</strong>to.<br />
Lo que nos planteamos en este punto<br />
es si resulta conveniente romper la<br />
tradición americana de conferir el control<br />
de constitucionali<strong>da</strong>d al máximo órgano<br />
del Poder Judicial, para conferírselo a un<br />
órgano extrapoderes, a un órgano que está<br />
fuera del Poder Judicial. Ello implica privar<br />
a la Corte Suprema o al Tribunal Supremo<br />
de una atribución muy importante, de<br />
una atribución que define en forma más<br />
categórica el carácter político de la función<br />
que ejercen los órganos jurisdiccionales.<br />
Particularmente por medio del control de<br />
constitucionali<strong>da</strong>d se ejerce ese tercio del<br />
poder político que corresponde al Poder<br />
Judicial. Constituye ésta, la forma en que<br />
más claramente el Poder Judicial contribuye<br />
al funcionamiento del “sistema de frenos y<br />
contrapesos” de que hablaba Montesquieu.<br />
El recíproco control, en lo que corresponde a<br />
este poder, se ejerce fun<strong>da</strong>mentalmente por<br />
medio del control de constitucionali<strong>da</strong>d.<br />
c) Los tribunales militares constituyen<br />
otra excepción al principio de uni<strong>da</strong>d<br />
jurisdiccional. Las constituciones <strong>da</strong>n<br />
diferentes soluciones al problema de los<br />
tribunales militares.<br />
En algunos casos se ha limita<strong>do</strong><br />
el funcionamiento de los tribunales<br />
militares a épocas de guerra, es decir, se<br />
circunscribe temporalmente la activi<strong>da</strong>d<br />
de los mismos a un perío<strong>do</strong> bien defini<strong>do</strong>,<br />
En algunos<br />
casos se ha<br />
limita<strong>do</strong> el<br />
funcionamiento<br />
de los<br />
tribunales<br />
militares a<br />
épocas de<br />
guerra.
cuya característica esencial debe ser el<br />
esta<strong>do</strong> de beligerancia internacional.<br />
Así, la Constitución de Weimar (1919)<br />
disponía: La jurisdicción militar que<strong>da</strong><br />
suprimi<strong>da</strong>, salvo en época de guerra y a<br />
bor<strong>do</strong> de buques de guerra (Art. 106). La<br />
Constitución austriaca de 1920 establecía:<br />
Que<strong>da</strong> suprimi<strong>da</strong> la jurisdicción militar<br />
fuera de la época de guerra (Art. 84). La<br />
Constitución uruguaya (1966) dice: la<br />
jurisdicción militar que<strong>da</strong> limita<strong>da</strong> ...<br />
al caso de esta<strong>do</strong> de guerra (Art. 253, 1ª<br />
parte).<br />
Otras constituciones agregan la<br />
limitación del ámbito de competencia de<br />
los tribunales militares en cuanto al tipo<br />
de delitos (o hechos punibles) que pueden<br />
ser juzga<strong>do</strong>s por los mismos. En este<br />
senti<strong>do</strong> se ha estableci<strong>do</strong> que la justicia<br />
militar debe circunscribirse a los delitos<br />
(o hechos punibles) de carácter militar,<br />
entendi<strong>do</strong>s como aquellos que sólo pueden<br />
ser cometi<strong>do</strong>s por militares. Como se ve, los<br />
tribunales militares son concebi<strong>do</strong>s como<br />
un fuero real exclusivamente y no como<br />
un fuero personal. Así, la Constitución<br />
uruguaya establece:<br />
La jurisdicción militar que<strong>da</strong> limita<strong>da</strong> a<br />
los delitos militares ... Los delitos comunes<br />
cometi<strong>do</strong>s por militares en tiempo de<br />
paz, cualquiera que sea el lugar <strong>do</strong>nde se<br />
cometan, estarán someti<strong>do</strong>s a la Justicia<br />
ordinaria (Art. 253).<br />
Por su parte, la Constitución<br />
venezolana (1999) prescribe:<br />
... La comisión de delitos comunes,<br />
violaciones de derechos humanos y<br />
crímenes de lesa humani<strong>da</strong>d, serán<br />
juzga<strong>do</strong>s por los tribunales ordinarios. La<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
competencia de los tribunales militares se<br />
limita a delitos de naturaleza militar...<br />
(Art. 261).<br />
Algunas constituciones han avanza<strong>do</strong><br />
incluso más y han integra<strong>do</strong> a tribunales<br />
militares al Poder Judicial como un fuero<br />
más, al igual que el civil, comercial, laboral,<br />
penal o contencioso-administrativo. La<br />
Constitución brasileña (1988) prescribe:<br />
Son órganos del Poder Judicial ... los<br />
Tribunales y Jueces Militares (Art. 92, VI).<br />
Por su parte, la Constitución venezolana<br />
(1999) dice: La jurisdicción penal militar<br />
es parte integrante del Poder Judicial<br />
... (Art. 261). Esta solución conlleva la<br />
supresión de la excepción al principio<br />
de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional que constituye<br />
el funcionamiento por separa<strong>do</strong> de los<br />
tribunales militares.<br />
El precepto de la Constitución<br />
paraguaya que se refiere al tema es el<br />
siguiente:<br />
Art. 174 Cn.: Los tribunales militares solo<br />
juzgarán delitos y faltas de carácter militar,<br />
califica<strong>do</strong>s como tales por la ley, y cometi<strong>do</strong>s<br />
por militares en servicio activo. Sus fallos<br />
podrán ser recurri<strong>do</strong>s ante la justicia ordinaria.<br />
Cuan<strong>do</strong> se trate de un acto previsto y pena<strong>do</strong>,<br />
tanto por la ley penal común como por la ley<br />
penal militar, no será considera<strong>do</strong> como delito<br />
militar, salvo que hubiese si<strong>do</strong> cometi<strong>do</strong> por<br />
un militar en servicio activo y en ejercicio de<br />
funciones castrenses. En caso de du<strong>da</strong> de si el<br />
delito es común o militar, se lo considerará<br />
como delito común. Sólo en caso de conflicto<br />
arma<strong>do</strong> internacional, y en la forma dispuesta<br />
por la ley, estos tribunales podrán tener<br />
jurisdicción sobre persona civiles y militares<br />
retira<strong>do</strong>s.<br />
57
58<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
Del texto precedente se desprende que<br />
no existe limitación temporal alguna en<br />
cuanto al funcionamiento de los tribunales<br />
militares. Por otra parte, si bien en el primer<br />
párrafo del artículo se define un fuero de<br />
carácter real, en el siguiente párrafo se<br />
incluyen disposiciones que lo convierten en<br />
ciertos casos en un fuero personal.<br />
La justicia militar está organiza<strong>da</strong> en<br />
forma separa<strong>da</strong> de la justicia ordinaria.<br />
La vinculación de aquella a ésta se <strong>da</strong><br />
exclusivamente por la recurribili<strong>da</strong>d de los<br />
fallos dicta<strong>do</strong>s por los tribunales militares,<br />
ante la justicia ordinaria. Al respecto, se<br />
puede afirmar que se ha a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> una<br />
medi<strong>da</strong> intermedia que importa cierta<br />
sujeción y que puede considerarse orienta<strong>da</strong><br />
en dirección a la incorporación de los<br />
tribunales militares al Poder Judicial, pero<br />
que indu<strong>da</strong>blemente resulta insuficiente.<br />
d) Otra excepción al principio de<br />
uni<strong>da</strong>d jurisdiccional la constituyen el<br />
arbitraje, la mediación, la conciliación<br />
y otras formas de solución alternativa<br />
de conflictos. En varios países ya<br />
tienen consagración constitucional y<br />
evidentemente sirven para evitar que las<br />
causas se multipliquen en los tribunales.<br />
Creemos que, siempre que quede expedita<br />
la vía de acceder a la justicia ordinaria, su<br />
existencia debe ser admiti<strong>da</strong>.<br />
La Constitución paraguaya de<br />
1992, luego de sentar como principio<br />
la exclusivi<strong>da</strong>d del Poder Judicial para<br />
“conocer y decidir en actos de carácter<br />
contencioso”, admite la excepción del<br />
arbitraje.<br />
Al respecto, el Art. 248 Cn. prescribe:<br />
...To<strong>do</strong> ello sin perjuicio de las decisiones<br />
arbitrales en el ámbito del derecho priva<strong>do</strong>,<br />
con las mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des que la ley determine<br />
para asegurar el derecho de defensa y las<br />
soluciones equitativas ...<br />
La Constitución venezolana dice:<br />
... La ley promoverá el arbitraje, la<br />
conciliación, la mediación y cualesquiera<br />
otros medios alternativos para la solución de<br />
conflictos (Art. 258).<br />
Por su parte, la Constitución<br />
ecuatoriana establece: ...Se reconocerán<br />
el arbitraje, la mediación y otros<br />
procedimientos alternativos para la<br />
resolución de conflictos, con sujeción a la<br />
ley... (Art. 191).<br />
e) Se encuentran también el indulto,<br />
la conmutación y la amnistía. Por estos<br />
medios un órgano no judicial (ejecutivo<br />
o legislativo) puede modificar decisiones<br />
firmes a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong>s en sede judicial o<br />
determinar el finiquito de procesos en curso<br />
o la imposibili<strong>da</strong>d de su promoción.<br />
Estas figuras que abren la posibili<strong>da</strong>d<br />
de una revisión discrecional de decisiones<br />
judiciales definitivas por órganos políticos,<br />
constituyen un resabio del absolutismo.<br />
Formaban parte de lo que se conoce como<br />
“gracia del príncipe”. Dentro de un Esta<strong>do</strong><br />
de derecho no pueden tener cabi<strong>da</strong>.<br />
f) Entre las excepciones al principio de<br />
uni<strong>da</strong>d jurisdiccional, en los últimos años,<br />
algunas constituciones han agrega<strong>do</strong> algo<br />
nuevo: la jurisdicción indígena. Insertamos<br />
a continuación los artículos pertinentes de<br />
las constituciones latinoamericanas que la<br />
establecen.<br />
Colombia, Art. 246: Las autori<strong>da</strong>des de los<br />
pueblos indígenas podrán ejercer funciones<br />
jurisdiccionales dentro de su ámbito
Para facilitar la<br />
vinculación del<br />
Poder Judicial<br />
con los otros<br />
poderes en<br />
condiciones de<br />
igual<strong>da</strong>d, se<br />
hace necesario<br />
reconocer a<br />
un solo órgano<br />
como cabeza de<br />
dicho poder.<br />
territorial, de conformi<strong>da</strong>d con sus propias<br />
normas y procedimientos, siempre que no<br />
sean contrarios a la Constitución y leyes de la<br />
República. La ley establecerá las formas de<br />
coordinación de esta jurisdicción especial con<br />
el sistema judicial nacional.<br />
Ecua<strong>do</strong>r, Art. 191, último pfo.: ... Las<br />
autori<strong>da</strong>des de los pueblos indígenas<br />
ejercerán funciones de justicia, aplican<strong>do</strong><br />
normas y procedimientos propios para<br />
la solución de conflictos internos de<br />
conformi<strong>da</strong>d con sus costumbres o derecho<br />
consuetudinario, siempre que no sean<br />
contrarios a la Constitución y las leyes. La<br />
ley hará compatibles aquellas funciones con<br />
las del sistema judicial nacional.<br />
Perú, Art. 149: Las autori<strong>da</strong>des de las<br />
Comuni<strong>da</strong>des Campesinas y Nativas, con<br />
el apoyo de las Ron<strong>da</strong>s Campesinas, pueden<br />
ejercer las funciones jurisdiccionales dentro<br />
de su ámbito territorial de conformi<strong>da</strong>d con<br />
el derecho consuetudinario, siempre que<br />
no violen los derechos fun<strong>da</strong>mentales de<br />
la persona. La ley establece las formas de<br />
coordinación de dicha jurisdicción especial<br />
con los Juzga<strong>do</strong>s de Paz y con las demás<br />
instancias del Poder Judicial.<br />
Venezuela, Art. 260: Las autori<strong>da</strong>des<br />
legítimas de los pueblos indígenas podrán<br />
aplicar en su hábitat instancias de justicia<br />
con base en sus tradiciones ancestrales y<br />
que sólo afecten a sus integrantes, según sus<br />
propias normas y procedimientos, siempre<br />
que no sean contrarios a esta Constitución, a<br />
la ley y al orden público. La ley determinará<br />
la forma de coordinación de esta jurisdicción<br />
especial con el sistema judicial nacional.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Se trata de países en los cuales existe<br />
una población indígena importante, de una<br />
tradición de largos años. El reconocimiento<br />
de una jurisdicción indígena constituye, sin<br />
du<strong>da</strong>, una excepción al principio de uni<strong>da</strong>d<br />
jurisdiccional.<br />
B. Órgano representativo y supremo<br />
del Poder Judicial<br />
Como otro mecanismo de la<br />
independencia del Poder Judicial, se hace<br />
necesario el reconocimiento de un órgano<br />
jurisdiccional supremo. El Poder Judicial es<br />
un órgano complejo en el cual existen varias<br />
instancias: Corte Suprema, tribunales<br />
de apelación, juzga<strong>do</strong>s de primera<br />
instancia. Para facilitar la vinculación del<br />
Poder Judicial con los otros poderes en<br />
condiciones de igual<strong>da</strong>d, se hace necesario<br />
reconocer a un solo órgano como cabeza de<br />
dicho poder.<br />
Esto es particularmente importante a<br />
fin de evitar problemas, como podría ser<br />
el de una bicefalía real o aparente, que<br />
coloque al órgano judicial en una posición<br />
de desventaja en su relacionamiento con el<br />
Poder Ejecutivo o con el Poder Legislativo.<br />
Por otra parte, la vinculación del<br />
órgano judicial supremo debe analizarse en<br />
relación con el Tribunal Constitucional, si<br />
existiere. Por lo general, el mismo es crea<strong>do</strong><br />
como un órgano extrapoderes en cuyo<br />
caso deberá considerarse especialmente<br />
el alcance de su facultad de control de<br />
constitucionali<strong>da</strong>d en cuanto pue<strong>da</strong><br />
interferir con las atribuciones del máximo<br />
órgano judicial. Por ejemplo, en Guatemala<br />
la Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d puede<br />
conocer “de asuntos de inconstitucionali<strong>da</strong>d<br />
en contra de la Corte Suprema de Justicia”<br />
59
60<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
(Art. 269). Menos común es que el Tribunal<br />
Constitucional sea crea<strong>do</strong> como integrante<br />
del Poder Judicial. Tal es el caso de Bolivia<br />
(Arts. 116, I y IV, 119, 120 y 121). En estas<br />
condiciones, más bien podría presentarse<br />
el problema de la definición del órgano<br />
supremo del Poder Judicial.<br />
Además, debe analizarse la vinculación<br />
de la Corte Suprema o el Tribunal Supremo<br />
con el Consejo de la Magistratura o de<br />
la Judicatura. En las páginas siguientes<br />
que<strong>da</strong>rán en claro las circunstancias en<br />
que puede <strong>da</strong>rse ese relacionamiento y los<br />
posibles conflictos que pueden derivar del<br />
mismo.<br />
C. La carrera judicial<br />
Otro de los presupuestos de la<br />
independencia institucional del Poder<br />
Judicial está <strong>da</strong><strong>do</strong> por la existencia de una<br />
carrera judicial. Al respecto, sólo haremos<br />
algunas reflexiones acerca de la influencia<br />
que el Consejo de la Magistratura o de la<br />
Judicatura puede ejercer en relación con la<br />
carrera judicial.<br />
Fun<strong>da</strong>mentalmente hay que analizar<br />
<strong>do</strong>s puntos: por una parte, la composición<br />
del Consejo, y, por la otra, las funciones<br />
que se le otorgan. De la combinación de<br />
estos <strong>do</strong>s elementos, es decir del mo<strong>do</strong> en<br />
que esté compuesto y de las funciones más<br />
o menos amplias o restringi<strong>da</strong>s que tenga,<br />
dependerá que el poder del Consejo sea<br />
mayor o menor.<br />
En cuanto a su composición, se puede<br />
hablar de una “composición judicialista”,<br />
cuan<strong>do</strong> sus integrantes provienen del<br />
propio órgano judicial, lo cual determina<br />
una vinculación directa con éste y supone<br />
un mayor entendimiento con la Corte<br />
Suprema o el Tribunal Supremo, o, si<br />
se quiere, una mayor posibili<strong>da</strong>d de<br />
influencia sobre el Consejo. Se alude a<br />
una “composición mixta” cuan<strong>do</strong> sus<br />
integrantes provienen no sólo del órgano<br />
judicial. En la composición mixta puede<br />
<strong>da</strong>rse un “pre<strong>do</strong>minio judicialista” si la<br />
mayor parte de sus integrantes provienen<br />
del Poder Judicial, una “minoría judicial”,<br />
cuan<strong>do</strong> son los menos los que provienen<br />
de dicho poder, o un relativo equilibrio<br />
entre diversos sectores. Lo que apuntamos<br />
en cuanto a entendimiento con el Consejo<br />
o a posibili<strong>da</strong>des de influir sobre él,<br />
indu<strong>da</strong>blemente varía según cual sea la<br />
forma de composición mixta de que se<br />
trate. En suma, se puede presumir que<br />
cuanto menor sea el ingrediente judicialista<br />
en la composición del Consejo de la<br />
Magistratura o de la Judicatura, menor<br />
será la posibili<strong>da</strong>d de que las funciones<br />
que le corresponden sean ejerci<strong>da</strong>s en<br />
coordinación o en consulta con el órgano<br />
máximo del Poder Judicial.<br />
En cuanto a las funciones del Consejo,<br />
se puede hablar fun<strong>da</strong>mentalmente de <strong>do</strong>s<br />
categorías: las referi<strong>da</strong>s a los magistra<strong>do</strong>s<br />
y las referi<strong>da</strong>s a la administración del<br />
Poder Judicial. Entre las primeras se señala<br />
que el Consejo actúa como órgano de<br />
selección de magistra<strong>do</strong>s, a veces también<br />
de nombramiento de magistra<strong>do</strong>s, y como<br />
órgano disciplinario del Poder Judicial.<br />
En lo referente al segun<strong>do</strong> aspecto,<br />
el Consejo tiene a su cargo la elaboración<br />
del presupuesto del Poder Judicial y la<br />
posterior ejecución del mismo. En algunos<br />
casos se encarga también de algunas<br />
cuestiones relaciona<strong>da</strong>s con la organización<br />
del ejercicio de la función jurisdiccional.<br />
Lo que<br />
apuntamos<br />
en cuanto a<br />
entendimiento<br />
con el Consejo o<br />
a posibili<strong>da</strong>des<br />
de influir<br />
sobre él,<br />
indu<strong>da</strong>blemente<br />
varía según cual<br />
sea la forma de<br />
composición<br />
mixta de que se<br />
trate.
En la Argentina, el Consejo de la<br />
Magistratura tiene una composición en<br />
que hay una amplia participación de los<br />
otros poderes y de sectores de la población<br />
distintos del Poder Judicial. Además,<br />
sus atribuciones son muy importantes.<br />
Se trata de un Consejo fuerte debi<strong>do</strong> a<br />
su composición, en la que casi no hay<br />
intervención del órgano judicial, y a sus<br />
atribuciones, que permiten que este órgano<br />
ejerza importante influencia en múltiples<br />
aspectos del funcionamiento del Poder<br />
Judicial. Transcribimos a continuación la<br />
disposición constitucional pertinente.<br />
Art. 114: El Consejo de la Magistratura<br />
... tendrá a su cargo la selección de los<br />
magistra<strong>do</strong>s y la administración del Poder<br />
Judicial.<br />
El Consejo será integra<strong>do</strong> periódicamente<br />
de mo<strong>do</strong> que se procure el equilibrio entre<br />
la representación de los órganos políticos<br />
resultantes de la elección popular, de los<br />
jueces de to<strong>da</strong>s las instancias y de los<br />
aboga<strong>do</strong>s de la matrícula federal. Será<br />
integra<strong>do</strong>, asimismo, por otras personas del<br />
ámbito académico y científico, en el número y<br />
la forma que indique la ley.<br />
Serán sus atribuciones:<br />
1.Seleccionar mediante concursos públicos los<br />
postulantes a las magistraturas inferiores.<br />
2.Emitir propuestas en ternas vinculantes,<br />
para el nombramiento de los magistra<strong>do</strong>s de<br />
los tribunales inferiores.<br />
3. Administrar los recursos y ejecutar<br />
el presupuesto que la ley asigne a la<br />
administración de justicia.<br />
4.Ejercer facultades disciplinarias sobre<br />
magistra<strong>do</strong>s.<br />
5.Decidir la apertura del procedimiento de<br />
remoción de magistra<strong>do</strong>s, en su caso ordenar<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
la suspensión, y formular la acusación<br />
correspondiente.<br />
6.Dictar los reglamentos relaciona<strong>do</strong>s con<br />
la organización judicial y to<strong>do</strong>s aquellos<br />
que sean necesarios para asegurar la<br />
independencia de los jueces y la eficaz<br />
prestación de los servicios de justicia.<br />
En Colombia se puede apreciar una<br />
escasa intervención de origen judicial en<br />
la composición del Consejo Superior de<br />
la Judicatura. En cambio, las atribuciones<br />
del mismo, tanto las que se refieren a<br />
magistra<strong>do</strong>s judiciales, como las vincula<strong>da</strong>s<br />
con la administración del órgano judicial,<br />
son de gran trascendencia. Las principales<br />
disposiciones constitucionales que versan<br />
sobre el tema son las siguientes:<br />
Art. 231: Los Magistra<strong>do</strong>s de la Corte<br />
Suprema de Justicia y del Consejo de<br />
Esta<strong>do</strong> serán nombra<strong>do</strong>s por la respectiva<br />
corporación, de listas envia<strong>da</strong>s por el Consejo<br />
Superior de la Judicatura.<br />
Art. 254: El Consejo Superior de la<br />
Judicatura se divide en <strong>do</strong>s salas:<br />
1ª. La sala administrativa, integra<strong>da</strong> por<br />
seis magistra<strong>do</strong>s elegi<strong>do</strong>s para un perío<strong>do</strong> de<br />
ocho años, así: <strong>do</strong>s por la Corte Suprema de<br />
Justicia, uno por la Corte Constitucional y<br />
tres por el Consejo de Esta<strong>do</strong>.<br />
2ª. La sala jurisdiccional disciplinaria,<br />
integra<strong>da</strong> por siete magistra<strong>do</strong>s elegi<strong>do</strong>s para<br />
un perío<strong>do</strong> de ocho años, por el Congreso<br />
Nacional en ternas envia<strong>da</strong>s por el gobierno ...<br />
Art. 256: Corresponden al Consejo Superior<br />
de la Judicatura ... de acuer<strong>do</strong> a la ley, las<br />
siguientes atribuciones:<br />
1ª Administrar la carrera judicial.<br />
2ª Elaborar las listas de candi<strong>da</strong>tos para<br />
la designación de funcionarios judiciales y<br />
61
62<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
enviarlas a la enti<strong>da</strong>d que deba hacerla ...<br />
3ª Examinar la conducta y sancionar las<br />
faltas de los funcionarios de la rama judicial,<br />
así como las de los aboga<strong>do</strong>s en el ejercicio de<br />
su profesión ...<br />
4ª Llevar el control de rendimiento de las<br />
corporaciones y despachos judiciales.<br />
5ª Elaborar el proyecto de presupuesto de<br />
la rama judicial que deberá ser remiti<strong>do</strong> al<br />
gobierno, y ejecutarlo de conformi<strong>da</strong>d con la<br />
aprobación que haga el congreso.<br />
6ª Dirimir los conflictos de competencia que<br />
ocurran entre las distintas jurisdicciones ...<br />
Art. 257: Con sujeción a la ley, el Consejo<br />
Superior de la Judicatura cumplirá las<br />
siguientes funciones:<br />
1ª Fijar la división del territorio para efectos<br />
judiciales y ubicar y redistribuir los despachos<br />
judiciales.<br />
2ª Crear, suprimir, fusionar y trasla<strong>da</strong>r<br />
cargos en la administración de justicia ...<br />
3ª Dictar los reglamentos necesarios para el<br />
eficaz funcionamiento de la administración<br />
de justicia, los relaciona<strong>do</strong>s con la<br />
organización y funciones internas asigna<strong>da</strong>s<br />
a los distintos cargos y la regulación de los<br />
trámites judiciales y administrativos que se<br />
adelanten en los despachos judiciales, en los<br />
aspectos no previstos por el legisla<strong>do</strong>r.<br />
4ª Proponer proyectos de ley relativos a la<br />
administración de justicia y a los códigos<br />
sustantivos y procedimentales ...<br />
En el Perú existe una escasa<br />
participación de origen judicial en la<br />
composición del Consejo Nacional de la<br />
Magistratura. Sin embargo, las facultades<br />
de este órgano en cuanto a la selección,<br />
el nombramiento, la ratificación y la<br />
destitución de jueces y fiscales, incluso<br />
de la Corte Suprema, son de suma<br />
importancia. Los artículos constitucionales<br />
pertinentes son los siguientes:<br />
Art. 150, 1er. pfo.: El Consejo Nacional de<br />
la Magistratura se encarga de la selección y<br />
el nombramiento de los jueces y fiscales, salvo<br />
cuan<strong>do</strong> éstos provengan de elección popular.<br />
Art. 154: Son funciones del Consejo<br />
Nacional de la Magistratura:<br />
1. Nombrar, previo concurso público de<br />
méritos y evaluación personal, a los jueces y<br />
fiscales de to<strong>do</strong>s los niveles...<br />
2. Ratificar a los jueces y fiscales de to<strong>do</strong>s los<br />
niveles ca<strong>da</strong> siete años. Los no ratifica<strong>do</strong>s<br />
no pueden reingresar al Poder Judicial ni al<br />
Ministerio Público...<br />
3. Aplicar la sanción de destitución a los<br />
Vocales de la Corte Suprema y Fiscales<br />
Supremos y, a solicitud de la Corte Suprema<br />
o de la Junta de Fiscales Supremos,<br />
respectivamente, a los jueces y fiscales de<br />
to<strong>da</strong>s las instancias. La resolución final,<br />
motiva<strong>da</strong> y con previa audiencia del<br />
interesa<strong>do</strong>, es inimpugnable...<br />
Art. 155: Son miembros del Consejo<br />
Nacional de la Magistratura, conforme a la<br />
ley de la materia:<br />
Uno elegi<strong>do</strong> por la Corte Suprema ...<br />
Uno elegi<strong>do</strong> ... por la Junta de Fiscales<br />
Supremos.<br />
Uno elegi<strong>do</strong> por los miembros de los Colegios<br />
de Aboga<strong>do</strong>s del país ...<br />
Dos elegi<strong>do</strong>s ... por los miembros de los demás<br />
Colegios Profesionales del país ...<br />
Uno elegi<strong>do</strong> ... por los rectores de las<br />
universi<strong>da</strong>des nacionales.<br />
Uno elegi<strong>do</strong> ... por los rectores de las<br />
universi<strong>da</strong>des particulares.<br />
El número de miembros del Consejo<br />
Nacional de la Magistratura puede ser
amplia<strong>do</strong> por éste a nueve, con <strong>do</strong>s miembros<br />
adicionales elegi<strong>do</strong>s ... por el mismo<br />
Consejo, entre sen<strong>da</strong>s listas propuestas por<br />
las instituciones representativas del sector<br />
laboral y del empresarial ...<br />
En Bolivia, en cuanto a la composición<br />
del Consejo de la Judicatura, se puede<br />
observar que, si bien éste es presidi<strong>do</strong> por el<br />
presidente de la Corte Suprema de Justicia,<br />
los cuatro Consejeros que lo integran son<br />
designa<strong>do</strong>s por el Congreso Nacional. Sus<br />
atribuciones son de mucha importancia<br />
tanto en cuanto a lo que se refiere a su<br />
participación en la integración del órgano<br />
judicial, como en cuanto a la elaboración<br />
y ejecución del presupuesto del Poder<br />
Judicial.<br />
Las disposiciones constitucionales<br />
referentes al tema son las siguientes:<br />
Art. 116. ... V. El Consejo de la Judicatura<br />
es el órgano administrativo y disciplinario<br />
del Poder Judicial ...<br />
... VIII. El Poder Judicial tiene autonomía<br />
económica y administrativa. El Presupuesto<br />
General de la Nación asignará una parti<strong>da</strong><br />
anual centraliza<strong>da</strong> en el Tesoro Judicial, que<br />
depende del Consejo de la Judicatura ...<br />
Art. 122. I. El Consejo de la Judicatura, es<br />
el órgano administrativo y disciplinario del<br />
Poder Judicial ...<br />
II. El Consejo es presidi<strong>do</strong> por el Presidente<br />
de la Corte Suprema de Justicia y está<br />
integra<strong>do</strong> por cuatro miembros denomina<strong>do</strong>s<br />
Consejeros de la Judicatura, con título de<br />
aboga<strong>do</strong> en provisión nacional y con diez<br />
años de ejercicio idóneo de la profesión o la<br />
cátedra universitaria.<br />
III. Los consejeros son designa<strong>do</strong>s por el<br />
Congreso Nacional por el voto de <strong>do</strong>s tercios<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
de sus miembros presentes. Desempeñan<br />
sus funciones por un perio<strong>do</strong> de diez años<br />
no pudien<strong>do</strong> ser reelegi<strong>do</strong>s sino pasa<strong>do</strong> un<br />
tiempo igual al que hubiesen ejerci<strong>do</strong> su<br />
man<strong>da</strong>to.<br />
Art. 123: I. Son atribuciones del Consejo de<br />
la Judicatura:<br />
1ª Proponer al Congreso nóminas para la<br />
designación de los Ministros de la Corte<br />
Suprema de Justicia; y a esta última para<br />
la designación de los Vocales de las Cortes<br />
Superiores de Distrito;<br />
2ª Proponer nóminas a las Cortes Superiores<br />
de Distrito para la designación de jueces ...<br />
3ª Administrar el Escalafón Judicial,<br />
y ejercer el poder disciplinario sobre los<br />
vocales, jueces y funcionarios judiciales, de<br />
acuer<strong>do</strong> a la ley;<br />
4ª Elaborar el Presupuesto Anual del Poder<br />
Judicial ... Ejecutar su presupuesto conforme<br />
a ley y bajo el control fiscal ...<br />
En México, el Consejo de la Judicatura<br />
Federal está compuesto por una mayoría<br />
de origen judicial (el presidente de la<br />
Suprema Corte de Justicia y tres consejeros<br />
designa<strong>do</strong>s por el pleno de la Corte,<br />
es decir, cuatro sobre un total de siete<br />
miembros). Esta mayoría de 4 a 3 <strong>da</strong> la<br />
posibili<strong>da</strong>d de que el control de ese órgano<br />
quede en manos de la Suprema Corte.<br />
El Art. 100 dispone cuanto sigue:<br />
El Consejo de la Judicatura Federal será un<br />
órgano del Poder Judicial de la federación<br />
con independencia técnica, de gestión y para<br />
emitir sus resoluciones.<br />
El Consejo se integrará por siete miembros<br />
de los cuales, uno será el presidente de la<br />
Suprema Corte de Justicia, quien también lo<br />
será del Consejo; tres consejeros designa<strong>do</strong>s<br />
63
64<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
por el pleno de la corte, por mayoría de<br />
cuan<strong>do</strong> menos ocho votos, de entre los<br />
magistra<strong>do</strong>s de circuito y jueces de distrito;<br />
<strong>do</strong>s consejeros designa<strong>do</strong>s por el sena<strong>do</strong>, y uno<br />
por el presidente de la república...<br />
... La Suprema Corte de Justicia elaborará<br />
su propio presupuesto y el Consejo lo<br />
hará para el resto del poder judicial de la<br />
federación ...<br />
En El Salva<strong>do</strong>r el Consejo Nacional de<br />
la Judicatura tiene atribuciones limita<strong>da</strong>s,<br />
como en el Paraguay, y en su integración<br />
sólo interviene el órgano legislativo.<br />
Al respecto, el Art. 187 establece:<br />
El Consejo Nacional de la Judicatura es<br />
una institución independiente, encarga<strong>da</strong><br />
de proponer candi<strong>da</strong>tos para los cargos<br />
de Magistra<strong>do</strong>s de la Corte Suprema de<br />
Justicia, Magistra<strong>do</strong>s de las Cámaras de<br />
Segun<strong>da</strong> Instancia, Jueces de Primera<br />
Instancia y Jueces de Paz.<br />
Será responsabili<strong>da</strong>d del Consejo Nacional<br />
de la Judicatura, la organización<br />
y funcionamiento de la Escuela de<br />
Capacitación Judicial, cuyo objeto es el de<br />
asegurar el mejoramiento en la formación<br />
profesional de los jueces y demás funcionarios<br />
judiciales.<br />
Los miembros del Consejo Nacional de la<br />
Judicatura serán elegi<strong>do</strong>s y destitui<strong>do</strong>s por la<br />
Asamblea Legislativa con el voto califica<strong>do</strong><br />
de las <strong>do</strong>s terceras partes de los Diputa<strong>do</strong>s<br />
electos ...<br />
En el Ecua<strong>do</strong>r, el tema está legisla<strong>do</strong> en<br />
el Art. 206, 1er. pfo., que dice así:<br />
5 Cf. Arts. 251, 262, 264, 269, 270 y 275 de la Constitución paraguaya de 1992.<br />
El Consejo Nacional de la Judicatura será<br />
el órgano de gobierno, administrativo y<br />
disciplinario de la Función Judicial. La<br />
ley determinará su integración, la forma de<br />
designación de sus miembros, su estructura y<br />
funciones.<br />
En el Paraguay tenemos un Consejo<br />
de la Magistratura débil, si se tienen en<br />
cuenta sus atribuciones en comparación<br />
con las que se confieren a este órgano<br />
en otros regímenes constitucionales<br />
como los que acabamos de mencionar.<br />
Solamente es un órgano de selección de<br />
magistra<strong>do</strong>s, su función se limita a la<br />
elaboración de ternas para elevarlas al<br />
órgano encarga<strong>do</strong> de la designación. En<br />
su composición hay una minoría extrema<br />
de origen judicial: solo un ministro de<br />
la Corte Suprema de Justicia, sobre ocho<br />
integrantes. 5<br />
En definitiva, el problema que se<br />
plantea es el de la conveniencia o no de<br />
otorgar al Consejo de la Magistratura<br />
o de la Judicatura, atribuciones<br />
importantes como las de nombrar a los<br />
magistra<strong>do</strong>s, decidir su promoción a<br />
instancias superiores, decidir la apertura<br />
del procedimiento de remoción de<br />
magistra<strong>do</strong>s, ordenar su suspensión y<br />
formular la acusación correspondiente,<br />
actuar como órgano disciplinario del<br />
Poder Judicial, ejercer la administración<br />
del mismo, en particular, en cuanto a<br />
la elaboración de su presupuesto y a su<br />
ejecución, etc.<br />
¿Es conveniente crear un Consejo que
Transferir estas<br />
facultades al<br />
Consejo de la<br />
Magistratura<br />
o de la<br />
Judicatura,<br />
significa<br />
restarle<br />
atribuciones al<br />
órgano máximo<br />
del Poder<br />
Judicial.<br />
tenga tales atribuciones y, en especial,<br />
cuan<strong>do</strong> su funcionamiento sea autónomo<br />
en relación con la Corte Suprema de<br />
Justicia?<br />
También en cuanto a este tema<br />
debemos hacer referencia a <strong>do</strong>s<br />
perspectivas diferentes. Por una parte,<br />
tenemos la perspectiva europea, en<br />
la cual el Poder Judicial aparecía,<br />
en algunos aspectos, en relación de<br />
dependencia respecto del órgano<br />
ejecutivo, por medio del Ministerio<br />
de Justicia. Éste intervenía en cuanto<br />
a la provisión de fon<strong>do</strong>s, en cuanto<br />
a la proposición de candi<strong>da</strong>tos<br />
para la magistratura, etc. En estas<br />
circunstancias, trasla<strong>da</strong>r dichas<br />
funciones de manos del órgano ejecutivo<br />
a un Consejo de la Magistratura o de la<br />
Judicatura, concebi<strong>do</strong> como un órgano<br />
extrapoderes, constituía un avance.<br />
Pero desde la perspectiva americana,<br />
la cuestión se torna diferente. En efecto,<br />
atribuciones tales como la de intervenir<br />
en el nombramiento de magistra<strong>do</strong>s de<br />
las instancias inferiores, la de llevar a<br />
cabo el enjuiciamiento de los mismos,<br />
la de actuar como órgano disciplinario<br />
del Poder Judicial y la de ejercer la<br />
administración de éste, correspondían<br />
a la Corte Suprema de Justicia. En<br />
estas circunstancias, transferir estas<br />
facultades al Consejo de la Magistratura<br />
o de la Judicatura, significa restarle<br />
atribuciones al órgano máximo del<br />
Poder Judicial, con el consiguiente<br />
debilitamiento que ello lleva implícito.<br />
6 Marcos Riera Hunter, op. cit., p. 28.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Desde el punto de vista de la<br />
independencia institucional del Poder<br />
Judicial, esto significa un retroceso tanto<br />
mayor cuanto más importantes sean las<br />
atribuciones conferi<strong>da</strong>s al órgano crea<strong>do</strong><br />
y la autonomía que se le reconoce.<br />
D. La Policía Judicial<br />
Acerca de este tema, M. Riera Hunter 6<br />
expresa cuanto sigue:<br />
.. las funciones policiales tienen una <strong>do</strong>ble<br />
naturaleza: por una parte, se encuentran las<br />
funciones de prevención de los delitos y la<br />
seguri<strong>da</strong>d de las personas y sus bienes, las que<br />
se hallan a cargo de la denomina<strong>da</strong> Policía<br />
Preventiva o de Seguri<strong>da</strong>d, que normalmente<br />
depende del Poder Ejecutivo o Administra<strong>do</strong>r;<br />
por otra parte, se hallan las funciones de<br />
investigación de los delitos, de detención<br />
de los delincuentes, y de aportación de las<br />
pruebas y demás elementos de convicción,<br />
función que debe corresponder a un organismo<br />
especializa<strong>do</strong> denomina<strong>do</strong> Policía Judicial,<br />
dependiente de la Corte Suprema de Justicia,<br />
y al servicio de los jueces en general y de los<br />
jueces en lo penal, en particular ...<br />
La Constitución paraguaya de<br />
1992 ha incorpora<strong>do</strong> la disposición que<br />
transcribimos a continuación.<br />
Art. 272: La ley podrá crear una Policía<br />
Judicial, dependiente del Poder Judicial,<br />
a fin de colaborar directamente con el<br />
Ministerio Público.<br />
Sin embargo, hasta el presente, la<br />
Policía Judicial no ha si<strong>do</strong> crea<strong>da</strong>.<br />
65
66<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
Mecanismos para la<br />
independencia económica del<br />
Poder Judicial<br />
La independencia política no alcanza una<br />
plena efectivi<strong>da</strong>d si no va acompaña<strong>da</strong> de<br />
una independencia económica. En caso<br />
contrario, la independencia se vuelve<br />
meramente retórica, aparece como algo<br />
ilusorio. De manera que es indispensable<br />
que exista independencia económica.<br />
La independencia económica del Poder<br />
Judicial sólo puede ser logra<strong>da</strong> si, a nivel<br />
constitucional, se establece una asignación<br />
presupuestaria mínima para el Poder<br />
Judicial, es decir, se fija un porcentaje de<br />
los recursos previstos en el presupuesto<br />
general que, como mínimo, debe ser<br />
destina<strong>do</strong> a dicho poder; se establece que<br />
el proyecto de presupuesto judicial debe<br />
ser elabora<strong>do</strong> por el órgano supremo del<br />
Poder Judicial; se protege el presupuesto<br />
elabora<strong>do</strong> en cuanto a las modificaciones<br />
que pue<strong>da</strong> introducir el órgano ejecutivo;<br />
se garantiza la disponibili<strong>da</strong>d de fon<strong>do</strong>s o<br />
parti<strong>da</strong>s en el momento oportuno y en la<br />
canti<strong>da</strong>d necesaria, y se determina que la<br />
ejecución del presupuesto judicial debe ser<br />
realiza<strong>da</strong> por la Corte Suprema de Justicia,<br />
con facultad de reprogramación.<br />
Algunas de las ideas que acabamos<br />
de mencionar, han si<strong>do</strong> plasma<strong>da</strong>s como<br />
normas de máximo rango. Así tenemos las<br />
siguientes constituciones:<br />
El Salva<strong>do</strong>r, Art. 172:. ... El Órgano<br />
Judicial dispondrá anualmente de una<br />
asignación no inferior al seis por ciento de<br />
los ingresos corrientes del presupuesto del<br />
Esta<strong>do</strong>.<br />
Art. 182. Son atribuciones de la Corte<br />
Suprema de Justicia:<br />
... 13ª. Elaborar el proyecto de presupuesto<br />
de los suel<strong>do</strong>s y gastos de la administración<br />
de justicia y remitirlo al Órgano Ejecutivo<br />
para su inclusión sin modificaciones en el<br />
proyecto del Presupuesto General del Esta<strong>do</strong>.<br />
Los ajustes presupuestarios que la Asamblea<br />
Legislativa considere necesario hacer a dicho<br />
proyecto, se harán en consulta con la Corte<br />
Suprema de Justicia..<br />
Guatemala, Art. 213: Es atribución de<br />
la Corte Suprema de Justicia formular el<br />
presupuesto del Ramo; para el efecto, se le<br />
asigna una canti<strong>da</strong>d no menor del <strong>do</strong>s por<br />
ciento del Presupuesto de Ingresos Ordinarios<br />
del Esta<strong>do</strong>, que deberá entregarse a la<br />
Tesorería del Organismo Judicial ca<strong>da</strong> mes<br />
en forma proporcional y anticipa<strong>da</strong> por el<br />
órgano correspondiente ...<br />
Paraguay, Art. 249: El Poder Judicial<br />
goza de autonomía presupuestaria. En<br />
el Presupuesto General de la Nación se le<br />
asignará una canti<strong>da</strong>d no inferior al tres por<br />
ciento del presupuesto de la Administración<br />
Central.<br />
El presupuesto del Poder Judicial será<br />
aproba<strong>do</strong> por el Congreso, y la Contraloría<br />
General de la República verificará to<strong>do</strong>s sus<br />
gastos e inversiones.<br />
En páginas precedentes hemos visto que<br />
en varios ordenamientos constitucionales,<br />
la facultad de elaborar el presupuesto del<br />
Poder Judicial y la de ejecutarlo una vez<br />
aproba<strong>do</strong> por el órgano legislativo, están<br />
conferi<strong>da</strong>s al Consejo de la Magistratura o<br />
Judicatura. Tal circunstancia, según cual<br />
sea la conformación del cita<strong>do</strong> consejo y<br />
La<br />
independencia<br />
política no<br />
alcanza<br />
una plena<br />
efectivi<strong>da</strong>d<br />
si no va<br />
acompaña<strong>da</strong><br />
de una<br />
independencia<br />
económica.
La situación de<br />
la magistratura<br />
en América<br />
Latina en<br />
cuanto a la<br />
inamovili<strong>da</strong>d<br />
es bastante<br />
satisfactoria.<br />
su gra<strong>do</strong> de autonomía respecto del órgano<br />
máximo del Poder Judicial, determina una<br />
considerable limitación de las atribuciones<br />
de éste y, consiguientemente, una severa<br />
restricción en cuanto a la independencia<br />
económica del menciona<strong>do</strong> poder. 7<br />
Mecanismos para la<br />
independencia funcional de los<br />
jueces<br />
La independencia funcional se refiere<br />
a la persona del magistra<strong>do</strong>, es decir,<br />
al órgano-persona. Para garantizarla<br />
se han crea<strong>do</strong> mecanismos que buscan<br />
proteger al magistra<strong>do</strong> de las influencias<br />
o presiones que pudieran ejercerse sobre<br />
él. A continuación nos referimos a dichos<br />
mecanismos.<br />
A. La inamovili<strong>da</strong>d permanente<br />
La inamovili<strong>da</strong>d debe <strong>da</strong>rse en cuanto<br />
al cargo, la sede y el gra<strong>do</strong>. El magistra<strong>do</strong><br />
no puede ser separa<strong>do</strong> de la función<br />
jurisdiccional, sino por las causales<br />
previstas y por el procedimiento estableci<strong>do</strong><br />
constitucional o legalmente, para la<br />
remoción de magistra<strong>do</strong>s.<br />
La inamovili<strong>da</strong>d en cuanto a la sede<br />
implica que, sin consentimiento previo,<br />
el magistra<strong>do</strong> no puede ser trasla<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
una circuscripción judicial a otra, de una<br />
locali<strong>da</strong>d a otra, de una jurisdicción a otra,<br />
de un turno a otro.<br />
La inamovili<strong>da</strong>d en cuanto al gra<strong>do</strong>,<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
significa que no puede <strong>da</strong>rse un ascenso, sin<br />
su consentimiento. 8<br />
En lo que se refiere a la duración<br />
de la inamovili<strong>da</strong>d, podemos hablar de<br />
inamovili<strong>da</strong>d temporal e inamovili<strong>da</strong>d<br />
permanente.<br />
La inamovili<strong>da</strong>d temporal, que sólo<br />
asegura al magistra<strong>do</strong> la permanencia en<br />
el cargo durante un perio<strong>do</strong> de tiempo<br />
determina<strong>do</strong>, indu<strong>da</strong>blemente no es<br />
suficiente para garantizar la independencia<br />
funcional de aquel. Por eso se debe tender<br />
a la inamovili<strong>da</strong>d permanente según<br />
la cual el magistra<strong>do</strong> se mantiene en el<br />
cargo mientras dure su buena conducta e<br />
i<strong>do</strong>nei<strong>da</strong>d.<br />
La inamovili<strong>da</strong>d permanente presenta,<br />
por lo menos, <strong>do</strong>s variantes: que la<br />
inamovili<strong>da</strong>d permanente se dé luego de un<br />
perio<strong>do</strong> de prueba o de un perio<strong>do</strong> inicial<br />
en que sólo hay inamovili<strong>da</strong>d temporal; y<br />
que la inamovili<strong>da</strong>d permanente se dé ab<br />
initio, es decir, desde la misma designación<br />
del magistra<strong>do</strong>.<br />
Si hacemos una observación de la<br />
situación de la magistratura en América<br />
Latina en cuanto a la inamovili<strong>da</strong>d,<br />
podemos afirmar que, en líneas generales,<br />
es bastante satisfactoria.<br />
Debemos analizar, en primer lugar,<br />
la situación de los magistra<strong>do</strong>s de las<br />
instancias inferiores.<br />
a) El caso de Guatemala, <strong>do</strong>nde sólo<br />
existe inamovili<strong>da</strong>d temporal, constituye<br />
una excepción.<br />
7 En el senti<strong>do</strong> indica<strong>do</strong> pueden mencionarse las constituciones de Colombia (Art. 256, inc. 5), Argentina (Art. 114, inc. 3), Bolivia (Art. 123, inc. 4).<br />
En México, la elaboración del proyecto de presupuesto del Poder Judicial, con excepción de la Suprema Corte de Justicia, corresponde al Consejo de la<br />
Judicatura Federal (Art. 100).<br />
8 Al respecto, la Constitución paraguaya establece lo siguiente: Los magistra<strong>do</strong>s son inamovibles en cuanto al cargo, a la sede o al gra<strong>do</strong>, durante el<br />
término para el cual fueron nombra<strong>do</strong>s. No pueden ser trasla<strong>da</strong><strong>do</strong>s ni ascendi<strong>do</strong>s sin su consentimiento previo y expreso ... (Art. 252)<br />
67
68<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
El Art. 208 de la Constitución<br />
guatemalteca establece:<br />
Los magistra<strong>do</strong>s, cualquiera que sea<br />
su categoría, y los jueces de primera<br />
instancia, durarán en sus funciones cinco<br />
años, pudien<strong>do</strong> ser reelectos los primeros<br />
y nombra<strong>do</strong>s nuevamente los segun<strong>do</strong>s.<br />
Durante ese perío<strong>do</strong> no podrán ser removi<strong>do</strong>s<br />
ni suspendi<strong>do</strong>s, sino en los casos y con las<br />
formali<strong>da</strong>des que disponga la ley.<br />
b) Las constituciones del Brasil y el<br />
Uruguay establecen un perio<strong>do</strong> de prueba<br />
o interinato que precede a la inamovili<strong>da</strong>d<br />
permanente y durante el cual la remoción<br />
puede <strong>da</strong>rse en cualquier momento.<br />
Además, en el Brasil la inamovili<strong>da</strong>d<br />
permanente puede cesar por motivos de<br />
interés público.<br />
Veamos las disposiciones<br />
constitucionales que se refieren al tema:<br />
Brasil. Art. 95: Los jueces gozan de las<br />
siguientes garantías:<br />
I. carácter vitalicio, que, en el primer gra<strong>do</strong>,<br />
sólo será adquiri<strong>do</strong> después de <strong>do</strong>s años de<br />
ejercicio, dependien<strong>do</strong> la pérdi<strong>da</strong> del cargo en<br />
ese perío<strong>do</strong> de decisión del tribunal al que el<br />
juez estuviera vincula<strong>do</strong> y, en los demás casos,<br />
de sentencia judicial firme;<br />
II. inamovili<strong>da</strong>d, salvo por motivo de interés<br />
público, en la forma del artículo 93, VIII ... (el<br />
acto de remoción, excedencia y jubilación del<br />
magistra<strong>do</strong> por interés público, dependerá de la<br />
decisión por voto de <strong>do</strong>s tercios, del respectivo<br />
tribunal, asegurán<strong>do</strong>se amplia defensa).<br />
Uruguay. Art. 239: A la Suprema Corte de<br />
Justicia corresponde:<br />
...5º: Nombrar a los Jueces Letra<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s<br />
los gra<strong>do</strong>s y denominaciones, necesitán<strong>do</strong>se,<br />
en ca<strong>da</strong> caso, la mayoría absoluta del total<br />
de componentes de la Suprema Corte.<br />
Estos nombramientos tendrán carácter<br />
de definitivos desde el momento en que<br />
se produzcan, cuan<strong>do</strong> recaigan sobre<br />
ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos que ya pertenecían, con<br />
antigüe<strong>da</strong>d de <strong>do</strong>s años, a la Judicatura, al<br />
Ministerio Público y Fiscal o a la Justicia de<br />
Paz, en destinos que deban ser desempeña<strong>do</strong>s<br />
por aboga<strong>do</strong>s.<br />
Si los mismos funcionarios tuviesen menor<br />
antigüe<strong>da</strong>d en sus respectivos cargos serán<br />
considera<strong>do</strong>s con carácter de Jueces Letra<strong>do</strong>s<br />
interinos, por un perío<strong>do</strong> de <strong>do</strong>s años, a<br />
contar desde la fecha de nombramiento, y<br />
por el mismo tiempo tendrán ese carácter<br />
los ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos que recién ingresen a la<br />
Magistratura.<br />
Durante el perío<strong>do</strong> de interinato, la Suprema<br />
Corte podrá remover en cualquier momento<br />
al Juez Letra<strong>do</strong> interino, por mayoría<br />
absoluta del total de sus miembros. Venci<strong>do</strong><br />
el término del interinato, el nombramiento se<br />
considerará confirma<strong>do</strong> de pleno derecho ...<br />
c) En México, la inamovili<strong>da</strong>d<br />
permanente está precedi<strong>da</strong> de un perio<strong>do</strong><br />
de inamovili<strong>da</strong>d temporal. En el Paraguay<br />
existen <strong>do</strong>s perio<strong>do</strong>s de cinco años de<br />
inamovili<strong>da</strong>d temporal y luego se adquiere<br />
la inamovili<strong>da</strong>d permanente.<br />
El Art. 97 de la Constitución mexicana<br />
prescribe:<br />
Los magistra<strong>do</strong>s de circuito y los jueces de<br />
distrito ... Durarán seis años en el ejercicio de<br />
su encargo, al término de los cuales, si fueran<br />
ratifica<strong>do</strong>s o promovi<strong>do</strong>s a cargos superiores,<br />
solo podrán ser priva<strong>do</strong>s de sus puestos en los<br />
casos y conforme a los procedimientos que<br />
establezca la ley.
El Art. 252 de la Constitución<br />
paraguaya reza así:<br />
Los magistra<strong>do</strong>s ... Son designa<strong>do</strong>s por<br />
perío<strong>do</strong>s de cinco años, a contar de su<br />
nombramiento.<br />
Los magistra<strong>do</strong>s que hubiesen si<strong>do</strong><br />
confirma<strong>do</strong>s por <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s siguientes al<br />
de su elección, adquieren la inamovili<strong>da</strong>d en<br />
el cargo hasta el límite de e<strong>da</strong>d estableci<strong>do</strong><br />
para los miembros de la Corte Suprema de<br />
Justicia.<br />
d) En otros países la inamovili<strong>da</strong>d<br />
permanente se <strong>da</strong> ab initio. Así ocurre en la<br />
Argentina y en Venezuela.<br />
El Art. 110 de la Constitución<br />
argentina dice:<br />
Los jueces de la Corte Suprema y de<br />
los tribunales inferiores de la Nación<br />
conservarán sus empleos mientras dure su<br />
buena conducta ...<br />
El Art. 255 de la Constitución<br />
venezolana dispone:<br />
... Los jueces o juezas sólo podrán ser<br />
removi<strong>do</strong>s o suspendi<strong>do</strong>s de sus cargos<br />
mediante los procedimientos expresamente<br />
previstos en la ley ...<br />
En nuestra opinión, to<strong>do</strong>s estos<br />
sistemas, salvo el de Guatemala, son<br />
aceptables pues, en definitiva, consagran<br />
la inamovili<strong>da</strong>d permanente de los<br />
magistra<strong>do</strong>s.<br />
El problema se presenta en América<br />
Latina en cuanto a la situación de los<br />
integrantes de los órganos máximos<br />
del Poder Judicial. En este aspecto la<br />
legislación varía desde la inamovili<strong>da</strong>d<br />
temporal -con prohibición absoluta de<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
reelección o con posibili<strong>da</strong>d de reelección<br />
restringi<strong>da</strong>, en el senti<strong>do</strong> de que debe pasar<br />
cierto perio<strong>do</strong> de tiempo para que sea<br />
posible la reelección-, hasta la inamovili<strong>da</strong>d<br />
permanente ab initio.<br />
a) Dentro de la primera variante<br />
se inscriben los siguientes países:<br />
Colombia, en que el perio<strong>do</strong> es de ocho<br />
años, sin posibili<strong>da</strong>d de reelección;<br />
Venezuela, con un perio<strong>do</strong> de <strong>do</strong>ce<br />
años, sin posibili<strong>da</strong>d de reelección;<br />
Bolivia, con un perío<strong>do</strong> de diez años y<br />
posibili<strong>da</strong>d de reelección restringi<strong>da</strong>;<br />
Uruguay, en la misma situación, y<br />
Guatemala, con un perio<strong>do</strong> de cinco años<br />
y posibili<strong>da</strong>d de reelección.<br />
A continuación transcribimos los textos<br />
constitucionales pertinentes:<br />
Colombia. Art. 233: Los Magistra<strong>do</strong>s ...<br />
de la Corte Suprema de Justicia ... serán<br />
elegi<strong>do</strong>s para un perio<strong>do</strong> de ocho años, no<br />
podrán ser reelegi<strong>do</strong>s y permanecerán en<br />
el ejercicio de sus cargos mientras observen<br />
buena conducta, tengan rendimiento<br />
satisfactorio y no hayan llega<strong>do</strong> a e<strong>da</strong>d de<br />
retiro forzoso.<br />
Venezuela. Art. 264: Los magistra<strong>do</strong>s<br />
o magistra<strong>da</strong>s del Tribunal Supremo de<br />
Justicia serán elegi<strong>do</strong>s por un único perío<strong>do</strong><br />
de <strong>do</strong>ce años ...<br />
Bolivia. Art. 117. I. La Corte Suprema de<br />
Justicia es el máximo tribunal de justicia<br />
ordinaria, contenciosa y contencioso-<br />
administrativa de la República ....<br />
IV. Los Ministros ... Desempeñan sus<br />
funciones por un perio<strong>do</strong> personal e<br />
improrrogable de diez años, computables<br />
desde el día de su posesión y no pueden ser<br />
69
70<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
reelegi<strong>do</strong>s sino pasa<strong>do</strong> un tiempo igual al que<br />
hubieran ejerci<strong>do</strong> su man<strong>da</strong>to.<br />
Uruguay. Art. 237: Los miembros de la<br />
Suprema Corte de Justicia durarán diez<br />
años en sus cargos sin perjuicio de lo que<br />
dispone el artículo 250 [to<strong>do</strong> miembro del<br />
Poder Judicial cesará en el cargo al cumplir<br />
setenta años de e<strong>da</strong>d]y no podrán ser<br />
reelectos sin que medien cinco años entre su<br />
cese y la reelección.<br />
Guatemala. Art. 215: Los magistra<strong>do</strong>s de la<br />
Corte Suprema de Justicia serán electos por<br />
el congreso de la República para un perío<strong>do</strong><br />
de cinco años ...<br />
b) En el otro extremo, están las<br />
Constituciones que consagran la<br />
inamovili<strong>da</strong>d permanente de los miembros<br />
del máximo órgano judicial ab initio. Tal<br />
es el caso de la Argentina, el Ecua<strong>do</strong>r y el<br />
Paraguay.<br />
Las disposiciones constitucionales<br />
pertinentes son las siguientes:<br />
Argentina, Art. 110: Los jueces de la Corte<br />
Suprema ... de la Nación conservarán sus<br />
empleos mientras dure su buena conducta ...<br />
Ecua<strong>do</strong>r, Art. 202: Los magistra<strong>do</strong>s de la<br />
Corte Suprema de Justicia no estarán sujetos<br />
a perío<strong>do</strong> fijo en relación con la duración de<br />
sus cargos. Cesarán en sus funciones por las<br />
causales determina<strong>da</strong>s en la Constitución y<br />
la ley ...<br />
Paraguay, Art. 261: Los ministros de la Corte<br />
Suprema de Justicia sólo podrán ser removi<strong>do</strong>s<br />
por juicio político. Cesarán en el cargo<br />
cumpli<strong>da</strong> la e<strong>da</strong>d de setenta y cinco años.<br />
c) Entre las <strong>do</strong>s situaciones que<br />
acabamos de describir y que podemos<br />
llamar extremas, el caso de México se<br />
presenta como una solución intermedia de<br />
características muy interesantes.<br />
La disposición constitucional mexicana,<br />
en senti<strong>do</strong> estricto, debería ser inclui<strong>da</strong><br />
en la primera variante, es decir, se trataría<br />
de un caso de inamovili<strong>da</strong>d temporal, con<br />
prohibición absoluta de reelección. Pero<br />
<strong>do</strong>s características: el tiempo relativamente<br />
largo que dura el perío<strong>do</strong> de los ministros<br />
de la Suprema Corte y la previsión<br />
constitucional de que al término del mismo<br />
tienen derecho a un haber de retiro, lo<br />
convierten en un sistema singular.<br />
El Art. 94 de la Constitución de México<br />
reza así:<br />
... Los ministros de la Suprema Corte de<br />
Justicia durarán en su encargo quince<br />
años, sólo podrán ser removi<strong>do</strong>s del mismo<br />
en los términos del Título Cuarto de esta<br />
Constitución y, al vencimiento de su perio<strong>do</strong>,<br />
tendrán derecho a un haber por retiro.<br />
Ninguna persona que haya si<strong>do</strong> Ministro<br />
podrá ser nombra<strong>da</strong> para un nuevo perio<strong>do</strong>,<br />
salvo que hubiera ejerci<strong>do</strong> el cargo con el<br />
carácter de provisional o interino<br />
A nuestro criterio se trata de una<br />
disposición que establece una solución<br />
aceptable en cuanto a la inamovili<strong>da</strong>d de<br />
los integrantes del máximo órgano judicial.<br />
Así lo será particularmente en países que<br />
hayan alcanza<strong>do</strong> cierto gra<strong>do</strong> de estabili<strong>da</strong>d<br />
e institucionali<strong>da</strong>d en el funcionamiento<br />
de sus órganos de gobierno, pues en ellos el<br />
acceso a la más alta magistratura judicial,<br />
como consecuencia de la vigencia efectiva<br />
de la carrera judicial, estará precedi<strong>da</strong> del
Las<br />
inmuni<strong>da</strong>des<br />
judiciales<br />
encuentran su<br />
razón de ser en<br />
la necesi<strong>da</strong>d<br />
de proteger al<br />
magistra<strong>do</strong> de<br />
to<strong>do</strong> tipo de<br />
ataque contra su<br />
persona, contra<br />
sus familiares<br />
o contra sus<br />
bienes.<br />
ejercicio de la función jurisdiccional en<br />
instancias inferiores. Si tenemos en cuenta<br />
esto, el espacio de tiempo previsto no puede<br />
ser considera<strong>do</strong> corto. Incluso tampoco<br />
lo es para quienes pudieran acceder<br />
directamente al cargo.<br />
El haber por retiro, previsto<br />
constitucionalmente, al proporcionarle al<br />
magistra<strong>do</strong> la seguri<strong>da</strong>d necesaria en el<br />
perio<strong>do</strong> posterior al ejercicio del cargo,<br />
crea las condiciones necesarias para una<br />
actuación independiente durante el tiempo<br />
que integre la Suprema Corte de Justicia.<br />
B. La irreductibili<strong>da</strong>d de las<br />
remuneraciones<br />
Los Magistra<strong>do</strong>s Judiciales, sujetos<br />
normalmente a un régimen de<br />
incompatibili<strong>da</strong>des que les impide el ejercicio<br />
de activi<strong>da</strong>des lucrativas al margen de la<br />
función judicial, son acree<strong>do</strong>res de una<br />
remuneración decorosa que les permita<br />
un desenvolvimiento personal y familiar<br />
digno. Tales remuneraciones, además,<br />
deben ser protegi<strong>da</strong>s de disminuciones que<br />
podrían afectar su nivel de vi<strong>da</strong> y, con ello,<br />
menoscabar su independencia funcional. 9<br />
Se hace necesario, pues, consagrar<br />
la garantía de la irreductibili<strong>da</strong>d de<br />
las remuneraciones de los magistra<strong>do</strong>s<br />
judiciales.<br />
Tal garantía tiene rango constitucional en<br />
la Argentina. En efecto, el Art. 110 dispone:<br />
Los jueces de la Corte Suprema y de<br />
los tribunales inferiores de la Nación ...<br />
recibirán por sus servicios una compensación<br />
9 Marcos Riera Hunter, op. cit., p. 30.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
que determinará la ley, y que no podrá ser<br />
disminui<strong>da</strong> en manera alguna, mientras<br />
permaneciesen en sus funciones.<br />
La afirmación de que dicha<br />
compensación “no podrá ser disminui<strong>da</strong> en<br />
manera alguna”, ha permiti<strong>do</strong> interpretar la<br />
disposición en el senti<strong>do</strong> de que ella excluye<br />
también la posibili<strong>da</strong>d de que dichas<br />
remuneraciones sean grava<strong>da</strong>s con tributos.<br />
La Constitución brasileña también<br />
consagra la garantía de la “irreductibili<strong>da</strong>d<br />
de los salarios” (Art. 95, III). Sin<br />
embargo, en forma expresa se establece<br />
que, en cuanto a la remuneración de los<br />
magistra<strong>do</strong>s, se debe observar la disposición<br />
constitucional que prohibe hacer cualquier<br />
distinción entre los contribuyentes por<br />
razón de la función ejerci<strong>da</strong> por ellos<br />
(Art. 150, II), así como la que consagra<br />
la facultad de establecer impuestos sobre<br />
renta y ganancias de cualquier naturaleza<br />
(Art. 153, III).<br />
C. Las inmuni<strong>da</strong>des judiciales<br />
Las inmuni<strong>da</strong>des judiciales encuentran<br />
su razón de ser en la necesi<strong>da</strong>d de proteger<br />
al magistra<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> tipo de ataque contra<br />
su persona, contra sus familiares o contra<br />
sus bienes. La <strong>do</strong>ctrina y la legislación<br />
reconocen las siguientes prerrogativas<br />
o privilegios: inmuni<strong>da</strong>d de opinión,<br />
inmuni<strong>da</strong>d de detención o arresto, e<br />
inmuni<strong>da</strong>d de proceso.<br />
En virtud de la inmuni<strong>da</strong>d de opinión,<br />
los magistra<strong>do</strong>s judiciales no pueden<br />
ser someti<strong>do</strong>s a proceso penal por las<br />
71
72<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
opiniones que vertieren en el ejercicio de<br />
sus funciones. En otras palabras, que<strong>da</strong><br />
ve<strong>da</strong><strong>da</strong> la posibili<strong>da</strong>d de instaurar contra<br />
ellos una querella por injuria, difamación<br />
o calumnia, cuan<strong>do</strong> las opiniones sean<br />
emiti<strong>da</strong>s en las circunstancias señala<strong>da</strong>s.<br />
La cita<strong>da</strong> inmuni<strong>da</strong>d debe ser interpreta<strong>da</strong><br />
en forma amplia y absoluta, y la protección<br />
es definitiva, perpetua, vitalicia y no cesa<br />
por el hecho de que el magistra<strong>do</strong> deje de<br />
serlo. 10<br />
Acerca de la inmuni<strong>da</strong>d de opinión, M.<br />
Riera Hunter opina lo siguiente:<br />
La argumentación, nota esencial e inexcusable<br />
de las sentencias judiciales, impone a<br />
los órganos jurisdiccionales la necesi<strong>da</strong>d<br />
insoslayable de emitir una serie de juicios,<br />
afirmaciones, opiniones, estimaciones,<br />
valoraciones y criterios diversos respecto<br />
de situaciones de hechos y de derecho que<br />
están destina<strong>do</strong>s a servir de fun<strong>da</strong>mento<br />
a las sentencias judiciales ... Tal función<br />
juzga<strong>do</strong>ra obliga, como se dijo, al Magistra<strong>do</strong><br />
a formular una serie de dichos, afirmaciones<br />
y conceptos que pueden eventualmente<br />
afectar a las personas involucra<strong>da</strong>s directa o<br />
indirectamente en la causa, y es por ello por<br />
lo que a fin de prevenir y evitar las reacciones<br />
negativas, como represalias, presiones o<br />
molestias que pudieran perturbar la función<br />
jurisdiccional, las legislaciones constitucionales<br />
modernas consagran expresamente la<br />
inmuni<strong>da</strong>d de opinión del Magistra<strong>do</strong><br />
Judicial de la misma manera y con el mismo<br />
fun<strong>da</strong>mento y alcance con que se la consagra<br />
en beneficio de los legisla<strong>do</strong>res ...<br />
... no es extraño que en una resolución judicial<br />
se afirme que una de las partes (o ambas)<br />
han actua<strong>do</strong> con <strong>do</strong>lo y mala fe; que se han<br />
enriqueci<strong>do</strong> ilícitamente; que han incurri<strong>do</strong><br />
en hechos supuestamente delictuosos, o que<br />
llevan una vi<strong>da</strong> personal desarregla<strong>da</strong>, con<br />
inclinación a la bebi<strong>da</strong>, las drogas, u otros<br />
vicios de morali<strong>da</strong>d, etc. Tales afirmaciones,<br />
aunque se refieran al honor y a la fama<br />
de las personas no pueden constituir delito<br />
de difamación y calumnia por cuanto que<br />
el órgano jurisdiccional está obliga<strong>do</strong> a<br />
formular muchas veces tales opiniones como<br />
fun<strong>da</strong>mento de sus decisiones ...<br />
... el lenguaje utiliza<strong>do</strong> por el Juez en los fallos<br />
es discrecional de ca<strong>da</strong> órgano en particular,<br />
y su conteni<strong>do</strong> depende en último gra<strong>do</strong> de<br />
la discreción, serie<strong>da</strong>d, circunspección y<br />
prudencia que son presupuestos necesarios de<br />
la función judicial ... 11<br />
Ultimamente se ha intenta<strong>do</strong><br />
sostener que la protección que brin<strong>da</strong> la<br />
inmuni<strong>da</strong>d de opinión a los magistra<strong>do</strong>s<br />
judiciales, debe entenderse como referi<strong>da</strong><br />
sólo al ámbito penal, en los términos<br />
que acabamos de señalar. Esto significa<br />
que de las opiniones de los juzga<strong>do</strong>res<br />
en el ejercicio de sus funciones, podría<br />
derivar responsabili<strong>da</strong>d en el ámbito<br />
civil. Entonces, si bien está descarta<strong>da</strong><br />
to<strong>da</strong> acción penal, cabría, sin embargo, la<br />
posibili<strong>da</strong>d de iniciar una deman<strong>da</strong> por<br />
indemnización de <strong>da</strong>ños y perjuicios.<br />
A nuestro criterio, la inmuni<strong>da</strong>d de<br />
opinión debe ser interpreta<strong>da</strong> en el senti<strong>do</strong><br />
10 La inmuni<strong>da</strong>d de opinión de los magistra<strong>do</strong>s judiciales está consagra<strong>da</strong> en la Constitución paraguaya en los siguientes términos: Ningún magistra<strong>do</strong><br />
judicial podrá ser acusa<strong>do</strong> o interroga<strong>do</strong> judicialmente por las opiniones emiti<strong>da</strong>s en el ejercicio de sus funciones (Art. 255, 1a. parte).<br />
11 M. Riera Hunter, op. cit., pp. 231-233.
amplio de que las opiniones emiti<strong>da</strong>s<br />
por los magistra<strong>do</strong>s en sus resoluciones<br />
(providencias, autos interlocutorios<br />
o sentencias definitivas), durante el<br />
transcurso de una audiencia o juicio oral,<br />
etc., no <strong>da</strong>rán lugar a ningún tipo de<br />
responsabili<strong>da</strong>d siempre que se trate del<br />
ejercicio regular de sus funciones.<br />
Es decir, la responsabili<strong>da</strong>d sólo podrá<br />
surgir cuan<strong>do</strong> exista ejercicio irregular.<br />
Como expresa Gui<strong>do</strong> Santiago Tawil:<br />
“su responsabili<strong>da</strong>d ... se limitará ... a los<br />
<strong>da</strong>ños que pudiera haber causa<strong>do</strong> como<br />
consecuencia de su obrar irregular”. 12<br />
El ejercicio irregular de funciones es<br />
requisito indispensable para que pue<strong>da</strong><br />
existir responsabili<strong>da</strong>d. Tal extremo debe<br />
ser declara<strong>do</strong> por el órgano competente para<br />
hacerlo según la Constitución y la ley, y por<br />
el procedimiento estableci<strong>do</strong> de igual mo<strong>do</strong>.<br />
Sólo así puede que<strong>da</strong>r determina<strong>do</strong> el<br />
ejercicio irregular de funciones de parte de<br />
magistra<strong>do</strong>s judiciales, lo cual hace nacer<br />
la responsabili<strong>da</strong>d civil de los mismos. Si<br />
este paso no estuviere cumpli<strong>do</strong>, ninguna<br />
deman<strong>da</strong> que pretendiere hacer efectiva la<br />
responsabili<strong>da</strong>d civil del magistra<strong>do</strong> por<br />
dicha causal, puede prosperar.<br />
En cuanto a la inmuni<strong>da</strong>d de arresto o<br />
detención, la regla general es que ningún<br />
magistra<strong>do</strong> judicial puede ser deteni<strong>do</strong> o<br />
arresta<strong>do</strong>. La excepción suele ser la flagrancia<br />
en la comisión de delitos o crímenes. 13<br />
La inmuni<strong>da</strong>d de proceso protege al<br />
magistra<strong>do</strong> contra la posibili<strong>da</strong>d de ser<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
someti<strong>do</strong> a proceso penal directamente.<br />
Implica la existencia de un procedimiento<br />
previo mediante el cual se le priva de esta<br />
inmuni<strong>da</strong>d y se autoriza su sometimiento<br />
a la justicia penal ordinaria. Dicho<br />
procedimiento puede ser un juicio político<br />
u otro específico legisla<strong>do</strong> al efecto.<br />
En relación con la inmuni<strong>da</strong>d de<br />
proceso o antejuicio, la Constitución<br />
guatemalteca contiene el Art. 206 que dice:<br />
Los magistra<strong>do</strong>s y jueces gozarán del<br />
derecho de antejuicio en la forma que<br />
lo determine la ley. El Congreso de<br />
la República tiene competencia para<br />
declarar si ha lugar o no a formación de<br />
causa contra el Presidente del Organismo<br />
Judicial y los magistra<strong>do</strong>s de la Corte<br />
Suprema de Justicia.<br />
Corresponde a esta última la competencia<br />
en relación a los otros magistra<strong>do</strong>s y jueces.<br />
En el Paraguay, los ministros de la<br />
Corte Suprema de Justicia sólo pueden<br />
ser someti<strong>do</strong>s a proceso penal, después<br />
de haber si<strong>do</strong> destitui<strong>do</strong>s del cargo como<br />
consecuencia de un juicio político en que<br />
hubieren si<strong>do</strong> halla<strong>do</strong>s culpables de la<br />
comisión de delitos o crímenes (Art. 225<br />
Cn.). Los magistra<strong>do</strong>s de las instancias<br />
inferiores, sólo pueden ser someti<strong>do</strong>s<br />
a proceso penal, cuan<strong>do</strong> la acusación<br />
contra los mismos fuere la comisión de<br />
delitos o crímenes, después que el Jura<strong>do</strong><br />
de Enjuiciamiento de Magistra<strong>do</strong>s lo<br />
autorice.<br />
12 G. S. Tawil, La responsabili<strong>da</strong>d del Esta<strong>do</strong> y de los magistra<strong>do</strong>s y funcionarios judiciales por el mal funcionamiento de la administración de justicia,<br />
Bs. As., Ed. Depalma, 1989, p. 142.<br />
13 La inmuni<strong>da</strong>d de arresto o detención de los magistra<strong>do</strong>s judiciales está consagra<strong>da</strong> en la Constitución paraguaya en los siguientes términos: No podrá<br />
ser deteni<strong>do</strong> o arresta<strong>do</strong> sino en caso de flagrante delito que merezca pena corporal. Si así ocurriese la autori<strong>da</strong>d interviniente debe ponerlo bajo custodia en<br />
su residencia, comunicar de inmediato el hecho a la Corte Suprema de Justicia, y remitir los antecedentes al juez competente (Art. 255, 2ª parte).<br />
73
74<br />
INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />
D. Las incompatibili<strong>da</strong>des<br />
judiciales<br />
Las incompatibili<strong>da</strong>des judiciales<br />
constituyen una garantía judicial por<br />
medio de la cual se pretende lograr, por<br />
una parte, la imparciali<strong>da</strong>d del magistra<strong>do</strong>,<br />
y por la otra, la contracción a la función<br />
jurisdiccional evitan<strong>do</strong> que la realización<br />
otras activi<strong>da</strong>des lucrativas o no, en forma<br />
paralela, pue<strong>da</strong> <strong>da</strong>r lugar a la dispersión.<br />
En este senti<strong>do</strong>, por lo general, se<br />
establece que los magistra<strong>do</strong>s no pueden<br />
participar en activi<strong>da</strong>des políticas<br />
y parti<strong>da</strong>rias, ejercer activi<strong>da</strong>des<br />
profesionales, comerciales o industriales, o<br />
empleos públicos o priva<strong>do</strong>s. La excepción<br />
más comúnmente admiti<strong>da</strong>, es el ejercicio<br />
de la cátedra a tiempo parcial.<br />
Al respecto, la Constitución<br />
paraguaya prescribe lo siguiente:<br />
Art. 254: Los magistra<strong>do</strong>s no pueden ejercer,<br />
mientras duren en sus funciones, otro cargo<br />
público o priva<strong>do</strong>, remunera<strong>do</strong> o no, salvo<br />
la <strong>do</strong>cencia o la investigación científica, a<br />
tiempo parcial. Tampoco pueden ejercer el<br />
comercio, la industria o activi<strong>da</strong>d profesional<br />
o política alguna, ni desempeñar cargos en<br />
organismos oficiales o priva<strong>do</strong>s, parti<strong>do</strong>s,<br />
asociaciones o movimientos políticos.<br />
Hemos aludi<strong>do</strong> a diversos aspectos<br />
de la independencia del Poder Judicial<br />
con la intención de reflexionar acerca de<br />
algunas figuras o instituciones nove<strong>do</strong>sas<br />
y, fun<strong>da</strong>mentalmente, para advertir<br />
de los peligros que algunas de estas<br />
innovaciones pueden significar para dicha<br />
independencia, la cual, sin du<strong>da</strong> alguna,<br />
es imprescindible para la existencia de un<br />
Esta<strong>do</strong> de Derecho.<br />
Luis Lezcano Claude é ex-ministro <strong>da</strong><br />
Suprema Corte <strong>do</strong> Paraguai.
Bibliografía<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Duverger, Instituciones políticas y Derecho Constitucional, Barcelona-España, Ediciones<br />
Ariel, 1970.<br />
Lambert, J., América Latina, Barcelona-España, Ediciones Ariel, 1978.<br />
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Paraguaya S.A., mayo del 2000.<br />
Lezcano Claude, Luis, Inmuni<strong>da</strong>des de los magistra<strong>do</strong>s judiciales, en Veritas, Revista de la<br />
Asociación de Magistra<strong>do</strong>s Judiciales del Paraguay, Asunción, Año 3 - Nº 3, julio de 2001.<br />
Lezcano Claude, Luis, La reforma a la Constitución de 1992: Algunos temas para la<br />
discusión, en Revista Jurídica del Centro de Estudiantes de Derecho de la Universi<strong>da</strong>d Católica<br />
“Nuestra Señora de la Asunción”, Asunción, CEPUC, t. I, 2001.<br />
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Riera Hunter, Marcos, La independencia del Poder Judicial. Derecho paraguayo y<br />
compara<strong>do</strong>, Asunción, La Ley Paraguaya S.A., 1991.<br />
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2002.<br />
Tawil, G. S., La responsabili<strong>da</strong>d del Esta<strong>do</strong> y de los magistra<strong>do</strong>s y funcionarios judiciales<br />
por el mal funcionamiento de la administración de justicia, Bs. As., Ed. Depalma, 1989.<br />
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Constitución boliviana de 1967.<br />
Constitución brasileña de 1988.<br />
Constitución colombiana de 1991.<br />
Constitución costarricense de 1949.<br />
Constitución ecuatoriana de 1998.<br />
Constitución salva<strong>do</strong>reña de 1983.<br />
Constitución guatemalteca de 1985.<br />
Constitución mexicana de 1917.<br />
Constitución panameña de 1972.<br />
Constitución paraguaya de 1992.<br />
Constitución peruana de 1993.<br />
Constitución uruguaya de 1966.<br />
Constitución venezolana de 1999.<br />
75
Onde as ações<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
organiza<strong>do</strong><br />
não forem<br />
equilibra<strong>da</strong>s,<br />
harmônicas e<br />
independentes<br />
entre si,<br />
inexistirá<br />
o Esta<strong>do</strong><br />
Democrático de<br />
Direito.<br />
A<br />
Justiça<br />
na América Latina<br />
A Justiça na América Latina e os objetivos <strong>da</strong> Flam<br />
“La Federación Latinoamericana de<br />
Magistra<strong>do</strong>s declara su finali<strong>da</strong>d de<br />
contribuir al fortalecimiento del Esta<strong>do</strong><br />
Democrático de Derecho mediante el<br />
ejercicio de la función jurisdiccional<br />
orienta<strong>da</strong> entre otros valores, por la jus-<br />
ticia, las libertades personales, la igual-<br />
<strong>da</strong>d, el pluralismo y la soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>d.”<br />
(Artículo 2º, del Estatuto de la Flam)<br />
Da simples leitura <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento que<br />
rege a Flam verifica-se claramente tra-<br />
tar-se de enti<strong>da</strong>de que tem uma única<br />
finali<strong>da</strong>de, qual seja contribuir para o<br />
fortalecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático<br />
de Direito. É pouco? Definitivamente,<br />
não! No meu entender, é tu<strong>do</strong>.<br />
Veja-se que as constituições de<br />
to<strong>do</strong>s os países estabelecem como ob-<br />
jetivos fun<strong>da</strong>mentais a construção de<br />
uma socie<strong>da</strong>de livre, justa e solidária,<br />
a busca <strong>da</strong> redução <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des<br />
Guinther Spode<br />
sociais e a promoção <strong>do</strong> bem-estar <strong>do</strong><br />
povo sem qualquer forma de discrimi-<br />
nação. Por óbvio que estes objetivos<br />
somente podem ser alcança<strong>do</strong>s num<br />
Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito. Ou<br />
seja, a vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de somente se<br />
desenvolve de forma justa e equilibra-<br />
<strong>da</strong>, propician<strong>do</strong> como resulta<strong>do</strong> a feli-<br />
ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s pessoas livres, se o Esta<strong>do</strong><br />
nacional for democrático.<br />
Os Esta<strong>do</strong>s, as nações se organi-<br />
zam, dividin<strong>do</strong> a ação estatal em três<br />
grandes áreas (o Executivo, o Legisla-<br />
tivo e o Judiciário), sempre na busca<br />
<strong>da</strong> realização <strong>do</strong>s seus objetivos fun<strong>da</strong>-<br />
mentais.<br />
Onde as ações <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> organiza-<br />
<strong>do</strong> não forem equilibra<strong>da</strong>s, harmônicas<br />
e independentes entre si, inexistirá o<br />
Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito. Se as<br />
ações fun<strong>da</strong>mentais de um país estive-<br />
rem sob o coman<strong>do</strong> de apenas uma <strong>da</strong>s<br />
77
78<br />
A JUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA E OS OBJETIVOS DA FLAM<br />
áreas, esta não só criará e aprovará as<br />
regras de convivência (as leis), quanto<br />
as executará e, como conseqüência ló-<br />
gica, sempre entenderá (julgará) que<br />
agiu de mo<strong>do</strong> correto.<br />
Quan<strong>do</strong> estas regras (as leis) vio-<br />
larem os direitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>do</strong><br />
ci<strong>da</strong>dão (os direitos humanos, por<br />
exemplo), ou quan<strong>do</strong> estas regras fo-<br />
rem descara<strong>da</strong>mente descumpri<strong>da</strong>s<br />
por quem estaria encarrega<strong>do</strong> de cum-<br />
pri-las, quem garantirá os direitos<br />
viola<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão, <strong>da</strong>s empresas e<br />
<strong>do</strong> próprio ente estatal de hierarquia<br />
inferior?<br />
O Judiciário tem a função de pro-<br />
mover a paz social, restabelecen<strong>do</strong> a<br />
ordem e até mesmo punin<strong>do</strong> os infra-<br />
tores, não interessan<strong>do</strong> a que cama<strong>da</strong><br />
social pertençam. E é exatamente por<br />
isto que os órgãos <strong>do</strong> Judiciário, os tri-<br />
bunais e os magistra<strong>do</strong>s devem gozar<br />
de prerrogativas para o exercício de<br />
sua missão, sob pena de somente po-<br />
derem exercê-la em relação <strong>ao</strong>s pobres<br />
e às pessoas que não tenham qualquer<br />
influência político-social. As prerro-<br />
gativas, as garantias <strong>da</strong> magistratura,<br />
não se constituem em privilégio pes-<br />
soal <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, mas direito <strong>do</strong><br />
ci<strong>da</strong>dão. O ci<strong>da</strong>dão que eventualmente<br />
tenha um direito viola<strong>do</strong> somente terá<br />
proclama<strong>da</strong> a justiça a seu favor se<br />
houver juízes e tribunais independen-<br />
tes, isentos <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de inter-<br />
ferências e pressões indevi<strong>da</strong>s de quem<br />
quer que seja.<br />
Juízes e tribunais, real e efetiva-<br />
mente independentes, somente exis-<br />
tem nos países em que vigora o Esta<strong>do</strong><br />
Democrático de Direito. A finali<strong>da</strong>de<br />
a que se propõe a Flam continua, por-<br />
tanto, atual.<br />
Houve época, <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> bem re-<br />
cente para alguns de nossos países,<br />
em que os tribunais chegaram a ser<br />
dissolvi<strong>do</strong>s ou seus membros substi-<br />
tuí<strong>do</strong>s através de ato administrativo<br />
<strong>do</strong>s dita<strong>do</strong>res de plantão. Magistra<strong>do</strong>s<br />
foram afasta<strong>do</strong>s sem qualquer possibi-<br />
li<strong>da</strong>de de defesa. Os chama<strong>do</strong>s remé-<br />
dios heróicos e as medi<strong>da</strong>s judiciais<br />
protetivas de direitos individuais e<br />
coletivos foram pura e simplesmente<br />
suspensos. Uma vez excluí<strong>da</strong>s estas<br />
medi<strong>da</strong>s protetivas <strong>do</strong> rol coloca<strong>do</strong> à<br />
disposição <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos, ficaram estes<br />
à mercê <strong>da</strong> vontade discricionária (e<br />
não raras vezes violenta) <strong>do</strong>s gover-<br />
nantes de então.<br />
Este processo revolucionário e<br />
contra-revolucionário aconteceu por<br />
conta de diferenças ideológicas (o<br />
mun<strong>do</strong> estava dividi<strong>do</strong> entre esquer<strong>da</strong><br />
e direita) e foi fomenta<strong>do</strong>, incita<strong>do</strong> e<br />
patrocina<strong>do</strong> pelas grandes potências<br />
que interferiram grosseiramente na so-<br />
berania <strong>do</strong>s países latino-americanos,<br />
ora irregularmente apoian<strong>do</strong> governos<br />
para que se mantivessem, mesmo já<br />
expira<strong>do</strong> o man<strong>da</strong>to, ora apoian<strong>do</strong> a<br />
derruba<strong>da</strong> de outros.<br />
Com o término <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> “guer-<br />
ra fria”, tivemos um breve perío<strong>do</strong> de<br />
sossego (leia-se: ficamos sem inter-<br />
ferências mais diretas). Durante este<br />
lapso de tempo nos apressamos to<strong>do</strong>s<br />
em democratizar nossos países, ele-<br />
As<br />
prerrogativas,<br />
as garantias <strong>da</strong><br />
magistratura,<br />
não se<br />
constituem<br />
em privilégio<br />
pessoal <strong>do</strong><br />
magistra<strong>do</strong>,<br />
mas direito <strong>do</strong><br />
ci<strong>da</strong>dão.
gen<strong>do</strong> democraticamente assembléias<br />
nacionais para redigir e aprovar novas<br />
constituições e realizar eleições gerais.<br />
Quase to<strong>do</strong>s os países tiveram êxito<br />
nesta tarefa, até porque o pessoal lá<br />
de fora não interferiu, pois já estava<br />
mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a tática para mais adiante<br />
voltar a nos atacar.<br />
Atualmente a ação destas po-<br />
tências externas já não mais ocorre<br />
(como antes) através <strong>da</strong> ação formal<br />
<strong>do</strong>s governos em relação <strong>ao</strong>s nossos,<br />
mas de maneira indireta, seja pela<br />
atuação de grandes conglomera<strong>do</strong>s<br />
econômicos, seja pela pressão de or-<br />
ganismos internacionais, como o FMI,<br />
o Banco Mundial e outros. O sórdi<strong>do</strong><br />
mecanismo que passou a ser utiliza<strong>do</strong><br />
é basicamente o seguinte: criou-se a<br />
falsa idéia de que nossos países não<br />
têm capaci<strong>da</strong>de de poupança interna<br />
e, portanto, somente podem crescer<br />
(ou até mesmo se manter) mediante a<br />
aju<strong>da</strong> <strong>do</strong> capital externo. E, para ob-<br />
ter capital externo, a constituição e as<br />
leis devem estar adequa<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> modelo<br />
defini<strong>do</strong> por estes organismos inter-<br />
nacionais, pois a eles o que interessa<br />
é a garantia de que os valores aqui<br />
investi<strong>do</strong>s tenham retorno premia<strong>do</strong><br />
por lucros fantásticos.<br />
Para nossa mais completa tristeza<br />
e desgraça, infelizmente nossos diri-<br />
gentes (aí incluí<strong>da</strong>, em alguns casos,<br />
a própria cúpula <strong>do</strong> Judiciário) não<br />
se têm apercebi<strong>do</strong> destas sórdi<strong>da</strong>s<br />
manobras, cain<strong>do</strong> em ver<strong>da</strong>deiras<br />
armadilhas que acabam se trans-<br />
forman<strong>do</strong> em projetos de reforma<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
constitucional, vendi<strong>do</strong>s como a pa-<br />
nacéia para nos colocar em dia com<br />
a moderni<strong>da</strong>de (exigência <strong>da</strong> globa-<br />
lização), resolven<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a gama <strong>do</strong>s<br />
mais intrinca<strong>do</strong>s e graves problemas.<br />
Afirmo que nossos dirigentes caem<br />
nessa armadilha porque, <strong>ao</strong> invés de<br />
procurarem diagnosticar os proble-<br />
mas e <strong>da</strong>r <strong>ao</strong>s mesmos a solução que<br />
ca<strong>da</strong> país reclama, ingenuamente<br />
aceitam e aplicam to<strong>do</strong> o receituário<br />
que vem pronto lá de fora. Nas mais<br />
<strong>da</strong>s vezes estas receitas não servem<br />
para a nossa reali<strong>da</strong>de. Noutras<br />
tantas, já vêm com propósitos bem<br />
defini<strong>do</strong>s e que na<strong>da</strong> têm a ver com<br />
os nossos interesses, que são a busca<br />
incessante de melhores condições de<br />
vi<strong>da</strong> para a população local.<br />
O exemplo mais gritante <strong>da</strong> tática<br />
atualmente a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> está devi<strong>da</strong>mente<br />
comprova<strong>da</strong> pelo <strong>do</strong>cumento emiti<strong>do</strong><br />
pelo Banco Mundial, sob o título O<br />
setor judiciário na América Latina e<br />
no Caribe - elementos para reforma.<br />
Refiro-me <strong>ao</strong> Documento Técnico 319,<br />
<strong>da</strong> menciona<strong>da</strong> agência financeira in-<br />
ternacional, cuja primeira edição <strong>da</strong>ta<br />
de 1996, que foi produzi<strong>do</strong> nos EUA,<br />
com suporte técnico de Malcolm D.<br />
Rowat e Sri-Ram Aiyer, e com pesqui-<br />
sa de Manning Cabrol e Bryant Garth,<br />
sugerin<strong>do</strong> a necessi<strong>da</strong>de de profun<strong>da</strong>s<br />
reformas nos Poderes Judiciários <strong>da</strong><br />
América Latina e <strong>do</strong> Caribe. A propos-<br />
ta é de reforma geral, com superficiais<br />
a<strong>da</strong>ptações às peculiari<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong><br />
país, mas sempre com o mesmo objeti-<br />
vo e a mesma lógica, qual seja quebrar<br />
79
80<br />
A JUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA E OS OBJETIVOS DA FLAM<br />
a natureza monopolista <strong>do</strong> Judiciário,<br />
oferecer melhor garantia <strong>ao</strong> direito de<br />
proprie<strong>da</strong>de e propiciar o desenvolvi-<br />
mento econômico e <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>,<br />
fragilizan<strong>do</strong> a expressão institucional<br />
<strong>do</strong> Poder Judiciário e tornan<strong>do</strong>-o me-<br />
nos operante nas garantias de direitos<br />
e liber<strong>da</strong>des, desde que estejam em<br />
jogo as necessi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> capital, sobre-<br />
tu<strong>do</strong> o internacional.<br />
Do conjunto de propostas <strong>do</strong> Banco<br />
Mundial, nenhuma ataca efetivamen-<br />
te as causas <strong>do</strong> mau funcionamento<br />
<strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong>s nossos países, entre as<br />
quais se encontram o excesso legisla-<br />
tivo, a violação reitera<strong>da</strong> <strong>da</strong> Consti-<br />
tuição e <strong>da</strong>s normas legais pelo Poder<br />
Público, a falta de recursos orçamentá-<br />
rios para serem inverti<strong>do</strong>s na melhoria<br />
material e <strong>do</strong> pessoal, com remunera-<br />
ção digna e atualiza<strong>da</strong>, a falta de inde-<br />
pendência funcional, administrativa e<br />
financeira <strong>do</strong> Judiciário, agrava<strong>da</strong> pela<br />
instabili<strong>da</strong>de gera<strong>da</strong> pelo mo<strong>do</strong> de<br />
recrutamento e a incerteza <strong>da</strong> confir-<br />
mação <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s que, em alguns<br />
países, fica a critério discricionário<br />
<strong>da</strong>s cúpulas, assim como a formação<br />
<strong>da</strong>s Cortes Superiores, ausente às ve-<br />
zes até mesmo a prerrogativa <strong>da</strong> ina-<br />
movibili<strong>da</strong>de.<br />
A maior evidência de que o modelo<br />
proposto vem sen<strong>do</strong> quase que imposto<br />
<strong>ao</strong>s países latino-americanos (e <strong>do</strong>cil-<br />
mente “aceito”) é que to<strong>do</strong>s os projetos<br />
de reforma <strong>do</strong> Judiciário, nos mais<br />
diferentes países, são praticamente<br />
idênticos, ten<strong>do</strong> inicia<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s na<br />
mesma época e sem que tenha havi<strong>do</strong><br />
qualquer debate interno pelo menos<br />
com os órgãos <strong>do</strong> Judiciário e os opera-<br />
<strong>do</strong>res <strong>do</strong> direito, antes <strong>do</strong>s indigita<strong>do</strong>s<br />
projetos serem encaminha<strong>do</strong>s pelos<br />
Executivos para as Casas Legislativas.<br />
Soa até como pia<strong>da</strong> o fato: to<strong>do</strong>s os pa-<br />
íses, de norte a sul <strong>da</strong> América Latina,<br />
teriam ti<strong>do</strong> <strong>ao</strong> mesmo tempo a idéia de<br />
reformar a sua justiça e, o que é mais<br />
surpreendente, to<strong>do</strong>s teriam chega<strong>do</strong><br />
<strong>ao</strong> mesmo tempo às mesmas conclu-<br />
sões, pois as propostas de solução são<br />
idênticas.<br />
Diante disto, resta mais <strong>do</strong> que<br />
evidente a necessi<strong>da</strong>de de revitalizar e<br />
prestigiar <strong>da</strong> forma mais entusiástica<br />
possível os organismos regionais <strong>da</strong><br />
América Latina e <strong>do</strong> Caribe, sob pena<br />
de jamais se alcançar o pleno Esta<strong>do</strong><br />
Democrático de Direito naqueles paí-<br />
ses em que o processo de democratiza-<br />
ção ain<strong>da</strong> está em curso ou, naqueles<br />
em que as instituições nacionais já se<br />
consoli<strong>da</strong>ram, venha a ocorrer um pe-<br />
rigoso processo de per<strong>da</strong> <strong>da</strong> soberania<br />
gera<strong>do</strong> pela submissão <strong>ao</strong>s interesses<br />
<strong>do</strong> capital transnacional.<br />
Neste contexto se insere decisi-<br />
vamente a Flam, cujos objetivos se<br />
voltam fun<strong>da</strong>mentalmente <strong>ao</strong> forta-<br />
lecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático de<br />
Direito, procuran<strong>do</strong> a independência<br />
permanente, real e efetiva <strong>do</strong> Poder<br />
Judiciário, em to<strong>do</strong>s os seus aspectos,<br />
como condição essencial <strong>da</strong> função<br />
jurisdicional, que deve estar volta<strong>da</strong>,<br />
como to<strong>da</strong> a ação <strong>do</strong>s poderes públi-<br />
cos, para a promoção <strong>do</strong> bem-estar <strong>do</strong><br />
povo.
O exercício <strong>da</strong> jurisdição na busca<br />
de uma socie<strong>da</strong>de livre, justa e so-<br />
lidária, reduzin<strong>do</strong> as desigual<strong>da</strong>des<br />
sociais, promoven<strong>do</strong> o bem comum <strong>do</strong>s<br />
ci<strong>da</strong>dãos, sem qualquer discriminação,<br />
são os objetivos que devem nos unir<br />
em torno <strong>da</strong> Flam.<br />
Para esta luta, pacífica, mas deci-<br />
siva e permanente, a atual Diretiva <strong>da</strong><br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Flam está uni<strong>da</strong> e convocan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os<br />
seus colegas magistra<strong>do</strong>s <strong>da</strong> América e<br />
<strong>do</strong> Caribe.<br />
Guinther Spode é desembarga<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong><br />
Sul, secretário-geral <strong>da</strong> <strong>AMB</strong> e 1º vice-<br />
presidente <strong>da</strong> Flam.<br />
81
Racismo<br />
& Durban<br />
A Conferência de Durban contra o Racismo e a<br />
responsabili<strong>da</strong>de de to<strong>do</strong>s<br />
“Yo soy yo y mi circunstancia y si<br />
no la salvo a ella no me salvo yo.”<br />
Ortega y Gasset 1<br />
Quan<strong>do</strong> os delega<strong>do</strong>s e observa<strong>do</strong>res à<br />
Terceira Conferência contra o Racismo<br />
organiza<strong>da</strong> pelas Nações Uni<strong>da</strong>s deixaram<br />
o recinto em Durban, ain<strong>da</strong> ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s<br />
com as dificul<strong>da</strong>des <strong>do</strong> evento, não podiam<br />
imaginar o que se iria passar pouco tempo<br />
depois. Sabiam que somente à custa de<br />
acomo<strong>da</strong>ções e manobras de procedimento<br />
haviam consegui<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>ção “consensual”<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos finais. Isso já era, ou de-<br />
veria ser, razão mais <strong>do</strong> que suficiente para<br />
temperar otimismos. De qualquer forma,<br />
para eles os resulta<strong>do</strong>s tinham ti<strong>do</strong>, sem<br />
dúvi<strong>da</strong>, aspectos positivos.<br />
O que os participantes <strong>do</strong> encontro na<br />
África <strong>do</strong> Sul não podiam prever é que, ape-<br />
nas três dias depois, quan<strong>do</strong> muitos ain<strong>da</strong><br />
se encontravam em trânsito de retorno, os<br />
maiores atenta<strong>do</strong>s terroristas <strong>da</strong> História<br />
iriam tornar as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Conferência<br />
irrisórias e seus <strong>do</strong>cumentos finais, como<br />
que soterra<strong>do</strong>s nas ruínas <strong>do</strong> World Trade<br />
J. A. Lindgren Alves<br />
Center. Jamais poderiam imaginar que, com<br />
sua enormi<strong>da</strong>de catastrófica, os golpes de<br />
11 de setembro de 2001 nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />
além de realçarem a aparente irrelevância<br />
de desavenças diplomático-discursivas,<br />
iriam propiciar a restauração no mun<strong>do</strong> de<br />
um “esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> natureza” hobbesiano, ame-<br />
dronta<strong>do</strong>r em múltiplos senti<strong>do</strong>s. Esclareça-<br />
se, to<strong>da</strong>via, desde logo, que, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />
que se poderia supor, não se pretende neste<br />
artigo analisar o terrorismo, nem o combate<br />
contra ele. O escopo <strong>do</strong> texto é outro.<br />
É compreensível que os ataques arrasa-<br />
<strong>do</strong>res, <strong>ao</strong> deixarem to<strong>do</strong> o planeta em esta<strong>do</strong><br />
inicialmente catatônico, tenham sufoca<strong>do</strong><br />
possíveis entusiasmos com os avanços <strong>da</strong><br />
recém-encerra<strong>da</strong> Conferência - menores <strong>do</strong><br />
que se desejava, mas ain<strong>da</strong> assim positivos<br />
em muitas áreas específicas. Por se relacio-<br />
narem, de alguma maneira irracional, com<br />
problemas observa<strong>do</strong>s na negociação <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>cumentos, não era sequer descabi<strong>da</strong>, num<br />
1 Apud Fernan<strong>do</strong> Guimarães Reis, “O Brasil e a América Latina”, in Gelson Fonseca Jr e Sergio Henrique Nabuco de Castro (org.), Temas de política<br />
externa brasileira II, volume 2, Brasília e São Paulo, Funag/IPRI e Paz e Terra, 1994, pág. 14.<br />
83
84<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
átimo irrefleti<strong>do</strong>, uma associação de idéias<br />
entre os aviões-bombas suici<strong>da</strong>s e certas<br />
posturas manti<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> longo <strong>da</strong>s discussões.<br />
Que, depois <strong>do</strong> Onze de Setembro, tenha-se<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong>, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e to<strong>do</strong>s os demais<br />
países, priori<strong>da</strong>de a medi<strong>da</strong>s antiterroristas<br />
era também natural. O que não fez senti<strong>do</strong><br />
nunca e não faz senti<strong>do</strong> agora, mais de um<br />
ano depois, é encarar a conferência de 2001<br />
contra o racismo como um fato despicien<strong>do</strong>,<br />
a exemplo <strong>da</strong>s anteriores, destina<strong>do</strong> <strong>ao</strong> os-<br />
tracismo por motivos que lhe são próprios.<br />
As críticas a esse primeiro grande en-<br />
contro <strong>do</strong> século são acerbas e freqüentes.<br />
Algumas, ideológicas, simplesmente refle-<br />
tem políticas longamente assumi<strong>da</strong>s, que<br />
na<strong>da</strong> parece capaz de alterar. Outras decor-<br />
rem de irrealismo ingênuo, tendente a des-<br />
considerar a complexi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> evento, ou de<br />
um simplismo que o separa <strong>da</strong>s circunstân-<br />
cias de sua realização. As primeiras críticas,<br />
por sua natureza fatalmente reducionista,<br />
não procuram, nem aceitariam, qualquer<br />
tipo de resposta. As segun<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong> bem<br />
intenciona<strong>da</strong>s, talvez possam ser respondi-<br />
<strong>da</strong>s com um pouco de reflexão. Afinal, pou-<br />
cos acontecimentos recentes permanecem<br />
tão mal compreendi<strong>do</strong>s quanto esse concla-<br />
ve mundial.<br />
Parodian<strong>do</strong> a imagem de Zuenir Ven-<br />
tura para o ano de 1968 2 , a Conferência<br />
de Durban contra o Racismo, em 2001, foi<br />
uma “conferência que não terminou”. Na<br />
ver<strong>da</strong>de, ten<strong>do</strong> em conta que to<strong>da</strong> reunião<br />
sobre assunto <strong>da</strong> esfera social estabelece<br />
parâmetros para esforços de longa duração -<br />
2 1968: o ano que não terminou - a aventura de uma geração, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988.<br />
e aqui estamos mais para a longue durée de<br />
Braudel <strong>do</strong> que para o longo prazo de retor-<br />
no de alguns investimentos econômicos -, é<br />
possível dizer, sem erro, que nenhuma con-<br />
ferência desse tipo efetivamente acaba. É,<br />
aliás, por isso que as conferências prevêem<br />
outros encontros, destina<strong>do</strong>s a avaliar sua<br />
implementação. Contu<strong>do</strong>, diferentemente<br />
<strong>da</strong>s congêneres <strong>do</strong> final <strong>do</strong> Século XX, sobre<br />
o meio ambiente, os direitos humanos em<br />
geral, a população e os direitos <strong>da</strong> mulher,<br />
a primeira conferência <strong>do</strong> Século XXI,<br />
inaugura<strong>da</strong> em 31 de agosto, quase não teve<br />
nem mesmo uma sessão de encerramento.<br />
Marca<strong>da</strong> para terminar na tarde de 7 de<br />
setembro, seu desfecho protela<strong>do</strong> ocorreu<br />
depois <strong>do</strong> tempo previsto para sua duração,<br />
na tarde <strong>do</strong> dia 8. E, para ter seus resulta-<br />
<strong>do</strong>s confirma<strong>do</strong>s pela Assembléia Geral <strong>da</strong><br />
ONU - ain<strong>da</strong> assim sem consenso, com <strong>do</strong>is<br />
votos contrários e duas abstenções 3 - foi<br />
preciso que a sessão ordinária de 2001 re-<br />
convocasse a assembléia em perío<strong>do</strong> extra-<br />
regulamentar, no início de 2002. Seus efei-<br />
tos permanecem, como é sempre natural,<br />
dependentes <strong>da</strong> vontade <strong>do</strong>s responsáveis<br />
políticos e “usuários” sociais.<br />
Ten<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> autor destas linhas,<br />
em 1994, quan<strong>do</strong> membro <strong>do</strong> principal ór-<br />
gão subsidiário <strong>da</strong> Comissão <strong>do</strong>s Direitos<br />
Humanos <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, a idéia <strong>da</strong><br />
convocação de uma conferência mundial<br />
contra o racismo contemporâneo para cul-<br />
minar o ciclo de conferências sobre temas<br />
globais <strong>ao</strong> terminar a Guerra Fria, estudio-<br />
sos e militantes <strong>do</strong> assunto têm-lhe pergun-<br />
3 Votaram contra, previsivelmente, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Israel, que se haviam retira<strong>do</strong> <strong>da</strong> conferência; abstiveram-se, surpreendentemente, a Austrália e<br />
o Canadá.<br />
Parodian<strong>do</strong><br />
a imagem de<br />
Zuenir Ventura,<br />
a Conferência<br />
de Durban<br />
contra o<br />
Racismo, em<br />
2001, foi uma<br />
“conferência<br />
que não<br />
terminou”.
ta<strong>do</strong> se os problemas apresenta<strong>do</strong>s haviam<br />
si<strong>do</strong> previstos desde o início. A resposta é,<br />
certamente, não. Algumas <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des<br />
já eram, então, obviamente, intuí<strong>da</strong>s, mas<br />
não com a intensi<strong>da</strong>de revela<strong>da</strong>. Outras se<br />
acrescentaram com o tempo ou em função<br />
de modificações <strong>da</strong> idéia original.<br />
As origens <strong>da</strong> conferência<br />
Quan<strong>do</strong> a proposta foi lança<strong>da</strong> na então<br />
denomina<strong>da</strong> Subcomissão para a Prevenção<br />
<strong>da</strong> Discriminação e Proteção <strong>da</strong>s Minorias 4<br />
- que tinha, portanto, até no nome a obri-<br />
gação prioritária de combater as discrimi-<br />
nações - e foi, literalmente, subscrita pela<br />
unanimi<strong>da</strong>de menos um <strong>do</strong>s 26 integrantes<br />
desse órgão 5 , sen<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> por consenso<br />
real (não, como se diz na ONU, simples-<br />
mente “sem voto”), o mun<strong>do</strong> vivia momento<br />
distinto.<br />
As conferências <strong>do</strong> Rio de Janeiro, de<br />
1992, sobre o meio ambiente, e de Viena,<br />
de 1993, sobre direitos humanos, embora<br />
também difíceis, haviam acaba<strong>do</strong> de trans-<br />
correr satisfatoriamente. Pareciam, assim,<br />
reconfirmar uma nova fase de confiança<br />
na diplomacia parlamentar, recém-egressa<br />
<strong>da</strong> chama<strong>da</strong> “crise <strong>do</strong> multilateralismo”,<br />
muito fala<strong>da</strong> nos anos 80, enquanto perdu-<br />
rava a Guerra Fria. Esse vigor renova<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
Nações Uni<strong>da</strong>s como foro imprescindível<br />
à busca de soluções para problemas que<br />
4 Hoje Subcomissão para a Promoção e Proteção <strong>do</strong>s Direitos Humanos.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
se demonstravam planetários, em 1994 já<br />
lhes havia permiti<strong>do</strong> a definição de um cro-<br />
nograma de encontros sobre os chama<strong>do</strong>s<br />
“temas globais” que se estendia até 1996,<br />
com a conferência de Istambul sobre assen-<br />
tamentos humanos, a Habitat-II, passan<strong>do</strong><br />
em 1994 pelo Cairo, com o tema <strong>da</strong> popu-<br />
lação, e em 1995 por Copenhague, com o<br />
desenvolvimento social, e ain<strong>da</strong> por Beijing,<br />
com a situação <strong>da</strong> mulher 6 . Era, portanto,<br />
natural que a ONU procurasse um caminho<br />
novo também para enfrentar a persistência<br />
<strong>do</strong> racismo, que já havia justifica<strong>do</strong> duas<br />
“Déca<strong>da</strong>s” internacionais de planos, proje-<br />
tos e programas, sob a égide <strong>da</strong> Assembléia<br />
Geral, assim como duas conferências. E<br />
uma Terceira Déca<strong>da</strong> de Combate <strong>ao</strong> Ra-<br />
cismo e à Discriminação Racial, lança<strong>da</strong><br />
pela Resolução 48/91, de 20 de dezembro de<br />
1993, estava então inician<strong>do</strong>.<br />
Foi no contexto <strong>da</strong> Primeira Déca<strong>da</strong><br />
que haviam ocorri<strong>do</strong> as duas conferências<br />
precedentes, em 1978 e 1983 7 , de pequena<br />
repercussão inclusive porque realiza<strong>da</strong>s em<br />
sede <strong>da</strong> própria ONU, em Genebra (o que<br />
lhes <strong>da</strong>va um aspecto de reunião rotineira,<br />
incapaz de atrair as atenções <strong>do</strong>s media).<br />
Na ver<strong>da</strong>de, porém, o racismo e a discrimi-<br />
nação racial, juridicamente proscritos, nun-<br />
ca haviam si<strong>do</strong> seriamente abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s em<br />
sua incidência planetária. Qualquer reunião<br />
internacional sobre a matéria era deturpa<strong>da</strong><br />
pela existência <strong>do</strong> apartheid sul-africano,<br />
5 Apenas o perito egípcio Ahmed Khalifa deixou de co-patrociná-la (ou seja, de se incluir na lista de co-autores), sem explicação inteligível, mas<br />
evidentemente a apoiou sem hesitações.<br />
6 Para um exame <strong>da</strong>s grandes conferências <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 90 v. José Augusto Lindgren Alves, Relações internacionais e temas sociais - A déca<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />
conferências, Brasília, Funag e IBRI, 2001.<br />
7 A Conferência de 1978 havia si<strong>do</strong> prevista no programa de ação <strong>da</strong> Primeira Déca<strong>da</strong> de Combate <strong>ao</strong> Racismo e à Discriminação Racial, inicia<strong>da</strong> em<br />
1973, conforme a Resolução 3057 (XXVIII), a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> pela Assembléia Geral <strong>da</strong> ONU em 2 de novembro de 1972. A Segun<strong>da</strong> Conferência, de 1983,<br />
foi convoca<strong>da</strong> pela Resolução 35/33, de 14.11.80, com o objetivo de avaliar as ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Primeira Déca<strong>da</strong>.<br />
85
86<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
absesso de fixação de atenções pelo mal que<br />
trazia em si e como ameaça à paz e à segu-<br />
rança, agrava<strong>da</strong> pelo contexto de confron-<br />
tação bipolar. A isso se somava desde então<br />
a sempre explosiva questão <strong>do</strong> Oriente Mé-<br />
dio, trazi<strong>da</strong> às discussões <strong>do</strong> tema com uma<br />
“legitimi<strong>da</strong>de” irrefutável porque decorren-<br />
te <strong>da</strong> equiparação <strong>do</strong> sionismo <strong>ao</strong> racismo<br />
em inúmeros <strong>do</strong>cumentos vigentes 8 .<br />
Em 1994, o fim <strong>do</strong> regime aparteísta, co-<br />
roa<strong>do</strong> com a posse de Nelson Mandela como<br />
presidente <strong>da</strong> República <strong>da</strong> África <strong>do</strong> Sul, esco-<br />
lhi<strong>do</strong> em eleições livres de que pela primeira vez<br />
participara to<strong>do</strong> o povo <strong>do</strong> país, abria o caminho<br />
para uma visão mais níti<strong>da</strong> <strong>do</strong> racismo como o<br />
fenômeno generaliza<strong>do</strong> que é. E a equiparação<br />
internacional <strong>do</strong> sionismo <strong>ao</strong> racismo fora, por<br />
sua vez, aboli<strong>da</strong> por resolução <strong>da</strong> Assembléia<br />
Geral <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s desde 1991 9 .<br />
Enquanto esses fatos pareciam demons-<br />
trar a viabili<strong>da</strong>de de uma conferência mundial<br />
imbuí<strong>da</strong> de novo espírito, outros elementos,<br />
velhos e recentes, fortaleciam a necessi<strong>da</strong>de de<br />
sua realização. Após a eliminação, com auxílio<br />
<strong>da</strong>s sanções <strong>da</strong> ONU, <strong>do</strong> sistema constitucional<br />
aberrante que erigira a segregação em essência<br />
<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> mais poderoso <strong>da</strong> África subsaárica,<br />
numa época em que a igual<strong>da</strong>de formal entre<br />
as raças já fora estabeleci<strong>da</strong> por lei em qua-<br />
se to<strong>do</strong>s os países, era preciso que o mun<strong>do</strong><br />
“globaliza<strong>do</strong>” atentasse para as manifestações<br />
estruturais <strong>do</strong> racismo contemporâneo. Vigo-<br />
rosamente denuncia<strong>do</strong> no Brasil pelo movi-<br />
mento negro e por membros <strong>da</strong> Academia, tão<br />
dissemina<strong>do</strong> no “Ocidente” que autores norte-<br />
americanos hoje falam <strong>da</strong> “brasilianização <strong>da</strong><br />
América” 10 , o racismo insidioso, consciente ou<br />
inconsciente, que mantém grandes contingen-<br />
tes populacionais em situação de inferiori<strong>da</strong>de<br />
social é, quiçá, mais difícil de combater <strong>do</strong> que<br />
as manifestações ostensivas de inferiorização<br />
racial, na medi<strong>da</strong> em que se dissimulam debai-<br />
xo de direitos civis distorci<strong>do</strong>s.<br />
A esses fatos capazes de fun<strong>da</strong>mentar de<br />
per si uma nova conferência, a ser sedia<strong>da</strong> na<br />
África <strong>do</strong> Sul pós-apartheid pelo valor simbó-<br />
lico <strong>da</strong> localização (assim se pensou desde o<br />
primeiro momento), acresciam novos surtos<br />
violentos de discriminação, xenofobia e outras<br />
formas contemporâneas correlatas de intole-<br />
rância 11 que se vinham multiplican<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
afora. Elas se consubstanciavam inter alia em<br />
agressões a imigrantes na Europa; no ressurgi-<br />
mento de <strong>do</strong>utrinas “supremacistas” brancas<br />
nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, inspira<strong>do</strong>ras de “milícias”<br />
arma<strong>da</strong>s; nas matanças intertribais <strong>da</strong> África,<br />
paroxísticas no caso de Ruan<strong>da</strong>; no recrudes-<br />
cimento de conflitos etno-religiosos asiáticos,<br />
8 Origina<strong>da</strong> <strong>da</strong> Cúpula <strong>do</strong> Movimento <strong>do</strong>s Não-Alinha<strong>do</strong>s de Argel, em 1973, essa formulação <strong>do</strong> sionismo como uma forma de racismo foi repeti<strong>da</strong> em<br />
resoluções e outros <strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> ONU por quase 20 anos, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> incluí<strong>da</strong> até mesmo no programa a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> na Conferência de Copenhague sobre a<br />
Mulher de 1980 (v. Richard L. Jackson, The Non-Aligned, the U.N. and the Superpowers, Nova York, Praeger, 1983, págs. 172, 175-77).<br />
9 Pela Resolução 46/86, de 16.12.91, que simplesmente decidiu “revogar a determinação conti<strong>da</strong> na Resolução 3379 (XXX), de 10.11.75.<br />
10 Para um exame <strong>do</strong> assunto, com citação de autores, v. J. A. Lindgren Alves, “No peito e na raça - A americanização <strong>do</strong> Brasil e a brasilianização <strong>da</strong><br />
América”, Impulso - Revista de Ciências Sociais e Humanas, vol. 12, nº 27, Piracicaba, Unimep, 2000, págs. 91-106, e Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e Justiça, Ano 5, nº<br />
11, Rio de Janeiro, Associação de Magistra<strong>do</strong>s Brasileiros, 2º semestre de 2001, págs. 110-128.<br />
11 A referência a “outras formas contemporâneas correlatas de intolerância” (other related contemporary forms of intolerance) foi usa<strong>da</strong> por mim no título<br />
original <strong>da</strong> Conferência para cobrir determina<strong>do</strong>s tipos de intolerância e discriminação muito em voga naquela época, persistentes até hoje, que não se<br />
enquadravam claramente na definição legal <strong>da</strong> discriminação racial. Pensava eu sobretu<strong>do</strong> nos conflitos <strong>da</strong> Bósnia-Herzagovina, onde, além de se<br />
tratar <strong>da</strong> mesma raça, <strong>da</strong> mesma língua e, está claro, <strong>da</strong> mesma “etnia” eslava, a “nacionali<strong>da</strong>de” bósnia havia si<strong>do</strong> inventa<strong>da</strong> a partir de uma religião<br />
que sequer era pratica<strong>da</strong> por to<strong>do</strong>s os “muçulmanos” dessa ex-República Socialista Iugoslava pluricultural (no perío<strong>do</strong> de Tito, a “nacionali<strong>da</strong>de”<br />
muçulmana foi inventa<strong>da</strong>, mas convivia de forma pacífica e com relações de amizade e parentesco com as comuni<strong>da</strong>des orto<strong>do</strong>xa-sérvia e católica-croata<br />
<strong>da</strong> mesma região).<br />
Em 1994, o<br />
fim <strong>do</strong> regime<br />
aparteísta abria<br />
o caminho<br />
para uma visão<br />
mais níti<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
racismo como<br />
o fenômeno<br />
generaliza<strong>do</strong><br />
que é.
com mortes e profanações de templos; na vio-<br />
lência e van<strong>da</strong>lismo de skinheads e grupos ne-<br />
onazistas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Atlântico (até mes-<br />
mo no Brasil, que é capaz de copiar to<strong>do</strong>s os<br />
piores modismos <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Primeiro Mun-<br />
<strong>do</strong>) 12 ; no agravamento <strong>do</strong> micronacionalismo<br />
fascistóide traduzi<strong>do</strong> em “limpezas étnicas” e<br />
guerras civis cruentas. Ain<strong>da</strong> mais ominoso,<br />
tu<strong>do</strong> isso era acompanha<strong>do</strong> pelo fortalecimento<br />
eleitoral, nas democracias modelares, de parti-<br />
<strong>do</strong>s populistas de extrema direita, para os quais<br />
o “orgulho nacional” <strong>do</strong> “homem médio <strong>do</strong><br />
povo”, associa<strong>do</strong> <strong>ao</strong> racismo, à xenofobia e <strong>ao</strong><br />
anti-semitismo eram elementos demagógicos<br />
de plataformas programáticas.<br />
Vivíamos, pois, num perío<strong>do</strong> em que, de<br />
um la<strong>do</strong>, o multilateralismo era visto positiva-<br />
mente como instrumento de melhora <strong>da</strong> situ-<br />
ação planetária (e o próprio fim <strong>do</strong> apartheid<br />
era evidência de que o trabalho multilateral,<br />
no longo prazo, <strong>da</strong>va frutos). Mas vivíamos<br />
também, de outro, numa reali<strong>da</strong>de em que,<br />
contrarian<strong>do</strong> as imagens <strong>do</strong> “fim <strong>da</strong> História”<br />
e <strong>da</strong> democracia como novo “horizonte intrans-<br />
ponível” <strong>da</strong> política, a bipolari<strong>da</strong>de estratégica<br />
havia cedi<strong>do</strong> lugar a uma infini<strong>da</strong>de de tensões<br />
e embates bélicos, provoca<strong>do</strong>s por discrimina-<br />
ções quase to<strong>da</strong>s enquadra<strong>da</strong>s na definição <strong>do</strong><br />
Artigo 1º <strong>da</strong> Convenção Internacional sobre a<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Eliminação de To<strong>da</strong>s as Formas de Discrimi-<br />
nação Racial, de 1965:<br />
“... qualquer distinção, exclusão, restrição ou<br />
preferência basea<strong>da</strong> em raça, cor, descendência<br />
ou origem nacional ou étnica que tem por obje-<br />
tivo ou efeito anular ou prejudicar o reconheci-<br />
mento, gozo ou exercício, em igual<strong>da</strong>de de con-<br />
dições, <strong>do</strong>s direitos humanos e liber<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>-<br />
mentais nos <strong>do</strong>mínios político, econômico, social,<br />
cultural ou qualquer outro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pública.”<br />
A percepção <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de uma<br />
conferência para tratar desses problemas<br />
era níti<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s olhos de to<strong>do</strong>s os membros <strong>da</strong><br />
Subcomissão, que exercem seus man<strong>da</strong>tos<br />
nesse órgão <strong>da</strong> ONU a título pessoal, atuan-<br />
<strong>do</strong>, em princípio, segun<strong>do</strong> as próprias con-<br />
vicções. Dela emergiu, portanto, a Resolu-<br />
ção 1994/2, denomina<strong>da</strong> “Uma conferência<br />
mundial contra o racismo, a discriminação<br />
racial ou étnica, a xenofobia e outras formas<br />
contemporâneas correlatas de intolerância”<br />
(é importante notar que o título <strong>da</strong> resolu-<br />
ção - assim como <strong>da</strong> conferência proposta<br />
- referia-se expressamente às formas con-<br />
temporâneas <strong>da</strong>s manifestações desse fenô-<br />
meno), a se realizar em 1997, na seqüência<br />
de grandes encontros já realiza<strong>do</strong>s ou pro-<br />
grama<strong>do</strong>s desde o fim <strong>da</strong> Guerra Fria 13 .<br />
12 V. inter alia Tulio Kahn, c.Daniela Amen<strong>do</strong>la Pinheiro, “A evolução <strong>do</strong> neonazismo no Brasil”, in Núcleo de Estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Violência e Comissão Teotônio<br />
Vilela, Os direitos humanos no Brasil, São Paulo, USP, 1993, págs. 56-63.<br />
13 A Resolução 1994/2, cujo texto (original em inglês) tive a honra de redigir para consideração pela Subcomissão e foi aprova<strong>do</strong> em 12.08.94, refletia, em<br />
linguagem sucinta, quase to<strong>do</strong>s os fatos e tendências aqui menciona<strong>do</strong>s. Isso pode ser visto no preâmbulo, <strong>ao</strong> recor<strong>da</strong>r tanto as conferências de 1978 e 1983<br />
sobre o racismo (segun<strong>do</strong> parágrafo), como os bons resulta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Conferência de Viena de 1993 sobre os direitos humanos e a atenção por ela dedica<strong>da</strong> <strong>ao</strong><br />
racismo (terceiro parágrafo); <strong>ao</strong> notar que “milhões de seres humanos continuam a ser vítimas de formas varia<strong>da</strong>s de racismo e discriminação racial e étnica”<br />
(quarto parágrafo); <strong>ao</strong> levar em conta “a seqüência de conferências mundiais programa<strong>da</strong>s pelas Nações Uni<strong>da</strong>s para se realizarem antes <strong>do</strong> ano 2000” (sexto<br />
e último parágrafo preambular), para recomen<strong>da</strong>r, no único parágrafo dispositivo, à Comissão <strong>do</strong>s Direitos Humanos que sugerisse, por intermédio <strong>do</strong> Ecosoc,<br />
à Assembléia Geral a “possibili<strong>da</strong>de de convocação de uma conferência mundial contra o racismo, a discriminação racial e étnica, a xenofobia e outras formas<br />
contemporâneas correlatas de intolerância, a se realizar em 1997” (a indicação de 1997 visava a aproveitar o élan <strong>da</strong>s conferências já programa<strong>da</strong>s, anuais<br />
desde a Rio-92 até a Habitat-II, de Istambul, em 1996; a menção nominal à discriminação étnica, já subentendi<strong>da</strong> na definição <strong>do</strong> Artigo 1º <strong>da</strong> Convenção<br />
de 1965, era motiva<strong>da</strong> pelas várias limpezas étnicas em curso, denuncia<strong>da</strong>s então sobretu<strong>do</strong> na ex-Iugoslávia; a inclusão <strong>da</strong> xenofobia no título era uma<br />
maneira de garantir que o evento trataria de um <strong>do</strong>s fenômenos que mais se vinham agravan<strong>do</strong> em decorrência <strong>da</strong> globalização econômica).<br />
87
88<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
A necessi<strong>da</strong>de e as possibili<strong>da</strong>des<br />
promissoras de um evento sobre o racismo<br />
e a xenofobia contemporâneos também<br />
pareceram claras à Comissão <strong>do</strong>s Direitos<br />
Humanos <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, de caráter go-<br />
vernamental, que en<strong>do</strong>ssou a proposta dessa<br />
Conferência na primeira sessão subseqüen-<br />
te à <strong>da</strong> Subcomissão, em 1995, assim como,<br />
no mesmo ano, <strong>ao</strong> Conselho Econômico e<br />
Social (Ecosoc), que aprovou e encaminhou<br />
a proposta à Assembléia Geral. Neste úl-<br />
timo foro, ver<strong>da</strong>deira instância decisória<br />
para empreendimentos dessa magnitude,<br />
a reação foi diferente. Países ocidentais<br />
manifestaram, já em 1995, dúvi<strong>da</strong>s sobre<br />
a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> idéia. Afinal, uma con-<br />
ferência sobre esse tema, por mais global<br />
que se comprovasse, iria tratar de assuntos<br />
para eles particularmente incômo<strong>do</strong>s. Sem<br />
mencionar que, nas circunstâncias <strong>da</strong> glo-<br />
balização atual, a exclusão social é efeito<br />
colateral espera<strong>do</strong>, a iniqüi<strong>da</strong>de racial era<br />
uma seara em que, <strong>ao</strong> contrário <strong>da</strong>s demais<br />
(meio ambiente, direitos humanos, cresci-<br />
mento populacional e situação <strong>da</strong> mulher),<br />
não lhes seria viável situar alhures o locus<br />
preferencial <strong>do</strong>s problemas 14 . Nem atribuir<br />
a outrem suas causas mais profun<strong>da</strong>s.<br />
A Assembléia Geral somente aprovou<br />
a idéia <strong>da</strong> Conferência na sessão regular de<br />
1997, dentro <strong>da</strong> Resolução 52/111, sobre a<br />
“Terceira Déca<strong>da</strong> de Combate <strong>ao</strong> Racismo e<br />
à Discriminação Racial”. Pelo art. 28 dessa<br />
longa resolução programática finalmen-<br />
te decidiu-se convocar uma “conferência<br />
mundial sobre o racismo e a discriminação<br />
racial, a xenofobia e intolerância correlata”<br />
(note-se que a menção às outras formas<br />
contemporâneas correlatas de intolerância<br />
havia si<strong>do</strong> substituí<strong>da</strong> pela expressão ino-<br />
va<strong>do</strong>ra “intolerância correlata”, de senti<strong>do</strong><br />
impreciso, diferente <strong>do</strong> que eu imagina-<br />
ra). 15 Entre seus objetivos, além <strong>da</strong>queles<br />
mais habituais (examinar os progressos<br />
alcança<strong>do</strong>s e obstáculos enfrenta<strong>do</strong>s para<br />
a superação <strong>do</strong>s problemas; aumentar o<br />
nível de conscientização para eles; formular<br />
recomen<strong>da</strong>ções, etc) incluía-se o de rever<br />
(to review) os “fatores políticos, históricos,<br />
econômicos, sociais, culturais e de outra<br />
ordem conducentes <strong>ao</strong> racismo, à discrimi-<br />
nação racial, à xenofobia e à intolerância<br />
correlata”, seguin<strong>do</strong>-se o de “formular re-<br />
comen<strong>da</strong>ções concretas de medi<strong>da</strong>s eficazes<br />
(action-oriented) nacionais, regionais e in-<br />
ternacionais” para combater os problemas.<br />
Estavam aí as sementes de algumas <strong>da</strong>s<br />
divergências mais difíceis. Ao modificar no<br />
título a fórmula original “... e outras formas<br />
contemporâneas correlatas de intolerância”<br />
para “intolerância correlata” a Assembléia<br />
expandia, talvez até com razão, o escopo <strong>da</strong><br />
conferência para áreas indefini<strong>da</strong>s (algumas<br />
<strong>da</strong>s quais, por mais pertinentes que fossem,<br />
não teriam si<strong>do</strong> aceitas sequer na Subcomis-<br />
são). Ao incluir nos objetivos a revisão <strong>do</strong>s<br />
fatores históricos <strong>do</strong> racismo, a Resolução<br />
52/111 abria o caminho para acusações que<br />
poderiam, em princípio, remontar até a<br />
Antigüi<strong>da</strong>de distante e para cobranças atu-<br />
14 Sobre essa tendência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong>, na fase imediata <strong>ao</strong> fim <strong>da</strong> Guerra Fria, de atribuir to<strong>da</strong>s as mazelas <strong>do</strong> planeta <strong>ao</strong>s pobres, v. inter alia<br />
meu já cita<strong>do</strong> Relações internacionais e temas sociais - A déca<strong>da</strong> <strong>da</strong>s conferências, págs. 59-61.<br />
15 V. supra nota 8. As duas primeiras conferências chamavam-se simplesmente “Conferência Mundial de Combate <strong>ao</strong> Racismo e à Discriminação Racial”<br />
e “Segun<strong>da</strong> Conferência Mundial ... (idem)”.
ais - as famosas “reparações” - entendi<strong>da</strong>s<br />
de maneiras divergentes entre seus próprios<br />
defensores. Além disso a resolução decidia,<br />
no art. 29, que a conferência seria convoca-<br />
<strong>da</strong> “não depois <strong>do</strong> ano de 2001”.<br />
Contempla<strong>da</strong> pela Subcomissão como<br />
um evento dedica<strong>do</strong> <strong>ao</strong>s problemas <strong>do</strong> pre-<br />
sente, her<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou não <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, volta<strong>do</strong><br />
para o futuro, a Conferência era encara<strong>da</strong>,<br />
na origem, como chave de ouro oportuna<br />
para a série final de encontros <strong>do</strong> Século<br />
XX. Tal como aprova<strong>da</strong> pela Assembléia<br />
Geral, abrangen<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s as discriminações<br />
existentes, com cobranças (até em dinheiro)<br />
pelos males <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, ela se tornava am-<br />
biciosa demais.<br />
Complexa mas não-irrealista nas<br />
circunstâncias de 1994, a Conferência<br />
contra o Racismo se afigurava onírica,<br />
mais <strong>do</strong> que ingênua, na situação som-<br />
bria, justifica<strong>da</strong>mente pessimista (ain<strong>da</strong><br />
antes <strong>do</strong> Onze de Setembro), <strong>do</strong> início no<br />
Século XXI.<br />
As principais dificul<strong>da</strong>des<br />
Para quem observa superficialmente os<br />
desentendimentos havi<strong>do</strong>s na Conferência<br />
de Durban pode parecer, à primeira vista,<br />
que os problemas tenham decorri<strong>do</strong>, de um<br />
la<strong>do</strong>, <strong>da</strong> insistência <strong>do</strong>s países árabes na<br />
reequiparação - não-explícita, mas eviden-<br />
temente implícita - <strong>do</strong> sionismo <strong>ao</strong> racismo,<br />
já rejeita<strong>da</strong> pela ONU desde 1991, com a<br />
conseqüente defecção <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />
e de Israel. De outro la<strong>do</strong>, as dificul<strong>da</strong>des<br />
estariam na rejeição ocidental à idéia de<br />
reparações pela prática <strong>da</strong> escravidão. Tais<br />
visões são ver<strong>da</strong>deiras, mas não suficiente-<br />
mente abrangentes.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Apega<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> longo perío<strong>do</strong> em que a<br />
luta anticolonialista <strong>do</strong> Movimento Não-<br />
Alinha<strong>do</strong> encampava com grande vigor a<br />
causa palestina e se refletia facilmente em<br />
<strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> ONU com a reiteração de<br />
que o sionismo era uma forma de racismo,<br />
os árabes foram realmente demasia<strong>do</strong> vi-<br />
rulentos contra os judeus nas propostas de<br />
parágrafos que abor<strong>da</strong>vam o conflito <strong>do</strong><br />
Oriente Médio (não se poden<strong>do</strong>, porém,<br />
negligenciar o fato de que o novo governo<br />
conserva<strong>do</strong>r israelense tomava iniciati-<br />
vas considera<strong>da</strong>s provocatórias, como o<br />
reinício <strong>do</strong> estabelecimento de “colônias”<br />
em território palestino). A linguagem por<br />
eles postula<strong>da</strong> para alguns parágrafos <strong>do</strong>s<br />
anteprojetos referia-se, por exemplo, <strong>ao</strong>s<br />
sofrimentos causa<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s palestinos como<br />
um novo holocausto. Caso aceita, tal for-<br />
mulação soaria mais radical <strong>do</strong> que a qua-<br />
lificação <strong>do</strong> sionismo como uma forma de<br />
racismo, pois equipararia o Esta<strong>do</strong> de Israel<br />
à Alemanha de Hitler. Ao se apropriar de<br />
um <strong>do</strong>s mais <strong>do</strong>lorosos momentos <strong>da</strong> His-<br />
tória <strong>do</strong> Século XX, a fórmula <strong>do</strong> “novo<br />
holocausto”, ou, como aparecia em certas<br />
propostas, a referência a “holocaustos” no<br />
plural, banalizaria o extermínio metódico<br />
<strong>do</strong>s judeus nos campos nazistas como um<br />
fenômeno não-excepcional. Contu<strong>do</strong>, a<br />
rejeição peremptória a tais formulações já<br />
havia si<strong>do</strong> externa<strong>da</strong> por grande número de<br />
delegações (inclusive a <strong>do</strong> Brasil) no Comi-<br />
tê Preparatório, ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> demonstra<strong>do</strong><br />
que elas não seriam aceitas nos <strong>do</strong>cumentos<br />
<strong>da</strong> Conferência.<br />
Quanto <strong>ao</strong> aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong>s negociações<br />
por Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Israel em Durban, ela<br />
não chegou a constituir novi<strong>da</strong>de. A reti-<br />
ra<strong>da</strong> de Washington, sob a administração<br />
89
90<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
de George W. Bush, de trata<strong>do</strong>s, encontros<br />
e concertações internacionais já se tornara<br />
corriqueira. Exemplos haviam si<strong>do</strong> registra-<br />
<strong>do</strong>s com relação <strong>ao</strong> Protocolo de Kyoto, <strong>ao</strong><br />
Tribunal Penal Internacional, à conferência<br />
internacional para o controle de armas leves<br />
e <strong>ao</strong>s esforços para o estabelecimento de um<br />
regime de inspeções eficaz para a Conven-<br />
ção sobre Armas Biológicas (sem falar nos<br />
acor<strong>do</strong>s ABM com Moscou). Nem por isso<br />
esses esforços e construções jurídicas ou<br />
quase jurídicas multilaterais passaram a ser<br />
despreza<strong>da</strong>s. No que diz respeito a reuniões<br />
mundiais específicas contra o racismo, pior<br />
já ocorrera em 1978, quan<strong>do</strong>, por motivos<br />
assemelha<strong>do</strong>s, as delegações ocidentais se<br />
ausentaram em bloco, esvazian<strong>do</strong> as ne-<br />
gociações <strong>da</strong> primeira conferência. E na<br />
segun<strong>da</strong> conferência, em 1983, os Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s, Israel e a África <strong>do</strong> Sul também se<br />
retiraram, sen<strong>do</strong> a Declaração final a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong><br />
por votação, de 101 contra 12 16 (o que signi-<br />
fica que para esses 12 opositores, a Declara-<br />
ção de 1983 nunca foi reconheci<strong>da</strong>).<br />
A diferença fun<strong>da</strong>mental em Durban,<br />
para a qual não atentaram os governos de<br />
Washington e Tel-Aviv, estava no fato de<br />
que, em 2001, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong> que se ve-<br />
rificara quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> primeira e <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
conferências contra o racismo, a aliança<br />
aguerri<strong>da</strong> <strong>do</strong> Movimento Não-Alinha<strong>do</strong> se<br />
desvanecera. Não mais contan<strong>do</strong> com apoio<br />
<strong>do</strong> extinto bloco socialista, desde 1991 os<br />
próprios Não-Alinha<strong>do</strong>s haviam si<strong>do</strong> for-<br />
ça<strong>do</strong>s a aceitar a revogação <strong>da</strong> resolução<br />
inicial, de 1975, e, conseqüentemente, de<br />
to<strong>do</strong>s os outros textos que estabeleciam ser<br />
o sionismo uma forma de racismo. Para o<br />
êxito <strong>da</strong> Conferência, as mais altas auto-<br />
ri<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, <strong>do</strong> secretário-<br />
geral, Kofi Annan, à alta comissária para os<br />
Direitos Humanos, Mary Robinson, cientes<br />
<strong>da</strong> obstinação <strong>do</strong>s árabes, recor<strong>da</strong>vam de<br />
público, com insistência, achar-se essa ques-<br />
tão definitivamente ultrapassa<strong>da</strong>, não fa-<br />
zen<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> reabri-la. Não seria, portanto,<br />
muito difícil, se para isso houvesse vontade,<br />
superar, em negociações construtivas, a<br />
veemência <strong>da</strong>queles que, instiga<strong>do</strong>s ou não<br />
pelas novas atitudes de Israel, persistiam<br />
em querer transformar uma grave questão<br />
político-nacionalista de fun<strong>do</strong> religioso<br />
num problema de direitos humanos 17 .<br />
A questão <strong>da</strong>s reparações pela escravi-<br />
dão, a que se associava a idéia de um pedi<strong>do</strong><br />
de perdão pelo colonialismo, foi, sem dúvi-<br />
<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s mais complexas, inclusive por não<br />
se tratar de reivindicação unívoca. Dentro<br />
<strong>do</strong>s movimentos negros <strong>do</strong> continente ame-<br />
ricano como um to<strong>do</strong>, as propostas já varia-<br />
vam desde a de a<strong>do</strong>ção de políticas públicas<br />
eficazes, na linha <strong>da</strong>s quotas ou preferên-<br />
cias estabeleci<strong>da</strong>s nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na<br />
seqüência <strong>do</strong> movimento pelos direitos civis<br />
<strong>do</strong>s anos 50-60, a postulações de indeniza-<br />
ções em dinheiro, a serem pagas, em bloco<br />
ou individualmente, <strong>ao</strong>s descendentes vivos<br />
<strong>do</strong>s escravos (essa idéia nunca chegou a ser<br />
claramente explicita<strong>da</strong>, não se ten<strong>do</strong> sabi<strong>do</strong><br />
nunca quem pagaria o quê, como e a quem).<br />
16 Extraio estes <strong>da</strong><strong>do</strong>s factuais - não a interpretação - de Michael Banton, “Lessons from the 2001 World Conference Against Racism”, Journal of Ethnic<br />
and Migration Studies Vol. 28, nº 2, abril de 2002.<br />
17 Não quero com a presente crítica negar as violações de direitos humanos pelas forças de Israel, violações condena<strong>da</strong>s pela ONU e pelo Governo<br />
brasileiro. O que soa inaceitável é a incriminação genérica de um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conflito, com argumentação errônea (ou relativização de horrores genoci<strong>da</strong>s<br />
contra inocentes).<br />
A retira<strong>da</strong> de<br />
Washington,<br />
sob a<br />
administração<br />
de George<br />
W. Bush, de<br />
trata<strong>do</strong>s,<br />
encontros e<br />
concertações<br />
internacionais<br />
já se tornara<br />
corriqueira.
Envolvia, em senti<strong>do</strong> inteiramente distinto,<br />
a reivindicação de compensações interesta-<br />
tais, cobra<strong>da</strong> pelo Grupo de Esta<strong>do</strong>s Afri-<br />
canos, na forma de <strong>do</strong>ações financeiras, de<br />
esquecimento <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> ou de assistência<br />
aumenta<strong>da</strong>. Tal postulação, de senti<strong>do</strong> Sul-<br />
Norte, pela insistência com que se apresen-<br />
tava, demonstrava não apenas uma diferen-<br />
ça de enfoque entre os africanos <strong>da</strong> África<br />
e seus parentes <strong>da</strong> diáspora, como também<br />
uma diferença essencial na maneira de<br />
interpretar a natureza <strong>da</strong> conferência: para<br />
o Grupo Africano ela deixava de ser um<br />
encontro sobre direitos humanos para cons-<br />
tituir um foro eminentemente econômico.<br />
A to<strong>da</strong>s essas cobranças o Grupo Oci-<br />
dental se opunha, como era, obviamente,<br />
espera<strong>do</strong>. O que não era espera<strong>do</strong> foi o nível<br />
de rigidez e obstrução por ele manifesta<strong>do</strong><br />
nos parágrafos mais simples. Ao contrário<br />
<strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong> em 1993, na Conferência de<br />
Viena, quan<strong>do</strong>, em geral, aju<strong>da</strong>vam a for-<br />
mular linguagem conducente <strong>ao</strong> consenso,<br />
em Durban, países ocidentais freqüente-<br />
mente assumiam posições “bizantinas”,<br />
com propostas de alterações ridículas para<br />
os textos mais anódinos, como se quisessem<br />
deixar clara sua antipatia pela conferência.<br />
Para as questões difíceis, uma de suas tá-<br />
ticas consistia em espalhar boatos de uma<br />
possível retira<strong>da</strong> coletiva, deixan<strong>do</strong> para<br />
“o dia seguinte” a decisão sobre a matéria.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Mas essa tática, como ficou desde ce<strong>do</strong><br />
comprova<strong>do</strong>, longe de obter concessões,<br />
sempre tendia, <strong>ao</strong> contrário, a aumentar a<br />
vociferação <strong>do</strong>s demais. Nessas condições,<br />
tanto quanto as posturas árabes, excessi-<br />
vas, mas monotemáticas, ou a insistência<br />
africana em reparações pela escravidão e<br />
pedi<strong>do</strong> de perdão formal pelo colonialismo,<br />
a inflexibili<strong>da</strong>de e a provocação constante<br />
de Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ocidente produzia a impres-<br />
são desalenta<strong>do</strong>ra de que to<strong>do</strong> o trabalho de<br />
Durban seria uma experiência vã 18 .<br />
Para se ter uma idéia minimamente<br />
aproxima<strong>da</strong> <strong>da</strong> massa de dificul<strong>da</strong>des envol-<br />
vi<strong>da</strong>s na conferência, convém que se tome<br />
em consideração to<strong>do</strong>s os “temas” por ela<br />
trata<strong>do</strong>s, pois to<strong>do</strong>s eles continham fontes<br />
de controvérsias, às vezes surpreendentes<br />
(os “temas” foram aprova<strong>do</strong>s, com colchetes<br />
indicativos de falta de consenso em torno <strong>da</strong><br />
palavra “compensatórias” desde a primeira<br />
sessão <strong>do</strong> Comitê Preparatório, em Gene-<br />
bra, em maio de 2000, até o final <strong>da</strong> terceira<br />
e extr<strong>ao</strong>rdinária sessão, de 30 de julho a<br />
10 de agosto, também em Genebra, 20 dias<br />
antes <strong>do</strong> início <strong>da</strong> própria Conferência 19 ,<br />
assim encaminha<strong>do</strong>s a Durban e finalmente<br />
lá en<strong>do</strong>ssa<strong>do</strong>s). Os “temas” eram:<br />
Fontes, causas, formas e manifestações con-<br />
temporâneas de racismo, discriminação ra-<br />
cial, xenofobia e intolerância correlata;<br />
Vítimas de racismo, discriminação racial,<br />
18 Para não cometer uma injustiça flagrante, não posso deixar de assinalar o extr<strong>ao</strong>rdinário trabalho <strong>da</strong> Bélgica, na quali<strong>da</strong>de de coordena<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> União<br />
Européia, cuja paciência (irritante para os de fora), logrou manter os 15 uni<strong>do</strong>s e presentes até o final <strong>do</strong> evento. Foi também a Bélgica, na pessoa <strong>do</strong><br />
professor Marc Bossuyt, membro <strong>do</strong> Cerd (e co-patrocina<strong>do</strong>r <strong>da</strong> proposta original <strong>da</strong> Conferência na Subcomissão), quem presidiu com proficiência e<br />
dedicação o Grupo de Trabalho negocia<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Declaração.<br />
19 A terceira sessão <strong>do</strong> Comitê Preparatório (em Genebra de 30 de julho a 10 de agosto), não prevista nas resoluções sobre a Conferência, foi decidi<strong>da</strong><br />
exatamente em função <strong>da</strong> massa de discordâncias que as duas sessões anteriores não haviam consegui<strong>do</strong> aplainar (a segun<strong>da</strong> sessão ocorreu de 21 de maio<br />
a 1º de junho de 2001). Mas isso não chegava a ser novi<strong>da</strong>de, nem a significar dificul<strong>da</strong>des intransponíveis, na medi<strong>da</strong> em que a Conferência de Viena de<br />
1993 teve algo de assemelha<strong>do</strong>, senão pior, no processo preparatório (v. José Augusto Lindgren Alves, Relações internacionais e temas sociais - A déca<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong>s conferências, pág. 92)<br />
91
92<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
xenofobia e intolerância correlata;<br />
Medi<strong>da</strong>s de prevenção, educação e proteção<br />
volta<strong>da</strong>s para a erradicação <strong>do</strong> racismo,<br />
<strong>da</strong> discriminação racial, <strong>da</strong> xenofobia e <strong>da</strong><br />
intolerância correlata nos níveis nacional,<br />
regional e internacional;<br />
Provisão de remédios efetivos, recursos, cor-<br />
reção, assim como medi<strong>da</strong>s [compensatórias]<br />
e de outra ordem nos níveis nacional, regio-<br />
nal e internacional;<br />
Estratégias para alcançar a igual<strong>da</strong>de plena<br />
e efetiva, inclusive por meio <strong>da</strong> cooperação<br />
internacional e <strong>do</strong> fortalecimento <strong>da</strong>s Nações<br />
Uni<strong>da</strong>s e outros mecanismos internacionais para<br />
o combate <strong>ao</strong> racismo, à discriminação racial, à<br />
xenofobia e à intolerância correlata, assim como<br />
o acompanhamento de sua implementação. 20<br />
Até mesmo os <strong>do</strong>is primeiros “temas”,<br />
aparentemente inocentes, concernentes à<br />
definição <strong>da</strong>s fontes e causas <strong>do</strong> racismo,<br />
assim como a relação de suas vítimas, foram<br />
submeti<strong>do</strong>s a tantas e tamanhas controvérsias<br />
que, para se tentar saná-las, foram agrupa<strong>do</strong>s<br />
num <strong>do</strong>s três grandes conjuntos de “questões<br />
difíceis”, ain<strong>da</strong> nas discussões <strong>do</strong> Comitê<br />
Preparatório, sen<strong>do</strong> atribuí<strong>da</strong> <strong>ao</strong> México a<br />
função de “facilita<strong>do</strong>r” para buscar o consen-<br />
so. Os problemas que se apresentavam eram<br />
vários. A Índia não aceitava que se incluíssem<br />
os párias ou <strong>da</strong>lits entre as vítimas (enquanto<br />
<strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora <strong>da</strong>s salas de reunião párias<br />
procedentes <strong>do</strong> subcontinente indiano e sim-<br />
patizantes vários de outras nacionali<strong>da</strong>des<br />
faziam manifestações e vigílias para que a<br />
situação <strong>do</strong>s “intocáveis” não fosse deixa<strong>da</strong><br />
de la<strong>do</strong>), com a alegação de que as castas não<br />
decorrem de raça. As mulheres, estimula<strong>da</strong>s<br />
por suas conquistas nas Conferências <strong>do</strong> Cai-<br />
ro, em 1994, e de Beijing, em 1995, insistiam,<br />
pela voz de muitas delegações, na inclusão <strong>do</strong><br />
gênero como fonte de discriminações agrava-<br />
<strong>da</strong>s. Utilizan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> expressão “intolerância<br />
correlata”, os países ocidentais lato sensu,<br />
nesse caso lidera<strong>do</strong>s pelo Brasil, traziam <strong>ao</strong><br />
proscênio o problema <strong>da</strong> discriminação por<br />
orientação sexual, sofri<strong>da</strong> pelos homossexuais,<br />
universal mas ain<strong>da</strong> tabu em diversos meios<br />
e socie<strong>da</strong>des, não-reconheci<strong>da</strong> sequer como<br />
discriminação porque legalmente crimina-<br />
liza<strong>da</strong> em muitos países, por preconceito ou<br />
motivação religiosa.<br />
Somente na véspera <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta prevista de<br />
encerramento <strong>da</strong> conferência, a exausta de-<br />
legação mexicana logrou anunciar o acor<strong>do</strong><br />
- absur<strong>da</strong>mente tautológico - a que se conse-<br />
guira chegar sobre o tema <strong>da</strong>s “vítimas”, as-<br />
sim como a formulação - minimalista, repro-<br />
duzin<strong>do</strong> ipsis litteris o Artigo 1º <strong>da</strong> Conven-<br />
ção sobre a Eliminação de To<strong>da</strong>s as Formas<br />
de Discriminação Racial, 1965 - <strong>da</strong>s “causas<br />
(ou fontes)” de discriminações primárias,<br />
acrescentan<strong>do</strong>-se como fontes adicionais para<br />
as discriminações múltiplas ou agrava<strong>da</strong>s a<br />
expressão acomo<strong>da</strong>tícia “por outros motivos<br />
correlatos”, segui<strong>da</strong> de termos incontroversos,<br />
extraí<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Declaração Universal <strong>do</strong>s Di-<br />
reitos Humanos, a título exemplificativo. Tal<br />
acor<strong>do</strong> se lê nos arts. 1 e 2 <strong>da</strong> Declaração de<br />
Durban 21 , que rezam:<br />
20 Documento <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s A/CONF.189/1/Rev.1, de 02.10.2001. A palavra “compensatória” foi manti<strong>da</strong> entre colchetes, indicativos <strong>da</strong> falta de<br />
consenso, até a a<strong>do</strong>ção <strong>da</strong> Agen<strong>da</strong> pela Conferência, no dia 31.08.2001.<br />
21 A Declaração e o Programa de Ação de Durban constam <strong>do</strong> Relatório <strong>da</strong> Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a<br />
Xenofobia e Intolerância Correlata, <strong>do</strong>cumento <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s A/CONF.189/12. As citações aqui feitas foram traduzi<strong>da</strong>s por mim <strong>do</strong>s textos em<br />
inglês e em espanhol.<br />
A Índia não<br />
aceitava que<br />
se incluíssem<br />
os párias ou<br />
<strong>da</strong>lits entre as<br />
vítimas.
“1. Declaramos que, para efeitos <strong>da</strong> presente<br />
Declaração e Programa de Ação, as vítimas<br />
<strong>do</strong> racismo, discriminação racial, xenofobia e<br />
formas correlatas de intolerância são os indi-<br />
víduos ou grupos de indivíduos que sejam ou<br />
tenham si<strong>do</strong> afeta<strong>do</strong>s negativamente por esses<br />
flagelos, submeti<strong>do</strong>s a eles ou seu alvo.<br />
2. Reconhecemos que o racismo, a discri-<br />
minação racial, a xenofobia e as formas<br />
correlatas de intolerância são produzi<strong>da</strong>s por<br />
motivos de raça, cor, descendência, origem<br />
nacional ou étnica, e que as vítimas podem<br />
sofrer formas múltiplas ou agrava<strong>da</strong>s de<br />
discriminação por outros motivos correlatos,<br />
como o sexo, o idioma, a religião, opiniões<br />
políticas ou de outra ín<strong>do</strong>le, origem social,<br />
situação econômica, nascimento ou outra<br />
condição.” 22<br />
Sem pretender esgotar, nem de longe, a<br />
descrição <strong>da</strong>s controvérsias e circunstâncias<br />
que quase levaram à inexistência de <strong>do</strong>cu-<br />
mentos finais em Durban, pode-se assina-<br />
lar, por exemplo, sobre os temas <strong>da</strong>s “medi-<br />
<strong>da</strong>s de prevenção, educação e proteção para<br />
erradicar o racismo” e <strong>da</strong>s “estratégias para<br />
se alcançar a igual<strong>da</strong>de plena”, que a ex-<br />
pressão corrente ação afirmativa foi bani<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> conferência, por mais que os movimen-<br />
tos negros - inclusive o brasileiro - e outros<br />
grupos organiza<strong>do</strong>s presentes <strong>ao</strong> evento a<br />
defendessem. E foi bani<strong>da</strong> exatamente pelo<br />
país que a inventou, na linguagem e na prá-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
tica: os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Isso porque, como<br />
é sabi<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> nos tempos <strong>do</strong> democrata<br />
liberal Bill Clinton, alguns esta<strong>do</strong>s norte-<br />
americanos, começan<strong>do</strong> pela Califórnia, já<br />
a haviam legalmente aboli<strong>do</strong>. No governo<br />
republicano, tal tendência deveria logica-<br />
mente intensificar-se. Daí a objeção <strong>do</strong>s<br />
delega<strong>do</strong>s norte-americanos sempre que ela<br />
aparecia. E de na<strong>da</strong> adiantou, para a lingua-<br />
gem <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos, a retira<strong>da</strong> <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s. Seus alia<strong>do</strong>s mais fiéis presentes<br />
velaram zelosamente para que essa expres-<br />
são, hoje universalmente consagra<strong>da</strong>, não<br />
reaparecesse em qualquer parágrafo.<br />
Outro fato que merece ser lembra<strong>do</strong>,<br />
pela ironia de que se reveste, foi a quanti<strong>da</strong>-<br />
de de vezes que, em meio a negociações em-<br />
perra<strong>da</strong>s sobre os assuntos mais delica<strong>do</strong>s,<br />
certas delegações européias fizeram questão<br />
de afirmar sua não-aceitação <strong>da</strong> noção de<br />
raça. Como se Ernest Renan, Le Bon, La-<br />
pouge, Gumplowicz, Franz Gall, John Hunt<br />
e nosso velho conheci<strong>do</strong> Gobineau, sem<br />
falar de Spencer e Galton, ou, mais tenebro-<br />
samente, <strong>do</strong> nacional-socialismo alemão,<br />
não tivessem si<strong>do</strong> europeus, inspira<strong>do</strong>res de<br />
políticas conseqüentes! 23 Por mais meritó-<br />
ria que fosse a recusa dessa noção, ela, em<br />
geral, funcionava como mero complica<strong>do</strong>r<br />
adicional de discussões já acirra<strong>da</strong>s. Além<br />
disso, é preciso ter em mente que, se eleva-<br />
<strong>da</strong> a extremos, essa rejeição fora de contexto<br />
poderia ad absurdum esvaziar a rationale <strong>da</strong><br />
22 Note-se que sequer o termo “gênero” (de conotação sociológica, <strong>ao</strong> contrário de “sexo”, meramente biológico), postula<strong>do</strong> pelo movimento de mulheres<br />
e previamente usa<strong>do</strong> nos <strong>do</strong>cumentos de Beijing, foi aceito. Para esclarecer quaisquer dúvi<strong>da</strong>s, nas poucas vezes em que a palavra aparece, como no 33º<br />
parágrafo preambular (que reitera a conveniência de se aplicar uma perspectiva de gênero para evitar discriminações contra a mulher), uma nota de ro<strong>da</strong>pé<br />
explicita referir-se o termo “a ambos os sexos, varão e mulher, no contexto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de”, não comportan<strong>do</strong> qualquer outro significa<strong>do</strong>.<br />
23 Para uma descrição <strong>do</strong> racismo científico e sua evolução para o “novo racismo” atual, v. Michel Wiewiorka, Le racisme, une introduction, Paris,<br />
La Decouverte, 1998. Sobre o “novo racismo europeu”, v. o mesmo Michel Wiewiorka et al., Racisme et xénophobie en Europe - une comparaison<br />
internationale, Paris, La Découverte, 1994.<br />
93
94<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
conferência, <strong>da</strong> Convenção sobre a Elimina-<br />
ção de To<strong>da</strong>s as Formas de Discriminação<br />
Racial e <strong>do</strong>s demais instrumentos de com-<br />
bate <strong>ao</strong> racismo. Por uma questão de lógica,<br />
a inexistência de raças poderia representar<br />
inexistência de racismo, justifican<strong>do</strong> uma<br />
inação, que ninguém ousaria, na conferên-<br />
cia, suscitar como posição.<br />
To<strong>do</strong>s de boa fé sabemos que “raça” é<br />
sobretu<strong>do</strong> uma construção social, negativa<br />
ou positiva conforme o objetivo que se lhe<br />
queira <strong>da</strong>r. Pode ou não envolver traços<br />
físicos, cor de pele, língua, religião ou cos-<br />
tumes “racializa<strong>do</strong>s”. Com senti<strong>do</strong> roman-<br />
ticamente comunitário, a idéia de “raça”<br />
fun<strong>da</strong>mentou a formação <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s na-<br />
cionais europeus (particularmente a Alema-<br />
nha unifica<strong>da</strong> no Século XIX, mas a Data<br />
Nacional de Portugal, que celebra Camões<br />
e sua poesia, chama-se também “Dia <strong>da</strong><br />
Raça”), assim como serviu de base à expan-<br />
são colonialista, justifican<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minação<br />
“civiliza<strong>do</strong>ra” de populações “inferiores”.<br />
Nesse mesmo senti<strong>do</strong> identitário, agora com<br />
os sinais troca<strong>do</strong>s, a raça tem si<strong>do</strong> atual-<br />
mente usa<strong>da</strong> pela esquer<strong>da</strong> como amálgama<br />
de auto-afirmação para quem antes era, ou<br />
ain<strong>da</strong> permanece, deprecia<strong>do</strong> pelos demais.<br />
E <strong>ao</strong> mesmo tempo serve <strong>ao</strong> diferencialismo<br />
racista <strong>da</strong> direita, que rejeita os imigrantes,<br />
os estrangeiros, os diferentes, porque “cul-<br />
turalmente inassimiláveis”.<br />
O problema não está na existência ou<br />
não de raças, mas no senti<strong>do</strong> que se dá <strong>ao</strong><br />
termo. Se atribuirmos caracteres inerentes,<br />
naturais e inescapáveis, às diferenças físi-<br />
cas, psíquicas, lingüísticas ou etno-religio-<br />
sas de qualquer população, estaremos sen<strong>do</strong><br />
racistas, quase sempre para o mal. Como<br />
explicita Wierwiorka, o racismo hoje em<br />
voga é muito mais cultural e diferencialista<br />
<strong>do</strong> que científico e instrumental, como ocor-<br />
reu no passa<strong>do</strong>. Seja com base “científica”,<br />
universalista mas inferiorizante, ou “cultu-<br />
ral” diferencialista e excludente, a ver<strong>da</strong>de<br />
nua e crua é que o racismo existe, segrega,<br />
discrimina e mata. Fenômeno socioeconô-<br />
mico e político, ele faz estragos terríveis em<br />
primeiro lugar às vítimas e sua coletivi<strong>da</strong>de.<br />
Fá-lo também à socie<strong>da</strong>de como um to<strong>do</strong>,<br />
onde os inocentes, acomo<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou não, são<br />
igualmente alvo <strong>do</strong> ódio retribuí<strong>do</strong>.<br />
Posturas ridículas no contexto <strong>da</strong>s ne-<br />
gociações à parte, é bom que a conferência<br />
tenha afirma<strong>do</strong>, no art. 7 <strong>da</strong> Declaração:<br />
“7. (...) To<strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina de superiori<strong>da</strong>de<br />
racial é cientificamente falsa, moralmente<br />
condenável, socialmente injusta e perigosa,<br />
deven<strong>do</strong> ser rechaça<strong>da</strong> juntamente com as<br />
teorias que procuram determinar a existência<br />
de raças humanas separa<strong>da</strong>s”.<br />
Também parece positivo o fato de que<br />
a União Européia, em adição a esse artigo,<br />
tenha feito questão de assinalar, no encer-<br />
ramento <strong>do</strong> encontro, pela voz <strong>da</strong> delegação<br />
<strong>da</strong> Bélgica, então presidente <strong>do</strong>s “quinze”,<br />
que to<strong>do</strong>s os seus Esta<strong>do</strong>s-membros:<br />
“... rechaçam firmemente qualquer <strong>do</strong>utrina<br />
que proclame a superiori<strong>da</strong>de racial, junta-<br />
mente com as teorias que tentam determinar a<br />
existência de raças humanas distintas (...). Isto<br />
não implica negação <strong>do</strong> conceito de raça como<br />
motivo de discriminação, nem negação <strong>da</strong>s ma-<br />
nifestações de racismo e discriminação racial,<br />
segun<strong>do</strong> defini<strong>da</strong>s pelo Artigo 1º <strong>da</strong> Convenção<br />
(de 1965), que ain<strong>da</strong> existem em to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.”<br />
À luz <strong>da</strong>s atitudes coletivas de repúdio,<br />
a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s pouco antes pela União Européia,<br />
O racismo<br />
hoje em voga<br />
é muito mais<br />
cultural e<br />
diferencialista<br />
<strong>do</strong> que<br />
científico e<br />
instrumental.
diante <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>ao</strong> poder de parti<strong>do</strong> semi-<br />
nazista em um de seus Esta<strong>do</strong>s-membros, e<br />
<strong>do</strong> crescimento <strong>da</strong> populari<strong>da</strong>de de “fren-<br />
tes”, “ligas” ou parti<strong>do</strong>s ultranacionalistas<br />
- micronacionalistas em alguns casos - com<br />
programas basea<strong>do</strong>s na fustigação de imi-<br />
grantes provenientes de regiões mais pobres,<br />
tal declaração <strong>do</strong>s quinze, logo segui<strong>da</strong> pela<br />
Suíça, mais <strong>do</strong> que uma explicação genéri-<br />
ca, soava como uma autocrítica ou, quiçá,<br />
auto-advertência. Pois neste início de século,<br />
em tendência confirma<strong>da</strong> eleitoralmente na<br />
Europa <strong>ao</strong> longo de 2002, assim como des-<br />
de antes em países <strong>da</strong> Ásia, a atribuição de<br />
culpa <strong>ao</strong>s estrangeiros pelas mazelas vivi<strong>da</strong>s<br />
tornou-se ver<strong>da</strong>deira constante.<br />
A busca de soluções<br />
Sublinhan<strong>do</strong> mais uma vez que as divergên-<br />
cias acima menciona<strong>da</strong>s foram importantes,<br />
mas nem de longe as únicas, cabe agora<br />
<strong>da</strong>r uma idéia <strong>do</strong>s processos pelos quais se<br />
“solucionaram” as principais dificul<strong>da</strong>des,<br />
a saber: o grupo de parágrafos relaciona<strong>do</strong>s<br />
com o conflito árabe-israelense e o <strong>do</strong>s ati-<br />
nentes às chama<strong>da</strong>s “questões históricas”,<br />
em que se incluía a idéia de reparações atu-<br />
ais. Para ambos, a exemplo <strong>do</strong> que se passa-<br />
va com o já descrito problema <strong>da</strong>s “fontes<br />
e vítimas” com coordenação <strong>do</strong> México,<br />
haviam si<strong>do</strong> designa<strong>do</strong>s na última sessão <strong>do</strong><br />
Comitê Preparatório <strong>do</strong>is “coordena<strong>do</strong>res”:<br />
a África <strong>do</strong> Sul (na quali<strong>da</strong>de de país anfi-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
trião) para o Oriente Médio e o Brasil para<br />
os “temas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”. Na<strong>da</strong> foi possível<br />
adiantar, até porque os Esta<strong>do</strong>s direta-<br />
mente interessa<strong>do</strong>s não queriam reunir-se.<br />
Em Durban, a presidenta <strong>da</strong> Conferência,<br />
Nkosazana Dlamini Zuma, ministra <strong>da</strong>s<br />
Relações Exteriores <strong>da</strong> África <strong>do</strong> Sul, deci-<br />
diu reconstituir os três grupos informais de<br />
trabalho, manten<strong>do</strong> como coordena<strong>do</strong>res o<br />
México para o primeiro conjunto; o Brasil<br />
(na figura <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r Gilberto Sabóia,<br />
chefe alterno <strong>da</strong> delegação brasileira) 24 ,<br />
como coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s “questões históri-<br />
cas”, assisti<strong>do</strong> pelo Quênia; a Noruega, em<br />
função <strong>do</strong>s “acor<strong>do</strong>s de Oslo”, para os pará-<br />
grafos relativos <strong>ao</strong> Oriente Médio, auxilia<strong>da</strong><br />
pela Namíbia.<br />
Na medi<strong>da</strong> em que, em contraste com<br />
os <strong>do</strong>is primeiros grupos, aquele corres-<br />
pondente <strong>ao</strong> Oriente Médio não mostrava<br />
nenhuma evolução positiva com o passar<br />
<strong>do</strong>s dias, a chanceler sul-africana arrogou<br />
a si mesma essa tarefa de coordenação apa-<br />
rentemente impossível, estabelecen<strong>do</strong> como<br />
auxiliares cinco representantes <strong>do</strong>s diferen-<br />
tes grupos regionais. Tanto o México, como<br />
o Brasil e a chanceler sul-africana, após<br />
ouvirem as diferentes - e múltiplas - posi-<br />
ções conflitantes sobre os diferentes pará-<br />
grafos, tomaram o mesmo tipo de iniciativa:<br />
a partir <strong>da</strong>s intervenções ouvi<strong>da</strong>s - muitas<br />
vezes até o amanhecer -, escreveram novos<br />
conjuntos de parágrafos para os assuntos<br />
respectivos, os quais deveriam substituir, na<br />
24 O chefe titular <strong>da</strong> delegação <strong>do</strong> Brasil foi o então-ministro <strong>da</strong> Justiça José Gregori, que proferiu a alocução oficial em plenário. O embaixa<strong>do</strong>r Sabóia<br />
exercia, na época, as funções de secretário de Esta<strong>do</strong> para os Direitos Humanos. Abrigan<strong>do</strong> grande número de autori<strong>da</strong>des e representantes <strong>do</strong>s três Poderes<br />
em níveis diversos <strong>da</strong> Federação, assim como integrantes de movimentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil, a delegação <strong>do</strong> Brasil em Durban foi uma <strong>da</strong>s mais numerosas.<br />
A ela se associavam mais de 200 militantes, que compareceram <strong>ao</strong> fórum de ONGs, <strong>ao</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Centro de Conferências, e mantinham com a delegação<br />
oficial interação constante, notavelmente cooperativa. É de notar, também, que a Relatoria Geral <strong>da</strong> Conferência coube, por eleição, a uma brasileira,<br />
muito atuante na socie<strong>da</strong>de civil: Edna Roland.<br />
95
96<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
Declaração e Programa de Ação de Durban,<br />
tu<strong>do</strong> o que se referisse às questões em pau-<br />
ta, apagan<strong>do</strong>-se, pois, aquilo que constava,<br />
sem acor<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s anteprojetos recebi<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
Comitê Preparatório 25 .<br />
Com exceção <strong>do</strong>s assuntos coordena<strong>do</strong>s<br />
pelo México, cuja re<strong>da</strong>ção final minimalista<br />
foi apresenta<strong>da</strong> <strong>ao</strong> Comitê de Re<strong>da</strong>ção pou-<br />
co antes <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta marca<strong>da</strong> para o encerra-<br />
mento <strong>da</strong> conferência, os novos parágrafos<br />
sobre o Oriente Médio e sobre os assuntos<br />
históricos foram apresenta<strong>do</strong>s pelos respec-<br />
tivos coordena<strong>do</strong>res, já no dia 8, diretamen-<br />
te <strong>ao</strong> Comitê Plenário, que os acolheu. Mas<br />
aí se iniciou um novo processo que quase<br />
põe tu<strong>do</strong> a perder.<br />
Insatisfeitos com o tom mais modera<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s parágrafos sobre o Oriente Médio, os<br />
países integrantes <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong> Con-<br />
ferência Islâmica, pela voz <strong>da</strong> delegação<br />
<strong>da</strong> Síria, retomaram alguns <strong>do</strong>s parágrafos<br />
mais controverti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anteprojetos, supe-<br />
ra<strong>do</strong>s pelos novos textos recém-aprova<strong>do</strong>s,<br />
supostamente consensuais, e os reapresen-<br />
taram à consideração <strong>do</strong> Comitê. Diante <strong>da</strong><br />
surpresa generaliza<strong>da</strong>, muita movimentação<br />
na mesa, consultas formula<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> consultor<br />
jurídico <strong>da</strong> ONU, e após uma nova suspen-<br />
são <strong>do</strong>s trabalhos de duas horas (quan<strong>do</strong> a<br />
conferência deveria ter termina<strong>do</strong> na vés-<br />
pera!), o Brasil, em ação corajosa, visan<strong>do</strong><br />
salvar a conferência, formulou, com base<br />
no regulamento vigente, moção de não-<br />
consideração desses textos reapresenta<strong>do</strong>s.<br />
25 Documentos A/CONF.189/4 e A/CONF.189/5.<br />
Nova confusão se armou, na medi<strong>da</strong> em que<br />
delega<strong>do</strong>s ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s não notaram ou não<br />
entenderam que, também de acor<strong>do</strong> com o<br />
regulamento, a moção brasileira, para ser<br />
váli<strong>da</strong>, precisaria ser secun<strong>da</strong><strong>da</strong> de público<br />
por pelo menos <strong>do</strong>is outros países, enquanto<br />
a Síria e a Argélia a ela logo se opuseram.<br />
Isola<strong>do</strong> (pela incompetência alheia), o<br />
Brasil viu-se força<strong>do</strong> a retirar a proposta.<br />
Quan<strong>do</strong> finalmente entendi<strong>da</strong> a oportuni-<br />
<strong>da</strong>de desperdiça<strong>da</strong>, a Bélgica, em nome <strong>do</strong>s<br />
15 membros <strong>da</strong> União Européia, retomou<br />
a iniciativa brasileira, reapresentan<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />
Comitê Principal a moção de não-consi-<br />
deração. A moção foi, então, submeti<strong>da</strong> a<br />
votação, sen<strong>do</strong> aprova<strong>da</strong> por 51 a favor, 37<br />
contra e 11 abstenções. Passou, assim, por<br />
voto a moção de não-consideração desses<br />
parágrafos controverti<strong>do</strong>s (portanto, defi-<br />
nitivamente anula<strong>do</strong>s), mas não foi objeto<br />
de escrutínio o conjunto alternativo. Isso<br />
permitiu <strong>ao</strong> Comitê Principal e, poste-<br />
riormente, <strong>ao</strong> Plenário, a<strong>do</strong>tar sem voto a<br />
Declaração e o Programa de Ação, tornan<strong>do</strong><br />
os resulta<strong>do</strong>s de Durban ipso facto mais<br />
positivos <strong>do</strong> que os <strong>da</strong>s duas conferências<br />
anteriores sobre o racismo 26 .<br />
Embora não caiba aqui repetir integral-<br />
mente os textos afinal aprova<strong>do</strong>s para essas<br />
questões candentes, vale a pena recor<strong>da</strong>r,<br />
porque auto-explicativos à luz <strong>do</strong> que já foi<br />
antes assinala<strong>do</strong>, alguns desse novos pará-<br />
grafos a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s sem voto (to<strong>do</strong>s os quais<br />
foram inseri<strong>do</strong>s, após outros contratempos<br />
26 Não posso deixar de assinalar, até por impulso patriótico, que foi duas vezes graças <strong>ao</strong> Brasil, e pela mesma pessoa, o embaixa<strong>do</strong>r Gilberto Sabóia,<br />
que a Conferência de Durban teve êxito: <strong>ao</strong> coordenar as discussões e, conseqüentemente, a re<strong>da</strong>ção <strong>do</strong>s parágrafos alternativos importantíssimos sobre<br />
as chama<strong>da</strong>s questões <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, assim como pela “ousadia” de formular sozinho a moção procedimental de não-consideração para os parágrafos<br />
inaceitáveis concernentes <strong>ao</strong> Oriente Médio. E é sempre bom recor<strong>da</strong>r que também o Brasil, na mesma pessoa <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r Gilberto Sabóia, já havia<br />
si<strong>do</strong> responsável em 1993 pela re<strong>da</strong>ção consensual <strong>da</strong> Declaração e Programa de Ação de Viena, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos.
entre o fim <strong>da</strong> Conferência e a Assembléia<br />
Geral, na Declaração de Durban):<br />
A propósito <strong>do</strong> conflito árabe-israelense:<br />
“58. Recor<strong>da</strong>mos que o Holocausto não deve<br />
ser nunca esqueci<strong>do</strong>.<br />
61. Reconhecemos com profun<strong>da</strong> preocupa-<br />
ção o aumento <strong>do</strong> anti-semitismo e <strong>da</strong> isla-<br />
mofobia em diversas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, assim<br />
como o aparecimento de movimentos raciais<br />
e violentos basea<strong>do</strong>s no racismo e em idéias<br />
discriminatórias contra as comuni<strong>da</strong>des ju-<br />
dia, muçulmana e árabe.<br />
63. Preocupam-nos os padecimentos <strong>do</strong> povo<br />
palestino submeti<strong>do</strong> à ocupação estrangeira.<br />
Reconhecemos o direito inalienável <strong>do</strong> povo<br />
palestino à autodeterminação e <strong>ao</strong> estabele-<br />
cimento de um Esta<strong>do</strong> independente e reco-<br />
nhecemos o direito à segurança de to<strong>do</strong>s os<br />
Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> região, inclusive Israel. Fazemos<br />
um chamamento a to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s para que<br />
apóiem o processo de paz e o levem a uma<br />
pronta conclusão.<br />
64. Apelamos por uma paz justa, abrangente<br />
e dura<strong>do</strong>ura na região, em que to<strong>do</strong>s os povos<br />
coexistam e desfrutem de igual<strong>da</strong>de, justiça e<br />
os direitos humanos internacionalmente reco-<br />
nheci<strong>do</strong>s, assim como de segurança.<br />
65. Reconhecemos o direito <strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s<br />
de regressarem voluntariamente a seus lares<br />
e proprie<strong>da</strong>des em condições de digni<strong>da</strong>de e<br />
segurança, e instamos a to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s que<br />
facilitem esse retorno.”<br />
Sobre as “questões históricas”:<br />
“13. Reconhecemos que a escravidão e o<br />
tráfico de escravos, em particular o tráfico<br />
transatlântico, foram tragédias atrozes na<br />
história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, não apenas por sua<br />
abominável barbárie, mas também por sua<br />
magnitude, seu caráter organiza<strong>do</strong> e, espe-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
cialmente, sua negação <strong>da</strong> essência <strong>da</strong>s víti-<br />
mas. Reconhecemos ain<strong>da</strong> que a escravidão e<br />
o tráfico de escravos, especialmente o tráfico<br />
transatlântico, são, e sempre deveriam ter<br />
si<strong>do</strong>, um crime contra a humani<strong>da</strong>de e se<br />
encontram entre as maiores fontes e mani-<br />
festações de racismo, discriminação racial,<br />
xenofobia e intolerância correlata, e que os<br />
africanos e afrodescendentes, os asiáticos e<br />
descendentes de asiáticos, assim como os po-<br />
vos indígenas, foram vítimas de tais práticas<br />
e continuam a sê-lo de suas conseqüências.<br />
14. Reconhecemos que o colonialismo levou<br />
<strong>ao</strong> racismo, à discriminação racial, à xeno-<br />
fobia e a formas correlatas de intolerância, e<br />
que os africanos e afrodescendentes, os asiá-<br />
ticos e descendentes de asiáticos, assim como<br />
os povos indígenas, foram vítimas <strong>do</strong> colonia-<br />
lismo e continuam a sê-lo de suas conseqüên-<br />
cias. Reconhecemos os sofrimentos causa<strong>do</strong>s<br />
pelo colonialismo e afirmamos que, onde e<br />
quan<strong>do</strong> quer que ele tenha ocorri<strong>do</strong>, deve ser<br />
condena<strong>do</strong> e impedi<strong>do</strong> de ocorrer novamente.<br />
Ademais lamentamos que os efeitos e a persis-<br />
tência dessas estruturas e práticas sejam <strong>do</strong>s<br />
fatores que contribuem para as desigual<strong>da</strong>des<br />
sociais e econômicas dura<strong>do</strong>uras em muitas<br />
partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de hoje.<br />
100. Reconhecemos e lamentamos profun<strong>da</strong>-<br />
mente os sofrimentos e males indizíveis infligi-<br />
<strong>do</strong>s a milhões de homens, mulheres e crianças<br />
como resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> escravidão, <strong>do</strong> tráfico de<br />
escravos, <strong>do</strong> tráfico transatlântico de escravos,<br />
<strong>do</strong> apartheid e de tragédias passa<strong>da</strong>s. Nota-<br />
mos também que alguns Esta<strong>do</strong>s têm toma<strong>do</strong><br />
a iniciativa de pedir perdão e de pagar indeni-<br />
zação, conforme apropria<strong>do</strong>, para as graves e<br />
maciças violações cometi<strong>da</strong>s.<br />
101. Com vistas a <strong>da</strong>r por encerra<strong>do</strong>s esses<br />
capítulos sombrios <strong>da</strong> história e como uma um<br />
97
98<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
meio de reconciliação e cicatrização de feri-<br />
<strong>da</strong>s, convi<strong>da</strong>mos a comuni<strong>da</strong>de internacional<br />
e seus membros a honrar a memória <strong>da</strong>s víti-<br />
mas dessas tragédias. Ademais notamos que<br />
alguns têm toma<strong>do</strong> a iniciativa de lamentar<br />
ou de expressar remorso ou de pedir perdão,<br />
e instamos a to<strong>do</strong>s que ain<strong>da</strong> não tenham<br />
contribuí<strong>do</strong> para restaurar a digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
vítimas que procurem meios apropria<strong>do</strong>s de o<br />
fazer. Nesse senti<strong>do</strong>, expressamos nossa apre-<br />
ciação pelos países que já o fizeram.”<br />
Embora os artigos acima reproduzi<strong>do</strong>s<br />
de maneira não seqüencial já formem lista<br />
compri<strong>da</strong>, o total de textos redigi<strong>do</strong>s pelos<br />
coordena<strong>do</strong>res e inseri<strong>do</strong>s na Declaração<br />
de Durban em substituição àqueles <strong>do</strong>s<br />
anteprojetos para os quais não havia pos-<br />
sibili<strong>da</strong>de de consenso é mais longo. Tais<br />
como finalmente a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s, os novos textos<br />
não agra<strong>da</strong>ram inteiramente a nenhuma <strong>da</strong>s<br />
posições maximalistas. Mas isso é diploma-<br />
cia, na melhor acepção <strong>do</strong> termo: a busca de<br />
um mínimo denomina<strong>do</strong>r comum que não<br />
permitirá a ninguém apresentar-se como<br />
vence<strong>do</strong>r absoluto, nem ser aponta<strong>do</strong> como<br />
totalmente derrota<strong>do</strong>. Assim sen<strong>do</strong>, como é<br />
normal em qualquer evento <strong>do</strong> gênero, di-<br />
versas delegações, na sessão de encerramen-<br />
to, fizeram questão de assinalar reservas ou<br />
explicações interpretativas.<br />
Com relação <strong>ao</strong>s parágrafos sobre o<br />
Oriente Médio, alguns ocidentais registra-<br />
ram reservas <strong>ao</strong> texto que constitui atual-<br />
mente o parágrafo 65, supra-reproduzi<strong>do</strong>,<br />
pois consideravam que o direito de regresso<br />
<strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s por ele consigna<strong>do</strong> consti-<br />
tuiria um complica<strong>do</strong>r adicional <strong>ao</strong>s (hoje<br />
totalmente esqueci<strong>do</strong>s) “acor<strong>do</strong>s de Oslo”,<br />
justifican<strong>do</strong>, em última instância, rejeição<br />
à existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel. Mas é fato<br />
também que, no contexto, ele pode ser li<strong>do</strong><br />
como o simples direito de regresso a suas<br />
casas <strong>do</strong>s palestinos expeli<strong>do</strong>s em função de<br />
“assentamentos” israelenses em territórios<br />
ocupa<strong>do</strong>s por guerras (é importante recor-<br />
<strong>da</strong>r que a autorização para o reinício <strong>do</strong><br />
estabelecimento de tais “colônias” foi <strong>da</strong>s<br />
primeiras atitudes a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s pelo Governo<br />
de Ariel Sharon). Os árabes, por sua vez,<br />
juntamente com outras delegações de países<br />
muçulmanos, declararam, em linhas gerais,<br />
que os parágrafos a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s sobre o Oriente<br />
Médio não refletiam corretamente a gravi-<br />
<strong>da</strong>de <strong>da</strong> situação (e o futuro próximo iria<br />
comprovar que não estavam erra<strong>do</strong>s, no que<br />
concerne tanto <strong>ao</strong>s palestinos como à popu-<br />
lação israelense). A propósito <strong>da</strong>s “questões<br />
históricas”, resolvi<strong>da</strong>s de maneira notavel-<br />
mente construtiva, verifica-se, por exemplo,<br />
que as “reparações” ou “pedi<strong>do</strong>s de perdão”<br />
pela escravidão e o colonialismo não são<br />
exigi<strong>do</strong>s, porque não o poderiam ser. Mas<br />
elogiam-se os países que tenham toma<strong>do</strong><br />
essas iniciativas e faz-se chamamento àque-<br />
les que não o fizeram para que encontrem<br />
maneiras adequa<strong>da</strong>s de “restabelecer a dig-<br />
ni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s vítimas”. Tampouco foi aceita<br />
a qualificação <strong>da</strong> escravidão passa<strong>da</strong> como<br />
um “crime contra a humani<strong>da</strong>de”, como era<br />
desejo <strong>do</strong>s africanos, porque ela poderia,<br />
segun<strong>do</strong> consta, servir de base a cobranças<br />
judiciais. De qualquer forma, historicamen-<br />
te a escravidão era prática corrente e triste-<br />
mente legal, não existin<strong>do</strong> no Direito essa<br />
tipologia de crime (só estabeleci<strong>da</strong>, após<br />
a II Guerra Mundial, pelos Tribunais de<br />
Nuremberg e de Tóquio). Daí a fórmula <strong>do</strong><br />
parágrafo 13 declarar a escravidão e o tráfi-<br />
co de escravos como um crime contra a hu-<br />
Diversas<br />
delegações,<br />
na sessão de<br />
encerramento,<br />
fizeram<br />
questão de<br />
assinalar<br />
reservas ou<br />
explicações<br />
interpretativas.
mani<strong>da</strong>de (subentende-se que o são quan<strong>do</strong><br />
pratica<strong>do</strong>s atualmente), acrescentan<strong>do</strong> que<br />
sempre o deveriam ter si<strong>do</strong>. Muitas delega-<br />
ções africanas e caribenhas expressaram em<br />
declarações finais apoio <strong>ao</strong>s textos acor<strong>da</strong>-<br />
<strong>do</strong>s, mas sublinharam mais uma vez suas<br />
opiniões originais. E a respeito <strong>da</strong> questão<br />
<strong>da</strong>s fontes e vítimas, defini<strong>da</strong>s de forma<br />
tautológica e minimalista, até mesmo o<br />
Brasil, em sua declaração final, considerou<br />
os resulta<strong>do</strong>s aquém <strong>do</strong> deseja<strong>do</strong>, por não<br />
explicitarem o gênero, as deficiências e a<br />
orientação sexual entre os motivos de dis-<br />
criminação múltipla ou agrava<strong>da</strong> 27 .<br />
Os pontos mais positivos<br />
Para os negocia<strong>do</strong>res em Durban, exaustos<br />
e confundi<strong>do</strong>s, os pontos mais positivos<br />
pareceriam ser exatamente aqueles mais<br />
polêmicos, para os quais afinal se conse-<br />
guira acor<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que extraí<strong>do</strong> a forceps.<br />
Pelo menos porque esse difícil acor<strong>do</strong> lhes<br />
parecia haver “salva<strong>do</strong>” a Conferência <strong>do</strong><br />
mesmo destino de ostracismo que tiveram<br />
os <strong>do</strong>is encontros precedentes sobre o ra-<br />
cismo, nas déca<strong>da</strong>s de 70 e 80. E até certo<br />
ponto teriam razão.<br />
Se é inadequa<strong>do</strong> falar de “acor<strong>do</strong>” para<br />
os parágrafos sobre o conflito árabe-isra-<br />
elense, que, conforme já visto, somente<br />
prevaleceram por manobra procedimental,<br />
o mesmo não se pode dizer <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s<br />
“temas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”. Sem dúvi<strong>da</strong> menos<br />
incisivos e menos propícios à abertura de<br />
processos indenizatórios <strong>do</strong> que desejavam<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
países e movimentos sociais, eles são, ain<strong>da</strong><br />
assim, o que de mais avança<strong>do</strong> existe na<br />
esfera internacional como condenação semi-<br />
jurídica <strong>ao</strong> colonialismo, à escravidão e <strong>ao</strong><br />
tráfico de escravos, incrimina<strong>do</strong>s, inclusive,<br />
como origem de muitos <strong>do</strong>s sofrimentos<br />
presentes, de índios e afrodescendentes.<br />
Os índios - aliás, os poucos povos<br />
indígenas que encaram o direito de auto-<br />
determinação como caminho para a inde-<br />
pendência - podem ter-se senti<strong>do</strong> frustra<strong>do</strong>s<br />
pelas ressalvas feitas na declaração de que<br />
o reconhecimento <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong>s povos<br />
indígenas era feito conforme os princípios<br />
de soberania e integri<strong>da</strong>de territorial <strong>do</strong>s<br />
Esta<strong>do</strong>s, sem repercussões sobre negocia-<br />
ções em curso e sobre direitos reconheci<strong>do</strong>s<br />
em normas jurídicas internacionais (arts.<br />
23 e 24). Mas a expressão “povos indígenas”<br />
viu-se sacramenta<strong>da</strong> como tal, ten<strong>do</strong>-se tor-<br />
na<strong>do</strong> inclusive um <strong>do</strong>s subtítulos na parte<br />
<strong>do</strong> Programa de Ação concernente às víti-<br />
mas <strong>do</strong> racismo e <strong>da</strong> discriminação racial.<br />
Nele diversas medi<strong>da</strong>s são propostas <strong>ao</strong>s<br />
Esta<strong>do</strong>s para o reconhecimento <strong>do</strong>s direitos<br />
<strong>do</strong>s indígenas, a começar pelo respeito a sua<br />
cultura e sua participação em to<strong>da</strong>s as de-<br />
cisões que os envolvam (parágrafos 15 a 23<br />
<strong>do</strong> programa - o recorte de gênero é, aliás,<br />
assinala<strong>do</strong> nesses parágrafos como causa<br />
freqüente de atos de discriminação múltipla<br />
ou agrava<strong>da</strong>: contra as mulheres e meninas<br />
índias).<br />
Se os avanços obti<strong>do</strong>s para os povos<br />
indígenas soam relativamente pouco inova-<br />
<strong>do</strong>res, na medi<strong>da</strong> em que eles têm si<strong>do</strong> obje-<br />
27 To<strong>da</strong>s as declarações e manifestações de reservas se acham reproduzi<strong>da</strong>s no relatório <strong>da</strong> Conferência à Assembléia Geral - o já cita<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento<br />
A/CONF.189/12.<br />
99
100<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
to de atenções <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s há muitos<br />
anos, o reconhecimento <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des<br />
que enfrentam os africanos e seus descen-<br />
dentes na diáspora, assim como a grande<br />
quanti<strong>da</strong>de de artigos e recomen<strong>da</strong>ções<br />
para corrigir as dispari<strong>da</strong>des de que são<br />
vítimas nas socie<strong>da</strong>des atuais constituem<br />
uma importante novi<strong>da</strong>de. A eles se dedica<br />
o primeiro subtítulo <strong>do</strong> capítulo <strong>da</strong>s vítimas<br />
no Programa de Ação, com inúmeras reco-<br />
men<strong>da</strong>ções <strong>ao</strong>s Esta<strong>do</strong>s (parágrafos 4 a 14<br />
<strong>do</strong> Programa), as quais, ademais de visarem<br />
a sua proteção judicial, <strong>ao</strong> reconhecimento<br />
de sua cultura e à supressão <strong>da</strong>s discrimi-<br />
nações contra suas tradições e religiões,<br />
propõem uma série de iniciativas nas áreas<br />
de educação e participação na vi<strong>da</strong> pública,<br />
que, sem se utilizar <strong>da</strong> expressão ação afir-<br />
mativa, claramente correspondem <strong>ao</strong> que<br />
ela significa. Na mesma linha, a própria<br />
declaração já assinala, no capítulo <strong>da</strong>s “víti-<br />
mas” em geral, a necessi<strong>da</strong>de de a<strong>do</strong>ção de<br />
“medi<strong>da</strong>s afirmativas ou medi<strong>da</strong>s especiais”<br />
para promover a plena integração dessas<br />
pessoas e grupos discrimina<strong>do</strong>s na socie<strong>da</strong>-<br />
de, ilustran<strong>do</strong> a recomen<strong>da</strong>ção com a pro-<br />
posta de “... medi<strong>da</strong>s especiais para lograr<br />
representação apropria<strong>da</strong> nas instituições<br />
de ensino, na moradia, nos parti<strong>do</strong>s polí-<br />
ticos, nos parlamentos e no emprego, em<br />
particular em órgãos judiciais e policiais,<br />
no exército e outros serviços civis, o que, em<br />
alguns casos pode exigir reformas eleitorais,<br />
reformas agrárias e campanhas em prol <strong>da</strong><br />
participação eqüitativa” (art. 108).”<br />
Em paralelo às atenções prioritárias<br />
acor<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s africanos e afrodescenden-<br />
tes, <strong>ao</strong>s asiáticos e seus descendentes no<br />
exterior, <strong>ao</strong>s povos e indivíduos indígenas,<br />
a Declaração de Durban foi o primeiro <strong>do</strong>-<br />
cumento <strong>do</strong> gênero a reconhecer “com pro-<br />
fun<strong>da</strong> preocupação as atuais manifestações<br />
de racismo” e violência contra os romanis/<br />
gitanos/sinti ou nômades (travellers) - to-<br />
<strong>da</strong>s elas autodenominações de diferentes<br />
comuni<strong>da</strong>des antes agrupa<strong>da</strong>s sob o nome<br />
genérico, hoje considera<strong>do</strong> pejorativo, de<br />
“ciganos” - e a conseqüente necessi<strong>da</strong>de de<br />
se elaborarem políticas e mecanismos que<br />
os protejam. Por motivos aponta<strong>do</strong>s ante-<br />
riormente, não foi possível à Conferência<br />
de Durban tratar <strong>do</strong> problema <strong>da</strong>s castas e<br />
<strong>da</strong>s discriminações impostas <strong>ao</strong>s párias ou<br />
<strong>da</strong>lits intocáveis, de acor<strong>do</strong> com tradições<br />
religiosas ou não. É, por outro la<strong>do</strong>, in-<br />
contestável que Durban, de conformi<strong>da</strong>de<br />
com as intenções originais que embasaram<br />
a proposta <strong>da</strong> conferência desde 1994, deu<br />
atenção adequa<strong>da</strong> à xenofobia como um <strong>do</strong>s<br />
mais graves problemas <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de mun-<br />
dial. Em seu art. 16, a declaração diz:<br />
“16. Reconhecemos que a xenofobia contra os<br />
não-nacionais, em particular os migrantes, os<br />
refugia<strong>do</strong>s e os solicitantes de asilo, constitui<br />
uma <strong>da</strong>s principais fontes <strong>do</strong> racismo contem-<br />
porâneo, e que as violações de direitos huma-<br />
nos cometi<strong>da</strong>s contra membros desses grupos<br />
ocorrem largamente no contexto de práticas<br />
discriminatórias, xenófobas e racistas.”<br />
Conseqüentemente, as recomen<strong>da</strong>ções<br />
de medi<strong>da</strong>s feitas <strong>ao</strong>s Esta<strong>do</strong>s, no Programa<br />
de Ação, para combater discriminações<br />
simples ou agrava<strong>da</strong>s contra trabalha<strong>do</strong>res<br />
migrantes, refugia<strong>do</strong>s e outros estrangeiros<br />
que se encontrem legal ou ilegalmente na<br />
respectiva jurisdição é pormenoriza<strong>da</strong>, es-<br />
tenden<strong>do</strong>-se por muitos parágrafos.<br />
Outros assuntos atuais que também<br />
estiveram na base <strong>da</strong>s motivações originais
<strong>da</strong> proposta <strong>da</strong> Conferência na Subcomissão<br />
contêm-se nos seguintes parágrafos trans-<br />
critos a título exemplificativo:<br />
“27. Expressamos nossa preocupação com o<br />
fato de que, além de o racismo vir ganhan<strong>do</strong><br />
terreno, formas e manifestações contemporâ-<br />
neas de racismo e xenofobia estão tentan<strong>do</strong><br />
voltar a adquirir reconhecimento político,<br />
moral e até legal de muitas maneiras, in-<br />
clusive por intermédio <strong>da</strong>s plataformas de<br />
algumas organizações e parti<strong>do</strong>s políticos,<br />
e <strong>da</strong> disseminação por meio de tecnologias<br />
modernas de idéias basea<strong>da</strong>s no conceito de<br />
superiori<strong>da</strong>de racial.<br />
83. Ressaltamos o papel chave que os líderes<br />
e parti<strong>do</strong>s políticos podem e devem desem-<br />
penhar na luta contra o racismo, a discri-<br />
minação racial, a xenofobia e a intolerância<br />
correlata, e encorajamos os parti<strong>do</strong>s políticos<br />
a tomarem medi<strong>da</strong>s concretas para promover<br />
soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, tolerância e respeito.<br />
84. Condenamos a persistência e o reapare-<br />
cimento <strong>do</strong> neonazismo, <strong>do</strong> neofascismo e <strong>da</strong>s<br />
ideologias violentas basea<strong>da</strong>s em preconceitos<br />
raciais ou nacionais, e declaramos que esses<br />
fenômenos não se podem justificar em qual-<br />
quer caso, nem em qualquer circunstância.”<br />
Não cabe aqui uma análise aprofun<strong>da</strong>-<br />
<strong>da</strong> de como a globalização econômica sem<br />
orientação social ou contrapesos para seus<br />
“efeitos colaterais”, tem si<strong>do</strong> responsável<br />
pelo ressurgimento de fun<strong>da</strong>mentalismos<br />
religiosos, étnicos, raciais e nacionais. A<br />
literatura sobre a matéria é convincente e<br />
abun<strong>da</strong>nte. De qualquer forma, ain<strong>da</strong> que<br />
alguém queira negar essa responsabili<strong>da</strong>de,<br />
até porque, realmente, ninguém soube ain-<br />
<strong>da</strong> indicar maneiras de corrigi-la sem re-<br />
gressar a fórmulas ultrapassa<strong>da</strong>s, ninguém<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
tampouco poderá negar que a globalização<br />
é o pano de fun<strong>do</strong> em que emergem to<strong>do</strong>s<br />
esses “casos” e “circunstâncias”, aludi<strong>do</strong>s<br />
no art. 84. É importante que a Conferência<br />
de Durban não tenha evadi<strong>do</strong> a questão,<br />
caso contrário somente abor<strong>da</strong>ria sintomas.<br />
Fê-lo, aliás, bem no início, em seu longo art.<br />
11, onde diz, entre outras frases:<br />
“... Embora a globalização ofereça grandes<br />
oportuni<strong>da</strong>des, no presente seus benefícios se<br />
distribuem de forma muito desigual, como<br />
também o são seus custos. (...) Esses efeitos<br />
(<strong>da</strong> globalização) podem agravar inter alia a<br />
pobreza, o subdesenvolvimento, a margina-<br />
lização, a exclusão social, a homogeneização<br />
cultural e as desigual<strong>da</strong>des econômicas que<br />
podem ocorrer na base de linhas raciais,<br />
dentro <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e entre eles, com conseqü-<br />
ências negativas. (...) Somente desenvolven<strong>do</strong><br />
esforços amplos e sustenta<strong>do</strong>s para criar um<br />
futuro comum, fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong> em nossa co-<br />
mum humani<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong> sua diversi<strong>da</strong>de,<br />
poder-se-á produzir uma globalização plena-<br />
mente includente e eqüitativa.”<br />
Com o mesmo tipo de preocupação es-<br />
trutural volta<strong>da</strong> para a reali<strong>da</strong>de presente, o<br />
art. 18 ressalta que:<br />
“... a pobreza, o subdesenvolvimento, a<br />
marginalização, a exclusão social e as dis-<br />
pari<strong>da</strong>des econômicas estão estreitamente<br />
vincula<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> racismo, à discriminação<br />
racial, à xenofobia e à intolerância correlata<br />
e contribuem para a persistência de atitudes<br />
e práticas racistas que, por sua vez, geram<br />
mais pobreza”.<br />
Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> geral para o específico,<br />
o art. 74 <strong>da</strong> declaração trata <strong>do</strong> trabalho<br />
infantil, muito fala<strong>do</strong> atualmente e quase<br />
sempre condena<strong>do</strong>, pela ótica <strong>do</strong>s direitos<br />
101
102<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
humanos, com um simplismo contrapro-<br />
ducente - como se tal trabalho decorresse<br />
apenas <strong>da</strong> ambição explora<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s pais, ou<br />
<strong>do</strong>s respectivos governos. Contrarian<strong>do</strong> essa<br />
linha, o texto em questão se mostra, com<br />
linguagem comedi<strong>da</strong>, bastante arguto:<br />
“74. Reconhecemos que o trabalho infantil<br />
está relaciona<strong>do</strong> com a pobreza, a falta de<br />
desenvolvimento e condições socioeconômicas<br />
correlatas e que, em alguns casos, poderia<br />
perpetuar a pobreza e a discriminação racial<br />
por privar de maneira desproporcional as<br />
crianças <strong>do</strong>s grupos afeta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />
de adquirir as aptidões humanas necessárias<br />
a uma vi<strong>da</strong> produtiva e para beneficiar-se <strong>do</strong><br />
crescimento econômico.”<br />
É pouco, sem dúvi<strong>da</strong>, e cheio de pre-<br />
cauções sem senti<strong>do</strong> para mentes que<br />
conhecem de perto o problema, às vezes<br />
na própria pele. Mas é o máximo que já se<br />
disse sobre um fenômeno crescente, cujas<br />
raízes profun<strong>da</strong>s violam muito de frente<br />
o cre<strong>do</strong> neoliberal vigente na globalização<br />
sem controles.<br />
Avaliação e conclusão<br />
Em artigo publica<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> antes <strong>do</strong> en-<br />
cerramento <strong>da</strong> conferência, o jornalista<br />
Bob Herbert, como que para justificar a<br />
saí<strong>da</strong> antecipa<strong>da</strong> <strong>da</strong> delegação oficial nor-<br />
te-americana, dizia, no New York Times,<br />
que o encontro de Durban estava fa<strong>da</strong><strong>do</strong> à<br />
irrelevância desde sua concepção, porque os<br />
problemas <strong>da</strong> intolerância étnica, religiosa e<br />
de gênero são “grandes e complexos demais<br />
28 Bob Herbert, “Doomed to Irrelevance”, The New York Times, 06.09.2001.<br />
para serem trata<strong>do</strong>s por uma Conferência<br />
<strong>da</strong> ONU”. Não fosse o autor geralmente<br />
perspicaz e construtivo na análise <strong>do</strong>s pro-<br />
blemas raciais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, e se lhe<br />
deveria perguntar: Se não a ONU, quem?<br />
Mas a complementação <strong>do</strong> mesmo artigo<br />
explicitava um pouco mais as razões de sua<br />
descrença: os organiza<strong>do</strong>res podem ter ti<strong>do</strong><br />
os motivos mais eleva<strong>do</strong>s, mas “não se pode<br />
lançar uma luta global contra o racismo a<br />
partir de uma base de má-fé e hipocrisia”. 28<br />
Os críticos à Conferência de Durban<br />
são muitos, de natureza e níveis varia<strong>do</strong>s.<br />
Mas não é factível apontar um único país ou<br />
grupo de países como responsável exclusivo<br />
pelas provocações e falhas ocorri<strong>da</strong>s. Nem<br />
faz senti<strong>do</strong> observar somente as limitações e<br />
insucessos <strong>do</strong> evento, sem registrar os pon-<br />
tos positivos que ele também comportou.<br />
Na esfera <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, conforme aqui<br />
explica<strong>do</strong>, os governos que se opunham à<br />
reunião pouco fizeram para que ela se con-<br />
cretizasse. Quan<strong>do</strong> a conferência foi, afinal,<br />
aprova<strong>da</strong> pela Assembléia Geral <strong>da</strong> ONU,<br />
tornan<strong>do</strong>-se, em princípio, irreversível, tam-<br />
pouco se decidiram a encará-la de maneira<br />
construtiva. De outro la<strong>do</strong>, os que a favore-<br />
ciam porque tinham reivindicações a fazer,<br />
ou porque pretendiam insistir em posições<br />
políticas, por sua vez, também não faziam<br />
esforços para garantir seu sucesso. Manti-<br />
veram, <strong>ao</strong> contrário, até o último momento<br />
uma rigidez absoluta, inimiga <strong>do</strong> consenso,<br />
basea<strong>da</strong> na crença de que eram - ou, pelo me-<br />
nos, tinham si<strong>do</strong> - a ver<strong>da</strong>deira parte ofen-<br />
di<strong>da</strong>. Os ofensores, por sua vez, recusavam<br />
as acusações, já que a ofensa, nos tempos em<br />
Não é factível<br />
apontar um<br />
único país<br />
ou grupo de<br />
países como<br />
responsável<br />
exclusivo pelas<br />
provocações<br />
e falhas<br />
ocorri<strong>da</strong>s.
que a praticaram, não era criminosa. For-<br />
mava-se assim um círculo vicioso que quase<br />
tecia um nó górdio 29 . Foram as delegações<br />
com postura equilibra<strong>da</strong>s, como aquelas que<br />
funcionaram como “coordena<strong>do</strong>ras” para as<br />
questões difíceis, que conseguiram evitar o<br />
aperto completo <strong>do</strong> nó, ou o uso <strong>da</strong> espa<strong>da</strong><br />
para desfazer o embaraço - o que acarretaria,<br />
em qualquer <strong>do</strong>s casos, o fim de qualquer<br />
esperança de se salvar o evento.<br />
É curioso notar como, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />
que se observou no Brasil, onde os preparati-<br />
vos foram intensos, envolven<strong>do</strong> entusiastica-<br />
mente o Governo e a socie<strong>da</strong>de civil (inclusi-<br />
ve numa Conferência Nacional que adiantou<br />
pontos importantes depois refleti<strong>do</strong>s nos<br />
<strong>do</strong>cumentos de Durban e a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s pelo<br />
governo), no país que historicamente mais<br />
inspirou em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> movimentos pe-<br />
los “direitos civis”, muitas ONGs influentes,<br />
a parte mais li<strong>da</strong> <strong>da</strong> imprensa e até setores<br />
<strong>da</strong> academia dedica<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s estu<strong>do</strong>s sociais<br />
(com, evidentemente, honrosas e expressivas<br />
exceções), pareciam quase não <strong>da</strong>r atenção<br />
<strong>ao</strong> evento. Quinze dias antes de seu início,<br />
em seminário sobre o “Racismo nos Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s e no Brasil” realiza<strong>do</strong> na Universi-<br />
<strong>da</strong>de de Sacramento, Califórnia, com co-pa-<br />
trocínio <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Bahia, os afro-<br />
norte-americanos presentes, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong>s<br />
brasileiros, não pareciam sequer saber que<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
um encontro mundial contra a discrimina-<br />
ção racial estava prestes a iniciar-se, sob o<br />
patrocínio <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, na terra de<br />
Nelson Mandela 30 . Ain<strong>da</strong> assim, ademais <strong>do</strong>s<br />
2.300 delega<strong>do</strong>s oficiais de 163 países, sen<strong>do</strong><br />
16 chefes de Esta<strong>do</strong> ou de Governo, 58 mi-<br />
nistros de Relações Exteriores e 44 ministros<br />
de outras pastas, quase 4.000 representantes<br />
de organizações não-governamentais e 1.100<br />
jornalistas foram registra<strong>do</strong>s pela ONU em<br />
Durban. Sem falar <strong>do</strong>s eventos paralelos<br />
havi<strong>do</strong>s antes e durante a Conferência, rela-<br />
ciona<strong>do</strong>s no Relatório à Assembléia Geral 31<br />
(somente o Fórum de ONGs contou com<br />
8.000 participantes, em representação de<br />
3.000 organizações não-governamentais de<br />
to<strong>do</strong>s os continentes), parece legítimo dizer<br />
que um encontro de tais proporções pode ter<br />
si<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, menos irrelevante. A mobilização<br />
que causou é per se uma forma de conscien-<br />
tização, quan<strong>do</strong> por mais não seja, pelo efeito<br />
demonstração.<br />
De to<strong>da</strong>s as críticas conheci<strong>da</strong>s à Confe-<br />
rência de Durban, a que mais surpreendeu<br />
o autor destas linhas veio de Michael Ban-<br />
ton, professor de sociologia em Bristol e ex-<br />
membro <strong>do</strong> Comitê para a Eliminação <strong>da</strong><br />
Discriminação Racial ou Cerd (treaty body<br />
que monitora a implementação <strong>da</strong> Conven-<br />
ção Internacional sobre a Eliminação de To-<br />
<strong>da</strong>s as Formas de Discriminação Racial) 32 ,<br />
29 Infelizmente o nó se apertou ain<strong>da</strong> mais depois <strong>da</strong> Conferência, pelo maximalismo extrema<strong>do</strong> de uns e pela inflexibili<strong>da</strong>de de outros, na seqüência que teve<br />
o tema na Comissão <strong>do</strong>s Direitos Humanos <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, na sessão de 2002 (os ocidentais votaram em bloco contra a resolução sobre o assunto).<br />
30 Notei isso, estarreci<strong>do</strong>, porque, então na quali<strong>da</strong>de de cônsul-geral <strong>do</strong> Brasil em S. Francisco, fui convi<strong>da</strong><strong>do</strong> a participar <strong>do</strong> seminário e aceitei. Por seus<br />
organiza<strong>do</strong>res e outros militantes negros norte-americanos soube posteriormente que o “movimento negro” <strong>do</strong> país se encontrava cindi<strong>do</strong> a propósito <strong>da</strong>s<br />
“reparações” e, por isso e talvez outras razões, não tinha interesse consistente numa conferência que tornaria evidente suas cisões internas. Talvez por esse<br />
motivo o governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s tenha ti<strong>do</strong> a possibili<strong>da</strong>de de retirar-se de Durban sem repercussões críticas maiores na imprensa e na opinião pública<br />
<strong>do</strong>méstica. Os militantes norte-americanos que lá permaneceram declararam a homólogos brasileiros, membros de nossa delegação, que se sentiam bem<br />
representa<strong>do</strong>s pela atuação <strong>do</strong> Brasil - o que não deixa de ser outro aspecto, neste caso bastante positivo, <strong>da</strong> “brasilianização <strong>da</strong> América” (v. supra nota 9).<br />
31 V nota 20 supra.<br />
32 Para uma breve visão <strong>do</strong> que é o Cerd e <strong>do</strong> trabalho que realiza, v. José Augusto Lindgren Alves, “Racismo e direitos humanos: a 60ª sessão <strong>do</strong> Cerd”,<br />
Carta Internacional, ano X, nº 111, S. Paulo, USP/FUNAG, maio de 2002, pág.19.<br />
103
104<br />
A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />
RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />
precisamente porque ele, com a experiência<br />
que tem e a respeitabili<strong>da</strong>de de que goza,<br />
não tinha o direito de ser tão ingênuo, nem<br />
tão negativista. Diz Michael Banton que,<br />
“se a primeira conferência mundial foi um<br />
desastre, a terceira foi uma calami<strong>da</strong>de que<br />
feriu a reputação <strong>da</strong> ONU e as atitudes em<br />
favor <strong>da</strong> cooperação internacional” 33 . Além<br />
de repetir algumas <strong>da</strong>s objeções mais óbvias<br />
veicula<strong>da</strong>s por países ocidentais às posturas<br />
árabes sobre o Oriente Médio - as quais,<br />
como já visto, não foram incorpora<strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s<br />
<strong>do</strong>cumentos com sua virulência original<br />
-, grande parte de suas repreensões dizem<br />
respeito <strong>ao</strong> fato de “a conferência” não ter<br />
opta<strong>do</strong> por cobrar <strong>do</strong>s países o cumprimen-<br />
to <strong>da</strong>s obrigações que assumem <strong>ao</strong> aderirem<br />
à Convenção sobre a Eliminação de To<strong>da</strong>s<br />
as Formas de Discriminação Racial, e <strong>ao</strong><br />
fato de “a conferência” não ter <strong>da</strong><strong>do</strong> maior<br />
valor à atuação <strong>do</strong> Cerd, inclusive no que<br />
diz respeito à questão <strong>da</strong>s reparações - como<br />
se a conferência fosse uma enti<strong>da</strong>de autôno-<br />
ma, capaz de tomar decisões independentes<br />
<strong>da</strong> vontade de seus participantes 34 . Pior<br />
ain<strong>da</strong>, Banton não quer reconhecer o óbvio<br />
de que “calami<strong>da</strong>de” não foi a conferência<br />
em si, mas “a circunstância” em que ela se<br />
realizou.<br />
A ver<strong>da</strong>de é que Durban foi a melhor<br />
conferência que se poderia realizar sobre<br />
temas tão abrangentes, em condições tão<br />
adversas, numa situação internacional que,<br />
como se não bastasse a <strong>do</strong>xa econômica<br />
neoliberal (para falar com Bourdieu) avessa<br />
33 Michael Banton, op. cit., pág. 360.<br />
a preocupações sociais, já se mostrava ca<strong>da</strong><br />
dia menos favorável <strong>ao</strong> multilateralismo e à<br />
diplomacia parlamentar. O simples fato de<br />
ela ter ti<strong>do</strong> seus <strong>do</strong>cumentos finais a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />
sem voto (a votação havi<strong>da</strong>, é sempre bom<br />
relembrar, foi para rejeitar a reapresenta-<br />
ção extemporânea de propostas supera<strong>da</strong>s)<br />
representa, como já dito, um progresso com<br />
relação às conferências de 1978 e 1983. Mui-<br />
to mais <strong>do</strong> que isso, porém, os <strong>do</strong>cumentos<br />
de Durban trazem novos conceitos e com-<br />
promissos importantes, particularmente<br />
para o combate <strong>ao</strong> racismo estrutural. Estes<br />
podem ser utiliza<strong>do</strong>s como guias à atua-<br />
ção <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, internamente e em ações<br />
internacionais, ou como instrumento semi-<br />
jurídico para cobranças <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des <strong>ao</strong><br />
governos.<br />
Nenhuma conferência resolve por ela<br />
mesma os problemas que se dispõe abor<strong>da</strong>r.<br />
O máximo que pode fazer é sugerir cami-<br />
nhos para que possamos “salvar nossa cir-<br />
cunstância”. Como ensina Ortega y Gasset,<br />
se não salvamos a ela, não salvamos a nós<br />
mesmos.<br />
Conforme terá fica<strong>do</strong> aqui abun<strong>da</strong>nte-<br />
mente demonstra<strong>do</strong>, as responsabili<strong>da</strong>des<br />
pelos problemas verifica<strong>do</strong>s em Durban<br />
são de diversos atores. A responsabili<strong>da</strong>de<br />
pela implementação <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s reco-<br />
men<strong>da</strong>ções - como aquelas concernentes a<br />
“medi<strong>da</strong>s afirmativas” que começaram a<br />
ser aplica<strong>da</strong>s no Brasil depois dessa confe-<br />
rência - dependerá, por sua vez, como é o<br />
caso de qualquer <strong>do</strong>cumento emergente de<br />
34 Além disso, o Cerd é objeto específico de <strong>do</strong>is importantes parágrafos <strong>do</strong> Programa de Ação, os de números 177 e 178, destina<strong>do</strong>s a fortalecer o Comitê,<br />
além de o ser indiretamente na infini<strong>da</strong>de de outras recomen<strong>da</strong>ções e artigos que, desde o Preâmbulo <strong>da</strong> Declaração, assinalam a importância <strong>da</strong> adesão<br />
de to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s à Convenção de 1965 e de sua plena implementação.
encontro multilateral, <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de com que<br />
ca<strong>da</strong> Esta<strong>do</strong> encara as decisões coletivas de<br />
que tenha participa<strong>do</strong> (e, com exceção de<br />
Israel e <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s foram<br />
partícipes). Dependerá também <strong>da</strong> capaci-<br />
<strong>da</strong>de de utilização desses <strong>do</strong>cumentos pela<br />
socie<strong>da</strong>de civil. Dependerá finalmente, em<br />
última e mais definitiva instância, de uma<br />
conscientização generaliza<strong>da</strong> - hoje em dia<br />
praticamente impossível - de que, como diz<br />
a Declaração de Durban em artigo supraci-<br />
ta<strong>do</strong>, somente com a criação de um futuro<br />
de condições mais equânimes, “basea<strong>do</strong> em<br />
nossa comum humani<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong> sua di-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
versi<strong>da</strong>de”, a globalização poderá ter efeitos<br />
antidiscriminatórios.<br />
José Augusto Lindgren Alves é diplomata,<br />
atualmente embaixa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil em Só-<br />
fia, Bulgária, e membro <strong>do</strong> Comitê para a<br />
Eliminação <strong>da</strong> Discriminação Racial, em<br />
Genebra.<br />
Foi membro <strong>da</strong> Subcomissão <strong>da</strong>s Nações<br />
Uni<strong>da</strong>s para a Prevenção <strong>da</strong> Discriminação<br />
e Proteção de Minorias (1994-97) e delega<strong>do</strong><br />
à Conferência de Durban de 2001.<br />
105
Perfeccionismo<br />
Quan<strong>do</strong> somos in<strong>da</strong>ga<strong>do</strong>s acerca <strong>da</strong><br />
vali<strong>da</strong>de de nossas crenças, costumamos<br />
responder apelan<strong>do</strong> para princípios que<br />
conferem legitimi<strong>da</strong>de às mesmas. Se<br />
acreditamos que, <strong>ao</strong> nível <strong>do</strong> mar, a água<br />
ferve a 100 graus centígra<strong>do</strong>s, é porque<br />
já realizamos inúmeras vezes um tal<br />
experimento e até hoje observamos uma<br />
regulari<strong>da</strong>de entre o aquecimento <strong>da</strong> água<br />
e seu processo de ebulição. Ao afirmarmos<br />
que 2 mais 2 é igual a 4 ou que a soma<br />
<strong>do</strong>s 4 ângulos de um quadra<strong>do</strong> equivale<br />
a 360 graus, estamos expressan<strong>do</strong> um<br />
conhecimento que se baseia em convenções<br />
ou princípios matemáticos. Enquanto certos<br />
fenômenos puderem ser observa<strong>do</strong>s e/ou<br />
tais convenções ou princípios estiverem<br />
valen<strong>do</strong>, teremos uma base segura para<br />
resgatar a pretensão de vali<strong>da</strong>de de tais<br />
crenças.<br />
Há contu<strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>s que não<br />
expressam nossa crença acerca <strong>da</strong>s leis<br />
que regem o mun<strong>do</strong> sensível, mas sim a<br />
crença na vali<strong>da</strong>de de um determina<strong>do</strong><br />
e Respeito<br />
Perfeccionismo e o Princípio <strong>do</strong> Respeito Universal<br />
Maria Clara Dias<br />
mo<strong>do</strong> de agir, que parece ser até certo ponto<br />
independente de constatações empíricas.<br />
Se chover, haverá um aumento <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de<br />
relativa <strong>do</strong> ar. A chuva poderá também<br />
favorecer a plantação, mas quer chova,<br />
quer faça sol, i.e. independentemente <strong>do</strong><br />
que quer que ocorra no mun<strong>do</strong> empírico,<br />
acredito que não deva infringir <strong>do</strong>r<br />
inutilmente a outros seres humanos,<br />
acredito que deva manter minhas<br />
promessas e que não deva dispor <strong>do</strong> que<br />
não me pertence. Mas de onde provêm tais<br />
crenças? Haverá um fato distinto no mun<strong>do</strong><br />
no qual esteja basea<strong>do</strong> minha compreensão<br />
<strong>do</strong> que devo fazer? Haverá no fun<strong>do</strong> de ca<strong>da</strong><br />
um de nós algum sentimento que determine<br />
nosso mo<strong>do</strong> de agir? Se não formos capazes<br />
de determinar as regras que orientam a<br />
nossa conduta, jamais poderemos supor<br />
que um tal âmbito <strong>do</strong> nosso discurso<br />
possua qualquer fun<strong>da</strong>mento. Apenas<br />
poderíamos descrever nossas ações, assim<br />
como descrevemos fenômenos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
natural, mas não poderíamos supor que<br />
107
108<br />
PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />
algo prescreva uma determina<strong>da</strong> conduta,<br />
ou seja, poderíamos apenas constatar que<br />
agimos de tal e tal mo<strong>do</strong>, porém não que<br />
devamos agir de uma forma determina<strong>da</strong>.<br />
Esta distinção entre o mo<strong>do</strong> como as<br />
coisas são e o mo<strong>do</strong> como devem ser pode ser<br />
filosoficamente redescrita através <strong>da</strong> distinção<br />
entre enuncia<strong>do</strong>s assertivos e enuncia<strong>do</strong>s<br />
normativos. Os primeiros pertencem <strong>ao</strong><br />
âmbito <strong>do</strong> nosso discurso que concerne à<br />
ver<strong>da</strong>de. Os segun<strong>do</strong>s pertencem <strong>ao</strong> chama<strong>do</strong><br />
discurso moral. Neste último, nossos<br />
enuncia<strong>do</strong>s adquirem um caráter prescritivo,<br />
que por sua vez deve também poder ser<br />
fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong>. Parece legítimo que possamos<br />
in<strong>da</strong>gar em que consiste um tal dever ou,<br />
em outras palavras, por que devemos agir de<br />
acor<strong>do</strong> com determina<strong>do</strong>s princípios.<br />
Na história <strong>da</strong> filosofia encontramos<br />
um extenso repertório de respostas a esta<br />
questão. “Porque faz parte de nossa natu-<br />
reza”. “Mas, de que natureza?”, pergunta-<br />
ríamos. Da nossa natureza enquanto filhos<br />
de Deus; enquanto seres que desfrutam<br />
<strong>do</strong> sentimento de compaixão para com os<br />
demais ou enquanto seres livres, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />
de razão. No primeiro caso destacamos a<br />
crença em uma enti<strong>da</strong>de transcendente<br />
como fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de: devemos<br />
aceitar tal e tal man<strong>da</strong>mento, porque o<br />
mesmo reflete a vontade divina. Este seria<br />
o procedimento <strong>da</strong> moral tradicional, ou<br />
seja, <strong>da</strong> moral que tem seu fun<strong>da</strong>mento na<br />
autori<strong>da</strong>de. No segun<strong>do</strong> caso seria neces-<br />
sário provar que de fato possuímos uma tal<br />
natureza. Bem, ain<strong>da</strong> que possamos mostrar<br />
que um determina<strong>do</strong> grupo de indivíduos<br />
apresenta o sentimento de compaixão, isto<br />
não seria uma prova de que to<strong>do</strong> e qualquer<br />
indivíduo de fato o possua. Sentimentos po-<br />
dem ser apenas constata<strong>do</strong>s e não exigi<strong>do</strong>s.<br />
Se a morali<strong>da</strong>de devesse repousar na posse<br />
de algum tipo de sentimento, então devería-<br />
mos destituir-lhe o caráter prescritivo.<br />
Resta, assim, a terceira alternativa.<br />
Fun<strong>da</strong>mentar o caráter prescritivo <strong>da</strong> mora-<br />
li<strong>da</strong>de no conceito de ser racional não deixa<br />
de ser até hoje a mais engenhosa tentativa<br />
de fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> moral. Tal perspectiva<br />
foi desenvolvi<strong>da</strong> por Kant e retoma<strong>da</strong> mais<br />
tarde por Habermas e Apel. Kant procurou<br />
demostrar a existência de um princípio<br />
racional de determinação <strong>da</strong> vontade, em<br />
outras palavras, procurou provar o caráter<br />
necessário <strong>da</strong> submissão <strong>da</strong>s regras de de-<br />
terminação <strong>da</strong> conduta de indivíduos racio-<br />
nais <strong>ao</strong> princípio de universalização. Haber-<br />
mas e Apel procuram justificar a aceitação<br />
desse mesmo princípio como condição de<br />
possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa participação em to<strong>do</strong><br />
e qualquer discurso de fun<strong>da</strong>mentação ra-<br />
cional. Nesta exposição preten<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>nar<br />
tal perspectiva sem, contu<strong>do</strong>, apresentar os<br />
argumentos que justifiquem a sua recusa,<br />
posto que tal tarefa nos distanciaria dema-<br />
sia<strong>da</strong>mente <strong>do</strong>s objetivos aqui propostos.<br />
Ora, mas se to<strong>da</strong>s as alternativas até<br />
então forneci<strong>da</strong>s de justificação <strong>do</strong> caráter<br />
prescritivo <strong>do</strong> discurso moral foram de<br />
algum mo<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong>s, não teremos<br />
que aban<strong>do</strong>nar também uma tal pretensão?<br />
Minha resposta é negativa, mas para escla-<br />
recê-la devo antes distinguir duas questões:<br />
(1) a primeira diz respeito à tentativa de<br />
fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de; (2) a segun-<br />
<strong>da</strong> diz respeito especificamente à justifi-<br />
cação <strong>do</strong> caráter prescritivo <strong>do</strong>s juízos mo-<br />
rais. Preten<strong>do</strong> mostrar que o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong><br />
primeira questão não implica no aban<strong>do</strong>no<br />
<strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, ou seja, que podemos aban<strong>do</strong>-
Aceitar ou não<br />
uma concepção<br />
moral é<br />
em última<br />
instância uma<br />
decisão de<br />
ca<strong>da</strong> indivíduo.<br />
nar a tentativa de provar a necessi<strong>da</strong>de de<br />
agirmos de acor<strong>do</strong> com princípios morais,<br />
sem contu<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>nar a pretensão de jus-<br />
tificar o caráter prescritivo de enuncia<strong>do</strong>s<br />
morais. Com isso, preten<strong>do</strong> defender uma<br />
perspectiva decisionista com relação à cha-<br />
ma<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> moral e, <strong>ao</strong> mesmo<br />
tempo, mostrar que a a<strong>do</strong>ção de uma tal<br />
perspectiva não elimina a possibili<strong>da</strong>de de<br />
justificarmos o caráter prescritivo de nossos<br />
juízos morais, assim como também a a<strong>do</strong>ção<br />
de uma concepção de bem frente a perspec-<br />
tivas morais concorrentes.<br />
Aban<strong>do</strong>nar a primeira questão significa<br />
admitir que não podemos fornecer, através<br />
de argumentos filosóficos, elementos que<br />
I<br />
conduzam necessariamente <strong>ao</strong> agir de acor-<br />
<strong>do</strong> com princípios morais, ou seja, à acei-<br />
tação <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de. Aceitar ou não uma<br />
concepção moral é em última instância uma<br />
decisão de ca<strong>da</strong> indivíduo. Não há, portan-<br />
to, nos limites <strong>do</strong> discurso filosófico, na<strong>da</strong><br />
que os obrigue a tal.<br />
Nós aceitamos os princípios <strong>da</strong> comu-<br />
ni<strong>da</strong>de moral quan<strong>do</strong> elegemos fazer parte<br />
desta comuni<strong>da</strong>de. Resta, portanto, nos per-<br />
guntarmos se queremos nos compreender<br />
enquanto integrantes de uma comuni<strong>da</strong>de<br />
moral. Tal questão é aqui compreendi<strong>da</strong><br />
como parte <strong>da</strong> questão que concerne à cons-<br />
tituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de qualitativa de ca<strong>da</strong><br />
indivíduo, isto é, a pergunta pelo “o que” e<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
“quem” queremos ser. 1 O indivíduo elege<br />
para seu futuro aquilo que considera fun<strong>da</strong>-<br />
mental para sua vi<strong>da</strong> e para sua identi<strong>da</strong>de.<br />
Ele vivencia sua vi<strong>da</strong> enquanto plena ou<br />
feliz, quan<strong>do</strong> atinge uma identi<strong>da</strong>de plena.<br />
Se não elegemos para nossa identi<strong>da</strong>de<br />
qualitativa a identificação com os princípios<br />
de uma comuni<strong>da</strong>de moral, eliminamos<br />
qualquer possível referência a sentimentos<br />
morais, tais como culpa, ressentimento e in-<br />
dignação. Tais sentimentos são uma reação<br />
<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de ou <strong>do</strong> próprio indivíduo à<br />
infração de um princípio moral com o qual<br />
ambos estejam identifica<strong>do</strong>s. Se elegemos<br />
fazer parte <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de moral, então<br />
nos comprometemos a fazer de seus prin-<br />
cípios nossos próprios princípios, o que em<br />
outras palavras significa aceitar o caráter<br />
prescritivo <strong>do</strong>s mesmos. Com isto suponho<br />
poder responder à segun<strong>da</strong> questão acima<br />
menciona<strong>da</strong>, qual seja, a questão acerca<br />
<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> caráter prescritivo <strong>do</strong>s<br />
juízos morais: agimos de acor<strong>do</strong> com princí-<br />
pios morais quan<strong>do</strong> elegemos fazer parte <strong>da</strong><br />
comuni<strong>da</strong>de moral.<br />
Mas seria a identi<strong>da</strong>de moral de um<br />
indivíduo essencial para uma identi<strong>da</strong>de ou<br />
uma vi<strong>da</strong> plena? Até o presente momento<br />
procurei apenas apontar algumas conseqü-<br />
ências <strong>da</strong> aceitação ou recusa de um princí-<br />
pio moral qualquer. Não seria possível, nos<br />
limites <strong>da</strong> filosofia, também dizer algo acer-<br />
ca <strong>da</strong> relação entre a escolha pela morali<strong>da</strong>-<br />
de e o nosso conceito <strong>do</strong> que seja uma vi<strong>da</strong><br />
plena? Preten<strong>do</strong> mostrar que sim, ou seja,<br />
1 A questão <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de qualitativa <strong>do</strong> indivíduo é abor<strong>da</strong><strong>da</strong> por Tugendhat em seu artigo “Identi<strong>da</strong>d: Personal, nacional y universal”<br />
(cita<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> manuscrito). Acerca <strong>da</strong> relação entre a constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de qualitativa e a questão <strong>da</strong> constituição de uma identi<strong>da</strong>de moral a<br />
partir <strong>da</strong> concepção de Tugendhat, ver: Dias, M. C.: Die sozialen Grundrechte: Eine philosophische Untersuchung der Frage nach den Menschenrechten,<br />
Konstanz 1993.<br />
109
110<br />
PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />
preten<strong>do</strong> defender a relação entre (i) a a<strong>do</strong>-<br />
ção de uma perspectiva moral e (ii) a reali-<br />
zação de uma concepção de bem, a tentativa<br />
de agir de mo<strong>do</strong> a tornar a nossa vi<strong>da</strong> digna<br />
de ser vivi<strong>da</strong>, ou ain<strong>da</strong>, a busca de uma vi<strong>da</strong><br />
plena. Com isso, preten<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> apontar<br />
para uma nova forma de justificação <strong>do</strong><br />
princípio que, segun<strong>do</strong> penso, melhor ex-<br />
pressa a nossa deman<strong>da</strong> pela morali<strong>da</strong>de, a<br />
saber: o imperativo categórico kantiano.<br />
Antes de prosseguir, gostaria de analisar<br />
duas possíveis dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s teses até aqui<br />
defendi<strong>da</strong>s. A primeira diz respeito a nossa<br />
própria pretensão a estarmos justifican<strong>do</strong><br />
algo. Ao afirmar poder justificar desta ma-<br />
neira a a<strong>do</strong>ção de um princípio moral não<br />
estaríamos alteran<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
tradicionalmente se consagrou com sen<strong>do</strong><br />
“fun<strong>da</strong>mentar” ou “justificar” algo? É pos-<br />
sível que sim. Devo então esclarecer o que<br />
devemos compreender por “justificar” no<br />
senti<strong>do</strong> aqui emprega<strong>do</strong>. No plano <strong>da</strong> jus-<br />
tificação estarei elegen<strong>do</strong> uma perspectiva<br />
coerentista, ou seja, aquela segun<strong>do</strong> a qual a<br />
justificação de uma crença não repousa em<br />
sua auto-evidência, nem em sua relação com<br />
outras crenças supostamente auto-evidentes,<br />
mas em sua correlação com uma rede de<br />
crenças na qual se acredite. Quanto mais<br />
abrangente for a rede, ou seja, quanto mais<br />
luz puder lançar sobre o nosso universo de<br />
crenças, mais coerente será, conseqüente-<br />
mente, mais justifica<strong>da</strong>. Será, portanto, com<br />
base em tal perspectiva que proponho que as<br />
teses aqui defendi<strong>da</strong>s sejam avalia<strong>da</strong>s.<br />
Uma vez que estamos sempre reven<strong>do</strong><br />
nosso sistema de crenças à luz de novas<br />
informações, a decisão acerca <strong>do</strong> que seja<br />
normativamente correto, toma<strong>da</strong> com base<br />
em uma perspectiva coerentista, jamais po-<br />
derá reclamar um caráter definitivo. Assim,<br />
a vali<strong>da</strong>de de um princípio moral deverá ser<br />
sempre avalia<strong>da</strong> a partir de sua correlação<br />
com uma série de outros elementos consti-<br />
tutivos <strong>da</strong>s nossas relações sociais e, mais<br />
especificamente, com as crenças que imple-<br />
mentam a nossa deman<strong>da</strong> pela morali<strong>da</strong>de.<br />
A segun<strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de surge frente a<br />
tentativa de conciliar a defesa <strong>do</strong> princípio<br />
moral kantiano com a pergunta pelo tipo de<br />
vi<strong>da</strong> que desejamos viver. Não estaríamos,<br />
assim, concilian<strong>do</strong> duas perspectivas morais<br />
antagônicas: uma perspectiva deontológica e<br />
uma perspectiva teleológica, respectivamente?<br />
Estarei elegen<strong>do</strong> uma perspectiva teleológica<br />
e, com base nesta perspectiva, justifican<strong>do</strong>, de<br />
forma não-fun<strong>da</strong>mentacionista, o princípio<br />
moral kantiano. Há, portanto, claramente<br />
uma proposta de conciliar <strong>do</strong>is elementos<br />
considera<strong>do</strong>s pela tradição inconciliáveis, mas<br />
que, caso minha exposição seja bem sucedi<strong>da</strong>,<br />
terei mostra<strong>do</strong> não serem antagônicos.<br />
Para tal, preten<strong>do</strong>, em primeiro lugar,<br />
mostrar que a própria a<strong>do</strong>ção de um princípio<br />
de imparciali<strong>da</strong>de supõe uma concepção de<br />
bem. Em segui<strong>da</strong>, terei que mostrar que é pos-<br />
sível responder a pergunta pelo que conside-<br />
ramos uma boa vi<strong>da</strong> de forma não-subjetivista<br />
e não-<strong>do</strong>gmática, em outras palavras, terei<br />
que distinguir o que estarei defenden<strong>do</strong> como<br />
sen<strong>do</strong> uma “perspectiva perfeccionista” e um<br />
subjetivismo moral. Para concluir, deverei<br />
apontar entre as diversas formas de perfeccio-<br />
nismo aquela cuja fonte de valor, ou seja, cuja<br />
concepção de bem, mais se adeque às nossas<br />
intuições morais, que, segun<strong>do</strong> defen<strong>do</strong>, pa-<br />
recem poder ser resgata<strong>da</strong>s pelo imperativo<br />
kantiano. Este último ponto será aqui apenas<br />
sugeri<strong>do</strong>, quero dizer, será apresenta<strong>do</strong> sob<br />
forma ain<strong>da</strong> programática.<br />
A vali<strong>da</strong>de de<br />
um princípio<br />
moral deverá<br />
ser sempre<br />
avalia<strong>da</strong> a<br />
partir de sua<br />
correlação<br />
com uma série<br />
de outros<br />
elementos<br />
constitutivos<br />
<strong>da</strong>s nossas<br />
relações<br />
sociais.
II<br />
Passemos então a nossa próxima tarefa.<br />
Preten<strong>do</strong> agora analisar a relação entre a<br />
a<strong>do</strong>ção de uma perspectiva moral e a ques-<br />
tão acerca <strong>do</strong> tipo de vi<strong>da</strong> que desejamos vi-<br />
ver ou que supomos digna de ser vivi<strong>da</strong>, em<br />
outras palavras, a questão acerca <strong>da</strong> “boa<br />
vi<strong>da</strong>” ou <strong>do</strong> que chamei “vi<strong>da</strong> plena”. Pre-<br />
ten<strong>do</strong> mostrar que a a<strong>do</strong>ção de um princípio<br />
de imparciali<strong>da</strong>de já pressupõe uma escolha<br />
por um tipo de vi<strong>da</strong> específico, e, neste sen-<br />
ti<strong>do</strong>, já contém um juízo de valor acerca de<br />
como devemos viver. Para tal, tomarei como<br />
modelo o princípio <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de defen-<br />
di<strong>do</strong> por autores como Rawls, Dworkin e<br />
Larmore entre outros.<br />
Por neutralismo político enten<strong>do</strong> o<br />
princípio segun<strong>do</strong> o qual o Esta<strong>do</strong> deve<br />
permanecer neutro, isento, com relação a<br />
qualquer questão relativa à boa vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
indivíduos. Não deve, assim, direta ou indi-<br />
retamente, sancionar ou promover qualquer<br />
concepção de bem. A defesa <strong>do</strong> neutralismo<br />
baseia-se ou bem no valor <strong>da</strong> autonomia in-<br />
dividual, ou bem numa atitude prudencial<br />
frente <strong>ao</strong> poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, ou bem ain<strong>da</strong><br />
num ceticismo diante <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de<br />
defendermos uma concepção específica de<br />
bem. A primeira alternativa já suporia uma<br />
escolha, ou seja, já nos comprometeria com<br />
a visão de que a vi<strong>da</strong> autônoma é um tipo de<br />
vi<strong>da</strong> mais valora<strong>do</strong> <strong>do</strong> que uma vi<strong>da</strong> em que<br />
a autonomia não possa ser exerci<strong>da</strong>.<br />
Quem defende o neutralismo sob esta<br />
2 George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
base não pode, portanto, recusar pelo menos<br />
um tipo de perfeccionismo, qual seja, aquele<br />
que reconhece a autonomia como um bem. A<br />
terceira alternativa, ou seja, o ceticismo com<br />
relação a possibili<strong>da</strong>de de justificarmos uma<br />
concepção de bem, não é capaz de justificar<br />
sequer a a<strong>do</strong>ção de um princípio de neu-<br />
trali<strong>da</strong>de. Já a segun<strong>da</strong> alternativa pode ser<br />
descrita como um ceticismo diante <strong>do</strong> pró-<br />
prio poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. A busca de medi<strong>da</strong>s<br />
preventivas, no entanto, supõe que haja algo<br />
que devemos preservar a qualquer custo. Não<br />
seria este “algo” mais uma vez a autonomia<br />
individual? Com isso preten<strong>do</strong> resgatar a<br />
tese de que a a<strong>do</strong>ção de qualquer princípio<br />
de determinação <strong>do</strong> agir, quer atue sobre<br />
Esta<strong>do</strong>, quer sobre os indivíduos, supõe uma<br />
concepção de boa vi<strong>da</strong>, ou vi<strong>da</strong> valora<strong>da</strong>.<br />
III<br />
Com base na análise proposta por Sher 2 , pre-<br />
ten<strong>do</strong> agora distinguir (i) perfeccionismo e<br />
comunitarismo 3 e (ii) perfeccionismo e subjeti-<br />
vismo 4 , antecipan<strong>do</strong>, assim, as principais carac-<br />
terísticas de uma perspectiva perfeccionista.<br />
Perfeccionismo e comunitarismo são<br />
perspectivas morais volta<strong>da</strong>s para uma con-<br />
cepção de bem ou de boa vi<strong>da</strong>. A peculiari-<br />
<strong>da</strong>de <strong>da</strong> perspectiva comunitarista consiste<br />
em sustentar a tese de que a identi<strong>da</strong>de de<br />
um indivíduo e, por conseguinte, sua pró-<br />
pria concepção de bem, está determina<strong>da</strong><br />
pela cultura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de a qual pertence.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, a concepção <strong>do</strong> que seja a<br />
3 Acerca <strong>da</strong> perspectiva comunitarista, ver: “Atomism” de Charles Taylor (em: Philosophy and the Human Sciences: Philosophical Papers 2, Cambridge<br />
University Press, Cambridge, 1985) e Liberalism and the Limits of Justice de Michael J. Sandel (Cambridge University Press, Cambridge, 1982)<br />
4 Acerca <strong>do</strong> que estou consideran<strong>do</strong> aqui como uma perspectiva subjetivista, ver: Methods of Ethics de Henry Sidgwick (Macmillan, Londres, 1922) e A<br />
Theory of the Good and the Right de Richard Brandt (Oxford University Press, Oxford, 1979)<br />
111
112<br />
PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />
boa vi<strong>da</strong> não dependeria <strong>do</strong> que o sujeito<br />
deseja, escolhe ou compreende, mas <strong>da</strong><br />
cultura e <strong>da</strong>s tradições a partir <strong>da</strong>s quais<br />
seus desejos, escolhas e compreensões são<br />
mol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. A comuni<strong>da</strong>de cultural, e não o<br />
indivíduo, deveria ser então reconheci<strong>da</strong><br />
como a uni<strong>da</strong>de mínima <strong>da</strong> moral.<br />
Nosso primeiro passo consiste, portan-<br />
to, na análise <strong>do</strong>s principais argumentos co-<br />
munitaristas em favor de sua tese principal,<br />
pois se seus argumentos forem contunden-<br />
tes, então deveremos reduzir a perspectiva<br />
perfeccionista à comunitarista.<br />
A argumentação comunitarista visa, de<br />
uma maneira geral, apontar para a determi-<br />
nação <strong>do</strong> sujeito pela comuni<strong>da</strong>de. Para tal,<br />
são apresenta<strong>do</strong>s três tipos de argumentos:<br />
argumento causal, argumento conceitual<br />
e argumento ontológico. 5 De acor<strong>do</strong> com o<br />
primeiro, a socie<strong>da</strong>de causa as preferências<br />
e opções de ca<strong>da</strong> indivíduo, determinan<strong>do</strong>,<br />
assim, as oportuni<strong>da</strong>des e alternativas entre<br />
as quais poderão escolher. A conseqüência<br />
seria uma eliminação de qualquer possível<br />
linha divisória entre indivíduo e socie<strong>da</strong>de.<br />
O segun<strong>do</strong> argumento afirma ser conceitu-<br />
almente impossível tornar compreensível as<br />
escolhas e objetivos de um indivíduo sem re-<br />
curso <strong>ao</strong> contexto cultural e histórico no qual<br />
esta inseri<strong>do</strong>. A socie<strong>da</strong>de penetra intima-<br />
mente no conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong>s atitudes, habili<strong>da</strong>des<br />
e opções de ca<strong>da</strong> pessoa, por mais autônoma<br />
que esta possa parecer. O argumento onto-<br />
lógico recusa a própria idéia de indivíduo<br />
como uma enti<strong>da</strong>de ontológica isola<strong>da</strong>. Entre<br />
a socie<strong>da</strong>de e aqueles que a constituem não<br />
haveria distinção ontológica possível.<br />
5 Ver George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p. 159.<br />
Como réplica <strong>ao</strong> primeiro argumento,<br />
podemos dizer que, ain<strong>da</strong> que possamos<br />
reconhecer uma relação causal entre socie-<br />
<strong>da</strong>de e indivíduo, esta relação não elimina<br />
a diferença entre ambos, não impedin<strong>do</strong>,<br />
portanto, que indivíduos pertencentes a<br />
uma mesma socie<strong>da</strong>de venham a desenvol-<br />
ver concepções de bem distintas. Quanto <strong>ao</strong><br />
segun<strong>do</strong> argumento, cabe-nos analisar os<br />
possíveis vínculos conceituais entre a cul-<br />
tura de um indivíduo e o conteú<strong>do</strong> de suas<br />
escolhas. Ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de cultural pode<br />
propiciar a seus integrantes categorias lin-<br />
guísticas e conceituais; pode gerar conven-<br />
ções não linguísticas; reconhecer habili<strong>da</strong>-<br />
des específicas para práticas gera<strong>da</strong>s em seu<br />
interior (como, por exemplo, a capaci<strong>da</strong>de<br />
de concentração necessária <strong>ao</strong> bom exer-<br />
cício de lutas marciais) e pode ain<strong>da</strong> gerar<br />
um sistema de crenças que torna significati-<br />
vas muitas de suas ações. Na<strong>da</strong> disso impli-<br />
ca, no entanto, que a comuni<strong>da</strong>de cultural<br />
determine o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fins eleitos por<br />
ca<strong>da</strong> indivíduo. Ela pode, quan<strong>do</strong> muito,<br />
incitar certos desejos ou suprir as condições<br />
para que os mesmos possam ser expressos,<br />
mas não pode eliminar o aspecto decisivo <strong>da</strong><br />
escolha individual. A completa eliminação<br />
<strong>do</strong> papel <strong>do</strong> agente no processo deliberativo<br />
nos conduz <strong>ao</strong> terceiro argumento, ou seja,<br />
a total per<strong>da</strong> de independência <strong>do</strong> conceito<br />
de indivíduo. Contu<strong>do</strong>, o fato de que as<br />
escolhas e atitudes de um indivíduo estejam<br />
impregna<strong>da</strong>s com significa<strong>do</strong>s extraí<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
comuni<strong>da</strong>de cultural, não implica qualquer<br />
conseqüência sobre seu estatuto ontológico.<br />
O conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong>s escolhas, o ato de escolha, e<br />
A comuni<strong>da</strong>de<br />
cultural, e não<br />
o indivíduo,<br />
deveria<br />
ser então<br />
reconheci<strong>da</strong><br />
como a uni<strong>da</strong>de<br />
mínima <strong>da</strong><br />
moral.
o agente são elementos distintos e não é evi-<br />
dente que possamos suprimir tal distinção,<br />
senão fornecen<strong>do</strong> uma redescrição <strong>da</strong>quele<br />
que possa vir a ocupar o papel de agente.<br />
Se estivermos certos em recusar a tese<br />
comunitarista e, por conseguinte, em recusar<br />
que nossa in<strong>da</strong>gação acerca <strong>do</strong> que devemos<br />
compreender como uma boa vi<strong>da</strong>, possa ser<br />
reduzi<strong>da</strong> a uma mera investigação <strong>do</strong>s valo-<br />
res na nossa cultura, então teremos que nos<br />
confrontar com um outro modelo de investi-<br />
gação, a saber: a perspectiva subjetivista.<br />
Assumirei aqui a premissa subjetivista<br />
segun<strong>do</strong> a qual os elementos relevantes para<br />
o reconhecimento <strong>do</strong> que seja uma boa vi<strong>da</strong><br />
estão relaciona<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> sujeito, ou seja, à estru-<br />
tura psicológica <strong>da</strong>quele que desempenha o<br />
papel de agente. Contu<strong>do</strong>, preten<strong>do</strong> mostrar<br />
que a aceitação de tal premissa não nos com-<br />
promete com os demais ônus de uma pers-<br />
pectiva subjetivista. Para tal, irei analisar os<br />
principais atrativos <strong>do</strong> subjetivismo, criticar<br />
a possibili<strong>da</strong>de de resgatá-los dentro de uma<br />
perspectiva meramente subjetivista e adian-<br />
tar como podemos fazer jus <strong>ao</strong>s mesmos den-<br />
tro <strong>da</strong> perspectiva perfeccionista.<br />
O principal atrativo <strong>da</strong> perspectiva sub-<br />
jetivista parece consistir em (i) estabelecer<br />
uma relação direta entre valor e motivação e<br />
em (ii) fornecer uma explicação <strong>do</strong> como as<br />
coisas se tornam valora<strong>da</strong>s. De acor<strong>do</strong> com<br />
essa perspectiva podemos dizer que algo é<br />
valora<strong>do</strong> se: (1) promove ou satisfaz os dese-<br />
jos <strong>do</strong> indivíduo; (2) se promove ou satisfaz<br />
os desejos <strong>do</strong> indivíduo bem informa<strong>do</strong>; (3)<br />
se promove ou satisfaz os desejos de outras<br />
pessoas bem informa<strong>da</strong>s. Em qualquer <strong>da</strong>s<br />
três interpretações, nossos desejos ou esco-<br />
lhas conferem valor <strong>ao</strong>s objetos.<br />
Ain<strong>da</strong> que aceitemos uma relação entre<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
valor e motivação, a explicação subjetivista<br />
parece conter algumas lacunas. A primeira<br />
consiste em não ser capaz de determinar<br />
precisamente de que forma o esta<strong>do</strong> moti-<br />
va<strong>do</strong> se relaciona à motivação. Poderíamos<br />
sempre supor que a ver<strong>da</strong>deira fonte de mo-<br />
tivação de um esta<strong>do</strong> não seja aquela apon-<br />
ta<strong>da</strong> na explicação. Na tentativa de fornecer<br />
uma comprovação empírica de tal relação,<br />
os subjetivistas são obriga<strong>do</strong>s a considerar<br />
apenas motivações ou desejos atuais ou<br />
presentes. Com isso, sua explicação se torna<br />
incapaz de esclarecer escolhas passa<strong>da</strong>s e de<br />
lançar algum esclarecimento sobre futuras<br />
escolhas. A conseqüência é uma explicação<br />
incapaz de <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> noção de sujeito,<br />
como aquele capaz de eleger algo para sua<br />
identi<strong>da</strong>de qualitativa como resposta a sua<br />
própria história pessoal. Mas ain<strong>da</strong> que<br />
pudéssemos trabalhar com um conceito de<br />
sujeito tão simplifica<strong>do</strong> como o que se ade-<br />
qua <strong>ao</strong> modelo proposto, ou seja, como o de<br />
mero porta<strong>do</strong>r de esta<strong>do</strong>s motiva<strong>do</strong>s presen-<br />
tes, teríamos que abdicar <strong>da</strong> pretensão de<br />
passar <strong>da</strong> explicação <strong>da</strong> motivação em um<br />
indivíduo determina<strong>do</strong> para a explicação <strong>da</strong><br />
motivação <strong>do</strong>s demais indivíduos.<br />
Para preencher tais lacunas explicati-<br />
vas, torna-se necessário introduzir a noção<br />
de um desejo impessoal, capaz de superar<br />
(i) a barreira <strong>da</strong>s motivações atuais -- per-<br />
mitin<strong>do</strong> li<strong>da</strong>r com uma visão bem mais<br />
complexa <strong>da</strong> psicologia humana ou <strong>da</strong> for-<br />
mação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de individual -- e (ii) os<br />
limites <strong>do</strong> próprio indivíduo -- permitin<strong>do</strong><br />
estender a explicação <strong>ao</strong>s demais indivídu-<br />
os. Este passo é assumi<strong>do</strong> pela perspectiva<br />
perfeccionista, o que faz com que muitas<br />
vezes recaia sobre a mesma o rótulo de me-<br />
tafísica. Caberá então mostrar que também<br />
113
114<br />
PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />
os subjetivistas se veêm constragi<strong>do</strong>s a pos-<br />
tular a um tal desejo e o fazem <strong>ao</strong> supor, por<br />
exemplo, que to<strong>do</strong>s desejamos, durante to<strong>da</strong><br />
a nossa existência, ter nossos desejos satis-<br />
feitos. Resta-nos, contu<strong>do</strong>, o ônus de mos-<br />
trar que é possível justificar a aceitação de<br />
um desejo impessoal, universal, sem recurso<br />
a pressupostos metafísicos.<br />
Ao postular um desejo impessoal, o<br />
perfeccionismo propõe um esclarecimento<br />
(i) <strong>da</strong> relação entre valor e motivação e (ii)<br />
<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como as coisas se tornam valora-<br />
<strong>da</strong>s. O desejo impessoal promove valor e as<br />
coisas valora<strong>da</strong>s são em si mesmas origem<br />
<strong>da</strong> motivação. Com isso, o perfeccionismo<br />
irá fun<strong>da</strong>mentar o valor de certas ativi<strong>da</strong>des<br />
e excelências em certos “desejos”, fins ou<br />
metas comuns a espécie humana. Em um<br />
segun<strong>do</strong> nível, no entanto, a impossibili<strong>da</strong>-<br />
de de comprovar uma relação interna entre<br />
as coisas boas e o impulso para perseguí-las<br />
fará com que a relação entre ambos seja<br />
assumi<strong>da</strong> como contingente.<br />
IV<br />
Para concluir, preten<strong>do</strong> contrapor algumas<br />
formas possíveis de perfeccionismo, de<br />
mo<strong>do</strong> a destacar a mais plausível, ou seja,<br />
a mais abrangente e que melhor acomode<br />
nossas intuições morais.<br />
Como perfeccionista estarei consideran-<br />
<strong>do</strong> aquelas perspectivas morais que visem<br />
responder a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>do</strong> que seja<br />
uma boa vi<strong>da</strong>, reconhecen<strong>do</strong>, como ponto<br />
6 Ver George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p.<br />
de parti<strong>da</strong>, que pelo menos algumas ativi-<br />
<strong>da</strong>des, capaci<strong>da</strong>des ou formas de relação<br />
humanas possuem um valor não instrumen-<br />
tal por razões que independem <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s<br />
mentais atuais ou potenciais <strong>do</strong> agente. 6 Ao<br />
contrário <strong>do</strong>s subjetivistas que reconhecem<br />
o indivíduo como fonte última de valor, ou<br />
seja, que acreditam que algo seja valora<strong>do</strong><br />
apenas porque os indivíduos o elegem, per-<br />
feccionistas irão defender que os indivíduos<br />
elegem certas coisas porque as reconhecem<br />
como independentemente valora<strong>da</strong>s, ou<br />
seja, como possuin<strong>do</strong> um valor não-instru-<br />
mental. Perfeccionistas alocam, portanto,<br />
a fonte de certos valores fora <strong>da</strong> subjetivi-<br />
<strong>da</strong>de, o que em outras palavras significa,<br />
sustentar a objetivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s mesmos. A<br />
fonte de tais valores será então busca<strong>da</strong> em<br />
certos fatos sobre a socie<strong>da</strong>de ou em certas<br />
capaci<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>mentais que pertencentes<br />
a to<strong>do</strong>s os seres humanos.<br />
Para alguns autores certas proprie<strong>da</strong>des<br />
seriam intrinsecamente 7 valora<strong>da</strong>s. Uma<br />
proprie<strong>da</strong>de deste tipo seria, por exemplo, tal<br />
como sugere Thomas Hurka 8 , a de ser parte<br />
essencial <strong>da</strong> natureza humana ou, como su-<br />
gere Nozick 9 , a de possuir um certo grau de<br />
uni<strong>da</strong>de orgânica. A dificul<strong>da</strong>de, no primeiro<br />
caso, estaria em sermos capazes de determinar<br />
o que é, em si mesmo, ou seja, de mo<strong>do</strong> não<br />
teleológico, essencial à natureza humana. No<br />
segun<strong>do</strong> caso, estaria em justificar por que a<br />
posse de um certo grau de uni<strong>da</strong>de orgânica<br />
deve ser considera<strong>do</strong> em si mesmo um valor,<br />
ou seja, um valor intrínseco. Se a eleição desta<br />
7 “Intrínseco” significa: (1) que está dentro de uma coisa ou que lhe é próprio; (2) que está liga<strong>do</strong> a uma pesssoa ou coisa, inerente, peculiar. Por estar<br />
queren<strong>do</strong> promover uma distinção entre um valor intrínseco e um valor inerente, privilegiarei a primeira acepção <strong>do</strong> termo.<br />
8 Thomas Hurka, Perfectionism, Oxford University Press, Oxford, 1993.<br />
9 Robert Nozick, Philosophical Explanations, Harvard University Press, 1981.
Ao a<strong>do</strong>tar uma<br />
perspectiva<br />
teleológica,<br />
passamos a<br />
reconhecer<br />
que certos<br />
elementos são<br />
inerentemente<br />
valora<strong>do</strong>s,<br />
ou seja,<br />
possuem valor<br />
por estarem<br />
relaciona<strong>do</strong>s a<br />
certos fins.<br />
proprie<strong>da</strong>de entre outras depender de uma<br />
escolha, então teremos aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a própria<br />
noção de valor intrínseco e com ela uma pers-<br />
pectiva não-teleológica.<br />
Ao a<strong>do</strong>tar uma perspectiva teleológica,<br />
passamos a reconhecer que certos elemen-<br />
tos são inerentemente valora<strong>do</strong>s, ou seja,<br />
possuem valor por estarem relaciona<strong>do</strong>s<br />
a certos fins. Caberá então investigar que<br />
tipo de fins objetivos, já que aban<strong>do</strong>namos<br />
uma perspectiva subjetivista, se relacio-<br />
nam às coisas que supomos valora<strong>da</strong>s.<br />
Podemos mencionar aqui <strong>do</strong>is candi<strong>da</strong>tos:<br />
fins que são essenciais à espécie humana<br />
(Aristóteles) e fins <strong>do</strong> processo evolutivo<br />
(Herbert Spencer). Mais uma vez, caberia,<br />
no primeiro caso, provar que certos fins<br />
são essenciais à natureza humana, o que<br />
sem uma teoria acerca <strong>da</strong> própria natureza<br />
humana não parece possível. No segun<strong>do</strong><br />
caso, a eleição de um fim que não seja<br />
objeto de deliberação por parte <strong>do</strong> sujeito,<br />
ou seja, que o agente não possa reconhecer<br />
como seu, faz com que o mesmo não possa<br />
ser reconheci<strong>do</strong> como relaciona<strong>do</strong> à per-<br />
gunta pela boa vi<strong>da</strong>, entendi<strong>da</strong> como uma<br />
in<strong>da</strong>gação acerca <strong>do</strong> tipo de vi<strong>da</strong> que ele-<br />
gemos ou queremos viver. Neste senti<strong>do</strong>,<br />
o fim relevante para nós deverá (i) estar<br />
relaciona<strong>do</strong> <strong>ao</strong> sujeito e, <strong>ao</strong> mesmo tempo,<br />
(ii) manter para com o mesmo a distância<br />
necessária para exercer o papel de instân-<br />
cia crítica <strong>do</strong> nossa própria vi<strong>da</strong>.<br />
Consideremos agora o argumento pro-<br />
posto por Sher segun<strong>do</strong> o qual o que torna<br />
alguma ativi<strong>da</strong>de ou proprie<strong>da</strong>de valora<strong>da</strong><br />
está relaciona<strong>do</strong> <strong>ao</strong> fato desta promover<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
o bom exercício de capaci<strong>da</strong>des humanas<br />
fun<strong>da</strong>mentais. Uma capaci<strong>da</strong>de seria dita<br />
fun<strong>da</strong>mental quan<strong>do</strong> pudéssemos reconhe-<br />
cer que: (i) pelo menos virtualmente to<strong>do</strong>s<br />
os seres humanos a possuem e (ii) seu pos-<br />
sui<strong>do</strong>r não pode, ou pode apenas com muita<br />
dificul<strong>da</strong>de, evitar seu exercício. O bom<br />
exercício de tais capaci<strong>da</strong>des é considera<strong>do</strong><br />
como aquele que realiza seus fins. 10<br />
Minha proposta seria então, com base<br />
neste argumento, apontar: (i) a reflexão<br />
prática, ou seja, a reflexão acerca <strong>do</strong> agir,<br />
como uma capaci<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental e (ii) o<br />
pertencimento a uma comuni<strong>da</strong>de perante<br />
a qual tal capaci<strong>da</strong>de é respeita<strong>da</strong> como um<br />
componente essencial para que possamos<br />
viver uma vi<strong>da</strong> plena ou, em outras pala-<br />
vras, uma vi<strong>da</strong> que suponhamos digna de<br />
ser vivi<strong>da</strong>. Através destes <strong>do</strong>is elementos,<br />
resgatamos o imperativo categórico kantia-<br />
no como o princípio <strong>do</strong> respeito universal.<br />
O reconhecimento universal <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />
de refletir acerca <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como devemos<br />
agir e o compromisso com a implementação<br />
ou com o bom desempenho de uma tal ca-<br />
paci<strong>da</strong>de seria, assim, justifica<strong>do</strong> um prin-<br />
cípio moral mínimo. Princípio este segun<strong>do</strong><br />
o qual nos dispomos a agir, <strong>ao</strong> elegermos<br />
fazer parte de uma comuni<strong>da</strong>de na qual<br />
sejamos respeita<strong>do</strong>s enquanto seres capazes<br />
de refletir sobre suas próprias ações.<br />
Maria Clara Dias é psicóloga e <strong>do</strong>utora em<br />
Filosofia, professora <strong>do</strong> Departamento de<br />
Filosofia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong> Rio de<br />
Janeiro.<br />
10 Ver George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p.202.<br />
115
Eugène<br />
Delacroix,<br />
“A Liber<strong>da</strong>de<br />
guia o Povo”<br />
(detalhe)<br />
Pintura a óleo<br />
sobre tela,<br />
1831<br />
A<br />
<strong>Evolução</strong><br />
O objetivo deste singelo estu<strong>do</strong> é, apre-<br />
cian<strong>do</strong> o desenvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no de-<br />
correr <strong>da</strong> história <strong>do</strong>s grupamentos huma-<br />
nos sobre a terra, desde o Esta<strong>do</strong> Teocrático,<br />
<strong>da</strong>s primeiras civilizações <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Antiga<br />
até os nossos dias, em que o neoliberalismo,<br />
em diferentes graus, mostra-se vitorioso em<br />
praticamente to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, analisan<strong>do</strong> sua<br />
similitude, inclusive quanto à denomina-<br />
ção, com o Esta<strong>do</strong> Liberal <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século<br />
passa<strong>do</strong>, Esta<strong>do</strong> Gen<strong>da</strong>rme, que apenas po-<br />
liciava a ordem pública, sem interferir nas<br />
relações entre as pessoas, e, que foi causa<br />
<strong>do</strong> surgimento de Comunismo, fascismo e<br />
nazismo, apreciar as características de ca<strong>da</strong><br />
qual, de forma a procurar levantar a dis-<br />
cussão sobre o aperfeiçoamento de nossas<br />
instituições jurídicas.<br />
Tal discussão se mostra salutar, outros-<br />
sim, quan<strong>do</strong> observamos que, no decorrer<br />
<strong>da</strong> história <strong>do</strong> homem, há <strong>do</strong>is institutos<br />
básicos que, geralmente antagônicos, vêm<br />
* Monografia concorrente <strong>ao</strong> Prêmio Amapi 98/99, Concurso público de Monografias Jurídicas.<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
A <strong>Evolução</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: <strong>da</strong> <strong>Teocracia</strong> <strong>ao</strong> <strong>Neoliberalismo</strong> *<br />
José Vi<strong>da</strong>l de Freitas Filho<br />
obten<strong>do</strong> maior ou menor atenção <strong>da</strong>s dife-<br />
rentes formas de Esta<strong>do</strong>, desde o início <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> social <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, quais sejam o<br />
<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e o <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de.<br />
O primeiro, volta<strong>do</strong> à defesa <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>-<br />
de individual, procura retirar to<strong>da</strong>s as peias<br />
que interfiram nas relações entre as pessoas,<br />
permitin<strong>do</strong>-lhes resolver seus negócios sem<br />
interferência <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de pública, contu<strong>do</strong>,<br />
em contraparti<strong>da</strong>, autorizan<strong>do</strong> a suprema-<br />
cia <strong>do</strong>s fortes sobre os fracos.<br />
Em senti<strong>do</strong> contrário, a igual<strong>da</strong>de visa<br />
equiparar to<strong>da</strong>s as pessoas, sem quais-<br />
quer distinções, não permitin<strong>do</strong> que haja<br />
preponderância de alguns sobre outros,<br />
acarretan<strong>do</strong>, to<strong>da</strong>via, o estrangulamento <strong>da</strong><br />
liber<strong>da</strong>de individual, afogan<strong>do</strong> o indivíduo<br />
no meio <strong>do</strong> grupo e desestimulan<strong>do</strong> a ini-<br />
ciativa individual.<br />
Assim, a preponderância de um e <strong>do</strong><br />
outro pode ser vista no transcurso <strong>do</strong>s tem-<br />
pos e o equilíbrio entre ambos nem sempre<br />
117
118<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
sequer almeja<strong>do</strong>, quanto mais atingi<strong>do</strong>.<br />
A observação <strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s tempos, como veremos<br />
a seguir, com suas quali<strong>da</strong>des e defeitos,<br />
contu<strong>do</strong>, servirá para buscarmos a solução<br />
para uma questão: A sucessão de espécies<br />
de esta<strong>do</strong> significou um aperfeiçoamento <strong>do</strong><br />
mesmo? Será o Esta<strong>do</strong> Neoliberal melhor<br />
que seus antecessores?<br />
É evidente, to<strong>da</strong>via, que para que se dis-<br />
cuta essa questão é necessário que primeiro<br />
se estabeleça sob qual critério um Esta<strong>do</strong><br />
pode ser melhor ou pior que os outros.<br />
Assim, o presente estu<strong>do</strong> pretende bus-<br />
car uma resposta levan<strong>do</strong> em conta a obser-<br />
vância a esses princípios, especialmente, no<br />
que diz respeito <strong>ao</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, no tocante<br />
à maior ou menor influência <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong><br />
população na escolha <strong>do</strong>s governantes e no<br />
controle <strong>do</strong> poder estatal, e, quanto <strong>ao</strong> <strong>da</strong><br />
igual<strong>da</strong>de, na busca <strong>da</strong> redução <strong>da</strong>s desi-<br />
gual<strong>da</strong>des jurídica e econômica.<br />
A questão <strong>do</strong> poder<br />
Antes, porém, de ingressar no exame <strong>da</strong><br />
evolução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, considero recomendável<br />
apreciar a problemática <strong>do</strong> poder, ou seja, a<br />
necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem, inexplicável, como<br />
bem dito por Celso Ribeiro Bastos [1988:32],<br />
em virtude <strong>do</strong> reduzi<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> caminha-<br />
<strong>da</strong> humana sobre a terra, de fazer com que os<br />
outros se submetam a sua vontade.<br />
Ora, se essa vontade existe em ca<strong>da</strong><br />
pessoa e se apresenta até nos pequenos gru-<br />
pamentos sociais, inclusive na família, em<br />
muito maior grau e repercussão se observa<br />
quan<strong>do</strong> os grupos sociais se tornam maiores.<br />
Assim, a questão <strong>do</strong> controle <strong>do</strong> poder<br />
estatal sempre se mostrou presente na his-<br />
tória <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de e, quan<strong>do</strong> não houve<br />
qualquer controle, como nas ocasiões em que<br />
o poder estatal decorria <strong>da</strong> determinação<br />
divina, ou, quan<strong>do</strong> esse poder era exerci<strong>do</strong><br />
em nome <strong>da</strong> maior classe social, havia uma<br />
ditadura, com os direitos individuais sufoca-<br />
<strong>do</strong>s e exploração <strong>da</strong> maioria governa<strong>da</strong>.<br />
Ocorre, contu<strong>do</strong>, que as teses anarquis-<br />
tas e comunistas relativas à extinção <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> carecem de viabili<strong>da</strong>de prática, <strong>da</strong><br />
mesma forma em que são destituí<strong>da</strong>s de<br />
referência histórica, uma vez que um órgão<br />
dirigente sempre existiu na história <strong>da</strong>s<br />
civilizações, como também até nos menores<br />
grupamentos, sob pena de sua dissolução,<br />
uma vez que não é possível, na prática, que<br />
to<strong>do</strong>s os membros de uma comuni<strong>da</strong>de,<br />
ain<strong>da</strong> mais se esta é constituí<strong>da</strong> de muitas<br />
pessoas, possam, <strong>ao</strong> mesmo tempo e direta-<br />
mente, gerir a coisa pública, sen<strong>do</strong> necessá-<br />
rio que alguns recebam a incumbência de<br />
exercer tal mister.<br />
O problema que surge, to<strong>da</strong>via, é que,<br />
como o ser humano tem essa tendência a<br />
procurar adquirir poder e, quanto mais<br />
tem, mais busca obter, consoante se pode<br />
exaustivamente contemplar na história <strong>da</strong>s<br />
civilizações, faz-se necessário desenvolver<br />
fórmulas de controlar esse poder, o que nem<br />
sempre ocorreu, muito pelo contrário.<br />
Conceito de Esta<strong>do</strong><br />
Discuti<strong>da</strong> a questão <strong>do</strong> poder, cabe, ago-<br />
ra, definir o que seja Esta<strong>do</strong>, saben<strong>do</strong>-se<br />
que sua noção atual, significan<strong>do</strong> situação<br />
permanente de convivência e liga<strong>da</strong> à so-<br />
cie<strong>da</strong>de política, somente surgiu a partir <strong>do</strong><br />
século XVI, introduzi<strong>da</strong> por Maquiavel na<br />
literatura científica e, à vista disso, há juris-<br />
A sucessão<br />
de espécies<br />
de esta<strong>do</strong><br />
significou um<br />
aperfeiçoamento<br />
<strong>do</strong> mesmo?<br />
Será o Esta<strong>do</strong><br />
Neoliberal<br />
melhor que seus<br />
antecessores?
tas que não admitem a existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
antes <strong>do</strong> século XVII, consoante afirma<strong>do</strong><br />
por Dalmo de Abreu Dallari [1995:43].<br />
O mesmo e festeja<strong>do</strong> professor, contu<strong>do</strong>,<br />
posicionan<strong>do</strong>-se em entendimento contrá-<br />
rio, revela a existência de duas orientações<br />
fun<strong>da</strong>mentais, uma <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ênfase a um<br />
elemento concreto liga<strong>do</strong> à noção de força<br />
e a outra realçan<strong>do</strong> a natureza jurídica <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> como ponto de parti<strong>da</strong> a<br />
noção de ordem.<br />
Para os adeptos <strong>da</strong> primeira corrente, o<br />
Esta<strong>do</strong> pode ser defini<strong>do</strong> como: “força ma-<br />
terial irresistível, limita<strong>da</strong> e regula<strong>da</strong> pelo<br />
direito”, segun<strong>do</strong> Duguit; ou “uma institu-<br />
cionalização <strong>do</strong> poder”, conforme Burdeau;<br />
ou, finalmente, “o monopólio <strong>do</strong> poder”,<br />
consoante Gurvitch.<br />
Já para os segui<strong>do</strong>res <strong>da</strong> última orienta-<br />
ção, o Esta<strong>do</strong> seria: “um povo fixa<strong>do</strong> em um<br />
território e organiza<strong>do</strong> em um poder supre-<br />
mo originário de império, para atuar com<br />
noção unitária ou seus próprios fins coleti-<br />
vos”, segun<strong>do</strong> Ranelleti; ou “a uni<strong>da</strong>de de<br />
um sistema jurídico que tem em si mesmo o<br />
próprio centro autônomo e que é possui<strong>do</strong>r<br />
<strong>da</strong> suprema quali<strong>da</strong>de de pessoa”, consoan-<br />
te Del Vecchio, ou “corporação territorial<br />
<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de um poder de man<strong>do</strong> originário”,<br />
conforme Jellinek; ou, para Hans Kelsen,<br />
“é a ordem coativa normativa <strong>da</strong> conduta<br />
humana”.<br />
Finalmente, em nosso país, cumpre<br />
recor<strong>da</strong>r as noções de Clóvis Bevilacqua:<br />
“agrupamento humano, estabeleci<strong>do</strong> em<br />
determina<strong>do</strong> território e submeti<strong>do</strong> a um<br />
poder soberano que lhe dá uni<strong>da</strong>de orgâni-<br />
ca”, de Queiroz Lima, “nação politicamente<br />
organiza<strong>da</strong>”; de Dalmo Dallari, que repudia<br />
o conceito retro, afirman<strong>do</strong> não ter rigor<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
científico, toman<strong>do</strong> como forma o que pre-<br />
tendia fosse o fim, e define Esta<strong>do</strong> como<br />
“a ordem jurídica soberana que tem por<br />
fim o bem comum de um povo situa<strong>do</strong> em<br />
determina<strong>do</strong> território”; de Celso Ribeiro<br />
Bastos, “organização política sob a qual vive<br />
o homem moderno (...) resultante de um<br />
povo viven<strong>do</strong> sobre um território delimita-<br />
<strong>do</strong> e governa<strong>do</strong> por leis que se fun<strong>da</strong>m num<br />
poder não sobrepuja<strong>do</strong> por nenhum outro<br />
externamente e supremo internamente”;<br />
encerran<strong>do</strong> com Sahid Maluf, que o con-<br />
ceituou como sen<strong>do</strong> “o órgão executor <strong>da</strong><br />
soberania nacional”.<br />
To<strong>do</strong>s esses conceitos, à exceção <strong>do</strong> de<br />
Queiroz Lima, têm em comum a referência<br />
expressa a noções de população, território<br />
e governo, ou seja, grupamento humano,<br />
espaço físico defini<strong>do</strong> e, consoante Sahid<br />
Maluf [1978:43], <strong>do</strong> ponto de vista positi-<br />
vo, “o conjunto <strong>da</strong>s funções necessárias à<br />
manutenção <strong>da</strong> ordem jurídica e <strong>da</strong> admi-<br />
nistração pública”, que seriam, para alguns<br />
juristas, os pressupostos ou requisitos para<br />
a existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e, para outros, de<br />
elementos integra<strong>do</strong>res <strong>da</strong> sua existência.<br />
Defenden<strong>do</strong> esta última corrente, Celso Ri-<br />
beiro Bastos [1988:119] afirma que, no futu-<br />
ro, é possível que um grupamento humano<br />
viva no espaço sideral e, assim, constituir<br />
um Esta<strong>do</strong> sem território.<br />
Ocorre, porém, e com a devi<strong>da</strong> vênia,<br />
que pode estar ocorren<strong>do</strong> aí uma confusão<br />
entre território lato sensu e espaço geo-<br />
gráfico. Na ver<strong>da</strong>de, mesmo em um futuro<br />
distante, é praticamente impossível sequer<br />
imaginar o ser humano viven<strong>do</strong> no éter. Ao<br />
contrário, moran<strong>do</strong> em outro planeta ou<br />
mesmo em órbita, o homem terá que estar<br />
em uma superfície defini<strong>da</strong>, natural, ou<br />
119
120<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
artificial, como uma estação espacial, que,<br />
aí, estará sen<strong>do</strong> um território em seu senti-<br />
<strong>do</strong> amplo.<br />
Por conseguinte, a menos que seja uma<br />
ficção, por algum motivo, como, exemplifi-<br />
can<strong>do</strong>, os ditos governos no exílio, um Esta-<br />
<strong>do</strong> somente estará efetivamente constituí<strong>do</strong><br />
se estiver compreendi<strong>do</strong> desses três ele-<br />
mentos: população, território e governo, e,<br />
assim, parece que o conceito mais adequa<strong>do</strong><br />
é o de Clóvis Bevilacqua, muito semelhante<br />
<strong>ao</strong> de Dalmo Dallari, por apresentarem am-<br />
bos os elementos constitutivos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
distinguin<strong>do</strong>-se por deixar de la<strong>do</strong> o fim <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, constante <strong>da</strong> noção de Dallari, que é<br />
variável no tempo e no espaço e fun<strong>da</strong>men-<br />
tal, naquela forma, exclusivamente para as<br />
nações democráticas.<br />
A origem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
Concluin<strong>do</strong> esta fase e antes de ingressar no<br />
âmago <strong>do</strong> presente estu<strong>do</strong>, faz mister que<br />
seja examina<strong>da</strong>, muito embora de maneira<br />
perfunctória, a problemática relativa à ori-<br />
gem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
Ora, conforme já visto, existe uma<br />
corrente de juristas renoma<strong>do</strong>s, entre os<br />
quais Karl Schmidt, Balla<strong>do</strong>re Pallieri e<br />
Ataliba Nogueira, que entendem o Esta<strong>do</strong><br />
somente como socie<strong>da</strong>de política <strong>do</strong>ta<strong>da</strong><br />
de características bem defini<strong>da</strong>s e, assim,<br />
consideram que o Esta<strong>do</strong> somente surgiu<br />
no Século XVII.<br />
Segun<strong>do</strong> outra corrente respeitável,<br />
integra<strong>da</strong>, entre outros, por Eduard Meyer e<br />
Wilhelm Koppers, o Esta<strong>do</strong>, como a própria<br />
socie<strong>da</strong>de, sempre existiu, pois desde que o<br />
homem vive sobre a terra acha-se integra<strong>do</strong><br />
em uma organização social, <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de poder<br />
e com autori<strong>da</strong>de para determinar o com-<br />
portamento de to<strong>do</strong> o grupo social.<br />
Uma última corrente, entretanto, acre-<br />
dita que a socie<strong>da</strong>de humana existiu sem o<br />
Esta<strong>do</strong> durante algum tempo. Mais tarde,<br />
para atender as necessi<strong>da</strong>des ou conveni-<br />
ências de to<strong>do</strong> o grupo social ou apenas de<br />
alguns, é que o Esta<strong>do</strong> teria si<strong>do</strong> consti-<br />
tuí<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> que, conforme as teorias <strong>do</strong>s<br />
membros dessa corrente, o Esta<strong>do</strong>, assim,<br />
teria origem familiar, em ato de força, patri-<br />
monial ou contratual.<br />
Segun<strong>do</strong> a primeira teoria, sustenta<strong>da</strong><br />
por Aristóteles, Maine, Filmer e Bachofen,<br />
o Esta<strong>do</strong> deriva de um núcleo familiar, cuja<br />
autori<strong>da</strong>de suprema pertenceria <strong>ao</strong> ascen-<br />
dente varão mais velho, o patriarca, sen<strong>do</strong>,<br />
por conseguinte, uma ampliação <strong>da</strong> família<br />
patriarcal e apresentan<strong>do</strong> como exemplos a<br />
origem, segun<strong>do</strong> a tradição, de Roma, fun-<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> por Rômulo, o qual, juntamente com<br />
seu irmão Remo, a quem posteriormente<br />
matou, foi cria<strong>do</strong> por uma loba e, outros-<br />
sim, a história bíblica sobre a criação de<br />
Israel, fruto <strong>da</strong> descendência <strong>do</strong> patriarca<br />
Abraão; ou, derivação de um núcleo fami-<br />
liar presidi<strong>do</strong> pela mãe, a matriarca, por<br />
razão exclusivamente fisiológica, uma vez<br />
que é quem carrega o feto até o nascimento,<br />
“mater semper certa est”; teoria bem expli-<br />
ca<strong>da</strong> por Bachofe, cita<strong>do</strong> por Engels [1977:<br />
7], com a seguinte tese: primitivamente, os<br />
seres humanos viveram em promiscui<strong>da</strong>de<br />
sexual; estas relações excluíam to<strong>da</strong> possi-<br />
bili<strong>da</strong>de de se estabelecer, com certeza, a<br />
paterni<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s filhos havi<strong>do</strong>s, pelo que a<br />
filiação apenas podia ser conta<strong>da</strong> por linha<br />
feminina, segun<strong>do</strong> o direito materno, e isso<br />
se deu em to<strong>do</strong>s os povos antigos; em conse-<br />
qüência desse fato, as mulheres, como mães,
na forma de únicos progenitores conheci<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong> jovem geração, gozavam de grande apre-<br />
ço e respeito, chegan<strong>do</strong> <strong>ao</strong> <strong>do</strong>mínio femini-<br />
no absoluto.<br />
Já a teoria patrimonial, que tem raízes<br />
na filosofia de Platão, que afirmou que o<br />
Esta<strong>do</strong> se originou <strong>da</strong> união <strong>da</strong>s profissões<br />
econômicas, e, de Cícero, que explicava o<br />
Esta<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> uma organização des-<br />
tina<strong>da</strong> a proteger a proprie<strong>da</strong>de e regula-<br />
mentar as relações de ordem patrimonial,<br />
desenvolveu-se com Haller, que disse que a<br />
posse <strong>da</strong> terra gerou o poder público e deu<br />
origem à organização estatal.<br />
Também seguin<strong>do</strong> tal teoria, já não<br />
mais consideran<strong>do</strong> que o Esta<strong>do</strong> é fruto <strong>da</strong><br />
posse ou proprie<strong>da</strong>de, mas que se originou<br />
de motivos econômicos, surgiram, em se-<br />
gui<strong>da</strong>, Marx e Engels, haven<strong>do</strong> este último<br />
afirma<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> tratar <strong>da</strong> Gens Grega [1977:<br />
119 - 120], o seguinte:<br />
“Faltava apenas uma coisa: uma instituição<br />
que não só assegurasse as novas riquezas in-<br />
dividuais contra as tradições comunistas <strong>da</strong><br />
constituição gentílica; que não só consagrasse<br />
a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, antes tão pouco esti-<br />
ma<strong>da</strong>, e fizesse dessa consagração santifica-<br />
<strong>do</strong>ra o objetivo mais eleva<strong>do</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />
humana, mas também imprimisse o selo geral<br />
<strong>do</strong> reconhecimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de às novas<br />
formas de aquisição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, que se<br />
desenvolviam umas sobre as outras - a acu-<br />
mulação, portanto, ca<strong>da</strong> vez mais acelera<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong>s riquezas: uma instituição que, em uma<br />
palavra, não só perpetuasse a nascente divi-<br />
são <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em classes, mas também o<br />
direito de a classe possui<strong>do</strong>ra explorar a não<br />
possui<strong>do</strong>ra e o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> primeira sobre a<br />
segun<strong>da</strong>. E essa instituição nasceu. Inventou-<br />
se o Esta<strong>do</strong>.”<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Dessa forma, basean<strong>do</strong>-se na origem<br />
econômica <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, Marx e Engels desen-<br />
volveram sua tese de que o Esta<strong>do</strong> foi cria<strong>do</strong><br />
exclusivamente para servir a burguesia, de<br />
mo<strong>do</strong> a proteger o seu controle sobre a pro-<br />
prie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>do</strong>s meios de produção, em<br />
detrimento <strong>da</strong> classe proletária e, por conse-<br />
guinte, como houve época em que não existiu,<br />
o Esta<strong>do</strong> podia ser extinto futuramente.<br />
Segun<strong>do</strong> a teoria <strong>da</strong> força, o Esta<strong>do</strong> foi<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de de um grupo so-<br />
cial sobre os outros, que permitiu <strong>ao</strong> primeiro<br />
submeter os mais fracos.<br />
Entre os adeptos dessa teoria merecem re-<br />
alce Bodin, o qual afirmou que “o que dá ori-<br />
gem <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> é a violência <strong>do</strong>s mais fortes”.<br />
Semelhantemente, Gumplowicz e<br />
Oppenheimer, <strong>da</strong> escola sociológica alemã,<br />
tiveram o mesmo entendimento, haven<strong>do</strong><br />
o primeiro menciona<strong>do</strong> que, após um gru-<br />
pamento de pessoas haver venci<strong>do</strong> outro<br />
grupo, obrigou este a cultivar a terra em seu<br />
proveito e, em segui<strong>da</strong>, armou o poder para<br />
manter a defesa de suas conquistas. Já o<br />
segun<strong>do</strong> afirmou:<br />
“O Esta<strong>do</strong> é inteiramente, quanto a sua<br />
origem, e quase inteiramente quanto a sua<br />
natureza, durante os primeiros tempos <strong>da</strong> sua<br />
existência, uma organização social imposta<br />
por um grupo vence<strong>do</strong>r a um grupo venci<strong>do</strong>,<br />
destina<strong>da</strong> a manter esse <strong>do</strong>mínio internamen-<br />
te e a proteger-se contra ataques exteriores.”<br />
Por fim, diversos estudiosos, durante o<br />
perío<strong>do</strong> histórico <strong>da</strong> Reforma Protestante,<br />
desenvolveram teorias <strong>da</strong>n<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong><br />
uma formação contratual, dizen<strong>do</strong> que as<br />
comuni<strong>da</strong>des primitivas, através de um<br />
acor<strong>do</strong> entre seus membros, utilitário e<br />
consciente, deram origem <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
121
122<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
Entre tais estudiosos, merecem menção,<br />
entre vários, os seguintes:<br />
Hugo Grotius, o precursor <strong>do</strong> raciona-<br />
lismo, que considerava que o Esta<strong>do</strong> é cons-<br />
tituí<strong>do</strong> com base em um pacto, o qual efe-<br />
tivamente teria si<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong> em uma<br />
época <strong>da</strong> história e para ca<strong>da</strong> constituição<br />
política existente.<br />
Kant, que alegou que os homens, <strong>ao</strong><br />
passarem <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de natureza para o de<br />
associação, submeteram-se a uma limitação<br />
externa, livre e publicamente acor<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />
surgin<strong>do</strong>, portanto, a autori<strong>da</strong>de civil, o<br />
Esta<strong>do</strong>.<br />
Thomaz Hobbes, o teórico <strong>do</strong> absolu-<br />
tismo, com seu Esta<strong>do</strong> Onipotente, em sua<br />
obra Leviatã, que afirmou que o homem,<br />
antes <strong>do</strong> surgimento <strong>da</strong> organização polí-<br />
tica, no esta<strong>do</strong> de natureza, não vivia em<br />
harmonia com seus semelhantes, pelo con-<br />
trário, era uma situação repleta de violên-<br />
cia, em que ca<strong>da</strong> um atacava o outro na luta<br />
por seus interesses, “homo homini lupus”,<br />
ou seja, o homem sen<strong>do</strong> um lobo para os<br />
outros homens, e, constatan<strong>do</strong> que a vi<strong>da</strong><br />
social não podia continuar dessa maneira,<br />
to<strong>da</strong>s as pessoas haveriam cedi<strong>do</strong> os seus<br />
direitos a um homem ou a uma assembléia<br />
de homens, que personifica a coletivi<strong>da</strong>de e<br />
que assume o encargo de conter a situação<br />
de conflito permanente.<br />
Spinoza, segun<strong>do</strong> o qual o Esta<strong>do</strong> foi<br />
cria<strong>do</strong> como produto de um pacto entre os<br />
homens, contu<strong>do</strong>, a fim de que este lhes<br />
assegure a paz e a justiça.<br />
Locke, para quem o Esta<strong>do</strong> é fruto de<br />
um contrato entre os homens, que, entre-<br />
tanto, delegou-lhe apenas os poderes de re-<br />
gulamentação <strong>da</strong>s relações externas na vi<strong>da</strong><br />
social, manten<strong>do</strong> seus direitos fun<strong>da</strong>mentais.<br />
Finalmente, o ápice <strong>da</strong> teoria contratua-<br />
lista se deu com Russeau, que sustentou que<br />
o esta<strong>do</strong> de natureza <strong>do</strong> homem era de feli-<br />
ci<strong>da</strong>de perfeita, sen<strong>do</strong> sadio, ágil e robusto,<br />
encontran<strong>do</strong>, com facili<strong>da</strong>de o pouco que<br />
precisava, que se constituía exclusivamente<br />
de alimentos, mulher e repouso, temen<strong>do</strong><br />
apenas a <strong>do</strong>r e a fome. Porém, mais tarde<br />
o homem adquiriu duas virtudes que al-<br />
teraram seu esta<strong>do</strong> primitivo: a facul<strong>da</strong>de<br />
de aquiescer ou resistir e a facul<strong>da</strong>de de<br />
aperfeiçoar-se, que principiaram a criar a<br />
desigual<strong>da</strong>de entre as pessoas, desigual<strong>da</strong>de<br />
que aumentou com o surgimento <strong>da</strong> meta-<br />
lurgia e <strong>da</strong> agricultura, fazen<strong>do</strong> com que os<br />
que adquiriram maiores posses passassem<br />
a <strong>do</strong>minar e submeter os mais pobres, o<br />
que acarretou miséria, intrigas, conflitos e<br />
paixões, tornan<strong>do</strong> os homens avaros, licen-<br />
ciosos e perversos. Nesse momento, os indi-<br />
víduos, para o retorno à paz social, trataram<br />
de reunir suas forças, arman<strong>do</strong> um poder<br />
supremo que a to<strong>do</strong>s defenderia, através<br />
de um contrato que tinha duas proposições<br />
essenciais: ca<strong>da</strong> um põe em comum sua<br />
pessoa e to<strong>do</strong> o seu poder sob a suprema<br />
direção <strong>da</strong> vontade geral; e ca<strong>da</strong> um, obe-<br />
decen<strong>do</strong> a essa vontade geral, não obedece<br />
senão a si mesmo.<br />
Vistas, ain<strong>da</strong> que de forma perfunc-<br />
tória, to<strong>da</strong>s essas teorias, mostra-se difícil<br />
chegar a uma conclusão, especialmente em<br />
virtude de não se haver alcança<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong>, a<br />
descoberta de algum convincente vestígio<br />
arqueológico, e, por isso mesmo, talvez es-<br />
teja correto o entendimento de que, desde<br />
que alcançou a capaci<strong>da</strong>de de raciocinar, o<br />
homem sempre esteve pertencen<strong>do</strong> a um<br />
grupo social, que, mesmo de forma simples,<br />
governava-se a si mesmo.
O Egito era uma<br />
nação salutar,<br />
em que a vi<strong>da</strong><br />
era regi<strong>da</strong> pelo<br />
rio Nilo, cujas<br />
enchentes<br />
fertilizavam<br />
a terra e na<br />
qual to<strong>do</strong>s, <strong>da</strong><br />
nobreza <strong>ao</strong>s<br />
mais pobres,<br />
passavam a vi<strong>da</strong><br />
preocupa<strong>do</strong>s<br />
com a morte.<br />
A evolução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
Afinal, supera<strong>da</strong>s as noções preliminares<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, cumpre passar à análise <strong>do</strong> de-<br />
senvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na história <strong>da</strong>s<br />
civilizações humanas, desde o seu início<br />
conheci<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a noção jurídica estava<br />
mistura<strong>da</strong> principalmente com a religião<br />
e os governantes eram filhos ou escolhi<strong>do</strong>s<br />
pelos deuses, até a situação <strong>do</strong> momento<br />
presente.<br />
Para sistematizar esse exame, convém<br />
que se siga uma ordem de desenvolvimento,<br />
com base no desenrolar histórico, como a<br />
que segue:<br />
1. Esta<strong>do</strong>s teocráticos<br />
1.1 Egito<br />
O estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> civilização Egípcia, na ver-<br />
<strong>da</strong>de, é uma fascinante descoberta de uma<br />
riquíssima e interessante civilização que,<br />
hoje, apesar de muito analisa<strong>da</strong> e <strong>da</strong> imensa<br />
quanti<strong>da</strong>de de relíquias e registros encon-<br />
tra<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong> inúmeros mistérios,<br />
como, por exemplo, as técnicas de mumifi-<br />
cação e construção <strong>da</strong>s pirâmides.<br />
Pelo que se tem descoberto, os primei-<br />
ros grupos humanos começaram a residir<br />
às margens <strong>do</strong> rio Nilo por volta <strong>do</strong> ano<br />
4.000 antes de Cristo, forman<strong>do</strong> pequenas<br />
comuni<strong>da</strong>des agrícolas rudimentares de-<br />
nomina<strong>da</strong>s nomos, os quais, cerca de 500<br />
anos depois, foram reuni<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is rei-<br />
nos: o Alto e o Baixo Egito, os quais foram<br />
uni<strong>do</strong>s por volta de 3.200 a. C. por Menés,<br />
chefe <strong>do</strong> reino <strong>do</strong> Alto Egito, que foi o pri-<br />
meiro faraó.<br />
Em segui<strong>da</strong>, uni<strong>do</strong>, o Egito se desen-<br />
volveu, começan<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> denomina<strong>do</strong><br />
pelos historia<strong>do</strong>res de dinástico, no qual<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
nasceram, cresceram e foram destruí<strong>do</strong>s<br />
três impérios, conheci<strong>do</strong>s como antigo,<br />
médio e novo, épocas de construções e con-<br />
quistas, acréscimos territoriais e derrotas,<br />
de famosos faraós, como Queóps, Quéfren<br />
e Miquerinos, que edificaram as famosas<br />
pirâmides que têm seus nomes; Amósis I,<br />
que expulsou os invasores hicsos, e Ramsés<br />
II, quan<strong>do</strong> o Egito alcançou o auge de seu<br />
poderio militar.<br />
O esplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Egito, afinal, chegou a<br />
seu término no ano 525 a. C. quan<strong>do</strong>, em<br />
virtude <strong>da</strong>s lutas internas e <strong>do</strong> surgimento<br />
de poderosos inimigos, os persas, coman<strong>da</strong>-<br />
<strong>do</strong>s pelo rei Cambises, foi definitivamente<br />
conquista<strong>do</strong>.<br />
O Egito era uma nação salutar, em que<br />
a vi<strong>da</strong> era regi<strong>da</strong> pelo rio Nilo, cujas en-<br />
chentes fertilizavam a terra e na qual to<strong>do</strong>s,<br />
<strong>da</strong> nobreza <strong>ao</strong>s mais pobres, passavam a<br />
vi<strong>da</strong> preocupa<strong>do</strong>s com a morte.<br />
Em sua religião, os egípcios acredi-<br />
tavam que havia uma vi<strong>da</strong> pós a morte, a<br />
qual era eterna e na qual a existência seria<br />
melhor ou pior dependen<strong>do</strong> de suas condi-<br />
ções de preservar seus corpos e bens mais<br />
valiosos, mesmo que as pessoas precisassem<br />
passar a vi<strong>da</strong> trabalhan<strong>do</strong> para tal fim. Por<br />
esse motivo é que foram construí<strong>da</strong>s as pi-<br />
râmides, que na<strong>da</strong> mais eram que túmulos<br />
onde eram guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s os corpos <strong>do</strong>s mortos<br />
e os bens que lhes eram mais caros.<br />
Os deuses principais eram o casal Osiris<br />
e Isis, seu filho Horus, Set, o deus <strong>do</strong> mal,<br />
Amon-Rá e, durante pouco tempo, Aton, o<br />
círculo <strong>do</strong> Sol, cujo culto foi estabeleci<strong>do</strong>,<br />
com primazia sobre os outros, pelo faraó<br />
Amenófis IV.<br />
Em sua organização política, o Egito<br />
era um esta<strong>do</strong> totalitário, com to<strong>do</strong> o povo<br />
123
124<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
sujeito à vontade suprema <strong>do</strong> faraó, pro-<br />
prietário <strong>da</strong>s terras e com poder de vi<strong>da</strong> e de<br />
morte sobre to<strong>do</strong>s, com autori<strong>da</strong>de recebi<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>s deuses, de quem era descendente.<br />
Socialmente, o Esta<strong>do</strong> Egípcio era di-<br />
vidi<strong>do</strong> em o faraó e sua família, os nobres,<br />
os sacer<strong>do</strong>tes, o povo e os escravos, fruto<br />
<strong>da</strong>s conquistas e que não tinham qualquer<br />
direito, sen<strong>do</strong> que o faraó governava com a<br />
colaboração <strong>da</strong> nobreza e trabalho burocrá-<br />
tico <strong>do</strong>s escribas.<br />
O território egípcio, com base na região<br />
em volta <strong>do</strong> rio Nilo, tinha a sua extensão<br />
variável de acor<strong>do</strong> com as vitórias e derrotas<br />
militares.<br />
Semelhantemente, o povo egípcio era<br />
aumenta<strong>do</strong> e diminuí<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> com o<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong>s guerras <strong>da</strong>s quais participava.<br />
1.2. Civilizações mesopotâmicas<br />
Em ver<strong>da</strong>de, não existiu um Esta<strong>do</strong><br />
Mesopotâmico, mas, com o nome de Civili-<br />
zações Mesopotâmicas, diversos povos que<br />
habitaram, na i<strong>da</strong>de antiga, a área compre-<br />
endi<strong>da</strong> entre os rios Tigre e Eufrates, na<br />
região onde hoje se situa o Iraque, povos<br />
distintos, contu<strong>do</strong>, que tiveram muitos pon-<br />
tos em comum. Tais civilizações podem ser<br />
dividi<strong>da</strong>s nas seguintes:<br />
Sumérios: provenientes <strong>do</strong> planalto<br />
<strong>do</strong> hoje Irã, os povos sumérios se fixaram<br />
na Caldéia, sul <strong>da</strong> mesopotâmia, por volta<br />
de 3.500 a. C., onde fun<strong>da</strong>ram diversas<br />
ci<strong>da</strong>des-esta<strong>do</strong>s, entre as quais as mais im-<br />
portantes foram Ur, Uruk, Nipur e Lagash,<br />
sen<strong>do</strong> que ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de-esta<strong>do</strong> era governa<strong>da</strong><br />
por reis absolutos denomina<strong>do</strong>s patesi, que<br />
viviam em constante guerra entre si pela<br />
supremacia regional.<br />
Acadianos: povos que, por volta de<br />
2.300 a. C., sob o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> rei Sargão I,<br />
conquistaram to<strong>da</strong> a região <strong>do</strong> sul <strong>da</strong> Meso-<br />
potâmia.<br />
Primeiro Império Babilônio: por volta<br />
de 2.000 a. C., depois de séculos de lutas<br />
entre os povos que habitavam aquela re-<br />
gião, os habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Babilônia<br />
alcancaram a hegemonia e <strong>do</strong>minaram to<strong>da</strong><br />
a Mesopotâmia, além de regiões próximas.<br />
Dentre seus reis merece destaque Hamu-<br />
rabi, o qual elaborou o famoso código que<br />
tem seu nome, o qual compilava centenas<br />
de leis, algumas provenientes <strong>do</strong> direito <strong>do</strong>s<br />
sumérios e entre as quais merece destaque a<br />
Lei de Talião, que estabelecia que as penas<br />
deviam ser exatamente iguais <strong>ao</strong>s delitos<br />
cometi<strong>do</strong>s.<br />
Império Assírio: em cerca de 1.300 a.<br />
C., os assírios, que há séculos habitavam o<br />
norte <strong>da</strong> Mesopotâmia, começaram o seu<br />
perío<strong>do</strong> de conquistas, chegan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minar<br />
to<strong>da</strong> a região e reinos próximos. Sua princi-<br />
pal característica era ser um povo guerreiro<br />
e extremamente cruel, que atemorizava os<br />
inimigos pelo costume de cortar as orelhas<br />
e narizes e vazar os olhos <strong>do</strong>s adversários<br />
venci<strong>do</strong>s. Sua primeira capital foi Assur,<br />
seguin<strong>do</strong>-se Nínive e seus reis mais impor-<br />
tantes foram Sargão II, Tiglatfalasar, Sena-<br />
queribe e Assurbanipal.<br />
Segun<strong>do</strong> Império Babilônico: depois de<br />
700 anos de <strong>do</strong>mínio assírio, que alcançou<br />
o reino de Israel e se acha registra<strong>do</strong> na<br />
Bíblia, esse império foi derrota<strong>do</strong> pelos cal-<br />
deus, coman<strong>da</strong><strong>do</strong>s por Nabopolassar, o qual<br />
deu início <strong>ao</strong> Segun<strong>do</strong> Império Babilônico,<br />
retornan<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de de Babilônia a ser a<br />
capital <strong>da</strong> Mesopotâmia, hegemonia, porém<br />
de curta duração, eis que esse império so-<br />
mente durou até 539 a . C., quan<strong>do</strong> foi con-
To<strong>do</strong>s esses<br />
reinos<br />
mesopotâmicos<br />
tinham em<br />
comum uma<br />
socie<strong>da</strong>de<br />
estratifica<strong>da</strong>,<br />
sen<strong>do</strong> a base<br />
forma<strong>da</strong> pelos<br />
escravos,<br />
prisioneiros de<br />
guerra.<br />
quista<strong>do</strong> pelos persas lidera<strong>do</strong>s por Ciro.<br />
To<strong>do</strong>s esses reinos mesopotâmicos<br />
tinham em comum uma socie<strong>da</strong>de estratifi-<br />
ca<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> a base forma<strong>da</strong> pelos escravos,<br />
prisioneiros de guerra, fican<strong>do</strong> um pouco<br />
mais acima os camponeses, em segui<strong>da</strong> os<br />
artesãos, comerciantes, militares e funcio-<br />
nários públicos. O topo era ocupa<strong>do</strong> pela<br />
aristocracia, composta <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes e fa-<br />
miliares <strong>do</strong> rei.<br />
Politicamente, os reinos de tal região<br />
eram monarquias absolutas, com o rei man-<br />
ten<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o poder, absoluto, em suas mãos<br />
e as pessoas <strong>do</strong> povo não ten<strong>do</strong> qualquer<br />
direito frente <strong>ao</strong>s governantes, nem, con-<br />
soante no Egito, qualquer possibili<strong>da</strong>de de<br />
interferir nas funções de governo.<br />
O território base era a região entre os<br />
rios Tigre e Eufrates, porém, sen<strong>do</strong> povos<br />
guerreiros, essa base era amplia<strong>da</strong> ou redu-<br />
zi<strong>da</strong> dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> de suas guer-<br />
ras costumeiras, o mesmo ocorren<strong>do</strong> quanto<br />
a sua população.<br />
1.3. Israel<br />
Segun<strong>do</strong> a Bíblia, maior fonte de infor-<br />
mações sobre essa nação, o povo hebreu era<br />
constituí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s descendentes de Abraão e<br />
tinha o nome de seu neto Jacó, modifica<strong>do</strong><br />
por Deus para Israel, filho de Isaque. Tais<br />
descendentes, em número de 70 pessoas,<br />
não conta<strong>da</strong>s as mulheres, teriam se des-<br />
loca<strong>do</strong> para o Egito, em virtude de uma<br />
grande fome e ali teriam se multiplica<strong>do</strong><br />
até que, em razão desse número eleva<strong>do</strong>,<br />
foram leva<strong>do</strong>s à escravidão, que perdurou<br />
por 400 anos.<br />
Após o decurso desse tempo, Deus se<br />
apresentou perante Moisés, filho a<strong>do</strong>tivo<br />
de uma filha <strong>do</strong> faraó, e, dizen<strong>do</strong> chamar-se<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Jeová, que quer dizer “Eu Sou”, man<strong>do</strong>u<br />
que Moisés liderasse o povo hebreu de volta<br />
para a “terra prometi<strong>da</strong>”, Canaã, o que aca-<br />
bou se concretizan<strong>do</strong> já sob a liderança de<br />
Josué, após a morte de Moisés e depois de<br />
40 anos de peregrinação no deserto e depois<br />
de receberem as leis de Deus, sintetiza<strong>da</strong>s<br />
nos dez man<strong>da</strong>mentos.<br />
Chegan<strong>do</strong> à terra prometi<strong>da</strong>, os isra-<br />
elitas a conquistaram, vencen<strong>do</strong> os povos<br />
cananeus e seguin<strong>do</strong> as ordenações divinas,<br />
primeiramente dirigi<strong>do</strong>s pelos juízes, líde-<br />
res escolhi<strong>do</strong>s por Deus para a liderança<br />
em situações difíceis, merecen<strong>do</strong> menção<br />
Sansão e Débora, encerran<strong>do</strong> esse ciclo<br />
com Samuel, seguin<strong>do</strong>-se a fase <strong>do</strong>s reis, a<br />
qual teve início com Saul, continuou com<br />
o famoso Davi, o qual venceu o gigante<br />
Golias, que começou novo perío<strong>do</strong> de con-<br />
quistas militares, e, posteriormente, seu<br />
filho Salomão, de sabe<strong>do</strong>ria incomparável<br />
e sob a liderança de quem a nação alcançou<br />
sua maior expansão e riqueza e quan<strong>do</strong> foi<br />
construí<strong>do</strong> o primeiro templo de Deus, na<br />
ci<strong>da</strong>de de Jerusalém, capital <strong>do</strong> reino.<br />
Após a morte de Salomão aconteceu<br />
a divisão <strong>do</strong> reino em <strong>do</strong>is, Judá e Israel,<br />
aquele governa<strong>do</strong> por Roboão, filho de Sa-<br />
lomão e este por Jeroboão, divisão que se<br />
manteve até que o reino de Israel foi con-<br />
quista<strong>do</strong> pelos assírios coman<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo rei<br />
Sargão II, manten<strong>do</strong>-se Judá independente<br />
até que foi conquista<strong>do</strong> pelos babilônios<br />
dirigi<strong>do</strong>s por Nabuco<strong>do</strong>nosor.<br />
Venci<strong>do</strong>s os babilônios pelos persas, os<br />
hebreus, já como tributários destes, foram<br />
autoriza<strong>do</strong>s a voltar para sua terra, ocasião<br />
em que, sob a direção de Esdras e Nee-<br />
mias, construíram novo templo, voltan<strong>do</strong><br />
a viver na Palestina, contu<strong>do</strong>, sempre sob<br />
125
126<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> potência <strong>do</strong>minante: persas,<br />
macedônios e sucessores, culminan<strong>do</strong> com<br />
os romanos.<br />
Já sob o <strong>do</strong>mínio de Roma, os judeus se<br />
rebelaram, sen<strong>do</strong>, to<strong>da</strong>via, sucessivamente<br />
derrota<strong>do</strong>s, até que, sob o coman<strong>do</strong> de Tito,<br />
filho <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Vespasiano e futuro im-<br />
pera<strong>do</strong>r, foram venci<strong>do</strong>s no ano 70, sen<strong>do</strong><br />
Jerusalém destruí<strong>da</strong> e o terceiro templo,<br />
reconstruí<strong>do</strong> por Herodes, inteiramente<br />
queima<strong>do</strong>, inician<strong>do</strong>-se a diáspora, com a<br />
dispersão <strong>do</strong>s judeus por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, até<br />
1948, quan<strong>do</strong> foi recria<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> de Israel.<br />
Os hebreus formaram uma nação sin-<br />
gular, cuja característica principal era o<br />
monoteísmo, <strong>ao</strong> contrário de to<strong>do</strong>s os povos<br />
vizinhos. E, ain<strong>da</strong> mais, o seu Deus não<br />
tinha representação física.<br />
Politicamente, os hebreus, como as de-<br />
mais nações <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de antiga, formavam um<br />
esta<strong>do</strong> teocrático, ou seja, o governante deti-<br />
nha autori<strong>da</strong>de decorrente <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, e,<br />
por conseguinte, essa autori<strong>da</strong>de não podia<br />
ser contesta<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> que o povo não tinha<br />
participação na administração pública. Dife-<br />
rentemente <strong>da</strong>s demais nações, entretanto, o<br />
governante não era descendente <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de.<br />
Ademais, o governante também estava<br />
sujeito às leis de Deus, devi<strong>da</strong>mente registra-<br />
<strong>da</strong>s na “Torá” e, portanto, o seu poder não era,<br />
ou pelo menos não devia ser, absoluto.<br />
Finalmente, to<strong>do</strong>s os hebreus, além de<br />
deveres, tinham, outrossim, direitos, até os<br />
escravos.<br />
Grécia<br />
Como se sabe, na ver<strong>da</strong>de não existiu<br />
um Esta<strong>do</strong> Grego, mas diversas ci<strong>da</strong>des-es-<br />
ta<strong>do</strong>, polis, ou seja, ci<strong>da</strong>des que formavam,<br />
por si só, um Esta<strong>do</strong> independente e sobe-<br />
rano em relação <strong>ao</strong>s demais, sen<strong>do</strong> que tais<br />
ci<strong>da</strong>des se juntavam apenas para a prática<br />
de esportes, nos famosos jogos olímpicos<br />
e em caso de guerras. De to<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong>des,<br />
to<strong>da</strong>via, merecem menção especial Atenas<br />
e Esparta, as duas rivais sobre as quais se<br />
fun<strong>do</strong>u a civilização grega.<br />
Esparta, localiza<strong>da</strong> na região sul <strong>do</strong> Pelo-<br />
poneso, às margens <strong>do</strong> rio Eurotas, também<br />
chama<strong>da</strong> de Lacedemônia, era forma<strong>da</strong>, ori-<br />
ginariamente, <strong>do</strong> povo dório, que invadiu a<br />
região por volta <strong>do</strong> século IX a . C.<br />
Em sua estrutura social, Esparta era<br />
constituí<strong>da</strong> <strong>do</strong>s descendentes <strong>do</strong>s dórios,<br />
que eram os únicos considera<strong>do</strong>s esparta-<br />
nos, <strong>do</strong>s periecos, pequenos comerciantes<br />
sem grande expressão social e política,<br />
talvez descendentes <strong>do</strong>s povos existentes na<br />
região antes <strong>da</strong> invasão dórica e <strong>do</strong>s hilotas,<br />
os escravos, sem qualquer direito, os quais<br />
eram geralmente inimigos venci<strong>do</strong>s.<br />
Esparta era um Esta<strong>do</strong> extremamente<br />
militarista, em que to<strong>do</strong>s os homens livres<br />
eram sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e estavam sempre prontos<br />
para a guerra, situação que perdurava até<br />
que completassem 60 anos de i<strong>da</strong>de. Carrei-<br />
ra militar que tinha início <strong>ao</strong>s sete anos de<br />
i<strong>da</strong>de. Assim, luxo e conforto eram abomi-<br />
na<strong>do</strong>s, <strong>da</strong> mesma forma que os outros exces-<br />
sos, até relativos <strong>ao</strong> falar.<br />
Em vista de tal filosofia, a eugenia era<br />
integralmente pratica<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> mortas <strong>ao</strong><br />
nascer as crianças porta<strong>do</strong>ras de deficiências.<br />
Pouco antes <strong>da</strong> invasão dórica à região<br />
sul <strong>do</strong> Peloponeso, o povo jônico, <strong>ao</strong> norte,<br />
fun<strong>do</strong>u a ci<strong>da</strong>de de Atenas. Esta tinha a<br />
sua socie<strong>da</strong>de composta pelos eupátri<strong>da</strong>s,<br />
grandes proprietários de terras, paralianos,<br />
comerciantes <strong>do</strong> litoral, diacrianos, comer-<br />
ciantes, metecos, os estrangeiros, e os escra-
Platão afirma<br />
que o Esta<strong>do</strong> é<br />
necessário em<br />
virtude <strong>da</strong> falta<br />
de autarquia<br />
de que sofre<br />
aquele que,<br />
isola<strong>da</strong>mente,<br />
não é capaz<br />
de prover<br />
to<strong>da</strong>s as suas<br />
necessi<strong>da</strong>des.<br />
vos, destituí<strong>do</strong>s de quaisquer direitos.<br />
Se em Esparta tu<strong>do</strong> era volta<strong>do</strong> para<br />
a preparação militar, em Atenas a arte era<br />
particularmente valoriza<strong>da</strong>, haven<strong>do</strong> gran-<br />
des obras arquitetônicas e esculturas.<br />
Diferentemente <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s teocráticos,<br />
as ci<strong>da</strong>des gregas eram democracias, na<br />
ver<strong>da</strong>de, até o berço <strong>da</strong> idéia desta forma de<br />
governo, muito embora não de uma pers-<br />
pectiva moderna, pois não era o povo que<br />
decidia as questões públicas, escolhia os<br />
governantes e votava as leis, porém somente<br />
os ci<strong>da</strong>dãos, quais sejam os homens livres<br />
nasci<strong>do</strong>s nas respectivas ci<strong>da</strong>des.<br />
Os governantes, outrossim, não eram<br />
descendentes ou escolhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s deuses, mas<br />
ci<strong>da</strong>dãos eleitos por seus pares, ten<strong>do</strong> car-<br />
gos com duração limita<strong>da</strong> no tempo.<br />
A filosofia, como ciência volta<strong>da</strong> à bus-<br />
ca <strong>da</strong>s explicações para as causas primeiras,<br />
teve origem na Grécia antiga, ou, pelo me-<br />
nos foi lá que se desenvolveu espetacular-<br />
mente, poden<strong>do</strong>-se mencionar os filósofos<br />
sofistas, epicuristas, he<strong>do</strong>nistas, estóicas,<br />
Sócrates, que voltou seu olhar para o estu<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> homem, ten<strong>do</strong> por lema o famoso “co-<br />
nhece-te a ti mesmo”. Interessan<strong>do</strong> a nosso<br />
estu<strong>do</strong> o seu ensinamento de que se devia<br />
obedecer a to<strong>da</strong>s as leis <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, boas ou<br />
más, sen<strong>do</strong> que o bom ci<strong>da</strong>dão devia obede-<br />
cer a estas para que o mau ci<strong>da</strong>dão não fosse<br />
leva<strong>do</strong> a desobedecer aquelas. Ensinamento<br />
que seguiu até à própria morte, toman<strong>do</strong> a<br />
cicuta que fora condena<strong>do</strong> a beber, muito<br />
embora tivesse oportuni<strong>da</strong>de de fugir.<br />
Quanto à problemática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, con-<br />
tu<strong>do</strong>, deve-se reparar em Platão, que, em<br />
sua obra República, forneceu sua concepção<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> Giorgio Del Vecchio [1979:39],<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
para Platão o Esta<strong>do</strong> é o homem em grande,<br />
ou seja: um organismo completo, em que se<br />
encontra reproduzi<strong>da</strong> a mais perfeita uni<strong>da</strong>-<br />
de. Constituí<strong>do</strong> por indivíduos, soli<strong>da</strong>mente<br />
estrutura<strong>do</strong>, semelha um corpo forma<strong>do</strong> por<br />
vários órgãos, cujo conjunto lhe torna pos-<br />
sível a vi<strong>da</strong>. No indivíduo, como no Esta<strong>do</strong>,<br />
deve reinar aquela harmonia que se obtém<br />
pela virtude.<br />
Ain<strong>da</strong> na República, Platão traça um<br />
paralelo entre o homem e o Esta<strong>do</strong>, des-<br />
cen<strong>do</strong> a um exame minucioso e chegan<strong>do</strong> à<br />
conclusão de que um indivíduo é forma<strong>do</strong><br />
de três partes: a razão, que governa; a cora-<br />
gem, que atua; e os senti<strong>do</strong>s, que obedecem.<br />
Semelhantemente, o Esta<strong>do</strong> é forma<strong>do</strong> de<br />
três classes: os sábios, que devem governar;<br />
os guerreiros, para atuar na defesa <strong>do</strong> Es-<br />
ta<strong>do</strong>; e, os artesãos e camponeses, a quem<br />
caberia obedecer.<br />
Seguin<strong>do</strong> nessa contraposição entre<br />
indivíduo e Esta<strong>do</strong>, Platão afirma que o<br />
Esta<strong>do</strong> é necessário em virtude <strong>da</strong> falta de<br />
autarquia de que sofre aquele que, isola<strong>da</strong>-<br />
mente, não é capaz de prover to<strong>da</strong>s as suas<br />
necessi<strong>da</strong>des, enquanto que este é perfeito,<br />
pois bastante em si mesmo.<br />
Nessa glorificação <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, Platão<br />
outorgou <strong>ao</strong> mesmo o poder absoluto, cain<strong>do</strong><br />
tu<strong>do</strong> debaixo de sua competência e interven-<br />
ção e não ten<strong>do</strong> o indivíduo qualquer direito<br />
e chegan<strong>do</strong> <strong>ao</strong> ponto de defender a supressão<br />
<strong>da</strong> família e <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, susten-<br />
tan<strong>do</strong> a comuni<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s bens e <strong>da</strong>s mulheres<br />
pelos sábios e pelos guerreiros.<br />
Já Aristóteles, discípulo de Platão, con-<br />
siderava o Esta<strong>do</strong> uma necessi<strong>da</strong>de, por ser<br />
uma perfeita união orgânica, ten<strong>do</strong> como<br />
objetivo a virtude e a felici<strong>da</strong>de universal,<br />
enquanto que o homem é um animal políti-<br />
127
128<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
co, ou seja, um ser eminentemente gregário,<br />
destina<strong>do</strong> a viver em socie<strong>da</strong>de.<br />
Ain<strong>da</strong> consoante Giorgio Del Vecchio<br />
{1979:45], Aristóteles ensinava que: “Assim<br />
como não é possível conceber uma mão viva<br />
separa<strong>da</strong> <strong>do</strong> corpo, assim também, não se<br />
pode conceber o indivíduo sem o Esta<strong>do</strong>.”<br />
Ao contrário de seu mestre, Aristóteles<br />
não pregava a extinção <strong>da</strong> família, conside-<br />
ran<strong>do</strong> que a união de várias é que formava<br />
o Esta<strong>do</strong>. Também defenden<strong>do</strong> a proprie-<br />
<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>.<br />
Semelhantemente, de mo<strong>do</strong> a justificar<br />
a escravatura, Aristóteles primeiramente<br />
afirmou que algumas pessoas nasceram<br />
incapazes de governar, não ten<strong>do</strong> condições<br />
de serem livres, diversamente de outras,<br />
e, portanto, aqueles deveriam ser escra-<br />
vos. Ao la<strong>do</strong> dessa explicação, Aristóteles<br />
apresentou outra, mas pragmática, dizen<strong>do</strong><br />
que o Esta<strong>do</strong> precisava de uma classe de<br />
homens que pudessem ser coloca<strong>do</strong>s para<br />
as ocupações físicas, a fim de que as outras<br />
classes tivessem condições de se dedicar às<br />
ativi<strong>da</strong>des superiores, acrescentan<strong>do</strong> que<br />
tal situação poderia ser resolvi<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> a<br />
lançadeira e a agulha trabalhassem sem a<br />
intervenção de alguém sobre o tear.<br />
Finalmente, foi Aristóteles o precursor <strong>da</strong><br />
teoria <strong>da</strong> tripartição <strong>do</strong>s poderes estatais, exe-<br />
cutivo, legislativo e judiciário, posteriormente<br />
desenvolvi<strong>da</strong> por Locke e Montesquieu, con-<br />
cluin<strong>do</strong> que, independente de ser o governo<br />
de um só, de alguns ou de to<strong>do</strong>s, bom governo<br />
é o que é exerci<strong>do</strong> para o bem de to<strong>do</strong>s.<br />
Roma<br />
Após o declínio <strong>da</strong> Grécia, causa<strong>do</strong><br />
pelas guerras internas e ten<strong>do</strong> curta dura-<br />
ção a hegemonia macedônica, em virtude<br />
<strong>da</strong>s conten<strong>da</strong>s advin<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> morte<br />
de Alexandre, surgiu no horizonte Roma,<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por volta <strong>do</strong> século VIII a. C. e cuja<br />
história pode ser dividi<strong>da</strong> em três fases:<br />
reina<strong>do</strong>, república e império.<br />
A primeira, <strong>do</strong>s primórdios de Roma,<br />
tinha como forma de governo a monarquia,<br />
sen<strong>do</strong> o rei detentor de poder quase absolu-<br />
to, apenas atenua<strong>do</strong> pelo poder de veto <strong>do</strong>s<br />
anciãos integrantes <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>.<br />
Já a segun<strong>da</strong>, de início <strong>do</strong> poderio ex-<br />
terno, foi assola<strong>da</strong> por lutas internas entre<br />
patrícios, detentores de to<strong>do</strong>s os direitos e<br />
<strong>do</strong>s plebeus, que não possuíam terras e não<br />
podiam influir nos negócios de Esta<strong>do</strong>.<br />
A terceira fase, afinal, foi a <strong>da</strong> máxima<br />
expansão e conseqüente declínio <strong>do</strong> poderio<br />
romano.<br />
Se o esplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s gregos aconteceu<br />
quanto à filosofia, os romanos não chega-<br />
ram a fazer-lhes frente nessa área, pelo con-<br />
trário, tornaram-se segui<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s correntes<br />
filosóficas importa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Grécia, mere-<br />
cen<strong>do</strong> realce, por interessar <strong>ao</strong> estu<strong>do</strong>, a<br />
filosofia estóica, que pregava que o homem<br />
sábio é aquele que venceu to<strong>da</strong>s as paixões<br />
e se livrou <strong>da</strong>s influências externas, a qual<br />
influenciou inúmeros homens ilustres,<br />
como Cícero e o impera<strong>do</strong>r Marco Aurélio,<br />
e a filosofia he<strong>do</strong>nística, que estatuía que o<br />
único bem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é o prazer.<br />
Essas duas correntes filosóficas tiveram<br />
notável desenvolvimento prático na vi<strong>da</strong><br />
romana, em especial na época <strong>do</strong> império,<br />
quan<strong>do</strong>, sujeitos a perder a vi<strong>da</strong> a qualquer<br />
momento, <strong>da</strong><strong>do</strong> o poder absoluto e caráter<br />
instável de vários de seus governantes, os<br />
romanos, ou se mantinham indiferentes<br />
à sorte, viven<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia como se fosse o<br />
último e desprezan<strong>do</strong> a própria vi<strong>da</strong> e a <strong>do</strong>s<br />
Se o esplen<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong>s gregos<br />
aconteceu<br />
quanto à<br />
filosofia, os<br />
romanos não<br />
chegaram a<br />
fazer-lhes frente<br />
nessa área,<br />
pelo contrário,<br />
tornaram-se<br />
segui<strong>do</strong>res<br />
<strong>da</strong>s correntes<br />
filosóficas<br />
importa<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
Grécia
outros, ou entregavam-se totalmente <strong>ao</strong>s<br />
prazeres físicos, o que é bem representa<strong>do</strong><br />
pelo costume de fazer refeições, vomitar o<br />
alimento e novamente se alimentar.<br />
Assim, se no perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> república os<br />
ci<strong>da</strong>dãos tinham participação na vi<strong>da</strong> pú-<br />
blica, muito embora o sena<strong>do</strong> fosse vitalício<br />
e não eleito, no império, com o governante<br />
concentran<strong>do</strong> em suas mãos to<strong>do</strong> o poder,<br />
inclusive o de vi<strong>da</strong> e morte, passan<strong>do</strong> o<br />
sena<strong>do</strong> e as magistraturas a uma atuação<br />
meramente simbólica, o governo tornou-se<br />
despótico, até retornan<strong>do</strong> a uma feição te-<br />
ocrática, pois os impera<strong>do</strong>res se tornavam<br />
deuses e deveriam inclusive ser objeto de<br />
a<strong>do</strong>ração.<br />
Entretanto, mesmo conviven<strong>do</strong> com tal<br />
poder absoluto, Roma merece realce pelo<br />
notável impulso que deu <strong>ao</strong> direito, instru-<br />
mento regula<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s relações sociais <strong>da</strong>s<br />
pessoas, exceto os escravos, que eram consi-<br />
dera<strong>do</strong>s “res”, coisa e até <strong>da</strong>s pessoas para<br />
com o governo.<br />
Esta<strong>do</strong> feu<strong>da</strong>l<br />
Com a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> Império Romano <strong>do</strong><br />
Ocidente, em 476, os bárbaros completaram<br />
o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> continente europeu e come-<br />
çaram, gra<strong>da</strong>tivamente, a misturar os seus<br />
costumes e leis com as normas romanas,<br />
muito mais desenvolvi<strong>da</strong>s e com as regras<br />
cristãs, pois o cristianismo já tinha toma<strong>do</strong><br />
conta de Roma.<br />
Tal mistura acarretava a coexistência,<br />
simultânea, <strong>do</strong> evoluí<strong>do</strong> direito romano,<br />
de normas como a que proibia a prisão por<br />
dívi<strong>da</strong>s, consoante a célebre lei Poetelia<br />
Papiria, <strong>do</strong> preceito cristão relativo <strong>ao</strong> amor<br />
fraternal, com regras como o julgamento<br />
pelas ordálias, ou juízo de Deus.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Como os bárbaros não formavam um só<br />
povo, mas vários, go<strong>do</strong>s, francos, norman-<br />
<strong>do</strong>s, vân<strong>da</strong>los etc., o império romano foi<br />
fraciona<strong>do</strong> em diversos Esta<strong>do</strong>s, os quais<br />
não tinham um poder central forte, porém<br />
tinham o território dividi<strong>do</strong> em feu<strong>do</strong>s,<br />
ca<strong>da</strong> um ten<strong>do</strong> um chefe, que possuía pouco<br />
contato e submissão <strong>ao</strong> governo central,<br />
reunin<strong>do</strong>-se normalmente apenas para as<br />
guerras entre os Esta<strong>do</strong>s e, posteriormente,<br />
contra os invasores mouros.<br />
Entretanto, com a crescente conversão<br />
<strong>do</strong>s bárbaros <strong>ao</strong> cristianismo, a Igreja Cató-<br />
lica começou a se impor e, então, a figurar<br />
como força até nas questões internas e ex-<br />
ternas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s.<br />
Tal atuação se fun<strong>da</strong>mentava filosofica-<br />
mente nas teses <strong>da</strong>s duas escolas mais desta-<br />
cáveis <strong>da</strong> época: a Patrística e a Escolástica.<br />
A primeira teve como expoente princi-<br />
pal Santo Agostinho, bispo de Hipona que,<br />
em sua obra monumental, De Civitate Dei,<br />
estabelece a distinção entre o Esta<strong>do</strong> terre-<br />
no, que corresponde <strong>ao</strong> reino <strong>da</strong> impie<strong>da</strong>de,<br />
societas impiorum, falho e distancia<strong>do</strong> de<br />
Deus, decorrente <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original de<br />
Adão, <strong>ao</strong> qual se seguiram os peca<strong>do</strong>s de<br />
to<strong>do</strong>s os homens, Esta<strong>do</strong> que, mesmo que<br />
tenha um objetivo louvável, a paz entre as<br />
pessoas e, nesse senti<strong>do</strong>, seja deriva<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
vontade de Deus e <strong>da</strong> natureza, acha-se<br />
sempre subordina<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> Celeste,<br />
Civitas Dei, a comunhão <strong>do</strong>s fiéis, que, no<br />
fim <strong>do</strong>s tempos, substituiria inteiramente o<br />
Esta<strong>do</strong> terreno.<br />
Assim, Santo Agostinho estatuiu que a<br />
Igreja Católica deveria ter primazia sobre<br />
os Esta<strong>do</strong>s Feu<strong>da</strong>is.<br />
Já a Escolástica teve como principal<br />
representante São Tomás de Aquino, cuja<br />
129
130<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
obra principal foi a Summa Theologiae, o<br />
qual asseverava que o Esta<strong>do</strong> é um produto<br />
natural e indispensável à satisfação <strong>da</strong>s ne-<br />
cessi<strong>da</strong>des humanas, deriva<strong>do</strong> <strong>da</strong> natureza<br />
social <strong>do</strong> homem e que existiria mesmo que<br />
Adão não tivesse peca<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> como fim a<br />
garantia <strong>da</strong> segurança de seus integrantes e<br />
promover o bem comum.<br />
Distinguin<strong>do</strong>-se, por conseguinte, de<br />
Santo Agostinho neste ponto, São Tomás<br />
com ele concor<strong>da</strong>va quanto à subordinação<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> à Igreja Católica, à qual devia ser<br />
obediente para se manter legítimo e ten<strong>do</strong><br />
o Papa, como vigário de Deus, o poder de<br />
punir os reis e de dispensar os súditos <strong>do</strong><br />
juramento de fideli<strong>da</strong>de <strong>ao</strong>s soberanos.<br />
Dessa forma, o Esta<strong>do</strong> feu<strong>da</strong>l se carac-<br />
terizava, principalmente, pela fraqueza <strong>do</strong><br />
poder central, com conseqüente fortale-<br />
cimento <strong>do</strong>s feu<strong>do</strong>s, em que o chefe tinha<br />
soberania sobre os bens e as pessoas exis-<br />
tentes em seus <strong>do</strong>mínios, sen<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong><br />
girava sobre a posse e a proprie<strong>da</strong>de de<br />
terras, <strong>da</strong>li decorren<strong>do</strong> as relações entre os<br />
chefes feu<strong>da</strong>is e os habitantes de suas terras,<br />
seus servos, a instabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fronteiras,<br />
decorrentes <strong>da</strong>s incessantes guerras entre os<br />
feu<strong>do</strong>s, e, a supremacia <strong>da</strong> Igreja Católica<br />
sobre as diversas nações.<br />
Esta<strong>do</strong> absolutista<br />
Ao final <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de média, as idéias que<br />
alicerçavam o Esta<strong>do</strong> Feu<strong>da</strong>l passaram a<br />
ser violentamente ataca<strong>da</strong>s, inicialmente no<br />
confronto entre guelfos e gibelinos, quan<strong>do</strong><br />
a supremacia estatal sobre a esfera eclesiás-<br />
tica foi defendi<strong>da</strong> especialmente por Dante<br />
Alighieri, situação que recrudesceu com a<br />
Reforma protestante.<br />
No mesmo diapasão, surgiu uma filosofia<br />
<strong>da</strong> supremacia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não somente sobre a<br />
Igreja Católica, porém, outrossim, sobre to<strong>da</strong>s<br />
as pessoas, merecen<strong>do</strong> menção especial Nico-<br />
lau Maquiavel e Thomaz Hobbes.<br />
O primeiro, em sua famosa obra, O<br />
príncipe, ain<strong>da</strong> hoje tão discuti<strong>da</strong> e que<br />
é considera<strong>da</strong> a base <strong>da</strong> ciência política,<br />
em seu senti<strong>do</strong> moderno, defendeu, sem<br />
qualquer consideração moral, que o líder<br />
político deveria praticar to<strong>da</strong>s as ações, sem<br />
preocupação se justas ou injustas, éticas ou<br />
antiéticas, exclusivamente com o propósito<br />
de alcançar o poder e mantê-lo, objetivan<strong>do</strong><br />
a libertação <strong>da</strong> Itália <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio estrangei-<br />
ro. Nesse senti<strong>do</strong>, afirmou que “o cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
maior de um príncipe deve ser o <strong>da</strong> manu-<br />
tenção <strong>do</strong> seu Esta<strong>do</strong>; os meios que ele utili-<br />
zar para esse fim serão sempre justifica<strong>do</strong>s<br />
e terão o louvor de to<strong>do</strong>s, porque o vulgo se<br />
deixa impressionar pelas aparências e pelos<br />
efeitos - e o vulgo é quem faz o mun<strong>do</strong>.”<br />
O surpreendente, portanto, nas teses<br />
de Maquiavel, não é nem o fato de consi-<br />
derar que, no que concerne à conquista e<br />
manutenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, os fins justificarem<br />
os meios, o que na<strong>da</strong> tinha de novo nos<br />
governos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mas o cinismo de apre-<br />
sentar as formas práticas de consecução de<br />
tal objetivo, haven<strong>do</strong> chega<strong>do</strong> <strong>ao</strong> ponto de<br />
afirmar, segun<strong>do</strong> cita<strong>do</strong> por Ernst Cassirer<br />
[1976:166 - 167]:<br />
“Um príncipe tem de saber ser bicho ou<br />
homem, consoante as ocasiões: e isto é-nos<br />
sugeri<strong>do</strong> pelos escritores antigos, que relatam<br />
terem Aquiles e outros príncipes si<strong>do</strong> envia-<br />
<strong>do</strong>s, a fim de serem educa<strong>do</strong>s, para junto <strong>do</strong><br />
centauro Quíron; e como o seu preceptor era<br />
meio homem e meio bicho, tiveram de ser en-<br />
sina<strong>do</strong>s a imitar ambas as naturezas, de tal<br />
mo<strong>do</strong> que uma não se podia conservar sem a
Hobbes<br />
afirmou que o<br />
homem, antes<br />
<strong>da</strong> criação <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, vivia<br />
na constante<br />
prática de<br />
violência<br />
contra os<br />
outros homens.<br />
outra. Portanto, porque é tão necessário para<br />
o príncipe aprender como deve algumas ve-<br />
zes fazer o papel de bicho, deve tomar como<br />
modelo o leão e a raposa: porque o leão não<br />
é suficientemente manhoso para se livrar <strong>da</strong>s<br />
serpentes e <strong>da</strong>s armadilhas e a raposa não é<br />
suficientemente forte para vencer o lobo; por<br />
conseguinte, ele deve ser uma raposa, a fim<br />
de descobrir as serpentes, e um leão, para que<br />
os lobos o temam.”<br />
No mesmo senti<strong>do</strong>, também consideran-<br />
<strong>do</strong> que as organizações políticas deveriam<br />
se basear na premissa de que os homens são<br />
fun<strong>da</strong>mentalmente maus, surgiu Hobbes,<br />
que afirmou que o homem, antes <strong>da</strong> criação<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, vivia na constante prática de<br />
violência contra os outros homens (homo<br />
homini lupus), haven<strong>do</strong>, por conseguinte,<br />
guerras por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s (bellum omnium<br />
contra omnes), o que teria leva<strong>do</strong> as pesso-<br />
as, para fazer cessar tal situação e alcançar<br />
a paz, a chegar a um pacto, que tinha a se-<br />
guinte fórmula:<br />
“Autorizo e transfiro a este homem ou assem-<br />
bléia de homens o meu direito de governar-<br />
me a mim mesmo, com a condição de que vós<br />
outros transfirais também a ele o vosso direi-<br />
to, e autorizeis to<strong>do</strong>s os seus atos nas mesmas<br />
condições como o faço.”<br />
Firma<strong>do</strong> esse pacto, que <strong>do</strong>tou poder a<br />
uma pessoa ou organismo para pacificar a<br />
convivência social, o ente cria<strong>do</strong> assumiria<br />
alcance absoluto e ilimita<strong>do</strong>, de mo<strong>do</strong> a<br />
cumprir suas funções.<br />
Alicerça<strong>do</strong> nessa filosofia e declinan<strong>do</strong><br />
o poder <strong>da</strong> Igreja Católica, o continente<br />
europeu viu surgirem diversos esta<strong>do</strong>s de<br />
formato absolutista, como Inglaterra, Fran-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
ça, Áustria, Rússia, etc., os quais tinham em<br />
comum o fato de serem monarquias, com<br />
soberanos, como retorno às civilizações <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de antiga, que detinham autori<strong>da</strong>de pro-<br />
veniente de Deus, como pessoas escolhi<strong>da</strong>s<br />
pela divin<strong>da</strong>de para governar, portanto,<br />
de poder central forte e indiviso, ou, pelo<br />
menos, inquestionavelmente superior <strong>ao</strong>s<br />
demais e com os governa<strong>do</strong>s destituí<strong>do</strong>s de<br />
qualquer direito frente <strong>ao</strong> poder público.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, o rei Luís XV, <strong>da</strong> França,<br />
afirmara: “nós não temos a nossa coroa<br />
senão de Deus e o direito de fazer as leis<br />
nos pertence sem co-participação ou depen-<br />
dência” e, o rei Carlos I, <strong>da</strong> Inglaterra: “a<br />
liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> povo consiste nas leis que lhe<br />
assegurem a vi<strong>da</strong> e os bens próprios, nunca<br />
no direito de governar por si mesmo. Este<br />
direito é <strong>do</strong> soberano”.<br />
Ademais, encontran<strong>do</strong>-se o Esta<strong>do</strong> fir-<br />
ma<strong>do</strong> na pessoa <strong>do</strong> monarca, “L’État c’est<br />
moi”, disse o rei francês Luís XIV, tu<strong>do</strong>, até<br />
as guerras, estava relaciona<strong>do</strong>, diretamente,<br />
às vontades <strong>do</strong> soberano, que guerreava ou<br />
fazia a paz com os outros Esta<strong>do</strong>s de acor<strong>do</strong><br />
com seus interesses particulares. Os gover-<br />
na<strong>do</strong>s, em especial os que não constituíam a<br />
nobreza, não tinham seus interesses leva<strong>do</strong>s<br />
em conta e nem como influenciar as deci-<br />
sões políticas.<br />
Esta<strong>do</strong> liberal<br />
Reagin<strong>do</strong> contra esse poder absoluto,<br />
causa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> miséria de tantos, surgiram<br />
diversos filósofos, que pugnavam pela li-<br />
ber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem e seu direito de reger o<br />
próprio destino.<br />
Nesse diapasão, encontramos John<br />
Locke, o qual defendia a limitação <strong>da</strong> auto-<br />
ri<strong>da</strong>de <strong>do</strong> rei pela soberania popular e afir-<br />
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132<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
mava que, no caso de conflito entre o poder<br />
governante e o povo, a vontade deste é que<br />
deveria prevalecer, uma vez que é a única<br />
fonte <strong>do</strong> poder.<br />
Locke acreditava, como Hobbes, que o<br />
Esta<strong>do</strong> fora cria<strong>do</strong> por meio de um contrato,<br />
porém, <strong>ao</strong> contrário <strong>da</strong>quele, considerava<br />
que o homem, antes que fosse firma<strong>do</strong> o pac-<br />
to, por conseguinte, no esta<strong>do</strong> de natureza,<br />
não vivia em guerra permanente, porém, era<br />
possui<strong>do</strong>r de razão e tinha seus impulsos re-<br />
frea<strong>do</strong>s por sentimentos de equi<strong>da</strong>de, poden-<br />
<strong>do</strong>, assim, conservar a sua liber<strong>da</strong>de se assim<br />
o quisesse. Contu<strong>do</strong>, faltan<strong>do</strong> uma autori<strong>da</strong>-<br />
de para garantir o exercício <strong>do</strong>s direitos de li-<br />
ber<strong>da</strong>de, os homens concor<strong>da</strong>ram em retirar<br />
uma parte de seus direitos e concedê-los <strong>ao</strong><br />
Esta<strong>do</strong> para que este pudesse superintender<br />
a ordem civil, julgar e punir os transgresso-<br />
res e promover a defesa externa.<br />
Assim, ten<strong>do</strong> a autori<strong>da</strong>de governa-<br />
mental atribuições defini<strong>da</strong>s por meio <strong>do</strong><br />
contrato, caso exorbitasse o seu poder, esta-<br />
ria violan<strong>do</strong> o pacto e o povo reassumiria a<br />
soberania originária, poden<strong>do</strong> se sublevar.<br />
Também se insurgin<strong>do</strong> contra a onipo-<br />
tência estatal, surgiu depois Jean Jacques<br />
Russeau, que, consideran<strong>do</strong>, outrossim, que<br />
o Esta<strong>do</strong> teve criação contratual, uma vez<br />
que o homem, que, no esta<strong>do</strong> de natureza,<br />
vivia em perfeita felici<strong>da</strong>de, acabou por<br />
desenvolver a inteligência, a linguagem e<br />
outras facul<strong>da</strong>des e, com o surgimento <strong>da</strong><br />
metalurgia e <strong>da</strong> agricultura, veio a desigual-<br />
<strong>da</strong>de, sen<strong>do</strong> que os que adquiriram maiores<br />
posses passaram a submeter os mais pobres,<br />
geran<strong>do</strong> as paixões e violências. Para recu-<br />
perar a situação de paz anterior, então, os<br />
homens reuniram suas forças, arman<strong>do</strong> um<br />
poder supremo que a to<strong>do</strong>s defenderia, fir-<br />
man<strong>do</strong> um contrato social, com o seguinte<br />
enuncia<strong>do</strong> principal:<br />
“ca<strong>da</strong> um põe em comum sua pessoa e to<strong>do</strong> o<br />
seu poder sob a suprema direção <strong>da</strong> vontade<br />
geral; e ca<strong>da</strong> um, obedecen<strong>do</strong> a essa vontade<br />
geral, não obedece senão a si mesmo”.<br />
Sen<strong>do</strong> produto de um acor<strong>do</strong> de vonta-<br />
des e ten<strong>do</strong> como objetivo a promoção <strong>do</strong><br />
bem comum, segun<strong>do</strong> Russeau o Esta<strong>do</strong><br />
somente é suportável quan<strong>do</strong> é justo. Não o<br />
sen<strong>do</strong>, o povo tem o direito de substituí-lo,<br />
refazen<strong>do</strong> o pacto.<br />
Finalmente, de suma importância para o<br />
estabelecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na forma moder-<br />
na foi Charles de Secon<strong>da</strong>t, barão de Mon-<br />
tesquieu, o qual, em sua obra Espírito <strong>da</strong>s<br />
leis, distinguiu três formas de governo: re-<br />
pública, que tem por pressuposto a devoção<br />
<strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos <strong>ao</strong> bem público, e, portanto, seu<br />
princípio particular é a virtude; monarquia,<br />
que tem por base o amor <strong>do</strong>s privilégios e<br />
<strong>da</strong>s distinções, sen<strong>do</strong> seu princípio básico a<br />
honra; e despotismo, que se fun<strong>da</strong> na força e<br />
tem por sustentáculo o me<strong>do</strong>.<br />
Montesquieu, ain<strong>da</strong>, <strong>ao</strong> estu<strong>da</strong>r o siste-<br />
ma político inglês, observou que ali existia<br />
um regime de autêntica liber<strong>da</strong>de política,<br />
acreditan<strong>do</strong> que isso se devia <strong>ao</strong> princípio<br />
<strong>da</strong> divisão <strong>do</strong>s poderes, levan<strong>do</strong>-o a afirmar<br />
que: “para que se não possa abusar <strong>do</strong> poder<br />
urge que o poder detenha o poder” e, recu-<br />
peran<strong>do</strong> as idéias de Aristóteles e Locke,<br />
defendeu que o poder estatal fosse dividi<strong>do</strong><br />
em três, o legislativo, que elaboraria as leis,<br />
o executivo, que as executaria, e, judicial,<br />
que as faria cumprir, sustentan<strong>do</strong> que tais<br />
poderes deveriam ser independentes uns<br />
<strong>do</strong>s outros e confia<strong>do</strong>s a pessoas diferentes,<br />
consoante ocorria na Inglaterra.<br />
Sen<strong>do</strong> produto<br />
de um acor<strong>do</strong><br />
de vontades<br />
e ten<strong>do</strong> como<br />
objetivo a<br />
promoção <strong>do</strong><br />
bem comum,<br />
o Esta<strong>do</strong><br />
somente é<br />
suportável<br />
quan<strong>do</strong> é justo.
Assim, com essa base filosófica e leva-<br />
<strong>do</strong> pela revolta <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong> população<br />
<strong>do</strong>s países despóticos contra a situação de<br />
miséria econômica em que vivia e contra<br />
os privilégios de alguns poucos, o alicerce<br />
<strong>do</strong> absolutismo foi sen<strong>do</strong> corroí<strong>do</strong> e, pri-<br />
meiramente na Inglaterra <strong>do</strong> século XVII,<br />
<strong>da</strong> revolta <strong>do</strong> Parlamento, sob a liderança<br />
de Cromwell, contra o absolutismo tenta<strong>do</strong><br />
pelo rei Carlos I, revolta vitoriosa e que,<br />
após a breve ditadura <strong>do</strong> próprio Cromwell,<br />
com seus princípios cristaliza<strong>do</strong>s nas De-<br />
clarações de Direitos de 1679, 1689 e 1701,<br />
alcançou uma importante redução <strong>do</strong> poder<br />
<strong>do</strong>s soberanos, que ain<strong>da</strong> hoje se mantém.<br />
Em segui<strong>da</strong>, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Amé-<br />
rica <strong>do</strong> Norte, influencia<strong>do</strong>s pelos mesmos<br />
princípios filosóficos e pela rejeição <strong>ao</strong>s<br />
novos impostos cria<strong>do</strong>s pela coroa inglesa,<br />
revoltaram-se contra o <strong>do</strong>mínio britânico e,<br />
valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> direito de rebelião prega<strong>do</strong><br />
por Locke, chegaram à independência polí-<br />
tica, estatuin<strong>do</strong>, em sua Constituição Fede-<br />
ral, o que segue:<br />
“Cremos axiomáticas as seguintes ver<strong>da</strong>-<br />
des: que os homens foram cria<strong>do</strong>s iguais;<br />
que lhes conferiu o Cria<strong>do</strong>r certos direitos<br />
inalienáveis, entre os quais o de vi<strong>da</strong>, o de<br />
liber<strong>da</strong>de e o de procurarem a própria feli-<br />
ci<strong>da</strong>de; que para a segurança desses direitos<br />
se constituíram entre os homens governos,<br />
cujos justos poderes emanam <strong>do</strong> consen-<br />
timento <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>s; que sempre que<br />
qualquer forma de governa ten<strong>da</strong> a destruir<br />
esses fins assiste <strong>ao</strong> povo o direito de mudá-<br />
la ou aboli-la, instituin<strong>do</strong> um novo governo<br />
cujos princípios básicos e organização de<br />
poderes obedeçam às normas que lhe pare-<br />
çam mais próprias a promover a segurança<br />
e a felici<strong>da</strong>de gerais.”<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Acompanhan<strong>do</strong> os exemplos <strong>da</strong> Ingla-<br />
terra e, especialmente, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />
a França, onde o monarca ain<strong>da</strong> reinava<br />
absoluto e, <strong>da</strong><strong>da</strong> a crise econômica <strong>do</strong> Es-<br />
ta<strong>do</strong>, se não causa<strong>da</strong>, pelo menos agrava<strong>da</strong><br />
pelos imensos gastos <strong>da</strong> corte, o que acarre-<br />
tou fome e miséria para a imensa maioria<br />
<strong>da</strong> população, que compunha o Terceiro<br />
Esta<strong>do</strong>, detentor apenas de obrigações, fi-<br />
can<strong>do</strong> quase to<strong>do</strong>s os direitos, muitos ain<strong>da</strong><br />
feu<strong>da</strong>is, e, to<strong>do</strong>s os privilégios, para os in-<br />
tegrantes <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong>is esta<strong>do</strong>s, nobreza<br />
e clero, que constituíam menos de dez por<br />
cento <strong>da</strong> população, o povo, depois de con-<br />
voca<strong>do</strong>, juntamente com a nobreza e o clero,<br />
para uma assembléia <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s, convoca-<br />
<strong>da</strong> pelo rei Luís XVI para aprovar um au-<br />
mento de impostos, acabou por se revoltar<br />
<strong>ao</strong> ver nega<strong>do</strong>s seus pleitos pela melhoria<br />
de sua situação e após o rei haver volta<strong>do</strong><br />
atrás e dissolvi<strong>do</strong> a assembléia, geran<strong>do</strong> a<br />
Revolução Francesa, de 1789, que nivelou<br />
os três esta<strong>do</strong>s, acabou com os privilégios de<br />
classes e proclamou o princípio <strong>da</strong> sobera-<br />
nia nacional, estatuin<strong>do</strong> o seguinte:<br />
“to<strong>do</strong> governo que não provém <strong>da</strong> vontade<br />
nacional é tirania; a nação é soberana e sua<br />
soberania é una, indivisível, inalienável e<br />
imprescritível; o Esta<strong>do</strong> é uma organização<br />
artificial, precária, resultante de um pacto<br />
nacional voluntário, sen<strong>do</strong> o seu destino o<br />
de servir o homem; o pacto social se rompe<br />
quan<strong>do</strong> uma parte lhe viola as cláusulas;<br />
não há governo legítimo sem o consentimento<br />
popular; a lei é a expressão <strong>da</strong> vontade geral;<br />
o homem é livre, poden<strong>do</strong> fazer ou deixar de<br />
fazer o que quiser, contanto que a sua ação<br />
ou omissão não seja defini<strong>da</strong> legalmente<br />
como crime; a liber<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um limita-<br />
se pela igual liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s outros; to<strong>do</strong>s são<br />
133
134<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
iguais perante a lei; o governo se destina à<br />
manutenção <strong>da</strong> ordem jurídica e não in-<br />
tervirá no campo <strong>da</strong>s relações priva<strong>da</strong>s; e,<br />
o governo é limita<strong>do</strong> por uma constituição<br />
escrita, que tem como partes essenciais a<br />
tripartição <strong>do</strong> poder estatal e a declaração<br />
<strong>do</strong>s direitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>do</strong> homem.”<br />
Esses princípios tiveram imensa acolhi-<br />
<strong>da</strong> pelo mun<strong>do</strong>, firman<strong>do</strong>-se como postula-<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s democráticos e, em teoria,<br />
até nos esta<strong>do</strong>s totalitários <strong>do</strong>s séculos se-<br />
guintes, ain<strong>da</strong> que, mesmo na França, a prá-<br />
tica <strong>do</strong> respeito <strong>ao</strong>s direitos individuais não<br />
tenha si<strong>do</strong> manti<strong>da</strong> durante a fase <strong>do</strong> terror,<br />
em que muitos eram julga<strong>do</strong>s e condena<strong>do</strong>s<br />
com reduzidíssima oportuni<strong>da</strong>de de defesa e<br />
sem que tivessem pratica<strong>do</strong> qualquer crime.<br />
Ocorre, entretanto, que, representan<strong>do</strong><br />
o ápice <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de individual e, na teo-<br />
ria, perfeitamente justos, tais princípios<br />
liberais, em especial, o que estabelecia que<br />
cabia <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> unicamente a manutenção<br />
<strong>da</strong> ordem pública, afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> campo <strong>da</strong>s<br />
relações priva<strong>da</strong>s, acabaram por acarretar a<br />
exploração <strong>do</strong> homem pelo próprio homem,<br />
eis que colocavam no mesmo nível pessoas<br />
que, por se acharem desiguala<strong>da</strong>s econo-<br />
micamente, na prática não estavam em<br />
condições iguais para contratarem entre si.<br />
Deficiência que foi claramente evidencia<strong>da</strong><br />
quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> Revolução Industrial.<br />
Essa revolução, que para Alvin Toffler,<br />
representou uma Segun<strong>da</strong> On<strong>da</strong> a varrer a<br />
humani<strong>da</strong>de, modificou, profun<strong>da</strong>mente<br />
a socie<strong>da</strong>de de então, tornan<strong>do</strong>-a mais ur-<br />
bana, desestruturan<strong>do</strong> a família, crian<strong>do</strong><br />
novas relações sociais e, com a implantação<br />
<strong>da</strong>s máquinas nas empresas, que acarretou<br />
grande quanti<strong>da</strong>de de desemprega<strong>do</strong>s, os<br />
quais tiveram suas funções assumi<strong>da</strong>s pelas<br />
máquinas, fez com que o trabalho humano<br />
passasse a ser negocia<strong>do</strong> como merca<strong>do</strong>ria,<br />
sujeito à lei <strong>da</strong> oferta e <strong>da</strong> procura.<br />
Porém, como a oferta era maior que<br />
a procura, <strong>da</strong><strong>da</strong> a grande quanti<strong>da</strong>de de<br />
desemprega<strong>do</strong>s, quem conseguisse um em-<br />
prego era obriga<strong>do</strong> a aceitar as condições<br />
impostas pelo patrão, receben<strong>do</strong> salários<br />
irrisórios, trabalhan<strong>do</strong> mais de 15 horas por<br />
dia, sem dia de descanso e férias.<br />
Ademais, não havia amparo para o tra-<br />
balha<strong>do</strong>r <strong>do</strong>ente e nem para o i<strong>do</strong>so.<br />
Esta<strong>do</strong> comunista<br />
Como reação a essa situação de aban-<br />
<strong>do</strong>no, surgiram diversos movimentos, de<br />
várias feições e objetivos, in<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anar-<br />
quistas, que pugnavam pela destruição<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a, inicialmente, os comunistas<br />
que, partin<strong>do</strong> de uma visão materialista<br />
<strong>da</strong> história, defendiam que o Esta<strong>do</strong> fora<br />
cria<strong>do</strong> originariamente como instrumento<br />
<strong>da</strong> opressão <strong>da</strong> classe <strong>do</strong>minante sobre as<br />
classes trabalha<strong>do</strong>ras.<br />
Assim é que Friedrich Engels, afirmava<br />
[1977:193 - 194]:<br />
“Como o Esta<strong>do</strong> nasceu <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />
conter o antagonismo <strong>da</strong>s classes, e como, <strong>ao</strong><br />
mesmo tempo, nasceu em meio <strong>ao</strong> conflito<br />
delas, é, por regra geral, o Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> classe<br />
mais poderosa, <strong>da</strong> classe economicamente<br />
<strong>do</strong>minante, classe que, por intermédio dele,<br />
se converte também em classe politicamente<br />
<strong>do</strong>minante e adquire novos meios para a<br />
repressão e exploração <strong>da</strong> classe oprimi<strong>da</strong>.<br />
Assim, o Esta<strong>do</strong> antigo foi, sobretu<strong>do</strong>, o Es-<br />
ta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s senhores de escravos para manter<br />
os escravos subjuga<strong>do</strong>s; o Esta<strong>do</strong> feu<strong>da</strong>l foi o<br />
órgão de que se valeu a nobreza para manter
A <strong>do</strong>utrina<br />
comunista<br />
preceituava o<br />
materialismo<br />
histórico,<br />
ou seja, que<br />
o curso <strong>da</strong><br />
história sempre<br />
foi determina<strong>do</strong><br />
pelo la<strong>do</strong><br />
econômico,<br />
representa<strong>do</strong><br />
pelo controle<br />
<strong>do</strong>s meios de<br />
produção.<br />
a sujeição <strong>do</strong>s servos e camponeses depen-<br />
dentes; e o moderno Esta<strong>do</strong> representativo é<br />
o instrumento de que se serve o capital para<br />
explorar o trabalho assalaria<strong>do</strong>.” Acrescen-<br />
tan<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que “o Esta<strong>do</strong> não tem exis-<br />
ti<strong>do</strong> eternamente. Houve socie<strong>da</strong>des que se<br />
organizaram sem ele, não tiveram a menor<br />
noção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ou de seu poder. Ao chegar<br />
a certa fase <strong>do</strong> desenvolvimento econômico,<br />
que estava necessariamente liga<strong>da</strong> à divisão<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em classes, essa divisão tornou<br />
o Esta<strong>do</strong> uma necessi<strong>da</strong>de. Estamos agora<br />
nos aproximan<strong>do</strong>, com rapidez, de uma fase<br />
de desenvolvimento <strong>da</strong> produção em que a<br />
existência dessas classes não apenas deixou<br />
de ser uma necessi<strong>da</strong>de, mas até se converteu<br />
num obstáculo à produção mesma. As classes<br />
vão desaparecer, e de maneira tão inevitável<br />
como no passa<strong>do</strong> surgiram. Com o desapare-<br />
cimento <strong>da</strong>s classes, desaparecerá inevitavel-<br />
mente o Esta<strong>do</strong>. A socie<strong>da</strong>de, reorganizan<strong>do</strong><br />
de uma forma nova a produção, na base de<br />
uma associação livre de produtores iguais,<br />
man<strong>da</strong>rá to<strong>da</strong> a máquina <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para o<br />
lugar que lhe há de corresponder: o museu<br />
de antigui<strong>da</strong>des, <strong>ao</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> roca de fiar e <strong>do</strong><br />
macha<strong>do</strong> de bronze”.<br />
Por conseguinte, a <strong>do</strong>utrina comunista,<br />
arquiteta<strong>da</strong> por Marx e Engels, preceituava<br />
o materialismo histórico, ou seja, que o cur-<br />
so <strong>da</strong> história sempre foi determina<strong>do</strong> pelo<br />
la<strong>do</strong> econômico, representa<strong>do</strong> pelo controle<br />
<strong>do</strong>s meios de produção; que o Esta<strong>do</strong> foi<br />
constituí<strong>do</strong> pelas classes mais fortes, para<br />
a manutenção de sua <strong>do</strong>minação; que essa<br />
situação perduraria até que, revolta<strong>da</strong>s, as<br />
classes trabalha<strong>do</strong>ras, o proletaria<strong>do</strong>, as-<br />
sumissem o poder e, então, o Esta<strong>do</strong> seria<br />
extinto e as pessoas viveriam em perfeita<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
harmonia. Revolta que estaria determina<strong>da</strong><br />
a acontecer, impreterivelmente.<br />
Após o levante popular ocorri<strong>do</strong> no iní-<br />
cio de 1917, causa<strong>do</strong> pela crise social e eco-<br />
nômica reinante na Rússia, agrava<strong>da</strong> pela<br />
participação desse país na Primeira Guerra<br />
Mundial e as sucessivas derrotas em bata-<br />
lhas contra a Alemanha, que levou <strong>ao</strong> poder<br />
o parti<strong>do</strong> menchevique, o chefe <strong>do</strong> governo<br />
Kerenski, socialista modera<strong>do</strong>, resolveu<br />
continuar a participação russa na Primeira<br />
Guerra Mundial, fato que, explora<strong>do</strong> pelos<br />
radicais bolcheviques, acarretou a eclosão<br />
<strong>da</strong> revolução de outubro <strong>do</strong> mesmo ano,<br />
quan<strong>do</strong> os bolcheviques empolgaram o po-<br />
der, sob a direção de Vladimir Ilitch Ulia-<br />
nov, conheci<strong>do</strong> como Lenin.<br />
Alcançan<strong>do</strong> o poder e já se denominan-<br />
<strong>do</strong> de parti<strong>do</strong> comunista, os bolcheviques<br />
fizeram um acor<strong>do</strong> de paz em separa<strong>do</strong> com<br />
a Alemanha e começaram a implantação<br />
<strong>da</strong>s idéias de Marx, acaban<strong>do</strong> com a pro-<br />
prie<strong>da</strong>de imobiliária priva<strong>da</strong>, dissolven<strong>do</strong><br />
a estrutura estatal então existente e estabe-<br />
lecen<strong>do</strong> a divisão <strong>da</strong> administração pública<br />
em soviets, em to<strong>do</strong>s os níveis estatais e<br />
profissionais.<br />
Como os mencheviques e os partidários<br />
<strong>do</strong> czar Nicolau II, deposto e depois morto,<br />
aliaram-se e desencadearam uma guerra<br />
civil, com a participação de forças estran-<br />
geiras, foi cria<strong>do</strong> o exército vermelho, sob a<br />
chefia de Trotsky, que acabou por alcançar<br />
a vitória.<br />
Ao mesmo tempo foi estabeleci<strong>da</strong> a es-<br />
tatização <strong>da</strong> economia, controle estatal de<br />
to<strong>do</strong>s os meios de produção e distribuição,<br />
criação de uma burocracia partidária que se<br />
inseriu em to<strong>da</strong>s as esferas políticas e o pla-<br />
nejamento central <strong>da</strong> economia, e, começou<br />
135
136<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
o terror, com a prisão, julgamento sumário<br />
e execução de to<strong>do</strong>s os adversários <strong>do</strong>s<br />
comunistas, bem como <strong>do</strong>s pequenos pro-<br />
prietários de terras, os kulaks, terror que se<br />
recrudesceu após a morte de Lenin, quan<strong>do</strong><br />
Josef Vessarianovitch Djugachivili, conheci-<br />
<strong>do</strong> como Stalin, alcançou o poder máximo.<br />
Sob a liderança de Stalin, a Rússia<br />
obteve um grande desenvolvimento indus-<br />
trial, derrotou a Alemanha na Segun<strong>da</strong><br />
Guerra Mundial e chegou a rivalizar com<br />
os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na disputa pela lideran-<br />
ça política mundial. Entretanto, as perse-<br />
guições políticas e religiosas, com a morte<br />
de milhares de pessoas, a imensa interfe-<br />
rência <strong>da</strong> polícia política em to<strong>da</strong>s as áreas<br />
e criação de campos de concentração, os<br />
famosos gulags, para onde foram leva<strong>do</strong>s<br />
milhares de russos, continuaram ferozmen-<br />
te, somente diminuin<strong>do</strong> após a morte de<br />
Stalin em 1953.<br />
Essa hipertrofia <strong>do</strong> aparelho estatal,<br />
frontalmente contrária às teses marxistas,<br />
acarretou, também, o surgimento de uma<br />
burocracia poderosa, forma<strong>da</strong> nos quadros<br />
<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> comunista e que acabou se cons-<br />
tituin<strong>do</strong> em uma classe <strong>do</strong>minante e cheia<br />
de privilégios, a nomenklatura, um contra-<br />
senso em uma socie<strong>da</strong>de dita sem classes.<br />
A empolgação pela implantação <strong>do</strong> co-<br />
munismo na Rússia levou a sua difusão por<br />
outros países e, mesmo haven<strong>do</strong> finalmente<br />
fracassa<strong>do</strong> naquela nação, hoje são comu-<br />
nistas, pelo menos em tese, também China,<br />
Vietnan, Coréia <strong>do</strong> Norte e Cuba, apesar de<br />
que to<strong>do</strong>s, com exceção <strong>da</strong> Coréia <strong>do</strong> Norte,<br />
que padece de sérios problemas econômi-<br />
cos presentemente, com forte aplicação de<br />
princípios neoliberais, conforme veremos<br />
futuramente.<br />
Esta<strong>do</strong> fascista<br />
Como reação às tristes conseqüências<br />
sociais <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> liberal e contra a <strong>do</strong>utrina<br />
comunista, surgiu, em diversos países, entre<br />
os quais o Brasil, um regime de hipertrofia<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não somente na prática, caso <strong>da</strong><br />
União Soviética, como na teoria, aponta<strong>do</strong><br />
como solução para to<strong>do</strong>s os males, especial-<br />
mente <strong>do</strong>s <strong>da</strong>s classes trabalha<strong>do</strong>ras, regime<br />
que na Itália, onde se iniciou, denominou-<br />
se de fascismo.<br />
Esse esta<strong>do</strong>, de cunho proclama<strong>da</strong>-<br />
mente nacionalista e inspira<strong>do</strong> no antigo<br />
império romano, alcançou o poder sob a<br />
liderança de Benito Mussolini, após a sua<br />
famosa marcha sobre Roma, na liderança de<br />
seus “camisas negras”, sua milícia popular,<br />
em 1922.<br />
Segun<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrina fascista, a nação<br />
não seria elemento integrante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
mas, criação deste, sen<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> um abso-<br />
luto e indivíduos e grupos o relativo. Assim,<br />
Mussolini proclamou sua máxima: “Tu<strong>do</strong><br />
dentro <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, na<strong>da</strong> fora <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, na<strong>da</strong><br />
contra o Esta<strong>do</strong>”. O Esta<strong>do</strong>, portanto, seria<br />
um fim em si mesmo.<br />
Pretenden<strong>do</strong> acabar com as lutas de<br />
classes, o Esta<strong>do</strong> fascista criou uma organi-<br />
zação sindicalista, o corporativismo, agru-<br />
pan<strong>do</strong> em corporações to<strong>do</strong>s os membros<br />
de ca<strong>da</strong> ramo de produção, as quais tinham<br />
representantes no poder legislativo nacio-<br />
nal, a Câmara Corporativa.<br />
Outrossim, foi manti<strong>da</strong> a proprie<strong>da</strong>de<br />
priva<strong>da</strong> <strong>do</strong>s meios de produção e distribui-<br />
ção, subordina<strong>da</strong>, to<strong>da</strong>via, <strong>ao</strong>s interesses<br />
sociais, passan<strong>do</strong> o trabalho a ser considera-<br />
<strong>do</strong> um dever social e sen<strong>do</strong> aboli<strong>do</strong> o direito<br />
de greve.<br />
Com a implantação <strong>do</strong> fascismo, a eco-
O Brasil sob a<br />
liderança de<br />
Getúlio Vargas,<br />
também teve<br />
implanta<strong>do</strong><br />
um regime de<br />
governo de<br />
características<br />
fortemente<br />
fascistas.<br />
nomia italiana se desenvolveu inicialmen-<br />
te, porém, a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Itália na Segun<strong>da</strong><br />
Guerra Mundial <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> Alemanha aca-<br />
bou por mergulhar o país em uma guerra<br />
civil e em uma situação de c<strong>ao</strong>s social, após<br />
a sucessão de derrotas militares.<br />
De forma semelhante, o Brasil, a partir<br />
de 1937, com o Esta<strong>do</strong> Novo, sob a liderança<br />
de Getúlio Vargas, também teve implanta<strong>do</strong><br />
um regime de governo de características<br />
fortemente fascistas, sen<strong>do</strong> também uma<br />
ditadura, com direitos individuais desres-<br />
peita<strong>do</strong>s, ausência de liber<strong>da</strong>de individual<br />
e de retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> participação popular nos<br />
negócios públicos, muito embora seus reco-<br />
nheci<strong>do</strong>s méritos no que concerne <strong>ao</strong>s direi-<br />
tos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />
Esta<strong>do</strong> nazista<br />
Com muitas semelhanças com o fascis-<br />
mo, nota<strong>da</strong>mente quanto à hipertrofia <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, surgiu na Alemanha o parti<strong>do</strong> na-<br />
cional socialista <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, o qual,<br />
sob o coman<strong>do</strong> de A<strong>do</strong>lf Hitler, seu carismá-<br />
tico líder, alcançou o poder em 1933.<br />
O nazismo tinha raízes que alcançavam<br />
o culto <strong>ao</strong> herói, de Thomas Carlyle, confor-<br />
me Ernst Cassirer [1976:210], que pregava a<br />
necessi<strong>da</strong>de de um homem forte, escolhi<strong>do</strong><br />
por Deus para liderar e governar o povo,<br />
afirman<strong>do</strong> que: “Aquele que deve ser o meu<br />
chefe, cuja vontade terá de ser mais alta <strong>do</strong><br />
que a minha, foi escolhi<strong>do</strong> para mim no Céu.<br />
Não se pode conceber outra liber<strong>da</strong>de que<br />
não seja a de obedecer <strong>ao</strong> escolhi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Céu”.<br />
Semelhantemente, <strong>ao</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> culto <strong>ao</strong><br />
herói, o nazismo pregava a superiori<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> raça ariana, alicerça<strong>do</strong> nas teses de Go-<br />
bineau, raça que tinha o direito e o dever de<br />
governar as demais.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Finalmente, o nazismo tinha como certo<br />
que to<strong>do</strong>s os males <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de em geral<br />
e <strong>do</strong>s alemães em particular se deviam <strong>ao</strong>s<br />
judeus, considera<strong>do</strong>s o câncer social e que<br />
devia ser extirpa<strong>do</strong> de qualquer forma, o<br />
que culminou nos campos de extermínio<br />
de Aushwitz, Bergen-Belsen, Dachau, Tre-<br />
blinka e Sobibor, entre outros, de triste me-<br />
mória, com seus milhões de mortos. Nesse<br />
senti<strong>do</strong>, afirmou Hitler, em seu livro Mein<br />
Kampf, como transcrito por Joachim Fest [<br />
1976:40 - 41]:<br />
“Depois que passei a me preocupar com essa<br />
questão e que minha atenção foi desperta<strong>da</strong><br />
para os judeus, vislumbrei Viena sob outro<br />
aspecto. Em to<strong>do</strong>s os lugares <strong>ao</strong>nde ia, via<br />
judeus e, quanto mais os contemplava, mais<br />
meus olhos aprendiam melhor a distingui-los<br />
claramente <strong>do</strong>s outros homens. O centro <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de e os quarteirões localiza<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> norte<br />
<strong>do</strong> canal <strong>do</strong> Danúbio formigavam especial-<br />
mente de uma população cuja aparência não<br />
apresentava nenhum traço de semelhança<br />
com a <strong>do</strong>s alemães... To<strong>do</strong>s esses detalhes já<br />
não se mostravam atraentes, e se experimen-<br />
tava até repugnância quan<strong>do</strong> se descobria<br />
subitamente sob a sua casca desagradável a<br />
sujeira moral <strong>do</strong> povo eleito. Por que nunca<br />
deixava de haver uma sujeira, qualquer<br />
que fosse, uma infâmia, sobretu<strong>do</strong> na vi<strong>da</strong><br />
cultural, <strong>da</strong> qual um judeu pelo menos não<br />
tivesse participa<strong>do</strong>? Tão logo se introduzia<br />
um bisturi num tumor desse tipo, podería-<br />
mos perceber, como um verme num cadáver<br />
putrefato, um pequeno semita ofusca<strong>do</strong> pela<br />
súbita clari<strong>da</strong>de... Eu passei pouco a pouco a<br />
odiá-los”.<br />
Além de reação <strong>ao</strong>s excessos <strong>do</strong> libera-<br />
lismo e oposição <strong>ao</strong> comunismo, o nazismo<br />
137
138<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
deveu seu êxito inicial <strong>ao</strong> esta<strong>do</strong> de miséria<br />
econômica <strong>da</strong> Alemanha decorrente <strong>da</strong><br />
grande depressão <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 30 e <strong>da</strong>s<br />
conseqüências <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Versalhes, im-<br />
posto à Alemanha em razão de sua derrota<br />
na Primeira Guerra Mundial.<br />
Sob o governo de seu herói e ten<strong>do</strong><br />
como lema a expressão: Ein Volk, ein Reich,<br />
ein Fueher, ou seja, “Um povo, um império<br />
e um líder”, o nazismo inicialmente recu-<br />
perou a auto-estima nacional, retirou o país<br />
<strong>da</strong> crise econômica, realizou grandes obras<br />
que reduziram o desemprego e fez com que<br />
a Alemanha voltasse a sua situação anterior<br />
de grande potência. Contu<strong>do</strong>, essa busca<br />
por um império, que lhe permitisse obter o<br />
que denominava de “espaço vital”, levou-a<br />
a desencadear a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,<br />
com seus milhões de mortos e a conseqüen-<br />
te destruição <strong>da</strong> Europa, além de ter gera<strong>do</strong><br />
uma ditadura cruel na própria nação.<br />
Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> bem-estar social<br />
A destruição de boa parte <strong>da</strong> Europa e<br />
o conseqüente me<strong>do</strong> <strong>do</strong> avanço <strong>do</strong> comu-<br />
nismo fizeram com que os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />
pusessem em prática um plano de aju<strong>da</strong><br />
econômica <strong>ao</strong>s países <strong>da</strong> parte ocidental <strong>da</strong><br />
Europa, chama<strong>do</strong> de Plano Marshall, o qual<br />
propiciou, em poucos anos, a recuperação<br />
econômica de tais nações.<br />
Esse desenvolvimento e o aumento<br />
<strong>da</strong> riqueza que o seguiu levaram a que os<br />
governos de diversos países europeus, geral-<br />
mente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s por parti<strong>do</strong>s ditos de cen-<br />
tro-esquer<strong>da</strong>, implantassem uma série de<br />
medi<strong>da</strong>s que visavam a proteção <strong>da</strong>s pessoas<br />
<strong>do</strong> nascimento à morte.<br />
Assim, foram estabeleci<strong>do</strong>s o salário-<br />
desemprego para os que não conseguiam<br />
arranjar trabalho; instituí<strong>da</strong> a educação<br />
gratuita em to<strong>do</strong>s os níveis; saúde também<br />
gratuita; pensão para os aposenta<strong>do</strong>s e para<br />
as mães solteiras, entre outras medi<strong>da</strong>s, que<br />
foram aplica<strong>da</strong>s especialmente na Dina-<br />
marca, Noruega, Suécia, Suíça, França, Ale-<br />
manha, Bélgica, Holan<strong>da</strong> e, durante algum<br />
tempo, na Inglaterra.<br />
Esses países, portanto, ten<strong>do</strong> a po-<br />
pulação tão bem cui<strong>da</strong><strong>da</strong> e se achan<strong>do</strong><br />
atravessan<strong>do</strong> época de grande progresso<br />
econômico, não somente passaram a atrair<br />
um eleva<strong>do</strong> número de imigrantes, prove-<br />
nientes de nações mais pobres, <strong>do</strong> terceiro<br />
mun<strong>do</strong>, como, também, levaram à difusão<br />
de suas maiores empresas pelo globo terres-<br />
tre, as ditas multinacionais, com tentáculos<br />
em diversas regiões.<br />
A elevação <strong>da</strong>s despesas públicas, to<strong>da</strong>-<br />
via, que gerou a elevação de impostos, alia-<br />
<strong>da</strong> <strong>ao</strong> acirramento <strong>da</strong> competição de preços<br />
entre as empresas por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, além<br />
<strong>do</strong>s baixos salários pagos <strong>ao</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />
<strong>da</strong>s filiais de tais empresas nos países po-<br />
bres, fizeram com que milhares de postos de<br />
trabalho fossem fecha<strong>do</strong>s nas nações desen-<br />
volvi<strong>da</strong>s, acarretan<strong>do</strong> um grande aumento<br />
no desemprego, com evidentes efeitos elei-<br />
torais.<br />
Dessa forma, começaram a tomar o po-<br />
der os parti<strong>do</strong>s que pregavam a necessi<strong>da</strong>de<br />
de retira<strong>da</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> esfera priva<strong>da</strong>,<br />
redução <strong>do</strong>s benefícios sociais e aumento<br />
<strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de nacional, o que levou <strong>ao</strong><br />
neoliberalismo.<br />
Esta<strong>do</strong> neoliberal<br />
Alicerça<strong>do</strong>s especialmente na pregação<br />
política <strong>da</strong> ex-primeira-ministra <strong>da</strong> Ingla-<br />
terra, Margaret Tatcher, os adeptos dessa
O<br />
<strong>Neoliberalismo</strong><br />
é capaz de<br />
renovar o velho<br />
defeito <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> Liberal,<br />
o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong><br />
intervenção<br />
nas relações<br />
entre<br />
emprega<strong>do</strong> e<br />
emprega<strong>do</strong>r.<br />
forma de Esta<strong>do</strong> afirmam que este não é<br />
capaz de intervir com sucesso na economia,<br />
é por demais perdulário, além de cria<strong>do</strong>r de<br />
privilégios injustificáveis para os integran-<br />
tes de sua burocracia.<br />
Assim, pregam a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mo-<br />
dernização <strong>da</strong>s empresas, representa<strong>da</strong> pela<br />
redução nos custos e retira<strong>da</strong>, total, <strong>do</strong> con-<br />
trole estatal <strong>do</strong>s meios de produção, portan-<br />
to, defenden<strong>do</strong> a privatização de to<strong>da</strong>s as<br />
empresas estatais, argumentan<strong>do</strong>, consoan-<br />
te André Franco Montoro Filho, nos Anais<br />
<strong>da</strong> XV Conferência Nacional <strong>da</strong> OAB [1995:<br />
251], o seguinte:<br />
“Democracia e Merca<strong>do</strong>, que têm como<br />
base comum a descentralização <strong>do</strong> processo<br />
de toma<strong>da</strong> de decisões, têm se mostra<strong>do</strong>,<br />
nesta metade <strong>do</strong> século XX, como a organi-<br />
zação política e econômica de maior suces-<br />
so, seja em termos de ren<strong>da</strong> per capita, seja<br />
em termos de distribuição de ren<strong>da</strong>. Esta é<br />
a grande lição <strong>da</strong> história atual, inclusive<br />
<strong>da</strong> Europa <strong>do</strong> Leste e a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> muro de<br />
Berlim.” Acrescentan<strong>do</strong>, a seguir: “Tornou-<br />
se imperativo, desta forma, uma profun<strong>da</strong><br />
reformulação em nossa organização política<br />
e econômica na direção de uma descentra-<br />
lização <strong>do</strong> processo de toma<strong>da</strong> de decisões.<br />
Isto significa a substituição <strong>do</strong> autorita-<br />
rismo pela democracia e <strong>do</strong> planejamento<br />
governamental centraliza<strong>do</strong> por instituições<br />
orienta<strong>da</strong>s pelo merca<strong>do</strong> (cliente).”<br />
Fortaleci<strong>do</strong>s pela constatação <strong>do</strong> colap-<br />
so <strong>do</strong> capitalismo no mun<strong>do</strong> e pela pujança<br />
<strong>da</strong> economia <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, os segui-<br />
<strong>do</strong>res dessa <strong>do</strong>utrina, entre os quais merece<br />
menção o deputa<strong>do</strong> Roberto Campos, con-<br />
seguiram que, após o restabelecimento <strong>da</strong><br />
democracia no Brasil, fossem eleitos presi-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
dentes <strong>da</strong> república, sucessivamente, adep-<br />
tos de tal corrente política, Fernan<strong>do</strong> Collor<br />
de Mello e Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so,<br />
os quais, no poder, passaram a atacar as<br />
normas constitucionais e legais contrárias<br />
<strong>ao</strong> neoliberalismo, buscan<strong>do</strong> e conseguin<strong>do</strong>,<br />
até o momento, retirar o Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> econo-<br />
mia, desregulamentar as relações de empre-<br />
go e reduzir os gastos públicos, para tanto<br />
acaban<strong>do</strong> com a estabili<strong>da</strong>de no emprego<br />
<strong>do</strong> servi<strong>do</strong>r público e com a obrigatorie<strong>da</strong>de<br />
de reajuste anual <strong>do</strong>s vencimentos, aumen-<br />
tan<strong>do</strong> os requisitos para a aposenta<strong>do</strong>ria de<br />
emprega<strong>do</strong>s públicos e priva<strong>do</strong>s.<br />
O <strong>Neoliberalismo</strong>, entretanto, <strong>ao</strong> repre-<br />
sentar a retoma<strong>da</strong> de muitos <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Liberal, especialmente no tocan-<br />
te à retira<strong>da</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio priva<strong>do</strong>,<br />
com endeusamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> como o<br />
supra-sumo <strong>da</strong> perfeição, e pugnan<strong>do</strong> pela<br />
desregulamentação <strong>da</strong>s relações de traba-<br />
lho, é capaz de renovar o velho defeito <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> Liberal, o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong> intervenção<br />
nas relações entre emprega<strong>do</strong> e emprega<strong>do</strong>r<br />
e, assim, <strong>da</strong><strong>da</strong> a superiori<strong>da</strong>de econômica<br />
deste, ensejar o massacre <strong>da</strong>quele, obriga<strong>do</strong><br />
a aceitar as condições estabeleci<strong>da</strong>s pelo<br />
patrão, ain<strong>da</strong> mais que o desenvolvimento<br />
tecnológico é causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> fechamento de<br />
grande número de postos de trabalho.<br />
Por sinal, o desemprego gera<strong>do</strong> pela<br />
globalização <strong>da</strong> economia é ain<strong>da</strong> mais<br />
perverso em nosso país, em que o seguro-<br />
desemprego dura apenas poucos meses, <strong>ao</strong><br />
contrário até <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, paradig-<br />
ma maior <strong>do</strong> neoliberalismo.<br />
Por fim, a reforma <strong>do</strong> texto constitucio-<br />
nal no que diz respeito à seguri<strong>da</strong>de social<br />
tende a acarretar um sério problema para<br />
os trabalha<strong>do</strong>res rurais e para os que traba-<br />
139
140<br />
A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />
lham no setor informal. É que, passan<strong>do</strong> a<br />
vigorar a exigência de tempo de contribui-<br />
ção para a aposenta<strong>do</strong>ria, como está propos-<br />
to, tais trabalha<strong>do</strong>res, que normalmente não<br />
contribuem e nunca contribuíram, jamais<br />
terão direito a aposenta<strong>do</strong>ria.<br />
Conclusão<br />
Em ver<strong>da</strong>de, conforme visto, o desenrolar, na<br />
história humana, <strong>da</strong>s diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de<br />
Esta<strong>do</strong> evidencia que sua sucessão nem sempre<br />
significou um progresso, <strong>do</strong> ponto de vista <strong>da</strong><br />
possibili<strong>da</strong>de de escolha <strong>do</strong>s governantes, <strong>da</strong><br />
limitação <strong>do</strong> poder destes e <strong>da</strong> atuação estatal<br />
para redução <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des entre os inte-<br />
grantes <strong>da</strong> população. Ao contrário, o Esta<strong>do</strong><br />
hebreu, em que rei e súditos tinham seus<br />
direitos e deveres bem defini<strong>do</strong>s e registra<strong>do</strong>s<br />
na Torá, era bem superior, nesses aspectos, <strong>ao</strong><br />
Esta<strong>do</strong> imperial romano, onde os impera<strong>do</strong>res<br />
faziam o que queriam, sem qualquer limitação,<br />
ten<strong>do</strong> o poder de vi<strong>da</strong> e morte sobre to<strong>do</strong>s.<br />
Semelhantemente, no Esta<strong>do</strong> absolutis-<br />
ta o poder <strong>do</strong>s monarcas era quase ilimita-<br />
<strong>do</strong>, excessivamente superior <strong>ao</strong> poder exer-<br />
ci<strong>do</strong> pelos governantes na Grécia antiga.<br />
Do mesmo mo<strong>do</strong>, o nazismo, o fascismo<br />
e o comunismo, em que os governantes eram<br />
quase a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>s como deuses, conforme acon-<br />
tecia com os faraós, e nos quais o povo em<br />
geral pouco mais podia fazer <strong>do</strong> que obedecer<br />
às determinações superiores, e, na prática, em<br />
na<strong>da</strong> interferiam na escolha <strong>do</strong>s líderes, de<br />
forma alguma eram mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de Esta<strong>do</strong><br />
superiores <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> liberal no quesito liber-<br />
<strong>da</strong>de individual, muito embora efetivamente o<br />
superassem no que diz respeito <strong>ao</strong> oferecimen-<br />
to de condições mínimas de saúde e educação<br />
para to<strong>do</strong>s.<br />
O neoliberalismo, contu<strong>do</strong>, principalmen-<br />
te na forma que está sen<strong>do</strong> aplica<strong>da</strong> no Brasil,<br />
tem suas peculiari<strong>da</strong>des.<br />
A primeira, diz respeito <strong>ao</strong> que é uni-<br />
versal, em to<strong>da</strong>s as regiões <strong>do</strong> globo onde<br />
está sen<strong>do</strong> posto em prática, implican<strong>do</strong><br />
em desemprego, redução de direitos traba-<br />
lhistas e diminuição de salários, em virtude<br />
<strong>da</strong> competição por emprego com países em<br />
que direitos trabalhistas são muito reduzi-<br />
<strong>do</strong>s e qualquer salário é bem vin<strong>do</strong>, como<br />
China, Índia, etc. Repetin<strong>do</strong>-se que, neste<br />
caso, no Brasil não existe a mesma proteção,<br />
representa<strong>da</strong> por contínuo pagamento de<br />
auxílio financeiro <strong>ao</strong> desemprega<strong>do</strong>, con-<br />
forme ocorre nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Europa<br />
Ocidental.<br />
A segun<strong>da</strong> peculiari<strong>da</strong>de é que, concomi-<br />
tante à redução <strong>da</strong> participação estatal na ati-<br />
vi<strong>da</strong>de econômica, até mesmo quanto <strong>ao</strong> acom-<br />
panhamento e punição <strong>ao</strong>s abusos no caso de<br />
cartéis e monopólios, o Poder Executivo vem<br />
se hipertrofian<strong>do</strong>, especialmente o executivo<br />
federal, em detrimento <strong>do</strong>s demais poderes<br />
estatais e <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s-membros <strong>da</strong> federação.<br />
Assim, na prática o Poder Executivo fede-<br />
ral pode legislar, como o vem fazen<strong>do</strong> continu-<br />
amente, através de medi<strong>da</strong>s provisórias, que<br />
tratam de to<strong>da</strong> e qualquer matéria e atrapa-<br />
lham a prestação jurisdicional, pelas excessivas<br />
modificações no ordenamento jurídico.<br />
Entre essas modificações, merece ressalva<br />
a Lei nº 9.494, de 10.09.97, que aprovou uma<br />
medi<strong>da</strong> provisória, a qual, de re<strong>da</strong>ção obscura,<br />
por sinal, intervin<strong>do</strong>, outrossim e diretamente,<br />
na prestação jurisdicional, impedin<strong>do</strong> a ante-<br />
cipação <strong>da</strong> tutela em causas contra a fazen<strong>da</strong><br />
pública, representa uma restrição <strong>ao</strong>s direitos<br />
<strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>s frente <strong>ao</strong> poder governante.<br />
Da mesma forma e, ain<strong>da</strong>, em razão <strong>da</strong>s<br />
O desenrolar, na<br />
história humana,<br />
<strong>da</strong>s diversas<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />
de Esta<strong>do</strong><br />
evidencia que<br />
sua sucessão<br />
nem sempre<br />
significou um<br />
progresso.
dívi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s-membros, o governo fede-<br />
ral tem podi<strong>do</strong> curvar aqueles <strong>ao</strong>s seus interes-<br />
ses e, não achan<strong>do</strong> suficiente, acha-se cogitan-<br />
<strong>do</strong>, inclusive, de, em reforma tributária, acabar<br />
com o imposto sobre circulação de merca<strong>do</strong>rias<br />
e serviços, que é arreca<strong>da</strong><strong>do</strong> pelos esta<strong>do</strong>s e<br />
criar um outro tributo, a ser arreca<strong>da</strong><strong>do</strong> pela<br />
união, passan<strong>do</strong> os esta<strong>do</strong>s a meros recebe<strong>do</strong>res<br />
<strong>da</strong> porcentagem respectiva desse tributo e le-<br />
van<strong>do</strong>-os a mais dependência <strong>do</strong> poder federal.<br />
Tal mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de Esta<strong>do</strong>, por conseguin-<br />
te, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as diversas formas em que é aplica<strong>da</strong><br />
no mun<strong>do</strong>, nem sempre representa um retorno<br />
à valorização <strong>do</strong>s direitos individuais, como<br />
na época <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal, poden<strong>do</strong> até ser<br />
aplica<strong>do</strong> em esta<strong>do</strong>s ditos comunistas e de<br />
escasso controle <strong>do</strong> poder estatal, a China, por<br />
exemplo; também não demonstran<strong>do</strong> objetivar<br />
reduzir as desigual<strong>da</strong>des sociais.<br />
Bibliografia<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Percebe-se, portanto, que a evolução <strong>do</strong><br />
esta<strong>do</strong> na história humana não significou seu<br />
aperfeiçoamento. A mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de posterior nem<br />
sempre é melhor <strong>do</strong> que a anterior, e, <strong>da</strong> mes-<br />
ma forma, a atual não é a mais perfeita, muito<br />
embora seus evidentes méritos, especialmente<br />
no que diz respeito à economia.<br />
Saben<strong>do</strong>-se desse fato, porém, e examinan-<br />
<strong>do</strong>-se a sucessão de Esta<strong>do</strong>s, consoante feito<br />
neste trabalho, é que é possível que a busca<br />
contínua <strong>do</strong> homem pela perfeição, ain<strong>da</strong> que<br />
inatingível, alcance resulta<strong>do</strong>s ca<strong>da</strong> vez melho-<br />
res, tanto para o indivíduo isola<strong>do</strong>, quanto para<br />
a socie<strong>da</strong>de como um to<strong>do</strong>.<br />
José Vi<strong>da</strong>l de Freitas Filho é Juiz de Direi-<br />
to <strong>da</strong> Comarca de São Raimun<strong>do</strong> Nonato,<br />
Piauí.<br />
Bastos, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição <strong>do</strong> Brasil. São<br />
Paulo: Saraiva, 1988.<br />
Caetano, Marcelo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1977.<br />
Cassirer, Ernest. O mito <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.<br />
Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 19 ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995.<br />
Del Vecchio, Giorgio. Lições de filosofia <strong>do</strong> direito. 5ª ed. Trad. António José Brandão.<br />
Coimbra: Armênio Ama<strong>do</strong>, 1979.<br />
Engels, Friedrich. A origem <strong>da</strong> família, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 3ª ed. Trad.<br />
Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.<br />
Fest, Joachim Fest. Hitler. 4ª ed. Trad. Analúcia Teixeira Ribeiro /e outros/. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1976.<br />
Maluf, Sahid. Teoria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 9ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias S/A, 1978.<br />
Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil. Conferência Nacional, XV, 1994. Anais...São Paulo: JBA<br />
Comunicações, 1995.<br />
Vicentino, Cláudio. História Integra<strong>da</strong>: <strong>da</strong> pré-história à I<strong>da</strong>de Média. São Paulo: Scipione, 1995.<br />
141
Joana França
Formalismo<br />
O formalismo jurídico e suas<br />
conseqüências<br />
A herança liberal burguesa trouxe consigo,<br />
além de importantes transformações de<br />
cunho sócio-político, não só na Europa,<br />
mas em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> ocidental, uma<br />
conseqüência não de to<strong>do</strong> louvável, haja<br />
vista as implicações dela advin<strong>da</strong>s.<br />
Na busca pela desconstituição de<br />
um modelo de magistratura origina<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>s regimes absolutistas de governo, e<br />
neles basea<strong>da</strong>, formulou a nova classe em<br />
ascensão um novo padrão de julga<strong>do</strong>r,<br />
padrão que fornecesse <strong>ao</strong>s seus institui<strong>do</strong>res<br />
meios de controle <strong>do</strong> exercício jurisdicional<br />
<strong>da</strong>quele. Um <strong>do</strong>s pilares <strong>da</strong> ideologia<br />
liberal era o legalismo, estriba<strong>do</strong> este em<br />
um conceito eminentemente positivista,<br />
no senti<strong>do</strong> de que a produção jurídica era,<br />
agora, monopoliza<strong>da</strong> pelo Esta<strong>do</strong> vigente.<br />
De uma classe defini<strong>do</strong>ra <strong>da</strong>s regras de<br />
conduta de uma socie<strong>da</strong>de, à ditadura de<br />
uma nova classe social que, pretensamente<br />
representan<strong>do</strong> os anseios <strong>do</strong> povo, a bem,<br />
no entanto, de seus próprios interesses,<br />
cria as normas que irão reger to<strong>do</strong> um<br />
Jurídico<br />
O Formalismo Jurídico e o Mito <strong>da</strong> Neutrali<strong>da</strong>de Estrita<br />
Ana Karena Nobre<br />
contexto de vi<strong>da</strong> social. As novas normas<br />
foram instituí<strong>da</strong>s através de códigos ou de<br />
Constituições, positiva<strong>da</strong>s pelo aparelho<br />
estatal, e por ele impostas <strong>ao</strong>s seus<br />
destinatários.<br />
A exigência de uma jurisdição<br />
formalista, extreme de quaisquer vícios de<br />
uma hermenêutica mais inquiri<strong>do</strong>ra é que<br />
informará o modelo de julga<strong>do</strong>r o qual, a<br />
despeito de enunciar-se o próprio arauto <strong>da</strong><br />
justiça, trata-se de um mero repeti<strong>do</strong>r de<br />
textos legais os quais, muitas vezes, acham-<br />
se despi<strong>do</strong>s de um mínimo de legitimi<strong>da</strong>de<br />
ou eficácia sociais.<br />
Para o chama<strong>do</strong> formalismo ético ou<br />
legalismo, a teoria <strong>da</strong> justiça baseia-se no<br />
fato de que “justo” é aquilo que se encontra<br />
de conformi<strong>da</strong>de com a lei, consideran<strong>do</strong>-<br />
se a assertiva recíproca também como<br />
ver<strong>da</strong>deira. Dessa forma, considera-<br />
se justa uma socie<strong>da</strong>de na qual são<br />
estabeleci<strong>do</strong>s, por lei, padrões ou modelos<br />
de comportamento os quais são plenamente<br />
respeita<strong>do</strong>s e segui<strong>do</strong>s por quem de direito.<br />
143
144<br />
O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />
Definin<strong>do</strong> seus critérios de justiça com<br />
assento no fato de o ato estar ou não de con-<br />
formi<strong>da</strong>de com a lei, confunde o formalista<br />
legalismo com justiça, conceitos não neces-<br />
sariamente coincidentes, não sen<strong>do</strong> um o<br />
pressuposto <strong>do</strong> outro, porquanto não é inco-<br />
mum afirmar que nem sempre o que é legal<br />
é justo, ou, ain<strong>da</strong>, que aquilo que nos parece<br />
justo nem sempre é legal. Assim é que, para<br />
a concepção legalista, “a lei positiva é justa,<br />
pelo só fato de ser lei” 1 .<br />
Jeveaux 2 obtempera que as visões for-<br />
malistas <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> justiça podem ser esta-<br />
beleci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> seguinte forma:<br />
1) jurista: a lei deve ser obedeci<strong>da</strong> pelo sim-<br />
ples fato de ser lei. A convenção (lei) não<br />
pressupõe a questão <strong>da</strong> justiça;<br />
2) legalista: a lei é justa pelo fato de ser lei.<br />
A questão <strong>da</strong> justiça pressupõe a convenção<br />
(lei), mas reduz-se a justiça à questão <strong>da</strong><br />
vali<strong>da</strong>de (existência);<br />
3) jusnaturalista geral: a lei é váli<strong>da</strong> se<br />
justa, reduzin<strong>do</strong>-se a vali<strong>da</strong>de à justiça;<br />
4) jusnaturalista clássica: dá a mesma idéia<br />
anterior, mas vincula a lei à teoria <strong>da</strong> obe-<br />
diência.<br />
Dentre as espécies supradelinea<strong>da</strong>s, a que<br />
nos interessa para análise é a legalista, concep-<br />
ção que, a despeito de to<strong>do</strong> um decurso evolutivo<br />
histórico, ain<strong>da</strong> teima em contaminar discursos<br />
ideológicos, servin<strong>do</strong> como justificativa para<br />
posturas de inércia e <strong>do</strong>gmatismo extremo, fan-<br />
tasia<strong>do</strong>s com a “tinta” <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de.<br />
1 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz, Rio de Janeiro: Forense: 1999, pág. 23.<br />
2 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so. Op. cit. pág. 23.<br />
Dentre as escolas de hermenêuticas<br />
cria<strong>da</strong>s no Século XIX, merece destaque a<br />
Escola <strong>da</strong> Exegese, surgi<strong>da</strong> na França pós-<br />
revolução, cujos paradigmas eram o culto à<br />
vontade <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r e <strong>ao</strong>s códigos, sen<strong>do</strong><br />
constituí<strong>da</strong>, em grande parte, pelos comen-<br />
ta<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s códigos napoleônicos, mormen-<br />
te o Civil de 1804.<br />
Para os exegetas, a lei escrita era a única<br />
fonte <strong>do</strong> Direito, e o méto<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> por<br />
eles para a interpretação <strong>do</strong>s textos legais<br />
era o literal, dirigi<strong>do</strong> à busca <strong>da</strong> vontade<br />
<strong>da</strong> lei (mens legis) ou <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r (mens<br />
legislatoris), repudian<strong>do</strong> veementemente os<br />
costumes ou a jurisprudência.<br />
O radicalismo de alguns desses pen-<br />
sa<strong>do</strong>res era tão extremo que chegavam até<br />
mesmo a admitir o non liquet 3 , defenden<strong>do</strong><br />
que, na ausência <strong>da</strong> norma, deveria o juiz<br />
abster-se de julgar. Outros, no entanto, me-<br />
nos ferrenhos em suas posições, admitiam o<br />
uso <strong>da</strong> analogia como méto<strong>do</strong> de integração<br />
<strong>da</strong> norma. Faria 4 traça um esboço <strong>da</strong> ativi-<br />
<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz, naquele contexto:<br />
(...) os juízes somente teriam o trabalho de,<br />
com o auxílio de um ‘méto<strong>do</strong> lógico’, derivar<br />
por dedução a decisão relativa a um caso con-<br />
creto <strong>do</strong> sistema de conceitos jurídicos; rigoro-<br />
samente vincula<strong>do</strong>s a esse sistema, na medi<strong>da</strong><br />
em que são obriga<strong>do</strong>s a tomar os conceitos <strong>da</strong><br />
jurisprudência como base para a dedução <strong>da</strong>s<br />
normas e para a subsunção de fatos. Os ma-<br />
gistra<strong>do</strong>s terminam desta maneira converti<strong>do</strong>s<br />
numa espécie de ‘porta-vozes <strong>da</strong> lei’.<br />
3 Expressão exemplifica<strong>da</strong> na obra de André-Jean Arnaud como: “o juiz que se recusa ou que difere um julgamento sob o pretexto de silêncio, de<br />
obscuri<strong>da</strong>de, ou de insuficiência <strong>da</strong> lei, torna-se culpa<strong>do</strong> de abuso de poder ou de negação <strong>da</strong> justiça”. O direito entre a moderni<strong>da</strong>de e a globalização, Rio<br />
de Janeiro: Renovar,1999, pág. 115.<br />
4 Faria, José Eduar<strong>do</strong>. Justiça e Conflito: os juízes em face <strong>do</strong>s novos movimentos sociais. São Paulo: RT, 1992, págs. 29/30.<br />
Um <strong>do</strong>s pilares<br />
<strong>da</strong> ideologia<br />
liberal era o<br />
legalismo,<br />
estriba<strong>do</strong> este<br />
em um conceito<br />
eminentemente<br />
positivista.
A <strong>do</strong>utrina montesquiana influenciou,<br />
de forma clara, o pensamento exegeta,<br />
defensora que era <strong>da</strong> estrita separação <strong>do</strong>s<br />
poderes instituí<strong>do</strong>s, recriminan<strong>do</strong> a inva-<br />
são <strong>do</strong> Judiciário na esfera <strong>do</strong> Legislativo,<br />
através <strong>da</strong> interpretação de textos legais<br />
que não fosse meramente literal, deven<strong>do</strong>,<br />
por conseguinte, o juiz atuar como “a boca<br />
inanima<strong>da</strong> <strong>da</strong> lei”, na expressão <strong>da</strong>quele<br />
pensa<strong>do</strong>r.<br />
Na América Latina, mormente no Bra-<br />
sil, a concepção normativista teve uma aco-<br />
lhi<strong>da</strong> muito significativa, ten<strong>do</strong> em vista,<br />
além <strong>da</strong>s teorias clássicas acerca <strong>do</strong> tema,<br />
a influência muito forte <strong>da</strong> obra de Hans<br />
Kelsen.<br />
Kelsen fora um teórico de grande im-<br />
portância no panorama que se instalou<br />
no Império Austro-Húngaro pós Primeira<br />
Guerra. Exercen<strong>do</strong> poderosa influência po-<br />
lítica, Kelsen contribuiu de forma decisiva<br />
para o desenvolvimento de um constitucio-<br />
nalismo forte cujo pilar era a supremacia <strong>da</strong><br />
norma constitucional sobre to<strong>da</strong>s as normas<br />
de legislação infraconstitucional. Defendia<br />
Kelsen que à norma constitucional deve-<br />
riam subordinar-se to<strong>da</strong>s as normas de “ca-<br />
tegoria inferior”, deven<strong>do</strong> estas se inspirar<br />
naquela, e em na<strong>da</strong> contrariá-la.<br />
Apesar <strong>da</strong> grande eminência <strong>da</strong> obra de<br />
Kelsen naquele contexto, o que realmente<br />
exerceu influência dentre os juristas latinos<br />
foi um aspecto de menor relevância na obra<br />
<strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r: sua concepção normativista <strong>do</strong><br />
Direito. Em nome de uma pretensa filiação<br />
<strong>ao</strong> pensamento kelseniano, vestiram alguns<br />
juristas a bandeira panfletária <strong>do</strong> normati-<br />
5 Kelsen, Hans, Teoria Pura <strong>do</strong> Direito. Tradução: João Batista Macha<strong>do</strong>. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág. 1.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
vismo, exacerban<strong>do</strong>, alguns, os limites <strong>da</strong><br />
própria teoria que os embasara, demons-<br />
tran<strong>do</strong> um radicalismo <strong>do</strong> qual não se servi-<br />
ra o teórico que fora seu paradigma.<br />
Buscan<strong>do</strong> furtar-se à crescente influên-<br />
cia sociológica e às antigas concepções filo-<br />
sóficas, Kelsen elaborara uma “teoria pura<br />
<strong>do</strong> direito”, pureza que consistia na criação<br />
de uma “norma fun<strong>da</strong>mental hipotética”,<br />
despi<strong>da</strong> de ilações de qualquer natureza.<br />
Dela derivaria uma “constituição teórica”,<br />
que, por sua vez, seria o ponto de parti<strong>da</strong><br />
para uma “constituição positiva”, <strong>da</strong> qual<br />
deveria derivar to<strong>do</strong> o ordenamento jurídi-<br />
co, sob pena de inexistência <strong>da</strong> norma que<br />
excepcionasse essa determinação.<br />
O teórico explica seu conceito de “pure-<br />
za” como sen<strong>do</strong>:<br />
Quan<strong>do</strong> a si própria se designa como ‘pura’<br />
teoria <strong>do</strong> Direito, isto significa que ela se pro-<br />
põe garantir um conhecimento apenas vol-<br />
ta<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Direito e excluir desse conhecimento<br />
tu<strong>do</strong> quanto não pertença <strong>ao</strong> seu objeto, tu<strong>do</strong><br />
quanto não se possa, rigorosamente, deter-<br />
minar como Direito. Quer isto dizer que ela<br />
pretende libertar a ciência jurídica de to<strong>do</strong>s<br />
os elementos que lhe são estranhos. Esse é o<br />
princípio meto<strong>do</strong>lógico fun<strong>da</strong>mental. 5<br />
O positivismo, defendi<strong>do</strong> por uma<br />
imensa gama de juristas e teóricos, a exem-<br />
plo <strong>do</strong> próprio Kelsen, teve e tem, é claro,<br />
seus méritos; condenável, no entanto, é a<br />
deturpação de que foram vítimas as mais<br />
diversas vertentes <strong>da</strong> teoria, utiliza<strong>da</strong> que<br />
ain<strong>da</strong> é por aqueles que, em nome de um<br />
falso positivismo, preferem não se preocu-<br />
145
146<br />
O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />
par com a questão <strong>da</strong> justiça, ou mesmo <strong>da</strong><br />
evolução social, inevitável e constante, que<br />
ocasiona, muitas vezes, a per<strong>da</strong> de eficácia<br />
material de uma norma, que se torna obso-<br />
leta por não atender mais <strong>ao</strong>s anseios <strong>da</strong>-<br />
quela socie<strong>da</strong>de na qual se inspirara. Dalla-<br />
ri 6 , em sua indignação com o problema em<br />
questão, disserta:<br />
Para os adeptos dessa linha de pensamento, o<br />
direito se restringe <strong>ao</strong> conjunto de regras for-<br />
malmente postas pelo Esta<strong>do</strong>, seja qual for o<br />
seu conteú<strong>do</strong>, resumin<strong>do</strong>-se nisso o chama<strong>do</strong><br />
positivismo jurídico que tem si<strong>do</strong> pratica<strong>do</strong><br />
em vários países europeus e em to<strong>da</strong> a Améri-<br />
ca Latina. Desse mo<strong>do</strong>, a procura <strong>do</strong> justo foi<br />
elimina<strong>da</strong> e o que sobrou foi um apanha<strong>do</strong> de<br />
normas técnico-formais, que, sob a aparência<br />
de rigor científico, reduzem o direito a uma<br />
superficiali<strong>da</strong>de mesquinha.<br />
O normativismo exagera<strong>do</strong> traz consigo<br />
incontáveis prejuízos <strong>ao</strong> exercício de uma<br />
jurisdição justa. Em nome <strong>da</strong> estrita apli-<br />
cação <strong>do</strong> texto legal, são olvi<strong>da</strong><strong>do</strong>s aspectos<br />
importantes envolvi<strong>do</strong>s na questão, capazes<br />
de, se devi<strong>da</strong>mente aprecia<strong>do</strong>s e valora<strong>do</strong>s,<br />
produzir significativas mu<strong>da</strong>nças no pro-<br />
nunciamento normativista eventualmente<br />
proferi<strong>do</strong>, mu<strong>da</strong>nças essas dirigi<strong>da</strong>s a um<br />
único objetivo: a solução justa <strong>da</strong> deman<strong>da</strong>.<br />
Muitos são os argumentos justifica<strong>do</strong>res<br />
desse posicionamento legalista, os quais<br />
vão desde o fato de que o magistra<strong>do</strong>, por<br />
não ser legisla<strong>do</strong>r, deve respeitar os estri-<br />
tos limites <strong>da</strong> letra <strong>da</strong> lei, a fim de que seu<br />
subjetivismo não inva<strong>da</strong> a esfera de compe-<br />
tência <strong>da</strong>quele, passan<strong>do</strong> pela “exigência”<br />
6 Dallari, Dalmo de Abreu, O poder <strong>do</strong>s juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, pág. 83.<br />
7 Dallari, Dalmo de Abreu, O poder <strong>do</strong>s juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, pág. 38.<br />
de neutrali<strong>da</strong>de política que se faz <strong>ao</strong> juiz<br />
(exigência quimérica, visto que o legalista<br />
atua, sobretu<strong>do</strong>, como instrumento político<br />
de manutenção <strong>da</strong>s regras estabeleci<strong>da</strong>s por<br />
aqueles que exercem o poder <strong>do</strong>minante),<br />
no exercício de suas funções, chegan<strong>do</strong> até<br />
<strong>ao</strong> argumento <strong>do</strong>s que se dizem “escravos<br />
<strong>da</strong> lei”, a fim de legitimar sua atuação co-<br />
modista, irresponsável e injusta, disfarça<strong>da</strong><br />
por uma máscara de falsa neutrali<strong>da</strong>de e<br />
comprometimento inexistente com sua fun-<br />
ção judicante, atuan<strong>do</strong>, na reali<strong>da</strong>de, como<br />
meros vestais, travesti<strong>do</strong>s de uma hipócrita<br />
fantasia de técnicos <strong>do</strong> direito.<br />
As peculiari<strong>da</strong>des inerentes a ca<strong>da</strong> caso<br />
são fato <strong>do</strong> qual não pode esquivar-se o jul-<br />
ga<strong>do</strong>r, sob o pretexto de que a lei é genérica<br />
e não prevê a adequação casuística de seus<br />
preceitos, visto que ca<strong>da</strong> litígio trazi<strong>do</strong> a<br />
exame é rico de particulari<strong>da</strong>des, as quais<br />
deverão ser examina<strong>da</strong>s no curso <strong>do</strong> feito,<br />
até porque, em determina<strong>do</strong>s casos, uma<br />
mera firula poderá ser o diferencial entre<br />
se ter ou não direito <strong>ao</strong> objeto jurídico plei-<br />
tea<strong>do</strong>. A lição de Dallari 7 continua em seu<br />
inconformismo com o formalismo de alguns<br />
juristas:<br />
Outro perigo, que favorece a impuni<strong>da</strong>de,<br />
é o <strong>do</strong>s juízes que, por um vício de sua for-<br />
mação jurídica, são demasia<strong>do</strong> formalistas.<br />
Geralmente fanatiza<strong>do</strong>s pela lógica aparente<br />
<strong>do</strong> positivismo jurídico, muitas vezes não<br />
chegam a perceber que o excessivo apego a<br />
exigências formais impede ou dificulta <strong>ao</strong> ex-<br />
tremo a consideração <strong>do</strong>s direitos envolvi<strong>do</strong>s<br />
no processo. Condiciona<strong>do</strong>s por uma visão<br />
exclusivamente formalista <strong>do</strong> direito, esses<br />
As<br />
peculiari<strong>da</strong>des<br />
inerentes a ca<strong>da</strong><br />
caso são fato <strong>do</strong><br />
qual não pode<br />
esquivar-se o<br />
julga<strong>do</strong>r, sob o<br />
pretexto de que<br />
a lei é genérica<br />
e não prevê<br />
a adequação<br />
casuística de<br />
seus preceitos
juízes concebem o respeito <strong>da</strong>s formali<strong>da</strong>des<br />
processuais como o objetivo mais importante<br />
<strong>da</strong> função judicial. Não se sensibilizam pelas<br />
mais graves violações <strong>do</strong>s direitos humanos,<br />
desde que sejam respeita<strong>da</strong>s as formali<strong>da</strong>des.<br />
Por isso se pode dizer que os juízes formalis-<br />
tas são cúmplices inconscientes <strong>do</strong>s viola<strong>do</strong>res<br />
de direitos humanos e concorrem de maneira<br />
significativa para garantir sua impuni<strong>da</strong>de.<br />
A interpretação estritamente literal <strong>do</strong>s<br />
preceitos normativos é tarefa reprovável <strong>ao</strong><br />
jurista moderno, e essa reprovação se torna<br />
ain<strong>da</strong> mais severa quan<strong>do</strong> se trata esse ju-<br />
rista <strong>do</strong> próprio aplica<strong>do</strong>r direto <strong>da</strong> norma;<br />
o juiz não pode eximir-se de analisar os<br />
aspectos específicos de ca<strong>da</strong> caso, sob o pre-<br />
texto de qualificar sua atuação como neutra<br />
e imparcial, em respeito a uma “exigível”<br />
abstração, quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> subsunção <strong>do</strong> fato à<br />
norma, sob pena de padecerem seus pro-<br />
nunciamentos de legitimi<strong>da</strong>de, ou mesmo,<br />
em última instância, de eficácia material,<br />
hajam vista as injustiças patentes que se<br />
podem cometer mediante a a<strong>do</strong>ção dessa<br />
prática.<br />
A prática jurisdicional lastrea<strong>da</strong> em<br />
princípios de <strong>do</strong>gmatismo extremo masca-<br />
ra, na reali<strong>da</strong>de, uma atitude covarde <strong>do</strong><br />
julga<strong>do</strong>r frente à evolução <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des<br />
sociais, covardia essa em: inovar e ser, por<br />
isso, considera<strong>do</strong> rebelde pelos represen-<br />
tantes de seu órgão hierárquico superior,<br />
poden<strong>do</strong> sofrer as “conseqüências” de sua<br />
rebeldia; covardia em atualizar-se <strong>do</strong>utrina-<br />
riamente, em romper as amarras de uma le-<br />
gislação, em muitos aspectos ultrapassa<strong>da</strong> e<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
ineficaz; covardia em subverter uma ordem<br />
que subjuga os pronunciamentos judiciais<br />
<strong>ao</strong>s simulacros legislativos produzi<strong>do</strong>s pelo<br />
poder “competente” (de competência ques-<br />
tionável), enfim, covardia que, em alguns<br />
casos, avizinha-se <strong>ao</strong> mero comodismo, à<br />
preguiça em interpretar segun<strong>do</strong> as necessi-<br />
<strong>da</strong>des <strong>do</strong> litígio em espécie, deriva<strong>da</strong>, tam-<br />
bém, <strong>do</strong> fato de ser infinitamente mais fácil<br />
simplesmente “colar” o texto legal no caso<br />
concreto, sem maiores ilações valorativas,<br />
num exercício bem delinea<strong>do</strong> por Jeveaux 8 :<br />
O legalismo incipiente, entretanto, asseverou<br />
ser o texto <strong>da</strong> lei suficiente por si mesmo,<br />
auto-esclareci<strong>do</strong> e elabora<strong>do</strong> de forma tão<br />
inteligível que <strong>ao</strong> juiz restava somente<br />
aplicá-lo <strong>ao</strong> caso concreto sem conjecturas<br />
próprias. Imaginava-se que o legisla<strong>do</strong>r era<br />
já o intérprete de um direito natural (ideal)<br />
razão por que o juiz devia cumprir um papel<br />
media<strong>do</strong>r de silogismo entre a lei escrita e os<br />
casos particulares. Estava situa<strong>do</strong>, portanto,<br />
o legislativismo, de pretensão absorvente <strong>da</strong><br />
tarefa normativa, que buscava compor a lei<br />
<strong>do</strong> bastante para a regulação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social,<br />
impon<strong>do</strong> <strong>ao</strong> juiz aquela função mecânica de<br />
mera correspondência lógica.<br />
8 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz. Rio de Janeiro: Forense: 1999, pág. 62.<br />
Não se está pretenden<strong>do</strong>, aqui, fazer<br />
a pregação de uma aplicação anárquica<br />
ou subversiva <strong>do</strong> direito, mas reste claro<br />
que é possível uma utilização <strong>do</strong>s próprios<br />
coman<strong>do</strong>s normativos de forma adequa<strong>da</strong><br />
<strong>ao</strong> caso trazi<strong>do</strong> a exame, respeitan<strong>do</strong>-se as<br />
peculiari<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> caso, buscan<strong>do</strong> al-<br />
ternativas lícitas <strong>ao</strong> coman<strong>do</strong> legal obsoleto<br />
ou demasia<strong>da</strong>mente rigoroso, exercen<strong>do</strong>,<br />
147
148<br />
O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />
assim, a ver<strong>da</strong>deira jurisdição, dizen<strong>do</strong> o di-<br />
reito, e não, simplesmente, repetin<strong>do</strong> a lei.<br />
O mito <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de estrita<br />
A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz pro-<br />
duz diversos efeitos e, dentre eles, o de <strong>da</strong>r<br />
suporte à idéia de que o julga<strong>do</strong>r deve pau-<br />
tar sua conduta e jurisdição segun<strong>do</strong> princí-<br />
pios de interpretação estrita <strong>do</strong>s coman<strong>do</strong>s<br />
normativos, num exercício de positivismo<br />
extremo, sem <strong>da</strong>r lugar a juízos de valor ou<br />
idéias preconcebi<strong>da</strong>s próprias.<br />
A concepção de que o juiz, <strong>ao</strong> julgar um<br />
feito, deve atuar como se máquina fosse,<br />
despi<strong>do</strong> de conteú<strong>do</strong> axiológico ou ideoló-<br />
gico próprios, é uma falácia que merece ser<br />
trazi<strong>da</strong> à colação, a fim de que se explicitem<br />
seus fun<strong>da</strong>mentos e defeitos.<br />
A imagem de juiz autômato, um sim-<br />
ples repeti<strong>do</strong>r de coman<strong>do</strong>s legislativos, por<br />
muitas déca<strong>da</strong>s foi arduamente defendi<strong>da</strong><br />
pelos teóricos de uma forma um tanto exa-<br />
cerba<strong>da</strong> de positivismo jurídico, fato que<br />
pode ser percebi<strong>do</strong> claramente na obra de<br />
Merryman 9 :<br />
La imagen neta Del juez es la del opera<strong>do</strong>r<br />
de una máquina diseña<strong>da</strong> y construi<strong>da</strong> por<br />
los legisla<strong>do</strong>res. Su función es meramente<br />
mecánica. Los grandes nombres del derecho<br />
civil no son los de jueces (¿quién conoce el<br />
nombre de un juez del derecho civil?), sino<br />
los de legisla<strong>do</strong>res (Justiniano, Napoleón) y<br />
académicos (Gayo, Irnerio, Bartolo, Manzi-<br />
ni, Domat, Pothier, Savigny y una multitud<br />
de académicos europeos y latinoamericanos<br />
de los siglos XIX y XX). El juez del derecho<br />
civil no es un héroe cultural ni una figura<br />
paternal, como lo es frecuentemente entre no-<br />
sotros. Su imagen es la de un emplea<strong>do</strong> públi-<br />
co que desempeña funciones importantes pero<br />
que resultan esencialmente poco creativas.<br />
Tarefa impossível é aquela que se exige<br />
<strong>ao</strong> julga<strong>do</strong>r, de abstrair-se de sua experiência<br />
de vi<strong>da</strong>, <strong>do</strong>s conceitos apreendi<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> longo<br />
de sua formação, pessoal e jurídica, de suas<br />
bases conceituais, ou seja, de qualquer ele-<br />
mento que seja estranho <strong>ao</strong> texto puro <strong>da</strong> lei,<br />
a fim de que sua jurisdição seja considera<strong>da</strong><br />
objetiva e imparcial. Ao deferir ou indeferir<br />
os pedi<strong>do</strong>s intraprocessuais, <strong>ao</strong> fixar os pon-<br />
tos controversos <strong>da</strong> deman<strong>da</strong>, <strong>ao</strong> examinar as<br />
provas trazi<strong>da</strong>s como respal<strong>do</strong> às alegações,<br />
<strong>ao</strong> decidir sobre as questões incidentais, en-<br />
fim, <strong>ao</strong> emitir qualquer pronunciamento no<br />
processo sob seu exame, terá o magistra<strong>do</strong>,<br />
muitas vezes, que optar pela aplicação de<br />
um coman<strong>do</strong> normativo em detrimento de<br />
outro, também aplicável à espécie, ato que,<br />
inegavelmente, estará imbuí<strong>do</strong> de um espíri-<br />
to opinativo acerca <strong>do</strong> cabimento ou não <strong>da</strong><br />
norma <strong>ao</strong> caso. Azeve<strong>do</strong> 10 , corroboran<strong>do</strong> este<br />
entendimento, leciona que:<br />
Mas, <strong>ao</strong> buscar apreender as concepções so-<br />
ciais <strong>do</strong>minantes, não se pode pretender que o<br />
juiz aban<strong>do</strong>ne de to<strong>do</strong> seu critério e formação<br />
pessoais. Julgan<strong>do</strong>, não lhe é possível despojar-<br />
se de sua individuali<strong>da</strong>de para tão-só chance-<br />
lar o sentimento social prevalente. Os <strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
9 A imagem clara <strong>do</strong> juiz é a <strong>do</strong> opera<strong>do</strong>r de uma máquina desenha<strong>da</strong> e construí<strong>da</strong> pelos legisla<strong>do</strong>res. Sua função é meramente mecânica. Os grandes<br />
nomes <strong>do</strong> direito civil não são de juízes (quem conhece o nome de um juiz de direito civil?), senão os de legisla<strong>do</strong>res (Justiniano, Napoleão) e acadêmicos...<br />
O juiz <strong>do</strong> direito civil não é um herói cultural nem uma figura paternal, como o é freqüentemente entre nós. Sua imagem é a de um emprega<strong>do</strong> público<br />
que desempenha funções importantes mas que resultam essencialmente pouco criativas. Merryman, John Henry, La tradición romano-canónica. México:<br />
Fon<strong>do</strong> de Cultura Económica, pág. 77.<br />
10 Azeve<strong>do</strong>, Plauto Faraco de, Aplicação <strong>do</strong> direito. São Paulo: RT, 1998, pág. 141.<br />
A concepção<br />
de que o juiz,<br />
<strong>ao</strong> julgar um<br />
feito, deve<br />
atuar como se<br />
máquina fosse<br />
é uma falácia.
objetivos emergentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social precisam<br />
ter seu lugar no raciocínio judiciário. Mas são<br />
necessária e naturalmente integra<strong>do</strong>s e aferi-<br />
<strong>do</strong>s pelos <strong>da</strong><strong>do</strong>s subjetivos <strong>do</strong> juiz.<br />
O fato de que, por exigência de normas<br />
legais específicas, está o juiz, em qualquer<br />
ato de cunho decisório, obriga<strong>do</strong> a explici-<br />
tar as razões de seu convencimento, tende<br />
a corroborar o entendimento de que são os<br />
pronunciamentos judiciais eiva<strong>do</strong>s de con-<br />
teú<strong>do</strong> valorativo pessoal <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, posto<br />
que tais valores são os ver<strong>da</strong>deiros móveis<br />
<strong>da</strong> argumentação <strong>da</strong>quele que terá que re-<br />
latar, de forma convincente, por que razão,<br />
em sua opinião, deverá prevalecer a tese de<br />
uma e não de outra parte.<br />
Durante muito tempo prevaleceu e,<br />
há que se dizer, no pensamento de alguns<br />
(poucos, felizmente) juristas <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de<br />
ain<strong>da</strong> prevalece, a idéia de que o formalis-<br />
mo na interpretação jurídica deve prevale-<br />
cer à hermenêutica de cunho racionalista,<br />
mas a mu<strong>da</strong>nça de consciência, a evolução<br />
<strong>da</strong>quele a este mo<strong>do</strong> de aplicar o Direito já<br />
se fazia sentir desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Século XIX,<br />
devi<strong>do</strong> à percepção <strong>do</strong>s claros defeitos que<br />
viciavam a prática legalista, como o que<br />
Jeveaux 11 trouxe à ilustração:<br />
Ocorre que no momento <strong>da</strong> ‘applicatio’ a ten-<br />
são inevitável entre o texto e a subsunção <strong>do</strong>s<br />
fatos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a ele se fazia sentir claramente,<br />
e era vivi<strong>da</strong> exatamente pelo juiz autômato, a<br />
quem se exigia uma decisão. E a dificul<strong>da</strong>de<br />
de uma decisão estritamente ‘conforme a lei’<br />
foi fican<strong>do</strong> permea<strong>da</strong> de um entendimento <strong>do</strong>s<br />
dispositivos que descaracterizou, ou melhor,<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
descerrou as cortinas <strong>do</strong> legislativismo, em<br />
face <strong>da</strong> natureza sempre pessoal <strong>do</strong>s pronun-<br />
ciamentos, queren<strong>do</strong> ou não a <strong>do</strong>utrina tradi-<br />
cional ou mesmo aquela que surgia.<br />
Interessa, sobremaneira, àqueles que<br />
exercem o poder em uma socie<strong>da</strong>de, o po-<br />
sicionamento inerte de seu corpo de magis-<br />
tra<strong>do</strong>s, haja vista que, sen<strong>do</strong> as leis elabora-<br />
<strong>da</strong>s pelo mais político <strong>do</strong>s três poderes e, na<br />
enorme maioria <strong>da</strong>s vezes, num exercício de<br />
positivação <strong>do</strong>s seus próprios interesses, a<br />
aplicação objetiva desses preceitos traduz-<br />
se, na reali<strong>da</strong>de, como a reafirmação <strong>do</strong>s<br />
interesses políticos de seus institui<strong>do</strong>res,<br />
numa atitude, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses,<br />
subserviente e vincula<strong>da</strong>. Essa conveniência<br />
de ser a legislação utiliza<strong>da</strong> como respal<strong>do</strong><br />
<strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> que a institui já era um conteú<strong>do</strong><br />
bastante freqüente na obra de Rosseau 12 ,<br />
que afirmava:<br />
11 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz. Rio de Janeiro: Forense: 1999, pág. 62.<br />
12 Rosseau, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes , 1996, pág. 69.<br />
O que torna a constituição de um Esta<strong>do</strong><br />
ver<strong>da</strong>deiramente sóli<strong>da</strong> e estável é o fato <strong>da</strong>s<br />
conveniências serem de tal mo<strong>do</strong> observa<strong>da</strong>s,<br />
que as circunstâncias naturais e as leis (grifo<br />
nosso), estejam sempre de acor<strong>do</strong> nos mesmos<br />
pontos e que aquelas façam, senão assegurar,<br />
pelo menos acompanhar e retificar estas.<br />
A linguagem jurídica, por sua termino-<br />
logia específica e, por vezes, inacessível <strong>ao</strong><br />
leigo, é poderoso instrumento de <strong>do</strong>minação<br />
e controle sociais, visto que, sen<strong>do</strong> ve<strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />
justiça priva<strong>da</strong>, somente <strong>ao</strong> aparato público<br />
encerra<strong>do</strong> no Poder Judiciário é que se legi-<br />
tima a solução <strong>do</strong>s conflitos interpessoais.<br />
O exercício desse poder deve, portanto,<br />
149
150<br />
O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />
realizar-se segun<strong>do</strong> os princípios de res-<br />
peito e digni<strong>da</strong>de que se podem atribuir à<br />
função, e a distribuição <strong>da</strong> justiça somente<br />
pode ser compreendi<strong>da</strong> pela análise <strong>da</strong>s<br />
situações inerentes a ca<strong>da</strong> conflito trazi<strong>do</strong><br />
à apreciação <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, com a valoração<br />
<strong>da</strong> importância e <strong>da</strong> urgência de ca<strong>da</strong> situ-<br />
ação específica, sob pena de padecerem de<br />
inutili<strong>da</strong>de os pronunciamentos judiciais,<br />
como nos casos em que, apesar <strong>da</strong> existência<br />
pré-constituí<strong>da</strong> <strong>do</strong> exigível periculum in<br />
mora, o julga<strong>do</strong>r, privilegian<strong>do</strong> a forma - em<br />
detrimento <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> direito pleite-<br />
a<strong>do</strong> - indefere a tutela liminar requeri<strong>da</strong>,<br />
causan<strong>do</strong> o perecimento <strong>do</strong> objeto processu-<br />
al, haja vista que o decurso de tempo, nessa<br />
espécie casuística, macula de ineficácia o<br />
provimento tardio.<br />
O Poder Judiciário é detentor de prer-<br />
rogativa que, certamente, preocupa o poder<br />
político <strong>do</strong>minante com relação à sua exten-<br />
são e força coercitiva. Aliás, é a coercitivi<strong>da</strong>-<br />
de <strong>da</strong> atuação jurisdicional importante ins-<br />
trumento de poder também com relação às<br />
demais esferas, haja vista que, a respal<strong>da</strong>r o<br />
provimento jurisdicional, encontra-se to<strong>do</strong><br />
um aparato administrativo e policial de im-<br />
posição deste <strong>ao</strong> seu destinatário, tornan<strong>do</strong><br />
inteligível o temor que permeia as demais<br />
esferas com relação à Judiciária, porquanto<br />
maior que o poder de instituir a lei é o de se<br />
fazer cumpri-la, poder este de titulari<strong>da</strong>de<br />
exclusiva <strong>do</strong> Judiciário. Tanto poder só po-<br />
deria mesmo despertar sentimentos e intui-<br />
tos pouco gloriosos com relação <strong>ao</strong> exercício<br />
<strong>da</strong> jurisdição, e, como não poderia mesmo<br />
deixar de ser, não quer o poder político <strong>da</strong>r-<br />
13 Dinamarco, Cândi<strong>do</strong> Rangel, A instrumentali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 196.<br />
se o luxo de perder “as rédeas” dessa pode-<br />
rosa “cavalaria”, que deve ser manti<strong>da</strong> dócil<br />
e submissa, em seus respectivos “estábulos”.<br />
O positivismo serve, sim, à manutenção<br />
<strong>da</strong>s estruturas de <strong>do</strong>minação, fun<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se<br />
tal assertiva no fato mesmo de que tal <strong>do</strong>u-<br />
trina teve sua origem no pensamento liberal<br />
revolucionário, <strong>da</strong> França <strong>do</strong> Século XVIII,<br />
cujo fun<strong>da</strong>mento era justamente o controle<br />
<strong>do</strong> exercício <strong>da</strong> função de magistra<strong>do</strong> que,<br />
àquela época, era pauta<strong>do</strong> de arbitrarie<strong>da</strong>des<br />
e injustiças, haja vista sua tradição econômi-<br />
ca e hereditária, her<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>do</strong> ancien régime<br />
absolutista. Interessante, para a conservação<br />
<strong>do</strong> status quo, é a operação de produzir um<br />
coman<strong>do</strong> normativo e tê-lo aplica<strong>do</strong> em sua<br />
íntegra, sem possibili<strong>da</strong>de de desvios de in-<br />
terpretação, os quais causariam o afastamen-<br />
to <strong>do</strong> intuito primeiro <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r/institui-<br />
<strong>do</strong>r acerca <strong>da</strong> norma em questão.<br />
Ocorre, no entanto, que o objetivo de<br />
manter-se a magistratura em uma re<strong>do</strong>-<br />
ma de legalismo é tarefa irreal, visto que,<br />
pela própria formação intelectual à qual<br />
os profissionais <strong>do</strong> Direito têm acesso em<br />
suas academias, são eles “infecta<strong>do</strong>s” pelo<br />
pensamento racionalista que se segue à cria-<br />
ção <strong>do</strong> positivismo jurídico, persistin<strong>do</strong>, no<br />
entanto, alguns refratários <strong>ao</strong> conhecimento<br />
inova<strong>do</strong>r, seguin<strong>do</strong> em seu caminho reto e<br />
previsível de repetição normativa.<br />
São esses racionalistas que trazem à<br />
aplicação <strong>do</strong> Direito uma luz de justiça, de<br />
respeito <strong>ao</strong>s direitos <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de, de<br />
observância <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças sociais constan-<br />
tes, produzin<strong>do</strong> um julga<strong>do</strong>r comparável <strong>ao</strong><br />
padrão elabora<strong>do</strong> por Dinamarco 13 :<br />
O Poder<br />
Judiciário é<br />
detentor de<br />
prerrogativa<br />
que,<br />
certamente,<br />
preocupa o<br />
poder político<br />
<strong>do</strong>minante com<br />
relação à sua<br />
extensão e<br />
força coercitiva.
Examinar as provas, intuir o correto en-<br />
quadramento jurídico e interpretar de mo<strong>do</strong><br />
correto os textos legais à luz <strong>do</strong>s grandes<br />
princípios e <strong>da</strong>s exigências sociais <strong>do</strong> tempo -,<br />
eis a grande tarefa <strong>do</strong> juiz <strong>ao</strong> sentenciar. En-<br />
tram aí as convicções sociopolíticas <strong>do</strong> juiz,<br />
que hão de refletir as aspirações <strong>da</strong> própria<br />
socie<strong>da</strong>de; o juiz indiferente às escolhas axio-<br />
lógicas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e que preten<strong>da</strong> apegar-se<br />
a um exagera<strong>do</strong> literalismo exegético tende a<br />
ser injusto, porque pelo menos estende gene-<br />
ralizações a pontos intoleráveis, tratan<strong>do</strong> os<br />
casos peculiares como se não fossem porta<strong>do</strong>-<br />
res de peculiari<strong>da</strong>des, na ingênua crença de<br />
estar com isso sen<strong>do</strong> fiel <strong>ao</strong> direito.<br />
O direito, na sua acepção pessoal, indi-<br />
vidual, nasce <strong>do</strong> convívio em socie<strong>da</strong>de, já<br />
que não seria razoável admitir a existência<br />
de direitos de um indivíduo que vivesse<br />
isola<strong>do</strong>, completamente abstraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> seio<br />
social, pois o direito, como pertencente <strong>ao</strong><br />
patrimônio pessoal de ca<strong>da</strong> um, só se perce-<br />
be por ser oponível a outrem, por ser passí-<br />
vel de defesa pelo seu detentor.<br />
Assim é que, na expressão <strong>do</strong> brocar-<br />
<strong>do</strong> “<strong>da</strong> mihi factum <strong>da</strong>bo tibi ius” 14 , os<br />
conflitos entre direitos são submeti<strong>do</strong>s <strong>ao</strong><br />
julgamento <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, juízo este que,<br />
informa<strong>do</strong> por um processo, instrumento<br />
material de uma ação, vai decidir qual di-<br />
reito deverá prevalecer, ou se somente um<br />
<strong>do</strong>s direitos alega<strong>do</strong>s é váli<strong>do</strong> perante a or-<br />
dem jurídica estatal.<br />
Dentro <strong>da</strong> processualística vigente, a<br />
solução <strong>do</strong>s conflitos é <strong>da</strong><strong>da</strong> pela sentença<br />
judicial (ou acórdão, conforme o grau de<br />
14 Dá-me os fatos, que te <strong>da</strong>rei o direito.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
jurisdição <strong>do</strong>nde provenha), que põe termo<br />
à lide e visa pacificar o conflito que nela<br />
se insere. A sentença judicial, porém, deve<br />
submeter-se <strong>ao</strong> ordenamento jurídico posi-<br />
tivo, nele buscan<strong>do</strong> seu fun<strong>da</strong>mento, como<br />
requisito mesmo de sua legali<strong>da</strong>de.<br />
A influência <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> axiológico <strong>do</strong><br />
julga<strong>do</strong>r em seus pronunciamentos é fato<br />
inarredável, visto que a mera ativi<strong>da</strong>de de<br />
subsunção <strong>do</strong> fato jurídico à norma aplicá-<br />
vel exige <strong>do</strong> aplica<strong>do</strong>r um juízo de valora-<br />
ção acerca <strong>da</strong> pertinência ou <strong>da</strong> aplicabi-<br />
li<strong>da</strong>de <strong>do</strong> preceito normativo que escolhe<br />
como atinente à espécie.<br />
A sentença, como ato judicial terminati-<br />
vo <strong>do</strong> conflito trazi<strong>do</strong> à apreciação <strong>do</strong> juiz, é<br />
permea<strong>da</strong> de conteú<strong>do</strong> valorativo, haja vista<br />
que terá o julga<strong>do</strong>r de escolher a tese jurídica<br />
a qual prevalecerá sobre a outra, para isso<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> as razões que motivaram seu conven-<br />
cimento. O simples fato de o julga<strong>do</strong>r enten-<br />
der que deve <strong>da</strong>r provimento <strong>ao</strong>s argumentos<br />
jurídicos de uma parte, e não de outra, já<br />
transparece a escolha que teve de fazer, esco-<br />
lha essa lastrea<strong>da</strong> em seu entendimento <strong>do</strong><br />
que é certo ou erra<strong>do</strong>, <strong>da</strong>quilo que possui ou<br />
não o respal<strong>do</strong> <strong>da</strong> lei objetiva vigente. Lo-<br />
gicamente, existem aqueles casos em que a<br />
apreciação valorativa <strong>do</strong> juiz não se faz ne-<br />
cessária, por tratar-se o fato de questão emi-<br />
nentemente técnica, de mera aplicação <strong>do</strong><br />
coman<strong>do</strong> normativo específico; nesses casos<br />
inegável é a ativi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>gmática <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r,<br />
a qual não traduz, por óbvio, uma postura de<br />
sua parte, mas uma atitude isola<strong>da</strong>.<br />
A interpretação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> normativo<br />
positiva<strong>do</strong> é tarefa <strong>da</strong> qual se serve diaria-<br />
151
152<br />
O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />
mente o juiz <strong>ao</strong> proferir suas decisões ou<br />
despachos ordinatórios, e essa interpretação<br />
não pode ser vista de forma negativa ou ten-<br />
dente a considerá-la inapropria<strong>da</strong> ou mes-<br />
mo capaz de denegrir o espírito <strong>da</strong> lei, visto<br />
que, na ativi<strong>da</strong>de judicante, impossível será<br />
<strong>ao</strong> julga<strong>do</strong>r realizar a subsunção <strong>do</strong> fato à<br />
norma sem que se incorra em um mínimo<br />
de esforço hermenêutico; a aplicação <strong>do</strong><br />
direito <strong>ao</strong> caso concreto irá requerer <strong>do</strong> jul-<br />
ga<strong>do</strong>r, muitas vezes, uma atitude de inova-<br />
ção <strong>do</strong> direito positivo, de forma a adequar<br />
sua decisão às peculiari<strong>da</strong>des inerentes <strong>ao</strong>s<br />
casos trazi<strong>do</strong>s à sua obtemperação. Sobre o<br />
assunto, assevera Men<strong>do</strong>nça 15 :<br />
O papel criativo <strong>da</strong> jurisprudência de mo<strong>do</strong><br />
algum afeta a segurança <strong>do</strong> direito, mas, de<br />
mo<strong>do</strong> contrário, é capaz de legitimá-lo pe-<br />
rante a socie<strong>da</strong>de; pois o juiz representa um<br />
ente personaliza<strong>do</strong>, em meio a um sistema<br />
essencialmente impessoal. Portanto, em reali-<br />
<strong>da</strong>de, não há conflito entre a esfera constru-<br />
tiva <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de judicante e a legali<strong>da</strong>de,<br />
mas apenas uma complementação de papéis,<br />
onde a lei fornece o eixo básico, a partir <strong>do</strong><br />
qual, no momento <strong>da</strong> aplicação <strong>do</strong> direito, o<br />
juiz formulará uma tese, a fim de solucionar<br />
o litígio.<br />
O juiz, como ser humano que é, encon-<br />
tra-se sujeito às influências <strong>do</strong> meio em<br />
que vive, seja o acadêmico, o familiar ou o<br />
social, a despeito de abaliza<strong>da</strong>s opiniões em<br />
contrário. Os valores que ca<strong>da</strong> um adqui-<br />
riu na formação de sua personali<strong>da</strong>de não<br />
podem (no senti<strong>do</strong> mesmo <strong>da</strong> falta de pos-<br />
sibili<strong>da</strong>de) ser simplesmente abstraí<strong>do</strong>s em<br />
nome <strong>da</strong> proclama<strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz<br />
na apreciação <strong>do</strong> fato.<br />
Não há uma medi<strong>da</strong> unicamente obje-<br />
tiva <strong>do</strong> que é justo. A justiça é, eminente-<br />
mente, um valor, valor este que é informa<strong>do</strong><br />
pelos critérios pessoais de ca<strong>da</strong> um - o que<br />
é justo para A pode não sê-lo para B - res-<br />
peitan<strong>do</strong>-se, entretanto, aquele critério mais<br />
ou menos comum de morali<strong>da</strong>de média, o<br />
qual fornece à justiça o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> mínimo<br />
que se deve buscar no convívio social, aque-<br />
la justiça a qual, no entender de Rawls 16 , é<br />
informa<strong>da</strong> por certos princípios, objetos de<br />
um consenso social:<br />
São esses princípios que pessoas livres e racio-<br />
nais, preocupa<strong>da</strong>s em promover seus próprios<br />
interesses, aceitariam numa posição de igual-<br />
<strong>da</strong>de, como defini<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s termos fun<strong>da</strong>men-<br />
tais de sua associação.<br />
Nesse senti<strong>do</strong> é que o juiz decide, uti-<br />
lizan<strong>do</strong>-se de seus valores pessoais, de suas<br />
experiências de vi<strong>da</strong>, de seus méto<strong>do</strong>s de<br />
indução, deven<strong>do</strong> pautar-se nas raias <strong>da</strong><br />
normali<strong>da</strong>de, evitan<strong>do</strong> as convicções faccio-<br />
sas, os preconceitos infun<strong>da</strong><strong>do</strong>s e os juízos<br />
distorci<strong>do</strong>s e exacerba<strong>do</strong>s acerca <strong>do</strong>s fatos<br />
mais polêmicos.<br />
O meio social de onde provém o juiz<br />
também vai influenciar na sua toma<strong>da</strong> de<br />
posição em um determina<strong>do</strong> processo. A<br />
origem <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong> vai impingir a sua<br />
marca nas decisões a ele submeti<strong>da</strong>s, admi-<br />
tin<strong>do</strong>-se que o juízo formula<strong>do</strong> por alguém<br />
oriun<strong>do</strong> de uma classe menos favoreci<strong>da</strong><br />
faz, por exemplo, de um furto famélico, pro-<br />
vavelmente não coincidirá com a opinião<br />
15 Men<strong>do</strong>nça, Paulo Roberto Soares, A argumentação nas decisões judiciais. Rio de Janeiro: Renovar, 1990, págs. 17/18.<br />
16 Rawls, John, Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág.12.<br />
O meio social<br />
de onde provém<br />
o juiz também<br />
vai influenciar<br />
na sua toma<strong>da</strong><br />
de posição em<br />
um determina<strong>do</strong><br />
processo.
que detém o juiz nasci<strong>do</strong> em uma classe<br />
abasta<strong>da</strong> sobre o mesmo assunto.<br />
Por tu<strong>do</strong> isso a subsunção <strong>do</strong> fato à<br />
norma não é tarefa simples <strong>ao</strong> estudioso <strong>do</strong><br />
direito, posto que sujeita às variáveis acima<br />
apresenta<strong>da</strong>s, entre tantas outras, para sua<br />
caracterização. Adequar o fato à norma que<br />
mais se lhe favoreça não é uma operação<br />
aritmética. O entendimento final <strong>do</strong> aplica-<br />
<strong>do</strong>r <strong>do</strong> direito vai sempre estar carrega<strong>do</strong> de<br />
suas opiniões e valores pessoais, adquiri<strong>do</strong>s<br />
no processo de formação de seu entendi-<br />
mento, passíveis de modificação por novas<br />
experiências adquiri<strong>da</strong>s, tanto na vi<strong>da</strong> so-<br />
cial, como no exercício <strong>da</strong> profissão.<br />
Como em to<strong>do</strong>s os campos <strong>da</strong> argu-<br />
mentação jurídica, existem aqueles que<br />
defendem e os que repudiam a valoração<br />
<strong>da</strong> norma pelo aplica<strong>do</strong>r, em sua ativi<strong>da</strong>de<br />
judicante. Para aqueles defensores de uma<br />
influência axiológica no exercício <strong>do</strong> munus<br />
de decidir os litígios, os argumentos aduzi-<br />
<strong>do</strong>s em favor dessa concepção são inúmeros;<br />
alguns deles, enumera<strong>do</strong>s por Herkenhof 17 ,<br />
são elenca<strong>do</strong>s em sua obra como sen<strong>do</strong>:<br />
a) O juiz é porta<strong>do</strong>r de valores, de que sem-<br />
pre impregna suas sentenças;<br />
b) Os critérios axiológicos acompanham o<br />
ofício <strong>do</strong> juiz: não apenas naqueles casos em<br />
que, expressamente, a lei defere a solução à<br />
discrição judicial, como naqueles outros em<br />
que, dentro de dispositivos expressos, a mar-<br />
gem de discrição é ampla ou, naquelas outras<br />
hipóteses, em que a escolha <strong>do</strong> dispositivo a<br />
aplicar é também axiológica;<br />
c) A sentença <strong>do</strong> juiz, em qualquer situação,<br />
tem conteú<strong>do</strong> axiológico, subjetivo, político;<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
d) Poderia parecer que, quanto mais buscasse<br />
penetrar na inteligência <strong>da</strong> norma, como<br />
edita<strong>da</strong>, estaria o juiz fugin<strong>do</strong> de um julga-<br />
mento subjetivo. Mas esta fixação na norma<br />
também é um posicionamento ideológico,<br />
político, niti<strong>da</strong>mente conserva<strong>do</strong>r;<br />
e) O juiz, aprisiona<strong>do</strong> à lei, serve às forças<br />
<strong>da</strong> conservação, tanto quanto serve às forças<br />
<strong>da</strong> renovação o juiz que assuma, com hones-<br />
ti<strong>da</strong>de, uma pauta axiológica e uma visão<br />
sociopolítica de compromisso <strong>do</strong> Direito com<br />
o povo, não com os privilégios.<br />
Fazen<strong>do</strong> o papel de uma espécie de “ad-<br />
voga<strong>do</strong> <strong>do</strong> diabo”, em um exercício de pura<br />
dialética, continua o autor, explicitan<strong>do</strong>, em<br />
segui<strong>da</strong>, os argumentos contrários à juris-<br />
dição com conteú<strong>do</strong> axiológico, os quais<br />
foram sintetiza<strong>do</strong>s <strong>da</strong> seguinte forma:<br />
a) O juiz não pode transcender a norma.<br />
Como homem pode discor<strong>da</strong>r <strong>da</strong> justiça <strong>da</strong><br />
norma. Não obstante, deverá aplicá-la <strong>ao</strong><br />
caso que lhe incumbe julgar;<br />
b) Há uma incompatibili<strong>da</strong>de entre o mister<br />
de filósofo e o de juiz; estaria instaura<strong>da</strong> a<br />
arbitrarie<strong>da</strong>de se as sentenças ficassem subor-<br />
dina<strong>da</strong>s às valorações decorrentes <strong>da</strong> consci-<br />
ência <strong>do</strong> juiz;<br />
c) O Direito deve ser visualiza<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong><br />
composto de duas partes estanques entre si:<br />
uma lógica - ciência <strong>da</strong>s normas -, outra<br />
axiológica - ornamento <strong>do</strong> Direito, matéria<br />
esta a ser cultiva<strong>da</strong> pelos que gostam de es-<br />
peculação, mas fora <strong>da</strong> seara propriamente<br />
jurídica;<br />
17 Herkenhoff, João Batista, Como aplicar o direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, págs. 82/83.<br />
d) O juiz deve subordinar-se à norma, ain<strong>da</strong><br />
que sob o peso <strong>do</strong>s dramas íntimos;<br />
153
154<br />
O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />
Após a exposição <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is pressupostos<br />
dessa dialética, posiciona-se Herkenhoff<br />
favoravelmente à primeira concepção, es-<br />
posan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s argumentos justifica<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
posicionamento ativo <strong>do</strong> juiz quan<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
solução <strong>da</strong>s deman<strong>da</strong>s trazi<strong>da</strong>s à sua apre-<br />
ciação, entendimento, aliás, <strong>do</strong> qual comun-<br />
ga Men<strong>do</strong>nça 18 , quan<strong>do</strong> afirma:<br />
(...) o juiz não é apenas mais uma peça na<br />
engrenagem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, mas na ver<strong>da</strong>de um<br />
indivíduo pessoalmente identifica<strong>do</strong>, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />
de uma racionali<strong>da</strong>de própria e que decide os<br />
litígios inegavelmente influencia<strong>do</strong> por suas<br />
experiências pessoais. Nesta situação, torna-<br />
se bastante problemático falar-se em neutrali-<br />
<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz.<br />
A mu<strong>da</strong>nça de consciência quanto <strong>ao</strong><br />
papel social <strong>do</strong>s juízes é, em grande parte,<br />
devi<strong>do</strong> à atuação <strong>da</strong> magistratura <strong>do</strong>s Esta-<br />
<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>da</strong> América. A jurisprudência,<br />
naquele país, é uma <strong>da</strong>s mais importantes<br />
fontes <strong>do</strong> Direito vigente, em sua maioria<br />
aquela emana<strong>da</strong> <strong>da</strong> Suprema Corte, órgão<br />
supremo <strong>da</strong> jurisdição americana. Inicia<strong>da</strong><br />
com a inova<strong>do</strong>ra atuação <strong>do</strong> Juiz Marshall,<br />
que enfrentou o poder Executivo <strong>da</strong> época,<br />
proferin<strong>do</strong>, no caso conheci<strong>do</strong> como Madi-<br />
son vs. Marbury, decisão importantíssima<br />
no senti<strong>do</strong> de firmar o primeiro passo rumo<br />
à independência <strong>do</strong> órgão jurisdicional,<br />
a tendência de um Judiciário “pensante”<br />
tem si<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais reforça<strong>da</strong> nos dias<br />
atuais, e o padrão de magistratura inerte e<br />
legitima<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> poder estatal tem perdi<strong>do</strong>,<br />
de forma definitiva, seu poder de influência<br />
sobre aqueles que possuem o mister de com-<br />
por as lides com justiça.<br />
18 Men<strong>do</strong>nça, Paulo Roberto Soares, A argumentação nas decisões judiciais. Rio de Janeiro: Renovar, 1990, pág. 11.<br />
19 Rigaux, François, A lei <strong>do</strong>s juízes. Tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág. 71.<br />
Essa tendência “racionaliza<strong>do</strong>ra” foi<br />
perfeitamente delinea<strong>da</strong> por Rigaux 19 ,<br />
quan<strong>do</strong> afirmou:<br />
Ninguém ousaria mais sustentar que o juiz é<br />
apenas ‘a boca <strong>da</strong> lei’. Não obstante, as opini-<br />
ões continuam a divergir sobre a necessi<strong>da</strong>de<br />
e, portanto, sobre a extensão de seu poder de<br />
apreciação. As explicações precedentes suge-<br />
rem que a aplicação <strong>do</strong> Direito não se reduz a<br />
um puro mecanismo, nem sequer a uma série<br />
de operações exclusivamente lógicas. Entre os<br />
conceitos que descrevem uma situação de fato<br />
e os que formulam a hipótese de uma regra de<br />
direito, não existe a harmonia preestabeleci<strong>da</strong><br />
que um simples silogismo, ou mesmo um enca-<br />
deamento de silogismos, permitiria constatar.<br />
Não somente o fato não se deixa verificar<br />
facilmente e o direito é freqüentemente obscu-<br />
ro, antinômico ou incompleto, mas é o ajuste<br />
mútuo deles que confere <strong>ao</strong> juiz uma função<br />
propriamente cria<strong>do</strong>ra.<br />
O reconhecimento <strong>da</strong> existência de um<br />
conteú<strong>do</strong> axiológico nas decisões judiciais<br />
não pode, no entanto, ser utiliza<strong>do</strong> como<br />
meio de fun<strong>da</strong>mentar uma subversão <strong>da</strong><br />
ordem jurídica estabeleci<strong>da</strong>, sob pena de se<br />
estar legitiman<strong>do</strong> um império de juízes-le-<br />
gisla<strong>do</strong>res que, a despeito <strong>do</strong> ordenamento<br />
jurídico vigente, entendem por solucionar<br />
os conflitos, segun<strong>do</strong> suas próprias convic-<br />
ções sociopolítico-ideológicas, ingressan<strong>do</strong><br />
na perigosa seara <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de, eivan<strong>do</strong> de<br />
total nuli<strong>da</strong>de seus pronunciamentos, con-<br />
duzin<strong>do</strong> a atuação jurisdicional a uma fatal<br />
e peremptória instabili<strong>da</strong>de. Nesse mesmo
senti<strong>do</strong> é que vem a manifestar-se Dinamar-<br />
co 20 , quan<strong>do</strong> afirma:<br />
Daí, porém, não deve emanar a idéia de uma<br />
carga excessiva e perigosa de poderes entregues<br />
<strong>ao</strong> juiz. Legisla<strong>do</strong>r ele não é e, com as ressal-<br />
vas postas, sempre continua o juiz sujeito à<br />
lei. Aquele que, a pretexto de <strong>da</strong>r a esta uma<br />
interpretação evolutiva, pretender impor<br />
soluções suas personalíssimas, decorrentes de<br />
suas opções políticas, crenças religiosas, pre-<br />
conceitos, preferências, etc., estará cometen<strong>do</strong><br />
ilegali<strong>da</strong>de e sua decisão não será legítima.<br />
A função jurisdicional requer dedica-<br />
ção, estu<strong>do</strong>, atualização e, antes de tu<strong>do</strong>,<br />
Bibliografia<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
bom senso. Reitere-se, no entanto que não<br />
se está, aqui, fazen<strong>do</strong> apologia <strong>ao</strong> uso alter-<br />
nativo <strong>do</strong> direito, ou à subversão <strong>da</strong> ordem<br />
jurídica. Está-se tentan<strong>do</strong> demonstrar é<br />
que a função de julgar deve ser exerci<strong>da</strong> de<br />
mo<strong>do</strong> a propiciar um real acesso à justiça e<br />
a pacificação <strong>do</strong>s conflitos sociais, na busca<br />
pela realização <strong>do</strong>s reais escopos <strong>da</strong> atuação<br />
judicante.<br />
Ana Karena Nobre é juíza estadual na<br />
Bahia, professora de Direito Civil na Uni-<br />
versi<strong>da</strong>de Estadual de Santa Cruz; mestre<br />
em Direito Público pela UFPE.<br />
Azeve<strong>do</strong> <strong>do</strong>, Plauto Faraco de, Aplicação <strong>do</strong> direito, São Paulo: RT, 1998.<br />
Dallari, Dalmo de Abreu, O poder <strong>do</strong>s juízes, São Paulo: Saraiva, 1996.<br />
Dinamarco, Cândi<strong>do</strong> Rangel, A Instrumentali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo, São Paulo: Malheiros, 2000.<br />
Faria, José Eduar<strong>do</strong>, Justiça e conflito: os juízes em face <strong>do</strong>s novos movimentos sociais, São<br />
Paulo: RT, 1992.<br />
Herkenhoff, João Batista, Como aplicar o direito, Rio de Janeiro: Forense, 2001.<br />
Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz, Rio de Janeiro: Foren-<br />
se: 1999.<br />
Kelsen, Hans, Teoria pura <strong>do</strong> Direito, Tradução: João Batista Macha<strong>do</strong>. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2000.<br />
Men<strong>do</strong>nça, Paulo Roberto Soares, A argumentação nas decisões judiciais, Rio de Janeiro:<br />
Renovar, 1990.<br />
2000.<br />
Rawls, John, Justiça e Democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />
Rigaux, François, A lei <strong>do</strong>s juízes, Tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes,<br />
Rosseau, Jean-Jacques, O contrato social, São Paulo: Martins Fontes, 1996.<br />
20 DINAMARCO, Cândi<strong>do</strong> Rangel, A instrumentali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 295.<br />
155
Conflitos<br />
O novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10<br />
de janeiro de 2002), que entrou este ano,<br />
<strong>ao</strong> incorporar o espírito <strong>da</strong> Constituição de<br />
1988 no tocante à instituição <strong>da</strong> família,<br />
transformou o juiz no grande árbitro <strong>do</strong>s<br />
conflitos familiares.<br />
Alguns exemplos, colhi<strong>do</strong>s aqui e ali,<br />
ilustram bem a assertiva: haven<strong>do</strong> diver-<br />
gência entre o casal no tocante à autoriza-<br />
ção para casamento <strong>do</strong> filho menor de 16<br />
anos, pode ele recorrer <strong>ao</strong> juiz, enquanto<br />
no regime anterior prevalecia a vontade<br />
paterna (art. 1.517). A direção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
conjugal, antes atribuí<strong>da</strong> <strong>ao</strong> mari<strong>do</strong>, passa<br />
a ser exerci<strong>da</strong> em colaboração com a mu-<br />
lher. Mas, se eles não entrarem em acor<strong>do</strong>,<br />
podem pedir <strong>ao</strong> juiz a solução para a con-<br />
trovérsia, a qual será decidi<strong>da</strong> no interesse<br />
<strong>do</strong> casal e <strong>do</strong>s filhos (art. 1.567). No Código<br />
de 1916, o pátrio poder competia <strong>ao</strong> mari<strong>do</strong>,<br />
que o exercia com a colaboração <strong>da</strong> esposa.<br />
O pátrio poder passou a ser denomina<strong>do</strong> po-<br />
der familiar, no novo Código, e o seu exer-<br />
cício compete, em conjunto, <strong>ao</strong> casal. Mas,<br />
Familiares<br />
Judicialização <strong>do</strong>s Conflitos Familiares<br />
Mônica Sifuentes<br />
se no Código anterior prevalecia a vontade<br />
paterna em caso de desacor<strong>do</strong>, no Código<br />
atual o árbitro é, uma vez mais, o juiz (art.<br />
1.631). A habilitação para o casamento, ato<br />
tipicamente cartorário, bem como a separa-<br />
ção judicial amigável, continuam a passar<br />
pelo crivo <strong>do</strong> juiz, que deve homologá-las<br />
(arts. 1.526 e 1.574).<br />
A bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, a família parece já<br />
não mais constituir a preocupação primeira<br />
<strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r civil, que elegeu, antes dela,<br />
outras priori<strong>da</strong>des, mais de acor<strong>do</strong> com os<br />
tempos modernos. Basta ver a ordem <strong>do</strong>s<br />
livros que formam os códigos civis velho e<br />
novo. No Código de 1916, a ordem <strong>do</strong>s livros<br />
era: Direito de Família, Direito <strong>da</strong>s Coisas,<br />
Direito <strong>da</strong>s Obrigações e, por fim, Direito<br />
<strong>da</strong>s Sucessões. Representava, como uma<br />
seqüência, o ciclo <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>: o homem<br />
adquiria a maiori<strong>da</strong>de, se casava, criava a<br />
família, adquiria proprie<strong>da</strong>de, contraía obri-<br />
gações, fazia contratos e, por fim, a morte o<br />
colhia e vinha o direito regular à distribuição<br />
<strong>do</strong>s seus bens entre os que ficavam.<br />
157
158<br />
JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES<br />
O novo Código traz novi<strong>da</strong>des: primei-<br />
ro, Direito <strong>da</strong>s Obrigações; segun<strong>do</strong>, Direito<br />
de Empresa; depois, Direito de Família?<br />
Não. Direito <strong>da</strong>s Coisas. O Direito de Famí-<br />
lia vem em quarto lugar, segui<strong>do</strong> <strong>da</strong>s Suces-<br />
sões. É como um retrato <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de:<br />
o homem adquire a maiori<strong>da</strong>de, contrai<br />
obrigações, faz contratos, cria empresas,<br />
enriquece ou empobrece, adquire bens ou<br />
não, torna-se proprietário ou possui<strong>do</strong>r e,<br />
se der tempo, constitui família. A sucessão<br />
vem por último, mesmo porque a ciência<br />
genética não conseguiu, por enquanto, nos<br />
livrar <strong>da</strong> morte. Na próxima codificação,<br />
quem sabe...<br />
O juiz passa a ser, <strong>do</strong>ravante, o res-<br />
ponsável pelo delineamento <strong>da</strong> instituição<br />
familiar nesse início de século. Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
uma grande responsabili<strong>da</strong>de lhe é outorga-<br />
<strong>da</strong> - o papel que a socie<strong>da</strong>de patriarcal e ru-<br />
ral <strong>do</strong> velho Código atribuía <strong>ao</strong> pater fami-<br />
lias, a socie<strong>da</strong>de cibernética delega <strong>ao</strong> juiz,<br />
terceiro imparcial, representante de um<br />
Esta<strong>do</strong> que vai se tornan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais<br />
um big brother. Contraditórias disposições<br />
em face <strong>do</strong> art. 1.513 <strong>do</strong> mesmo Código, que<br />
proíbe a qualquer pessoa, de direito público<br />
ou priva<strong>do</strong>, interferir na comunhão de vi<strong>da</strong><br />
constituí<strong>da</strong> pela família. Para harmonizar<br />
esse dispositivo com os outros é necessário<br />
acrescentar: a não ser que essa comunhão<br />
não exista, quan<strong>do</strong> então o Esta<strong>do</strong>-Juiz de-<br />
verá ser aciona<strong>do</strong>.<br />
Diz-se que o novo Código, com essas<br />
medi<strong>da</strong>s, insere-se na linha pós-positivista,<br />
em que <strong>ao</strong> juiz é <strong>da</strong><strong>do</strong> um papel de des-<br />
taque, como elemento integra<strong>do</strong>r de uma<br />
nova filosofia de codificação, que se carac-<br />
teriza por uma estrutura aberta e flexível.<br />
O juiz é o elemento flui<strong>do</strong> que se move<br />
no meio dessas normas, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes vi<strong>da</strong> e<br />
abrin<strong>do</strong> espaço para uma nova faceta <strong>do</strong> Es-<br />
ta<strong>do</strong>, que prima pela judicialização <strong>do</strong>s seus<br />
conflitos e transforma o magistra<strong>do</strong> em uma<br />
estrela em ascensão, como o fora o legisla-<br />
<strong>do</strong>r, no século XVIII, ou o administra<strong>do</strong>r,<br />
nos séculos XIX e XX.<br />
Se a experiência <strong>do</strong>s outros vale como<br />
exemplo, Portugal tem a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> caminho<br />
diferente: partiu para a desjudicialização.<br />
Medi<strong>da</strong>s relativas a menores ou relações<br />
familiares, tais como atribuição de alimen-<br />
tos a filhos maiores, a autorização para<br />
utilização ou proibição <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> sobreno-<br />
me <strong>do</strong> cônjuge divorcia<strong>do</strong>, a conversão <strong>da</strong><br />
separação em divórcio, quan<strong>do</strong> não houver<br />
litígio, a reconciliação de cônjuges separa-<br />
<strong>do</strong>s, entre outras, foram transferi<strong>da</strong>s para<br />
o Ministério Público ou o próprio Cartório<br />
de Registro Civil (Decretos-Leis nºs 272 e<br />
273 de 13 de outubro de 2001). É o retorno<br />
<strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>-Administra<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s questões que<br />
efetivamente não possuíam natureza juris-<br />
dicional e foram por isso denomina<strong>da</strong>s de<br />
“jurisdição voluntária”. O Judiciário por-<br />
tuguês se despe dessas atribuições, para se<br />
concentrar naquilo que originariamente lhe<br />
cabe: a solução <strong>do</strong>s conflitos.<br />
As conseqüências <strong>da</strong> judicialização bra-<br />
sileira são previsíveis: provável aumento <strong>do</strong><br />
número de deman<strong>da</strong>s, congestionamento<br />
<strong>do</strong> (já sufoca<strong>do</strong>) aparelho judiciário, eter-<br />
nização <strong>do</strong>s litígios familiares, necessi<strong>da</strong>de<br />
de mais juízes, mais funcionários, mais<br />
recursos, ci<strong>da</strong>dão insatisfeito, Esta<strong>do</strong> em<br />
descrédito.<br />
A solução possível parece ser a aponta-<br />
<strong>da</strong> e defendi<strong>da</strong> com ênfase pela nobre mi-<br />
nistra Fátima Nancy Andrighi, <strong>do</strong> Superior<br />
Tribunal de Justiça: Juiza<strong>do</strong>s de Conciliação
ou de Pequenas Causas, também para a área<br />
de família. A experiência envolve custos<br />
menores, poden<strong>do</strong>-se valer de organismos<br />
de apoio psicológico e assistencial que não<br />
depen<strong>da</strong>m exclusivamente <strong>do</strong> dinheiro<br />
público, como por exemplo, as associações<br />
não-governamentais e o voluntaria<strong>do</strong>.<br />
De qualquer mo<strong>do</strong>, o novo Código reve-<br />
la uma curiosa faceta: apresenta-se como di-<br />
reito em construção, especialmente na área<br />
de família, em que para o juiz se transfere<br />
a penosa missão de intermediar os comple-<br />
xos (sob o ponto de vista social e humano)<br />
conflitos familiares. Dos juízes se espera, no<br />
entanto, a sabe<strong>do</strong>ria de deixar preserva<strong>da</strong><br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
a intimi<strong>da</strong>de familiar, utilizan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s<br />
meios que levem <strong>ao</strong> seu fortalecimento e<br />
não à sua dissolução. Afinal, ain<strong>da</strong> que sob<br />
nova roupagem, a família continua a ser,<br />
como já dizia Rui no início <strong>do</strong> século que<br />
fin<strong>do</strong>u, o refúgio e o conforto <strong>do</strong> indivíduo,<br />
a primeira escola, a célula forma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong><br />
grande organismo que é a pátria.<br />
Mônica Sifuentes é juíza federal em<br />
Brasília/DF, mestre em Direito Econômico<br />
pela UFMG e <strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> em Ciências Jurí-<br />
dico-Políticas pela Facul<strong>da</strong>de de Direito de<br />
Lisboa.<br />
159
Absorção<br />
O Crime de Roubo Segui<strong>do</strong> <strong>do</strong> Crime de Resistência:<br />
Absorção ou Desígnios Autônomos?<br />
Introdução<br />
O artigo visa esclarecer um <strong>do</strong>s temas<br />
mais complexos acerca <strong>do</strong> crime de re-<br />
sistência, qual seja, a verificação que se<br />
ocorrer à abor<strong>da</strong>gem, logo após o roubo.<br />
Cumpre concluir se teremos um des-<br />
<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> nexo de causali<strong>da</strong>de ou<br />
um caso de desígnios autônomos.<br />
Algumas considerações acerca<br />
<strong>do</strong> crime de resistência<br />
O atual Código Penal estatui um capítulo<br />
destina<strong>do</strong> à tutela penal <strong>da</strong> Administra-<br />
ção Pública, protegen<strong>do</strong>-a <strong>da</strong> atuação<br />
<strong>do</strong> particular que visar mediante meios<br />
obtusos frau<strong>da</strong>r as ativi<strong>da</strong>des públicas e<br />
dessa forma lesar o desenvolvimento <strong>do</strong><br />
mecanismo estatal, obten<strong>do</strong> um proveito<br />
para si ou para outrem, sen<strong>do</strong> essa a re-<br />
gra geral.<br />
ou Desígnios<br />
O tipo penal <strong>do</strong> art. 329, <strong>do</strong> Código<br />
Penal, diz ser crime o oferecimento de<br />
resistência, <strong>ao</strong> considerar mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />
típica o ato de: “Opor-se à execução de<br />
Renato Flávio Marcão e Flávio Augusto Maretti Siqueira<br />
ato legal, mediante violência ou ameaça<br />
a funcionário competente para executá-lo<br />
ou a quem lhe esteja prestan<strong>do</strong> auxílio”,<br />
estabelecen<strong>do</strong> pena de detenção, de 2<br />
(<strong>do</strong>is) meses a 2 (<strong>do</strong>is) anos. Se o ato,<br />
em razão <strong>da</strong> resistência, não se executa,<br />
a pena será de reclusão, de 1 (um) a 3<br />
(três) anos, consoante determina o § 1º,<br />
sen<strong>do</strong> certo que a teor <strong>do</strong> disposto no §<br />
2º, as penas deste artigo são aplicáveis<br />
sem prejuízo <strong>da</strong>s correspondentes à vio-<br />
lência.<br />
1) Objetivi<strong>da</strong>de jurídica<br />
A tutela penal conferi<strong>da</strong> à Admi-<br />
nistração Pública visa a manutenção <strong>da</strong><br />
legali<strong>da</strong>de, licitude, prestígio, moral e<br />
<strong>do</strong> dever de probi<strong>da</strong>de. O que se verifica<br />
<strong>ao</strong> traçarmos um paralelo com o direito<br />
administrativo é que a proteção penal é<br />
conferi<strong>da</strong> justamente para a consecução<br />
<strong>da</strong> maioria <strong>do</strong>s princípios constitucionais<br />
administrativos que regulam o desenvol-<br />
ver estatal. A ativi<strong>da</strong>de administrativa é<br />
161
162<br />
O CRIME DE ROUBO SEGUIDO DO CRIME DE RESISTÊNCIA:<br />
ABSORÇÃO OU DESÍGNIOS AUTÔNOMOS?<br />
considera<strong>da</strong> em to<strong>do</strong>s os níveis e subdivi-<br />
sões inerentes à administração indireta,<br />
que dá tenaci<strong>da</strong>de e vivaci<strong>da</strong>de <strong>ao</strong> apara-<br />
to estatal.<br />
Luiz Régis Pra<strong>do</strong> apresenta boa lição<br />
acerca <strong>do</strong> objeto e objetivos <strong>da</strong> tutela<br />
estatal a si próprio, asseveran<strong>do</strong> que: “A<br />
tutela penal, in casu, visa assegurar o<br />
normal funcionamento <strong>da</strong> Administra-<br />
ção Pública, asseguran<strong>do</strong> o exercício <strong>da</strong><br />
autori<strong>da</strong>de estatal, o prestígio <strong>da</strong> função<br />
pública e a segurança <strong>do</strong>s agentes públi-<br />
cos, bem como <strong>da</strong>queles que lhe prestam<br />
auxílio, para a consecução <strong>do</strong>s atos de<br />
ofício. Evidentemente, o ilegal insurgi-<br />
mento contra o exercício funcional <strong>da</strong><br />
Administração Pública resultaria no de-<br />
sencadeamento <strong>do</strong> c<strong>ao</strong>s social, em face <strong>da</strong><br />
degra<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> poder estatal; <strong>da</strong>í a neces-<br />
si<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proteção penal” 1 .<br />
O ilícito penal é reclama<strong>do</strong> pelas<br />
ativi<strong>da</strong>des estatais porque as sanções ad-<br />
ministrativas e civis não pareceram ser<br />
suficientes para conter as lesões <strong>ao</strong>s inte-<br />
resses públicos tutela<strong>do</strong>s.<br />
2) Sujeitos <strong>do</strong> crime<br />
Por se tratar de crimes pratica<strong>do</strong>s<br />
por particular contra a Administração,<br />
trata-se de crime comum, poden<strong>do</strong> ser<br />
pratica<strong>do</strong> por qualquer pessoa, inclusive<br />
o próprio funcionário público, mas se<br />
pratica<strong>do</strong> durante o exercício de suas<br />
funções, o delito poderá ser outro.<br />
O sujeito passivo será sempre o Esta-<br />
<strong>do</strong>, que é o titular, maior interessa<strong>do</strong> na<br />
manutenção <strong>da</strong> regulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Adminis-<br />
tração Pública e no justo cumprimento<br />
<strong>da</strong>s ordens dela emana<strong>da</strong>s. De forma<br />
subsidiária podemos cogitar <strong>do</strong> funcioná-<br />
rio público no exercício de suas funções,<br />
que está incumbi<strong>do</strong> <strong>da</strong> prática <strong>do</strong> ato de<br />
execução, e aquele que acompanha o fun-<br />
cionário no cumprimento <strong>do</strong> coman<strong>do</strong>, o<br />
qual o particular forçosamente visa obs-<br />
tar por via <strong>da</strong> ameaça ou violência.<br />
Convém a nós lembrarmos que o con-<br />
ceito de funcionário público restringe-se<br />
àquele que possui competência para a<br />
prática <strong>do</strong> ato executório, na elastici<strong>da</strong>-<br />
de <strong>do</strong> conceito 2 <strong>do</strong> art. 327, <strong>do</strong> Código<br />
Penal. Julio Fabbrini Mirabete lembra<br />
que: “É necessário que o funcionário seja<br />
competente para a prática <strong>do</strong> ato de ofí-<br />
cio, já que o dispositivo se refere à ordem<br />
legal, e um <strong>do</strong>s requisitos desta é que<br />
tenha o executor atribuição para praticá-<br />
lo. É necessário para a caracterização <strong>do</strong><br />
crime que o funcionário esteja exercen<strong>do</strong><br />
suas funções quan<strong>do</strong> o agente se opõe à<br />
execução <strong>do</strong> ato” 3 .<br />
1 Pra<strong>do</strong>, Luiz Régis, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. IV. 3ª Ed. RT. SP/SP, 2001, pág. 516.<br />
Nesse diapasão, lembremos que o<br />
funcionário deve ter competência para o<br />
ato, sen<strong>do</strong> que esta se subdivide em com-<br />
petência delega<strong>da</strong> em virtude <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>-<br />
de pública e competência no momento <strong>da</strong><br />
ocorrência <strong>da</strong> resistência.<br />
Tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema em apreço, o egré-<br />
gio Tribunal de Alça<strong>da</strong> Criminal <strong>do</strong> Esta-<br />
<strong>do</strong> de São Paulo já decidiu que: “É neces-<br />
2 Sobre o conceito de funcionário público vide nosso artigo: “O Funcionário Público visto pelo Direito Penal”, in www.direitonet.com.br, onde dissertamos<br />
sobre o tema.<br />
3 Mirabete, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, vol. III. 16ª. Ed. Atlas. SP/SP, 2001, pág. 361.<br />
O ilícito penal<br />
é reclama<strong>do</strong><br />
pelas<br />
ativi<strong>da</strong>des<br />
estatais porque<br />
as sanções<br />
administrativas<br />
e civis não<br />
pareceram<br />
ser suficientes<br />
para conter<br />
as lesões <strong>ao</strong>s<br />
interesses<br />
públicos<br />
tutela<strong>do</strong>s.
sário para a caracterização <strong>do</strong> crime <strong>do</strong><br />
art. 329 <strong>do</strong> CP que o funcionário esteja<br />
exercen<strong>do</strong> suas funções quan<strong>do</strong> o agente<br />
se opõe à execução de ato legal” (RJDTA-<br />
CRIM 2/144).<br />
3) Tipo objetivo<br />
A conduta encarta<strong>da</strong> como afrontosa<br />
à lei penal é a de oferecer oposição <strong>ao</strong> ato<br />
legal de execução, com a demonstração<br />
de força por via de violência ou ameaça.<br />
O foco <strong>da</strong> conduta ilícita está na de-<br />
monstração <strong>do</strong> agente com a insatisfação<br />
na execução <strong>do</strong> ato e também que esta<br />
provenha de forma comissiva, dirigi<strong>da</strong><br />
diretamente contra o agente público en-<br />
carrega<strong>do</strong> <strong>do</strong> cumprimento <strong>do</strong> ato.<br />
A ação positiva deve revelar uma<br />
violência ou ameaça, pois caso revele<br />
somente uma forma omissiva, com uma<br />
resistência pacífica, sem as elementares<br />
agressivas, nos depararemos com a figu-<br />
ra penal <strong>da</strong> desobediência (art. 330, <strong>do</strong><br />
Código Penal). Assim, nos remetemos à<br />
lição de Julio Fabbrini Mirabete, cuja<br />
lição é no senti<strong>do</strong> de que: “A oposição à<br />
prática <strong>do</strong> ato legal deve ser atuante e<br />
positiva, não a configuran<strong>do</strong> a resistên-<br />
cia passiva, a passivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> agente, a<br />
atitude que, embora possa ser tendente a<br />
impedir o ato legal, não se configura em<br />
violência ou ameaça (RT 509/343, 601/<br />
332, 356/307, JTACrSP 74/261; RF 264/<br />
344). Nesse caso poderá ocorrer o crime<br />
de desobediência (RF 225/329)” 4 .<br />
A vis corporalis pode se <strong>da</strong>r com o<br />
emprego de qualquer instrumento ou<br />
4 Mirabete, Julio Fabbrini, op. cit. pág. 362.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
meio apto a gerar na vítima lesões, feri-<br />
mentos, independen<strong>do</strong> se aconteceu ou<br />
não, pois, basta a tentativa. A ameaça<br />
não se reveste aqui <strong>da</strong> “promessa de mal<br />
injusto e grave”, característica <strong>do</strong> art.<br />
147, <strong>do</strong> Código Penal, aparecen<strong>do</strong> essa<br />
vis moralis por via de gestos, palavras.<br />
Ain<strong>da</strong>, interessante é relevarmos<br />
que a resistência deve ocorrer no exato<br />
momento <strong>da</strong> consumação <strong>do</strong> ato legal,<br />
que por via de sua conduta o particular<br />
tenta barrar, impedir, parar, coagir para<br />
infiltrar o temor e afastar a ação estatal<br />
lícita. Caso ocorra antes <strong>do</strong> início <strong>do</strong> ato<br />
ou a posteriori, com vistas a responder <strong>ao</strong><br />
ato legal, como via de represália, teremos<br />
um outro crime (desacato, injúria, difa-<br />
mação), mas o certo é que não teremos<br />
a incidência <strong>da</strong> resistência, justamente<br />
pelo ato ter se consuma<strong>do</strong>.<br />
Se o ato não estiver revesti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
mais estrita legali<strong>da</strong>de, terá o particu-<br />
lar o direito de resistir <strong>ao</strong> mesmo, pois,<br />
haverá frontal violação <strong>ao</strong> princípio <strong>da</strong><br />
legali<strong>da</strong>de insculpi<strong>do</strong> no art. 5º, II, CR,<br />
segun<strong>do</strong> o qual “ninguém será obriga<strong>do</strong><br />
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa<br />
senão em virtude de lei”. Então, surge a<br />
norma excludente <strong>da</strong> antijuridici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
legítima defesa (arts. 23, inc. II, e 25, <strong>do</strong><br />
Código Penal) contra ato que foge à lega-<br />
li<strong>da</strong>de e, portanto, arrepia a lei e a ordem<br />
jurídica como um to<strong>do</strong>, sempre fazen<strong>do</strong><br />
a ressalva de que tu<strong>do</strong> o que excede os<br />
patamares <strong>da</strong> normali<strong>da</strong>de para afastar a<br />
infringência estatal configura o excesso<br />
<strong>do</strong>loso ou culposo, que ganha forma e<br />
163
164<br />
O CRIME DE ROUBO SEGUIDO DO CRIME DE RESISTÊNCIA:<br />
ABSORÇÃO OU DESÍGNIOS AUTÔNOMOS?<br />
capitulação no estatuto repressivo pátrio<br />
(art. 23, § único, <strong>do</strong> Código Penal). A<br />
conduta é plenamente fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> no<br />
alicerce basilar <strong>da</strong> natureza humana, o<br />
de o homem lutar contra tu<strong>do</strong> aquilo que<br />
injustamente reprime.<br />
São comuns os casos de resistência<br />
contra a efetivação de prisão em flagran-<br />
te, cumprin<strong>do</strong> assinalar, com apoio na<br />
jurisprudência, que “sen<strong>do</strong> o flagrante<br />
provoca<strong>do</strong>, o que torna impossível a con-<br />
sumação de um crime, que, assim, não se<br />
materializa (Súmula 145 <strong>do</strong> STF) não se<br />
caracterizam os crimes <strong>do</strong>s arts. 329, 330<br />
e 331 <strong>do</strong> CP, na resistência ilegal à pri-<br />
são. Também não se caracteriza o <strong>do</strong> art.<br />
129 <strong>do</strong> CP, quan<strong>do</strong>, nas mesmas circuns-<br />
tâncias, o agente, repele, <strong>ao</strong> abrigo <strong>do</strong><br />
art. 25 <strong>do</strong> CP, a violência física de agente<br />
<strong>da</strong> Administração que, sem esteio legal, o<br />
pretende subjugar, para conduzi-lo pre-<br />
so” (RT 686/370).<br />
4) Tipo subjetivo<br />
O <strong>do</strong>lo <strong>do</strong> agente aqui é o de resistir,<br />
apresentar oposição, defender na tentati-<br />
va de afastar o ato estatal lícito mediante<br />
violência ou grave ameaça emprega<strong>da</strong><br />
contra o funcionário público ou seu as-<br />
sistente, saben<strong>do</strong> dessa condição e <strong>da</strong><br />
legali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> ato, que é o elemento espe-<br />
cial <strong>do</strong> injusto. O que deixa níti<strong>do</strong> que a<br />
forma culposa nos conduz <strong>ao</strong> erro penal<br />
<strong>do</strong> art. 20 e ss., <strong>do</strong> Código Penal, afastan-<br />
<strong>do</strong> a incidência <strong>do</strong> tipo.<br />
Estes méto<strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s devem ser<br />
aptos para tentar embargar a ação estatal<br />
sobre o agente. Conforme eluci<strong>da</strong> Julio<br />
Fabbrini Mirabete, <strong>ao</strong> cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> conduta<br />
pratica<strong>da</strong> por pessoa embriaga<strong>da</strong>: “Quan-<br />
to à resistência de pessoa embriaga<strong>da</strong>,<br />
há duas posições: a primeira é a de que o<br />
embriaga<strong>do</strong> não age com o <strong>do</strong>lo específi-<br />
co <strong>do</strong> delito; a segun<strong>da</strong> é a de que, além<br />
de tu<strong>do</strong>, basta o <strong>do</strong>lo genérico para a<br />
caracterização <strong>do</strong> crime. Deve prevalecer<br />
aquela que não exclui o <strong>do</strong>lo ou a culpa-<br />
bili<strong>da</strong>de à embriaguez voluntária ou cul-<br />
posa, como expressamente o prevê o art.<br />
28, II, <strong>do</strong> CP” 5 .<br />
5 Mirabete, Julio Fabbrini, Código Penal interpreta<strong>do</strong>; 1ª ed. Atlas; São Paulo/SP, 1999, pág. 1765.<br />
6 Pra<strong>do</strong>, Luiz Régis, Op. cit. pág. 520.<br />
Não se exige aqui o <strong>do</strong>lo específico,<br />
como pugna uma parte <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina, mas<br />
sim o <strong>do</strong>lo genérico, dessa sorte, o in-<br />
divíduo embriaga<strong>do</strong> poderá ser sujeito<br />
ativo <strong>do</strong> crime. Interessante ponderarmos<br />
que essa embriaguez restringe-se àquela<br />
voluntariamente procura<strong>da</strong> pelo agente,<br />
afastan<strong>do</strong> aqui a embriaguez fortuita ou<br />
proveniente de força maior, que configu-<br />
rará causa excludente <strong>da</strong> culpabili<strong>da</strong>de,<br />
nos termos <strong>do</strong> art. 28, <strong>do</strong> Código Penal,<br />
pois conforme se tem entendi<strong>do</strong>, é “sufi-<br />
ciente à configuração <strong>do</strong> delito de resis-<br />
tência conduzir-se o agente com <strong>do</strong>lo ge-<br />
nérico. Assim, irrelevante à consumação<br />
<strong>do</strong> crime, encontrar-se o agente em esta<strong>do</strong><br />
de ebrie<strong>da</strong>de” (JTACRIM 74/385). “Dis-<br />
pon<strong>do</strong> a lei penal que a embriaguez vo-<br />
luntária ou culposa <strong>do</strong> agente não exclui a<br />
responsabili<strong>da</strong>de penal, não se pode, com<br />
base nela, absolver o acusa<strong>do</strong> <strong>do</strong> delito de<br />
resistência. Mesmo porque nem <strong>do</strong>lo espe-<br />
cífico exige o crime, contentan<strong>do</strong>-se com<br />
o genérico” (JTACRIM 46/270).
5) Consumação e tentativa<br />
Segun<strong>do</strong> a lição de Luiz Régis Pra-<br />
<strong>do</strong>: “O delito é formal e se consuma no<br />
momento em que o agente pratica a vio-<br />
lência ou ameaça contra o funcionário<br />
ou seu eventual assistente, com o escopo<br />
de que não seja realiza<strong>do</strong> o ato de ofício,<br />
não se exigin<strong>do</strong> que o agente alcance a<br />
meta optata, bastan<strong>do</strong> que a conduta seja<br />
apta a atingir tal fim” 6 .<br />
A tentativa, por se tratar de crime<br />
formal, somente será possível nos casos<br />
em que a ameaça se dê por escrito, sen<strong>do</strong><br />
intercepta<strong>da</strong> antes de chegar <strong>ao</strong> conheci-<br />
mento <strong>do</strong> funcionário público incumbi<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> tarefa ou seu auxiliar, mas nunca será<br />
possível na hipótese de violência, pois o<br />
ato de tentar praticar a violência física já<br />
configura o delito, que é formal.<br />
A questão <strong>do</strong> roubo<br />
O roubo é um crime contra o patrimônio<br />
descrito nas linhas <strong>do</strong> art. 157, <strong>do</strong> Código<br />
Penal. Neste delito, o agente se vale <strong>do</strong><br />
emprego de violência, <strong>da</strong> grave ameaça<br />
ou de meio que impossibilite a defesa <strong>do</strong><br />
ofendi<strong>do</strong> para alcançar a inversão <strong>da</strong> pos-<br />
se e ter a coisa alheia móvel como sua,<br />
mediante subtração.<br />
Destarte, verificamos que o crime de<br />
roubo tem como elementar a violência<br />
(em senti<strong>do</strong> amplo), o que o diferencia<br />
<strong>do</strong> furto qualifica<strong>do</strong>, onde esta é empre-<br />
ga<strong>da</strong> contra a coisa (em algumas hipó-<br />
teses). Ao contrapormos com o delito de<br />
resistência, verificamos o emprego <strong>da</strong><br />
7 Jesus, Damásio E. de. Direito Penal, 22a Ed., São Paulo: Saraiva, v. I, Parte Geral, 1999.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
violência em ambos, mas com finali<strong>da</strong>-<br />
des diferentes, pois, neste último ela é<br />
utiliza<strong>da</strong> para contrariar a prática de ato<br />
legal, e no primeiro para que o me<strong>do</strong> eive<br />
os sentimentos <strong>da</strong> pessoa e esta entregue<br />
a coisa <strong>ao</strong> agente.<br />
O problema surge quan<strong>do</strong> a resistência<br />
é emprega<strong>da</strong> após a consumação <strong>do</strong> roubo.<br />
Seria esta um des<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> nexo de<br />
causali<strong>da</strong>de ou um delito autônomo?<br />
Os defensores <strong>da</strong> primeira teoria en-<br />
tendem que há um des<strong>do</strong>bramento no uso<br />
<strong>da</strong> violência, com esta resistência se <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
para manter a posse <strong>da</strong> coisa e não autono-<br />
mamente, com a resistência sen<strong>do</strong> absorvi-<br />
<strong>da</strong> pelo roubo, pois foi meio para o fim.<br />
Nos ensina Damásio E. de Jesus que:<br />
“Ocorre a relação consuntiva, ou de ab-<br />
sorção, quan<strong>do</strong> um fato defini<strong>do</strong> por uma<br />
norma incrimina<strong>do</strong>ra é meio necessário<br />
ou normal fase de preparação ou execu-<br />
ção de outro crime, bem como quan<strong>do</strong><br />
constitui conduta anterior ou posterior<br />
<strong>do</strong> agente, cometi<strong>da</strong> com a mesma finali-<br />
<strong>da</strong>de prática atinente àquele crime.” 7 O<br />
mais grave vai absorver to<strong>do</strong>s os crimes<br />
que ocorreram antes <strong>do</strong> mais grave, du-<br />
rante o Iter Criminis.<br />
Há entendimento no senti<strong>do</strong> de que<br />
“a resistência oposta pelo agente de roubo<br />
<strong>ao</strong>s policiais que, o ten<strong>do</strong> surpreendi<strong>do</strong> em<br />
plena execução desse crime, passaram a<br />
persegui-lo, constitui mero des<strong>do</strong>bramento<br />
<strong>da</strong> violência emprega<strong>da</strong> para a violação<br />
patrimonial, e, conseqüentemente, o delito<br />
<strong>do</strong> art. 329 fica absorvi<strong>do</strong> pelo <strong>do</strong> art. 157,<br />
<strong>do</strong> CP, em virtude <strong>do</strong> concurso aparente<br />
165
166<br />
O CRIME DE ROUBO SEGUIDO DO CRIME DE RESISTÊNCIA:<br />
ABSORÇÃO OU DESÍGNIOS AUTÔNOMOS?<br />
dessas duas normas, só aplicável, entretan-<br />
to, à hipótese de tentativa” (TACrimSP, RT<br />
704/358 e TACRimSP, JTACRIM 67/344),<br />
sen<strong>do</strong> certo que a “resistência subseqüente<br />
a roubo, mormente o impróprio previsto<br />
no art. 157, § 1º, CP, é des<strong>do</strong>bramento <strong>da</strong><br />
violência, caracteriza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> delito inicial,<br />
não merecen<strong>do</strong>, assim apenação (NÃO É<br />
A PENAÇÃO?) autônoma” (JTACRIM<br />
58/275).<br />
A outra corrente, a qual entendemos<br />
ser correta, defende que há um des<strong>do</strong>bra-<br />
mento no nexo de causali<strong>da</strong>de, uma vez<br />
que a inversão <strong>da</strong> posse se operou com o<br />
agente empregan<strong>do</strong> a violência ou grave<br />
ameaça contra autori<strong>da</strong>de, com vistas a<br />
manter a sua posse, mas primordialmente<br />
para a manutenção <strong>do</strong> status libertatis, que<br />
se encontra em vias de ser perdi<strong>do</strong> com a<br />
sua prisão em flagrante delito.<br />
O des<strong>do</strong>bramento ocorre porque a vio-<br />
lência visa evitar a autuação em flagrância<br />
delitiva e a manutenção <strong>da</strong> coisa, e não<br />
como no roubo, onde se objetiva a obten-<br />
ção <strong>da</strong> posse. Com a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> posse<br />
em suas mãos, ocorren<strong>do</strong> após a subtração<br />
e a violência posterior contra a imposição<br />
policial, denota o dúplice caráter <strong>da</strong> vio-<br />
lência utiliza<strong>da</strong> e o cúmulo <strong>da</strong>s penas, nos<br />
termos <strong>do</strong> art. 69, <strong>do</strong> Código Penal.<br />
Esse entendimento tem si<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />
em diversas decisões <strong>do</strong> egrégio Tribunal<br />
de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo, onde<br />
se tem ressalta<strong>do</strong> que “a violência empre-<br />
ga<strong>da</strong> pelo assaltante para resistir à prisão<br />
não se confunde com a utiliza<strong>da</strong> para a<br />
prática <strong>do</strong> roubo, configuran<strong>do</strong>-se, pois,<br />
o delito <strong>do</strong> art. 329, § 1º, <strong>do</strong> CP e justifi-<br />
can<strong>do</strong> a aplicação de penas cumulativas”<br />
(RT 560/352). Em acórdão <strong>do</strong> egrégio<br />
Tribunal de Alça<strong>da</strong> Criminal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
de São Paulo ficou consigna<strong>do</strong> que “se a<br />
ação <strong>do</strong> infrator, resistin<strong>do</strong> à interven-<br />
ção <strong>da</strong> polícia, teve lugar muito tempo<br />
depois <strong>da</strong> subtração <strong>da</strong> res, quan<strong>do</strong> com<br />
ela procurava fugir, evitan<strong>do</strong> sua prisão,<br />
configura<strong>do</strong> resulta o delito <strong>do</strong> art. 329<br />
<strong>do</strong> CP” (RT 577/389).<br />
Conclusão<br />
A absorção <strong>do</strong> crime de resistência, <strong>ao</strong><br />
nosso ver, não se opera aqui porque são<br />
lesa<strong>da</strong>s duas objetivi<strong>da</strong>des jurídicas dis-<br />
tintas, a saber: a administração pública e<br />
o patrimônio; em momentos diferentes e<br />
por razões diversas, embora seqüenciais<br />
no tempo. Assim, entendemos que haven-<br />
<strong>do</strong> resistência de molde a configurar a<br />
conduta típica, após o crime de roubo, a<br />
questão jurídica proposta se resolve pela<br />
regra <strong>do</strong> concurso de crimes, segun<strong>do</strong> a<br />
regra <strong>do</strong> cúmulo material (art. 69 <strong>do</strong> Có-<br />
digo Penal), in<strong>do</strong> além <strong>do</strong> permiti<strong>do</strong> no<br />
art. 329, § 2º, <strong>do</strong> Código Penal.<br />
Renato Flávio Marcão é membro <strong>do</strong> Mi-<br />
nistério Público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo;<br />
mestre em Direito Penal, coordena<strong>do</strong>r<br />
Cultural <strong>da</strong> Escola Superior <strong>do</strong> Ministério<br />
Público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo - Núcleo<br />
de São José <strong>do</strong> Rio Preto-SP e membro <strong>da</strong><br />
Associação Internacional de Direito Penal<br />
(AIDP).<br />
Flávio Augusto Maretti Siqueira é aluno<br />
<strong>do</strong> Curso de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
Ribeirão Preto (UNAERP) e presidente<br />
<strong>do</strong> Instituto de Estu<strong>do</strong>s de Direito Penal e<br />
Processo Penal (IEDPP) <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de.
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2001.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Jesus, Damásio E. de. Direito Penal, 22a Ed., São Paulo: Saraiva, vol I, Parte Geral;<br />
_______________, Código Penal interpreta<strong>do</strong>. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.<br />
Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, 16ª ed., São Paulo: Atlas, vol. III.<br />
Pra<strong>do</strong>, Luiz Régis. Curso de Direito Penal brasileiro, 3ª ed., São Paulo: Revista <strong>do</strong>s<br />
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Siqueira, Flávio Augusto Maretti. O Funcionário Público visto pelo Direito Direito<br />
Penal (artigo). www.direitonet.com.br. Dezembro/2002. Dezembro/2002.<br />
167
Agência Esta<strong>do</strong>
Só se pode<br />
falar em<br />
inclusão porque<br />
há a exclusão;<br />
só se fala<br />
de excluí<strong>do</strong>s<br />
porque há<br />
aqueles que<br />
não o são, os<br />
ditos incluí<strong>do</strong>s.<br />
Inclusão<br />
A inclusão social tem si<strong>do</strong> um tema<br />
amplamente debati<strong>do</strong> e estu<strong>da</strong><strong>do</strong> sob as<br />
mais diversas óticas, geralmente contra-<br />
posto à noção de exclusão social e en-<br />
tendi<strong>do</strong> como um direito. O discurso <strong>da</strong><br />
inclusão social tem permea<strong>do</strong> as falas de<br />
profissionais, pesquisa<strong>do</strong>res, trabalha<strong>do</strong>-<br />
res <strong>da</strong>s mais diversas áreas, geralmente<br />
coloca<strong>da</strong> como forma de trabalho ou<br />
como meta.<br />
Mas a discussão sobre a inclusão<br />
toca em aspectos muito mais complexos:<br />
envolve pensar quem é esse outro a ser<br />
incluí<strong>do</strong> e que espaço ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s atores<br />
desta situação acredita que este outro<br />
deve ocupar. Por isso, é essencial pensar<br />
no conceito de inclusão (e conseqüente-<br />
mente de exclusão), sem o que fica muito<br />
difícil compreender o porquê <strong>da</strong>s difi-<br />
cul<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>s resistências e <strong>do</strong>s sucessos<br />
desse processo.<br />
A exclusão vem sen<strong>do</strong> coloca<strong>da</strong> como<br />
a grande vilã em contraponto à inclusão,<br />
esta ti<strong>da</strong> como a solução para os proble-<br />
Celina Camargo Bartalotti<br />
mas <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s. As coisas<br />
não são assim tão simples.<br />
Existe realmente exclusão? Será que<br />
essa polarização acontece, como se hou-<br />
vessem <strong>do</strong>is espaços distintos, incompa-<br />
tíveis: o <strong>da</strong> inclusão e o <strong>da</strong> exclusão, o <strong>do</strong><br />
bem e o <strong>do</strong> mal, o que apontaria para a<br />
meta de aban<strong>do</strong>nar o espaço <strong>da</strong> exclusão<br />
e alcançar a tão almeja<strong>da</strong> inclusão social?<br />
Segun<strong>do</strong> Sawaia (1999: 105),<br />
“... ambas não constituem categorias em<br />
si, cujo significa<strong>do</strong> é <strong>da</strong><strong>do</strong> por quali<strong>da</strong>des<br />
específicas, invariantes, conti<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong><br />
um <strong>do</strong>s termos, mas são <strong>da</strong> mesma subs-<br />
tância e formam um par indissociável,<br />
que se constitui na própria relação. A<br />
dinâmica entre elas demonstra a capaci-<br />
<strong>da</strong>de de uma socie<strong>da</strong>de existir como um<br />
sistema”.<br />
Só se pode falar em inclusão porque<br />
há a exclusão; só se fala de excluí<strong>do</strong>s<br />
porque há aqueles que não o são, os ditos<br />
incluí<strong>do</strong>s.<br />
Social<br />
A Inclusão Social <strong>da</strong> Pessoa com Deficiência<br />
e o Papel <strong>da</strong> Terapia Ocupacional<br />
169
170<br />
A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />
E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />
Mas, segun<strong>do</strong> Martins (1999) a exclu-<br />
são, de fato, não existe. O que existe são<br />
inclusões precárias, marginais, instáveis.<br />
O fato de alguém estar excluí<strong>do</strong> de algum<br />
espaço significa que não pertence a este,<br />
mas pertence a algum outro, no qual se<br />
inclui. Continua Martins (1999: 27) afir-<br />
man<strong>do</strong> que:<br />
“O discurso corrente sobre a exclusão é<br />
basicamente produto de um equívoco, de<br />
uma fetichização conceitual <strong>da</strong> exclusão,<br />
a exclusão transforma<strong>da</strong> numa palavra<br />
mágica que explicaria tu<strong>do</strong>.”<br />
Existem, portanto, formas de inclu-<br />
são, locais sociais defini<strong>do</strong>s. O movimen-<br />
to <strong>da</strong> inclusão social, na ver<strong>da</strong>de, é uma<br />
proposta de mu<strong>da</strong>nça de lugar social - ti-<br />
rar (ou desencluir) alguém de um espaço<br />
e incluí-lo em outro. Isso pode desestru-<br />
turar tanto o lugar de onde se tira, como<br />
o lugar no qual se coloca. É um processo<br />
que envolve um rearranjo, em última<br />
instância, <strong>da</strong>s relações entre as pessoas.<br />
Esse pensamento nos leva a um dis-<br />
tanciamento <strong>da</strong>s análises sociológicas,<br />
obrigan<strong>do</strong> à busca de um olhar sobre<br />
os sujeitos constituintes <strong>da</strong>s relações<br />
inclusivas/exclusivas, conforme propõe<br />
Jodelet (1999: 53):<br />
“A noção de exclusão, bastante polissêmi-<br />
ca, compreende fenômenos tão varia<strong>do</strong>s<br />
que nós podemos nos perguntar até onde<br />
se justifica falar ou tratar de exclusão em<br />
geral, o que suporia juntar to<strong>do</strong>s os pro-<br />
cessos que ela implica ou to<strong>da</strong>s as formas<br />
que ela toma em uma mesma alterna-<br />
tiva. Até onde é legítimo ligar exclusão<br />
<strong>ao</strong> racismo, <strong>ao</strong> desemprego, <strong>ao</strong>s conflitos<br />
internacionais ou ain<strong>da</strong> a um esta<strong>do</strong> de<br />
incapaci<strong>da</strong>de física ou mental, etc? Há<br />
pelo menos um nível onde a abor<strong>da</strong>gem<br />
única <strong>da</strong> exclusão pode fazer senti<strong>do</strong>: o<br />
nível <strong>da</strong>s interações entre pessoas e entre<br />
grupos, que dela são agentes ou vítimas.”<br />
A inclusão social é, portanto, um con-<br />
ceito bastante abrangente, que implica<br />
multideterminações, que sempre envol-<br />
vem a interação de intersubjetivi<strong>da</strong>des e<br />
sujeitos que partilham uma determina<strong>da</strong><br />
situação.<br />
Falar em inclusão social implica falar<br />
em democratização <strong>do</strong>s espaços sociais,<br />
em crença na diversi<strong>da</strong>de como valor,<br />
na socie<strong>da</strong>de para to<strong>do</strong>s. Incluir não é<br />
apenas colocar junto e, principalmente,<br />
não é negar a diferença, mas respeitá-la<br />
como constitutiva <strong>do</strong> humano. O valor<br />
- positivo ou negativo - que se atribui à<br />
diferença é algo construí<strong>do</strong> nas relações<br />
humanas. O vetor <strong>da</strong> exclusão/inclusão<br />
não está, portanto, na diferença em si,<br />
mas no valor a ela atribuí<strong>do</strong>.<br />
Os discursos inclusivistas têm si<strong>do</strong><br />
acompanha<strong>do</strong>s de sentimentos contradi-<br />
tórios: muitos o consideram utópico; ou-<br />
tros, inadequa<strong>do</strong>. Muitos <strong>do</strong> que defen-<br />
dem a inclusão, geralmente de maneira<br />
apaixona<strong>da</strong>, tendem a ser intransigentes<br />
- incluir já, incluir to<strong>do</strong>s! A reação?<br />
Me<strong>do</strong>, desconfiança. Como é possível<br />
que estes que, até ontem necessitavam de<br />
espaços especiais, de profissionais treina-<br />
<strong>do</strong>s especificamente para os atender, pos-<br />
sam hoje partilhar, em pé de igual<strong>da</strong>de,<br />
os mesmo espaços destina<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s “não<br />
diferentes”? Não eram, até ontem, neces-<br />
sários méto<strong>do</strong>s e estratégias específicas<br />
para eles? Isso acabou?<br />
Falar em<br />
inclusão<br />
social implica<br />
falar em<br />
democratização<br />
<strong>do</strong>s espaços<br />
sociais, em<br />
crença na<br />
diversi<strong>da</strong>de<br />
como valor, na<br />
socie<strong>da</strong>de para<br />
to<strong>do</strong>s.
O me<strong>do</strong> é fruto, muitas vezes, <strong>do</strong> des-<br />
conhecimento. Outras vezes, <strong>da</strong> própria<br />
experiência (que pode ser a <strong>do</strong> fracasso,<br />
a <strong>da</strong> sensação de incapaci<strong>da</strong>de para li<strong>da</strong>r<br />
com algo). Na área <strong>da</strong> educação temos<br />
muitos exemplos disso:<br />
“Os professores <strong>da</strong>s turmas de educação<br />
regular consideravam os professores que<br />
trabalhavam nas turmas de educação<br />
especial como detentores de uma prepara-<br />
ção especial e de uma habili<strong>da</strong>de especial<br />
para o trabalho. Eram uma raça à parte,<br />
e era visto como inadequa<strong>do</strong> esperar que<br />
professores que não tivessem esse preparo<br />
e inclinação participassem <strong>da</strong> educação de<br />
alunos em cadeiras de ro<strong>da</strong>s e alunos com<br />
dificul<strong>da</strong>de de aprendizagem.” (Stainback<br />
e Stainback, 1999: 38)<br />
Profissionais especiais para pessoas<br />
especiais. Olhar o diferente (no caso a<br />
pessoa com deficiência) de longe, de uma<br />
distância segura, parece criar uma mís-<br />
tica em torno de seu acompanhamento,<br />
como se aqueles que se dedicassem a<br />
este trabalho fossem possui<strong>do</strong>res de al-<br />
gum <strong>do</strong>m, habili<strong>da</strong>de especial. É muito<br />
comum na experiência cotidiana ouvir-<br />
mos falas <strong>do</strong> tipo: trabalhar com essas<br />
crianças exige muita paciência, é muito<br />
difícil, vocês certamente são pessoas es-<br />
peciais. Mais <strong>do</strong> que o preparo especiali-<br />
za<strong>do</strong>, parece haver um imaginário de que<br />
é preciso ser diferente para li<strong>da</strong>r com o<br />
diferente.<br />
Nesta discussão, é preciso considerar<br />
que o discurso inclusivista, como vem<br />
sen<strong>do</strong> coloca<strong>do</strong> (inclusive na legislação<br />
atual), é recente. Segun<strong>do</strong> Sassaki (1998),<br />
embora o chama<strong>do</strong> movimento <strong>da</strong> inclu-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
são social tenha se inicia<strong>do</strong> na segun<strong>da</strong><br />
metade <strong>do</strong>s anos 80, foi apenas na déca<strong>da</strong><br />
de 90 que tomou impulso, embora as<br />
idéias inclusivistas já viessem, há muito<br />
tempo, perpassan<strong>do</strong> várias propostas re-<br />
ferentes <strong>ao</strong>s chama<strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s.<br />
Mas, na ver<strong>da</strong>de, a diferença vem<br />
sen<strong>do</strong>, historicamente, considera<strong>da</strong> como<br />
um problema, como uma <strong>do</strong>ença. As pes-<br />
soas com deficiência têm uma história<br />
de segregação, seja em espaços asilares,<br />
seja em espaços chama<strong>do</strong>s especializa-<br />
<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> seu atendimento. Trata<strong>do</strong>s como<br />
<strong>do</strong>entes, as ações destina<strong>da</strong>s a essas pes-<br />
soas, a partir de concepções higienistas,<br />
tratam de isola-las. Consideramos esta<br />
uma forma que a socie<strong>da</strong>de encontra de<br />
não defrontar-se com a diferença, com o<br />
estranho.<br />
Segun<strong>do</strong> Amaral (1995), o confronto<br />
com a diferença causa uma hegemonia <strong>do</strong><br />
emocional sobre o racional. Negar, não<br />
a diferença, mas o diferente é, de certa<br />
forma, confortável, pois não nos obriga<br />
a qualquer transformação. A diferença<br />
(no caso desse artigo, a deficiência) apa-<br />
rece coloca<strong>da</strong> como algo que não nos diz<br />
respeito, algo que pertence <strong>ao</strong> espaço <strong>do</strong><br />
outro, entenden<strong>do</strong> o outro não no senti<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, mas <strong>do</strong> estranho, <strong>do</strong> que<br />
causa incômo<strong>do</strong>. Assim, isola-lo em espa-<br />
ços que, confortavelmente, se apresenta-<br />
riam como “mais adequa<strong>do</strong>s”, de alguma<br />
forma, exime a socie<strong>da</strong>de de enfrentar a<br />
contradição essencial de seu caráter ex-<br />
cludente.<br />
Mas vamos continuar nosso caminho<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> compreensão <strong>do</strong>s conceitos<br />
inclusivistas. Estes surgiram a partir <strong>do</strong>s<br />
chama<strong>do</strong>s conceitos pré-inclusivistas.<br />
171
172<br />
A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />
E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />
No que se refere à deficiência em geral,<br />
ain<strong>da</strong> pre<strong>do</strong>mina o modelo médico, que,<br />
como já dissemos, a vê como patologia,<br />
como um problema <strong>do</strong> indivíduo, que<br />
deve ser trata<strong>do</strong>. Encaran<strong>do</strong>-se a defici-<br />
ência como patologia, as diferenças que<br />
este indivíduo apresenta, em relação a<br />
um padrão considera<strong>do</strong> normal, são ava-<br />
lia<strong>da</strong>s como sintomas que precisam ser<br />
trata<strong>do</strong>s para que a diferença seja supe-<br />
ra<strong>da</strong>. Deste modelo deriva a maioria <strong>do</strong>s<br />
conheci<strong>do</strong>s trabalhos de reabilitação que,<br />
fun<strong>da</strong>mentalmente, investem na tentati-<br />
va de “minimizar” a diferença para que<br />
estas pessoas possam ser aceitas na so-<br />
cie<strong>da</strong>de. Este processo se dá, geralmente,<br />
de maneira segrega<strong>da</strong>, nas instituições<br />
especializa<strong>da</strong>s.<br />
Segun<strong>do</strong> Sassaki (1998:29),<br />
“...o modelo médico tem si<strong>do</strong> responsável,<br />
em parte, pela resistência <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
em aceitar a necessi<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>r suas<br />
estruturas e atitudes para incluir em seu<br />
seio as pessoas porta<strong>do</strong>ras de deficiência<br />
e/ou outras condições atípicas para que<br />
estas possam, aí sim, buscar o seu desen-<br />
volvimento pessoal, social, profissional.”<br />
É bastante comum acreditar-se que<br />
estas pessoas são muito diferentes e, por<br />
isso, exigem formas muito especiais de<br />
serem trata<strong>da</strong>s. Espera-se então que, após<br />
a reabilitação, o indivíduo (reabilita<strong>do</strong>)<br />
esteja pronto para assumir seu lugar na<br />
socie<strong>da</strong>de. Este seria o momento <strong>da</strong> In-<br />
tegração Social. O que a prática mostra<br />
é que raramente esta integração se efe-<br />
tiva, até porque as pessoas não deixam<br />
de ser deficientes, ou seja, não “saram”;<br />
a diferença se mantém, embora muitas<br />
vezes mascara<strong>da</strong> por desempenhos mais<br />
próximos <strong>ao</strong> considera<strong>do</strong> normal. Assim,<br />
nunca estão prontas para se a<strong>da</strong>ptar to-<br />
talmente à socie<strong>da</strong>de ou para nela com-<br />
petir em pé de igual<strong>da</strong>de.<br />
O princípio, então, é o de que, se não<br />
é possível integrar as pessoas à socie<strong>da</strong>-<br />
de, “socie<strong>da</strong>des” o mais possível pare-<br />
ci<strong>da</strong>s com a socie<strong>da</strong>de real precisam ser<br />
cria<strong>da</strong>s para que, nelas, as pessoas com<br />
deficiência tenham experiências de vi<strong>da</strong><br />
o mais “normais” possíveis - temos aí as<br />
oficinas abriga<strong>da</strong>s, as colônias-residên-<br />
cia, etc. Estas propostas têm como base<br />
<strong>do</strong>is princípios fun<strong>da</strong>mentais: primeiro,<br />
o de que as situações protegi<strong>da</strong>s são mais<br />
adequa<strong>da</strong>s para estas pessoas, em ter-<br />
mos de seu desenvolvimento, na medi<strong>da</strong><br />
em que podem receber as intervenções<br />
específicas necessárias. O segun<strong>do</strong> (que<br />
considero o mais perverso), é o de que a<br />
situação segrega<strong>da</strong> seria protetora para a<br />
própria pessoa com deficiência, pois esta<br />
se sentiria infeliz em uma socie<strong>da</strong>de na<br />
qual não pode competir em pé de igual-<br />
<strong>da</strong>de. Ou seja, esta postura trata a defi-<br />
ciência como patologia, e como algo que<br />
diminui o indivíduo e de que ele deve se<br />
envergonhar. Entre pares, to<strong>do</strong>s iguais na<br />
desigual<strong>da</strong>de, não haveria razão para so-<br />
frimento: ninguém se sentiria diminuí<strong>do</strong>.<br />
No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 80, buscou-se<br />
um avanço na idéia de integração. É a época<br />
<strong>do</strong> Mainstreaming, <strong>da</strong>s tentativas de envol-<br />
ver essas pessoas (principalmente crianças<br />
em i<strong>da</strong>de escolar) na corrente principal <strong>da</strong><br />
comuni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> maneira que fosse possível,<br />
seja em sala de aula com os demais alunos,<br />
seja juntos na hora <strong>do</strong> recreio, seja em ativi-<br />
<strong>da</strong>des extra-curriculares etc.
A inclusão é,<br />
portanto, uma<br />
proposta de<br />
construção de<br />
ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />
“O movimento denomina<strong>do</strong> mainstre-<br />
aming, cujo objetivo é a<strong>da</strong>ptar o aluno de-<br />
ficiente às classes comuns, preconiza que o<br />
professor procure realçar as semelhanças<br />
entre as crianças deficientes e as normais,<br />
minimizan<strong>do</strong> as diferenças entre elas.”<br />
(Raiça e Oliveira, 1990: 5)<br />
Essa idéia, que poderia promover<br />
uma prática mais próxima de um pro-<br />
cesso de desinstitucionalização, não<br />
discute as mu<strong>da</strong>nças que devem ocorrer<br />
na socie<strong>da</strong>de para receber estas pessoas.<br />
Elas eram, em princípio, inseri<strong>da</strong>s nas<br />
ativi<strong>da</strong>des que lhes era possível partici-<br />
par, com o discurso contraditório de se<br />
minimizar as diferenças, mas, <strong>ao</strong> mesmo<br />
tempo, com a prática de acentuá-las,<br />
pois estas eram decisivas para determi-<br />
nar onde e quan<strong>do</strong> essas pessoas esta-<br />
riam inseri<strong>da</strong>s junto com os demais.<br />
Nesse movimento - o <strong>do</strong> mainstrea-<br />
ming - a noção de integração encontra-<br />
se ain<strong>da</strong> muito liga<strong>da</strong> às competências<br />
particulares, dependente <strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong>-<br />
des individuais para enfrentar as de-<br />
man<strong>da</strong>s <strong>do</strong> meio. Fala-se <strong>do</strong> deficiente<br />
‘capacita<strong>do</strong> para’, de mo<strong>do</strong> que se pode<br />
dizer que o modelo médico de deficiên-<br />
cia continua imperan<strong>do</strong>.<br />
A tentativa de avançar no processo<br />
de construção de uma socie<strong>da</strong>de que<br />
respeite a diversi<strong>da</strong>de firma o movimen-<br />
to de Inclusão Social. Seu princípio<br />
básico é o de que a vi<strong>da</strong> humana é reple-<br />
ta de diferenças, e que estas devem ser<br />
encara<strong>da</strong>s como naturais, no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
diversi<strong>da</strong>de. Conforme aponta Melero<br />
(1999):<br />
“El discurso de la cultura de la diver-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
si<strong>da</strong>d es el discurso de la legitimi<strong>da</strong>d de<br />
la otra y del otro como ver<strong>da</strong>dera otra y<br />
otro; es decir es el reconocimiento de la<br />
identi<strong>da</strong>d personal y de la emancipaci-<br />
ón de las personas excepcionales. Es la<br />
lucha contra cualquier manifestación de<br />
segregación y no la búsque<strong>da</strong> de medios y<br />
recursos para integrarse en un mun<strong>do</strong> que<br />
le es hostil. No es la persona excepcional<br />
la culpable de su situación, sino nosotros.<br />
No son las personas excepcionales los que<br />
tienen que cambiar, sino la socie<strong>da</strong>d en-<br />
tera. No se trata de educar a las personas<br />
excepcionales juntas a los no excepciona-<br />
les, sino de combatir con to<strong>da</strong>s nuestras<br />
fuerzas la segregación institucional. No se<br />
trata de aprenderse las reglas del juego,<br />
sino la de construir un nuevo juego. Si no<br />
se entiende esto dificilmente se puede re-<br />
conducir la naturaleza del “problema” de<br />
las culturas minoritarias.”<br />
A base <strong>do</strong> paradigma inclusivista<br />
é, portanto, a crença na socie<strong>da</strong>de para<br />
to<strong>do</strong>s; não cabe somente <strong>ao</strong>s indivíduos<br />
se integrar à socie<strong>da</strong>de: é preciso que<br />
ela também se transforme para acolher<br />
to<strong>do</strong>s os seus ci<strong>da</strong>dãos. A inclusão é,<br />
portanto, uma proposta de construção<br />
de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />
Fica claro, conseqüentemente, que<br />
a inclusão social é um processo de mão<br />
dupla, ou seja, tanto a pessoa com de-<br />
ficiência como a socie<strong>da</strong>de precisam<br />
se modificar. Conforme coloca Sassaki<br />
(1998: 41-42),<br />
“A prática <strong>da</strong> inclusão repousa em prin-<br />
cípios até então considera<strong>do</strong>s incomuns,<br />
tais como: a aceitação <strong>da</strong>s diferenças<br />
individuais, a valorização de ca<strong>da</strong> pes-<br />
173
174<br />
A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />
E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />
soa, a convivência dentro <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />
humana, a aprendizagem através <strong>da</strong> coo-<br />
peração.”<br />
Três conceitos inclusivistas são<br />
fun<strong>da</strong>mentais para que se compreen<strong>da</strong><br />
este processo que significa, em última<br />
instância, permitir à pessoa com defici-<br />
ência recuperar o poder sobre a própria<br />
vi<strong>da</strong>: autonomia, independência e empo-<br />
werment. 1<br />
A autonomia refere-se <strong>ao</strong> que se po-<br />
deria chamar de prontidão física, cogni-<br />
tiva e/ou social que a pessoa com defici-<br />
ência tem em um determina<strong>do</strong> ambiente,<br />
por exemplo para locomover-se, para<br />
realizar determina<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de escolar,<br />
profissional, etc.<br />
A independência é a capaci<strong>da</strong>de de<br />
tomar decisões, sem depender de outras<br />
pessoas. A independência e a autonomia<br />
estão relaciona<strong>da</strong>s, mas não são total-<br />
mente interdependentes. Por exemplo,<br />
uma pessoa pode não ter plena autono-<br />
mia para realizar alguma ativi<strong>da</strong>de, mas<br />
ter independência para decidir se neces-<br />
sita de aju<strong>da</strong> e de qual tipo.<br />
O empowerment é um conceito in-<br />
terdependente <strong>ao</strong> de independência, uma<br />
vez que diz respeito <strong>ao</strong> uso que a pessoa<br />
com deficiência faz de seu poder pessoal<br />
de toma<strong>da</strong> de decisões.<br />
“... definiremos empowerment como um<br />
processo de reconhecimento, criação e<br />
utilização de recursos e instrumentos<br />
pelos indivíduos, grupo e comuni<strong>da</strong>des,<br />
em si mesmo e no meio envolvente, que se<br />
traduz num acréscimo de poder - psicoló-<br />
gico, sócio-cultural, político e econômico<br />
- que permite <strong>ao</strong>s sujeitos aumentar a<br />
eficácia <strong>do</strong> exercício de sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.”<br />
(Pinto, 1998).<br />
Diz-se de uma pessoa que faz uso de<br />
seu poder pessoal de escolha, que é uma<br />
pessoa “empodera<strong>da</strong>”, que tem controle<br />
sobre sua própria vi<strong>da</strong>. É o que chama-<br />
mos de autodeterminação, possibili<strong>da</strong>de<br />
de ação que pode se manifestar em vários<br />
níveis, <strong>ao</strong> longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> sujeito.<br />
É em busca dessa autodeterminação<br />
que as pessoas com deficiência vêm lu-<br />
tan<strong>do</strong> pelo direito à inclusão social que,<br />
em última instância, representa o direito<br />
de ocupar, na socie<strong>da</strong>de, o espaço que<br />
lhes pertence, como ci<strong>da</strong>dãos.<br />
Ten<strong>do</strong> a compreensão sobre os con-<br />
ceitos básicos que norteiam o movimen-<br />
to pela inclusão social <strong>da</strong>s pessoas com<br />
deficiências, passaremos agora a abor-<br />
<strong>da</strong>r o papel <strong>da</strong> terapia ocupacional nesse<br />
processo.<br />
A terapia ocupacional é uma profis-<br />
são <strong>da</strong> área de saúde, que tem como ob-<br />
jeto de estu<strong>do</strong> a ação humana, entendi<strong>da</strong><br />
como to<strong>do</strong> o fazer <strong>do</strong> homem em sua vi<strong>da</strong><br />
cotidiana. A partir desta compreensão e<br />
<strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s condições (físicas, psicoló-<br />
gicas, sociais) que podem afetar esse fa-<br />
zer, o terapeuta ocupacional intervem, no<br />
senti<strong>do</strong> de aju<strong>da</strong>r aquele que se lhe apre-<br />
senta como cliente, a encontrar (ou reen-<br />
1 Segun<strong>do</strong> Sassaki (1998:39), o termo inglês empowerment foi manti<strong>do</strong> sem tradução porque ele já está consagra<strong>do</strong> na comuni<strong>da</strong>de empresarial e entre<br />
os ativistas de vi<strong>da</strong> independente. Mas têm havi<strong>do</strong> tentativas no senti<strong>do</strong> de traduzi-lo como ‘emponderamento’, ‘fortalecimento’, ‘potencialização’ e até<br />
‘energização’.
contrar) seu lugar social, como ser ativo<br />
e <strong>do</strong>no de sua vi<strong>da</strong>, ten<strong>do</strong> como metas a<br />
quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> e a inclusão social.<br />
Por ser o fazer humano seu objeto de<br />
estu<strong>do</strong>, é também este fazer o seu ins-<br />
trumento de trabalho. É através <strong>da</strong> ação,<br />
<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de, que terapeuta e cliente<br />
constroem os caminhos <strong>do</strong> processo te-<br />
rapêutico.<br />
A terapia ocupacional, historicamen-<br />
te volta<strong>da</strong> <strong>ao</strong> estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> ação humana, é,<br />
conseqüentemente, uma profissão dire-<br />
tamente comprometi<strong>da</strong> com a luta pela<br />
inclusão social de to<strong>do</strong>s aqueles que, de<br />
uma forma ou de outra, encontram-se<br />
coloca<strong>do</strong>s em lugares considera<strong>do</strong>s de<br />
exclusão.<br />
Retoman<strong>do</strong> a discussão realiza<strong>da</strong> so-<br />
bre integração/ inclusão social, podemos<br />
afirmar que a terapia ocupacional tem<br />
aqui um papel primordial. Sua ação não<br />
se limita à intervenção junto à pessoa<br />
com deficiência, mas, conforme os prin-<br />
cípios inclusivistas, estende-se <strong>ao</strong> meio<br />
social <strong>ao</strong> qual pertence esta pessoa. Atuar<br />
como parceiro em processos de inclusão<br />
escolar, inclusão em creches, inclusão<br />
no ambiente de trabalho, em espaços co-<br />
munitários, de lazer etc., tem si<strong>do</strong> parte<br />
integrante, e muitas vezes central, no<br />
trabalho <strong>do</strong> terapeuta ocupacional junto<br />
a esta população.<br />
O que queremos, aqui, deixar claro<br />
é que uma ação que se volte à inclusão<br />
social não pode se basear em inter-<br />
venções que se voltem, única e exclu-<br />
sivamente, a minimizar os possíveis<br />
déficits decorrentes <strong>da</strong> deficiência.<br />
Isso seria uma reafirmação <strong>do</strong> modelo<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
médico, conceben<strong>do</strong> a deficiência como<br />
um problema unicamente localiza<strong>do</strong><br />
no sujeito. É preciso que se aborde o<br />
caráter social <strong>da</strong> deficiência, ou seja,<br />
as conseqüências sociais desta, que são<br />
considera<strong>do</strong>s os fatores mais agravan-<br />
tes, mais excludentes.<br />
A proposta <strong>da</strong> Organização Mun-<br />
dial <strong>da</strong> Saúde é bastante útil para que<br />
se compreen<strong>da</strong> o que chamamos de um<br />
“caráter social” <strong>da</strong> deficiência. Esta<br />
classificação propõe três níveis: a defi-<br />
ciência, que seria a per<strong>da</strong> ou alteração<br />
estrutural, a incapaci<strong>da</strong>de, que se refe-<br />
re às alterações funcionais decorrentes<br />
<strong>da</strong> deficiência e, finalmente, a desvan-<br />
tagem, que aponta para os obstáculos<br />
sociais impostos à pessoa deficiente. Ao<br />
falar em “caráter social” <strong>da</strong> deficiência<br />
navegamos no seio <strong>da</strong> desvantagem, ou<br />
seja, naquilo que está além <strong>da</strong> alteração<br />
orgânica e <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des funcionais.<br />
Estamos falan<strong>do</strong> de obstáculos sociais,<br />
de falta de oportuni<strong>da</strong>des, de interven-<br />
ções basea<strong>da</strong>s em preconceitos e estere-<br />
ótipos.<br />
O modelo médico de deficiência foca<br />
sua atuação no campo <strong>da</strong> incapaci<strong>da</strong>de,<br />
com o objetivo de reabilitação. O mo-<br />
delo social de deficiência, proposto no<br />
paradigma inclusivista, foca sua atenção<br />
também, e talvez principalmente, na<br />
desvantagem. Isso quer dizer encarar a<br />
deficiência não como “<strong>do</strong>ença” <strong>do</strong> indi-<br />
víduo que deve ser trata<strong>da</strong> em busca de<br />
uma improvável “cura”, mas como con-<br />
dição que, em grande parte socialmente<br />
determina<strong>da</strong>, deve ser enfrenta<strong>da</strong> nos<br />
meios sociais que a geraram.<br />
175
176<br />
A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />
E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />
É a partir dessa concepção que a te-<br />
rapia ocupacional vem construin<strong>do</strong> suas<br />
ações, por um la<strong>do</strong> aprimoran<strong>do</strong> pro-<br />
fun<strong>da</strong>mente as técnicas de intervenção<br />
específica nas incapaci<strong>da</strong>des decorrentes<br />
<strong>da</strong> deficiência, através de abor<strong>da</strong>gens de<br />
reabilitação, tecnologia assistiva etc. e,<br />
por outro, voltan<strong>do</strong> suas ações, ca<strong>da</strong> vez<br />
mais, para um sujeito inseri<strong>do</strong> em um<br />
contexto social, que tem o seu cotidiano<br />
altera<strong>do</strong> pela deficiência e que, para que<br />
possa reconstruir esse cotidiano, necessi-<br />
ta que sua comuni<strong>da</strong>de em particular e a<br />
socie<strong>da</strong>de em geral se transformem para<br />
acolhe-lo. Assim, as intervenções de cará-<br />
ter social, junto às famílias, <strong>ao</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>-<br />
res e à socie<strong>da</strong>de são focos essenciais <strong>da</strong><br />
atuação profissional.<br />
Concluin<strong>do</strong>, é fun<strong>da</strong>mental que se<br />
possa ter clareza de que a inclusão social<br />
é um processo irreversível. Não se pode<br />
mais tolerar uma socie<strong>da</strong>de que conviva<br />
com a desigual<strong>da</strong>de e que, mais que isso,<br />
utilize conceitos pseu<strong>do</strong>-científicos para<br />
justifica-la. Se pretendemos viver em<br />
uma socie<strong>da</strong>de realmente democrática, é<br />
preciso que nos conscientizemos de que<br />
ca<strong>da</strong> um é um agente de transformação,<br />
e que to<strong>do</strong>s, sem exceção, têm direito a<br />
fazer parte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />
Celina Camargo Bartalotti é terapeuta<br />
ocupacional, mestre e <strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> em<br />
Psicologia <strong>da</strong> Educação pela PUC/SP, as-<br />
sessora <strong>do</strong> Núcleo de Educação Inclusiva<br />
<strong>da</strong> Secretaria <strong>da</strong> Educação <strong>do</strong> Município<br />
de Guarulhos, Assessora Científica <strong>da</strong><br />
LACE - Núcleo de Ações para a Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>-<br />
nia na Diversi<strong>da</strong>de; Professora <strong>do</strong>s cursos<br />
de Terapia Ocupacional e Pe<strong>da</strong>gogia <strong>do</strong><br />
Centro Universitário São Camilo. Uni-<br />
termos: Deficiência, Inclusão, Terapia<br />
Ocupacional.
Referências Bibliográficas<br />
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Artimanhas <strong>da</strong> Exclusão - Análise Psicossocial e Ética <strong>da</strong> Desigual<strong>da</strong>de Social. São Paulo:<br />
Vozes, 1999. 156 p.<br />
MARTINS, José de Souza. Exclusão Social e a Nova Desigual<strong>da</strong>de. São Paulo: Paulus,<br />
1997. 140 p.<br />
MELERO, Miguel López. La educación intercultural: la diferencia como va-<br />
lor. Universi<strong>da</strong>de de Málaga - Espanha. Disponível em: www.ecof.br/projetos/<strong>do</strong>wn/<br />
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SASSAKI, Romeu K. Inclusão: construin<strong>do</strong> uma socie<strong>da</strong>de para to<strong>do</strong>s. Rio de<br />
Janeiro: WVA, 1997. 174 p.<br />
STAINBACK, S. e STAINBACK, W. Inclusão: um guia para educa<strong>do</strong>res. Porto Alegre:<br />
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SAWAIA, B. O Sofrimento Ético-Político como Categoria de Análise <strong>da</strong> Dialética<br />
Exclusão/Inclusão. In: SAWAIA, B. (org.). As Artimanhas <strong>da</strong> Exclusão - Análise Psicosso-<br />
cial e Ética <strong>da</strong> Desigual<strong>da</strong>de Social. São Paulo: Vozes, 1999. 156 p.<br />
177
Arquivo<br />
Arquivo Como Órgão de Justiça<br />
e de Cultura<br />
Para compreender qual a lógica que rege<br />
o funcionamento <strong>do</strong>s arquivos, através de<br />
seus procedimentos de produção, guar<strong>da</strong><br />
e circulação de <strong>do</strong>cumentos públicos,<br />
consideramos como váli<strong>da</strong> a hipótese de<br />
uma tradição ibérica/mediterrânea 2 que<br />
influenciaria os “processos de produção<br />
de ver<strong>da</strong>de”, <strong>ao</strong>s quais corresponderiam<br />
estratégias e atitudes considera<strong>da</strong>s<br />
eficazes e legítimas na consecução<br />
de seus objetivos. Segun<strong>do</strong> Kant de<br />
Lima (1991), essas características se<br />
manifestam tanto nas práticas jurídicas,<br />
quanto nas práticas acadêmicas e, por<br />
que não dizer, no sistema burocrático<br />
brasileiro 3.<br />
Desse mo<strong>do</strong>, julgo que é interessante<br />
observar a posição <strong>do</strong>s arquivos<br />
públicos <strong>do</strong> Rio de Janeiro na estrutura<br />
burocrática. O Arquivo Nacional está<br />
Ana Paula Mendes de Miran<strong>da</strong><br />
1 Este artigo é parte <strong>do</strong> trabalho classifica<strong>do</strong> em 3º lugar no 1° Concurso de Monografias sobre Informação e Documentação Jurídica <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />
Tema: “ Informação Jurídica – O que se pensa é o que se faz ? “, promovi<strong>do</strong> pelo Centro de Estu<strong>do</strong>s Jurídicos <strong>da</strong> Procura<strong>do</strong>ria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio<br />
de Janeiro, em 1997.<br />
2 Sobre a tradição ibérica ver Braudel (1988) e Peristiany (1988).<br />
3 Ver Miran<strong>da</strong> (1993), Miran<strong>da</strong> & Mouzinho (1996), e Pinto (1993).<br />
Público<br />
Um Segre<strong>do</strong> Bem Guar<strong>da</strong><strong>do</strong> 1 ?<br />
subordina<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Ministério <strong>da</strong> Justiça,<br />
já o Arquivo Estadual <strong>do</strong> Rio de Janeiro<br />
está subordina<strong>do</strong> à Secretaria de Justiça,<br />
enquanto que o Arquivo Municipal <strong>do</strong><br />
Rio de Janeiro relaciona-se à Secretaria<br />
de Cultura. A ambigüi<strong>da</strong>de entre a<br />
importância <strong>do</strong> atributo histórico (como<br />
um valor cultural) e o atributo jurídico<br />
(o valor de prova) <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos<br />
está refleti<strong>da</strong> nessa divisão burocrática<br />
que classifica uma mesma instituição<br />
em níveis distintos de hierarquia,<br />
utilizan<strong>do</strong>-se de <strong>do</strong>is critérios<br />
considera<strong>do</strong>s igualmente váli<strong>do</strong>s.<br />
Portanto, não causa nenhuma estranheza<br />
que o arquivo público ora esteja atrela<strong>do</strong><br />
às instituições judiciárias, ora seja liga<strong>do</strong><br />
às instituições culturais.<br />
Atualmente, nos deparamos com uma<br />
nova concepção de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, segun<strong>do</strong> a<br />
179
180<br />
ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />
qual o indivíduo é um sujeito social ativo<br />
que define quais são os seus direitos e<br />
luta para que sejam reconheci<strong>do</strong>s. Esse<br />
novo papel <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão forçou a socie<strong>da</strong>de<br />
e as instituições públicas a repensarem<br />
as suas funções, obrigan<strong>do</strong>-as a conviver<br />
com uma maior deman<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s serviços<br />
por elas presta<strong>do</strong>s.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, o arquivo passou a ter<br />
um papel de destaque para a compro-<br />
vação de direitos mediante o acesso <strong>ao</strong>s<br />
<strong>do</strong>cumentos armazena<strong>do</strong>s. Frente a esse<br />
novo quadro, pode-se tentar explicar a<br />
dificul<strong>da</strong>de que os arquivos têm encon-<br />
tra<strong>do</strong> em divulgar seu acervo, apesar de<br />
já existirem atualmente profissionais<br />
preocupa<strong>do</strong>s em fazê-lo.<br />
Porém, é bom ressaltar que tanto no<br />
arquivo, quanto em museus e bibliotecas<br />
públicas, ain<strong>da</strong> existem profissionais que<br />
acham que os respectivos acervos não<br />
deveriam ser expostos <strong>ao</strong> público, visto<br />
que a exposição sempre representa riscos<br />
<strong>ao</strong> acervo. Para eles o mais importante é<br />
ter estes registros bem guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s, a fim<br />
de que continuem existin<strong>do</strong>, mesmo que<br />
jamais sejam vistos por ninguém.<br />
De acor<strong>do</strong> com Marilena Leite Paes,<br />
o “museu é a instituição de interesse<br />
público, cria<strong>da</strong> com a finali<strong>da</strong>de de con-<br />
servar, estu<strong>da</strong>r e colocar à disposição<br />
<strong>do</strong> público conjuntos de peças e objetos<br />
de valor cultural”, e a “biblioteca é o<br />
conjunto de material, em sua maioria<br />
impresso, disposto ordena<strong>da</strong>mente para<br />
estu<strong>do</strong>, pesquisa e consulta” (1991: 1-2).<br />
A autora opõe as duas instituições <strong>ao</strong><br />
arquivo alegan<strong>do</strong> que a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
mesmas é “cultural”, enquanto o arquivo<br />
teria objetivos funcionais, ou seja, sua<br />
finali<strong>da</strong>de seria a de servir à administra-<br />
ção, tal qual um cartório.<br />
Embora este fato não seja nega<strong>do</strong>,<br />
esta postura vem sen<strong>do</strong> contesta<strong>da</strong> por<br />
funcionários que alegam que os acervos<br />
<strong>do</strong>s arquivos também possuem valor<br />
“cultural”, e não apenas valor adminis-<br />
trativo. Esta mu<strong>da</strong>nça tem altera<strong>do</strong> tam-<br />
bém o mo<strong>do</strong> pelo qual esses funcionários<br />
representam as suas funções, levan<strong>do</strong>-os<br />
a um questionamento sobre suas prá-<br />
ticas, ten<strong>do</strong> em vista uma preocupação<br />
maior com o público, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> um<br />
pouco o perfil <strong>do</strong> “funcionário burocráti-<br />
co” <strong>da</strong> administração pública.<br />
O segre<strong>do</strong> e a “política <strong>do</strong><br />
sigilo”<br />
Pelos motivos aponta<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> longo <strong>do</strong><br />
texto, não podemos atribuir a não di-<br />
vulgação <strong>do</strong>s fatos apenas a uma ques-<br />
tão de responsabili<strong>da</strong>de pessoal <strong>do</strong>s<br />
funcionários, posto que vivem sob uma<br />
tradição 4 , que <strong>ao</strong> garantir a perpetuação<br />
de certos hábitos reproduz a “política<br />
<strong>do</strong> sigilo”, cuja característica principal<br />
é a expressão de um certo temor: os <strong>do</strong>-<br />
cumentos públicos quan<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s<br />
podem significar uma censura a uma má<br />
administração. Segun<strong>do</strong> José Honório<br />
Rodrigues, a “política <strong>do</strong> sigilo” (1989:<br />
13) é uma velha tradição portuguesa que<br />
pretende esconder e sonegar os <strong>do</strong>cu-<br />
4 O conceito de tradição é entendi<strong>do</strong> aqui como um determina<strong>do</strong> “padrão”, oculto, produzi<strong>do</strong> e reproduzi<strong>do</strong> por um grupo através de suas práticas.
O temor pela<br />
existência de<br />
restrições e<br />
pela existência<br />
de <strong>do</strong>cumentos<br />
sigilosos está<br />
relaciona<strong>do</strong> a<br />
nossa tradição<br />
inquisitorial.<br />
mentos, independentemente <strong>do</strong> tempo já<br />
decorri<strong>do</strong>.<br />
Além <strong>do</strong> prazo fixa<strong>do</strong> pela lei, ou<br />
pela vontade <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão no caso de<br />
<strong>do</strong>cumentos particulares, existe um ou-<br />
tro aspecto a ser destaca<strong>do</strong> no acesso à<br />
informação que está relaciona<strong>do</strong> a essa<br />
“política <strong>do</strong> sigilo”, uma tradição oral<br />
que ensinou às sucessivas gerações de<br />
arquivistas que “certos” <strong>do</strong>cumentos<br />
não deveriam ser abertos <strong>ao</strong> público, e<br />
que os critérios utiliza<strong>do</strong>s para a seleção<br />
destes <strong>do</strong>cumentos não deveriam ser<br />
explicita<strong>do</strong>s.<br />
O temor pela existência de restrições<br />
e pela existência de <strong>do</strong>cumentos sigi-<br />
losos está relaciona<strong>do</strong> a nossa tradição<br />
inquisitorial (Kant de Lima, 1992), onde<br />
investigações sigilosas precediam às<br />
acusações públicas durante os procedi-<br />
mentos judiciais. Conseqüentemente, o<br />
que era sigiloso sempre poderia deixar<br />
de ser. Essa rela-tivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sigilo na<br />
socie<strong>da</strong>de brasileira continua presente<br />
até hoje, conforme podemos verificar na<br />
nova legislação acerca <strong>da</strong> questão arqui-<br />
vística, mais precisamente no art. 24 <strong>da</strong><br />
Lei 8.159/91: “Poderá o Poder Judiciá-<br />
rio, em qualquer instância, determinar<br />
a exibição reserva<strong>da</strong> de qualquer <strong>do</strong>cu-<br />
mento sigiloso, sempre que indispensá-<br />
vel à defesa de direito próprio ou escla-<br />
recimento de situação social de parte”<br />
(grifos meus).<br />
Ou seja, não há uma efetiva garantia<br />
de que os <strong>do</strong>cumentos são realmente<br />
sigilosos. De acor<strong>do</strong> com a lei, o sigilo<br />
pode ser quebra<strong>do</strong> pelo Poder Judiciá-<br />
rio, poden<strong>do</strong> ser usa<strong>do</strong> para a “defesa <strong>do</strong><br />
ci<strong>da</strong>dão”, mas não há nenhuma garantia<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
que os <strong>do</strong>cumentos sigilosos não possam<br />
ser usa<strong>do</strong>s contra o ci<strong>da</strong>dão.<br />
As categorias <strong>do</strong> sigilo que servirão<br />
para a classificação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos pú-<br />
blicos não foram fixa<strong>da</strong>s, pois dependem<br />
<strong>da</strong> regulamentação <strong>da</strong> Lei de Arquivos,<br />
o que ain<strong>da</strong> não aconteceu. Assim, na<br />
falta destas definições, os critérios uti-<br />
liza<strong>do</strong>s para os procedimentos classifi-<br />
catórios dependem exclusivamente <strong>do</strong>s<br />
regulamentos internos <strong>da</strong>s instituições<br />
e/ou <strong>da</strong> vontade de seus dirigentes, a<br />
quem cabe o poder de julgar, segun<strong>do</strong><br />
critérios pessoais, o direito de acesso à<br />
informação.<br />
Também merece destaque o fato de<br />
que as “práticas de tratamento <strong>do</strong>cu-<br />
mental” não constituem apenas um mé-<br />
to<strong>do</strong> de “armazenamento de <strong>da</strong><strong>do</strong>s”, na<br />
reali<strong>da</strong>de são um poderoso mecanismo<br />
de controle, à medi<strong>da</strong> que não tornam<br />
universalmente acessíveis os acervos sob<br />
sua guar<strong>da</strong>. Os mecanismos utiliza<strong>do</strong>s<br />
para tal fim são varia<strong>do</strong>s, vão desde a<br />
não explicitação <strong>da</strong>s restrições e <strong>do</strong>s cri-<br />
térios classificatórios <strong>da</strong> <strong>do</strong>cumentação<br />
até a acumulação desordena<strong>da</strong>.<br />
O segre<strong>do</strong> como mecanismo<br />
de controle<br />
O controle <strong>do</strong> acesso à organização quan-<br />
<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong> pela existência <strong>do</strong> segre<strong>do</strong>,<br />
entendi<strong>do</strong> tal como Scheppele o definiu,<br />
como a parte <strong>da</strong> informação que é inten-<br />
cionalmente sonega<strong>da</strong> por um ou mais<br />
atores sociais <strong>do</strong>s demais, transforma o<br />
segre<strong>do</strong> em um mecanismo que, devi<strong>do</strong><br />
a sua significação simbólica, serve de<br />
base para a construção de identi<strong>da</strong>des<br />
181
182<br />
ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />
pessoais e/ou coletivas. O segre<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> ser<br />
compartilha<strong>do</strong> e individualiza<strong>do</strong>, cria no<br />
meio social a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autonomia<br />
individual, porém para<strong>do</strong>xalmente serve<br />
também de base para o desenvolvimento<br />
<strong>do</strong> poder, que por sua vez controla essa<br />
autonomia.<br />
Tradicionalmente, o segre<strong>do</strong> foi estu-<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> pela teoria antropológica relaciona-<br />
<strong>do</strong> a fenômenos religiosos, cujo enfoque<br />
estava volta<strong>do</strong> para o entendimento <strong>do</strong><br />
papel <strong>do</strong>s conhecimentos secretos em<br />
socie<strong>da</strong>des secretas e em rituais iniciató-<br />
rios. Porém, o enfoque que preten<strong>do</strong> de-<br />
senvolver aqui é o <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> como parte<br />
inerente à vi<strong>da</strong> quotidiana, o qual para<br />
Piot tem um papel fun<strong>da</strong>mental na ne-<br />
gociação <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s e nos tipos in-<br />
diretos de comunicação, que constituem<br />
o cotidiano <strong>da</strong>s relações sociais. Deste<br />
mo<strong>do</strong>, o segre<strong>do</strong> também está relaciona-<br />
<strong>do</strong> às noções de vergonha, de hierarquia<br />
e de igual<strong>da</strong>de, e <strong>ao</strong>s respectivos contex-<br />
tos nos quais se materializam.<br />
O uso <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> como técnica so-<br />
ciológica, como forma de ação, que se<br />
mantém neutra acima <strong>do</strong>s valores de seus<br />
conteú<strong>do</strong>s, sem o qual não se poderia<br />
atingir alguns fins, fica claro quan<strong>do</strong> este<br />
produz um sentimento de proprie<strong>da</strong>de<br />
exclusiva, resultante <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />
que outros não tenham essa coisa possu-<br />
í<strong>da</strong>. Para Simmel, esta atitude é fun<strong>da</strong>-<br />
menta<strong>da</strong> pela necessi<strong>da</strong>de que o homem<br />
tem de manter a diferença, de não dese-<br />
jar a igual<strong>da</strong>de. O segre<strong>do</strong> funciona como<br />
elemento diferencia<strong>do</strong>r porque é capaz<br />
de criar posições excepcionais, exercen<strong>do</strong><br />
uma atração social determina<strong>da</strong> inde-<br />
pendente de seu conteú<strong>do</strong>, agin<strong>do</strong> então<br />
como um elemento individualiza<strong>do</strong>r.<br />
Simmel analisou o segre<strong>do</strong> ten<strong>do</strong><br />
como referência as socie<strong>da</strong>des individu-<br />
alistas 5, nas quais a idéia de indivíduo<br />
aparece como uma construção histórica,<br />
não universal, relaciona<strong>da</strong> às dinâmicas<br />
<strong>do</strong>s conflitos origina<strong>do</strong>s pelo desenvolvi-<br />
mento <strong>do</strong> capitalismo. Nesse contexto, o<br />
segre<strong>do</strong> é visto como o elemento produ-<br />
tor de identi<strong>da</strong>des, através <strong>do</strong> estabeleci-<br />
mento de direitos individuais, tais como<br />
o direito à privaci<strong>da</strong>de. Porém, segre<strong>do</strong><br />
e privaci<strong>da</strong>de representam enti<strong>da</strong>des<br />
diferentes, o primeiro representa a infor-<br />
mação sonega<strong>da</strong> intencionalmente, que<br />
reforça uma relação de poder, enquanto<br />
a privaci<strong>da</strong>de representa a possibili<strong>da</strong>de<br />
de autonomia <strong>do</strong>s indivíduos.<br />
Ao analisarmos o papel <strong>do</strong> segre<strong>do</strong><br />
na socie<strong>da</strong>de brasileira nos defrontamos<br />
com sua relação em uma socie<strong>da</strong>de hie-<br />
rárquica e complementar, onde o segre<strong>do</strong><br />
é uma forma legítima de produção de<br />
poder que, no entanto gera exclusão e<br />
desigual<strong>da</strong>de, fazen<strong>do</strong> com que algumas<br />
pessoas tenham acesso a tu<strong>do</strong>, enquanto<br />
as outras que ficam à margem necessitem<br />
descobrir meios de participar <strong>da</strong> sociali-<br />
zação <strong>da</strong> informação, nem sempre sen<strong>do</strong><br />
bem sucedi<strong>da</strong>s.<br />
5 Sobre a oposição entre socie<strong>da</strong>des individualistas e hierárquicas ver Da Matta (1983) e Dumont (1985).<br />
Kant de Lima ressalta ain<strong>da</strong> que a<br />
própria idéia de igual<strong>da</strong>de tem signifi-<br />
ca<strong>do</strong>s distintos em socie<strong>da</strong>des hierár-<br />
quicas e em socie<strong>da</strong>des individualistas.
A mentira é<br />
a forma mais<br />
sofistica<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
segre<strong>do</strong>, pois<br />
envolve a sua<br />
sonegação e<br />
a substituição<br />
por uma outra<br />
informação.<br />
No primeiro tipo, ela se fun<strong>da</strong>menta na<br />
semelhança, ou seja, os indivíduos são<br />
iguais porque são semelhantes, já no<br />
segun<strong>do</strong> é fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na diferença,<br />
deste mo<strong>do</strong> os indivíduos são iguais por-<br />
que são diferentes.<br />
A significação sociológica <strong>do</strong> segre<strong>do</strong><br />
se manifesta através de sua realização, ou<br />
seja, sua importância prática revela-se na<br />
capaci<strong>da</strong>de ou inclinação <strong>do</strong> sujeito para<br />
guardá-lo, ou na sua resistência frente à<br />
tentação de traí-lo. A revelação <strong>do</strong> segre-<br />
<strong>do</strong> faz com que o sujeito fique vulnerável<br />
em seu conhecimento, e por isso passível<br />
de manipulação. Segun<strong>do</strong> Kim Schepelle<br />
as defesas <strong>do</strong> segre<strong>do</strong>, diferentemente<br />
<strong>da</strong>s defesas físicas, nunca podem ser<br />
reconstituí<strong>da</strong>s, posto que um segre<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />
ser revela<strong>do</strong> jamais pode ser manti<strong>do</strong>. O<br />
para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> é que ele para ter<br />
senti<strong>do</strong>, deve ser revela<strong>do</strong>.<br />
A existência <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> serve para<br />
mostrar o mo<strong>do</strong> pelo qual a informação é<br />
compartilha<strong>da</strong> em um contexto e restrita<br />
a outros, explicitan<strong>do</strong>, assim, as diferen-<br />
ças nos tipos de relações sociais, fazen<strong>do</strong><br />
ver quem é “o nós” e quem são “os ou-<br />
tros”. O segre<strong>do</strong> possibilita a existência<br />
de um mun<strong>do</strong> distinto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> aparen-<br />
te, o que cria um campo de ambigüi<strong>da</strong>de<br />
e, conseqüentemente, de interpretações<br />
conflitivas sobre a reali<strong>da</strong>de, forçan<strong>do</strong> a<br />
negociação <strong>da</strong>s posições sociais.<br />
A diferenciação social origina<strong>da</strong> pela<br />
obtenção de um conhecimento priva<strong>do</strong><br />
traz o prestígio, entendi<strong>do</strong> como a atri-<br />
buição de uma competência a alguém<br />
6 Sobre a escrita ver Goody (1986) e Rama (1985).<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
por outros sujeitos. O prestígio pode se<br />
transformar em poder na medi<strong>da</strong> em que<br />
a pessoa consiga manipular os signos<br />
que o representam, de mo<strong>do</strong> a construir<br />
um conjunto de significa<strong>do</strong>s, através <strong>do</strong>s<br />
quais atue sobre a reali<strong>da</strong>de, crian<strong>do</strong> um<br />
código <strong>ao</strong> qual somente ela tem acesso.<br />
A estratificação <strong>do</strong>s que podem, ou<br />
não, ter acesso à informação (o segre<strong>do</strong>)<br />
expõe a mentira como o mecanismo uti-<br />
liza<strong>do</strong> para preservação de uma possível<br />
revelação. Como diz Kim Schepelle, a<br />
mentira é a forma mais sofistica<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
segre<strong>do</strong>, pois envolve a sua sonegação e a<br />
substituição por uma outra informação.<br />
O <strong>do</strong>cumento escrito é por essên-<br />
cia oposto a tu<strong>do</strong> que é secreto, porém<br />
conforme o mo<strong>do</strong> pelo qual as socie<strong>da</strong>-<br />
des controlam o acesso à escrita 6 , esta<br />
também pode fortalecer a existência<br />
<strong>do</strong> segre<strong>do</strong>. É isso que se verifica na<br />
socie<strong>da</strong>de brasileira onde o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong><br />
palavra escrita atua como um patrimô-<br />
nio priva<strong>do</strong>, e quem a possui tem a pos-<br />
sibili<strong>da</strong>de de conhecer a ver<strong>da</strong>de, que<br />
confere autori<strong>da</strong>de a quem a possuir.<br />
Esses fatos expressam o mo<strong>do</strong> como a<br />
hierarquia é concebi<strong>da</strong> e experimenta<strong>da</strong><br />
em nossa socie<strong>da</strong>de, de mo<strong>do</strong> que o co-<br />
nhecimento leva à ver<strong>da</strong>de, por sua vez<br />
a ver<strong>da</strong>de confere autori<strong>da</strong>de e poder a<br />
quem a possuir.<br />
O segre<strong>do</strong> possui um duplo caráter: é<br />
uma forma de controle social, pois dá po-<br />
der a quem o possui, e <strong>ao</strong> mesmo tempo<br />
representa a possibili<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nça,<br />
pois à medi<strong>da</strong> que pode ser revela<strong>do</strong>, cria<br />
183
184<br />
ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />
novas relações de poder e conhecimento 7 .<br />
A importância <strong>do</strong> arquivo enquanto<br />
“fornece<strong>do</strong>r de provas” é fun<strong>da</strong>mental<br />
para o entendimento dessa “política <strong>do</strong><br />
sigilo” pois, por serem secretas, as pro-<br />
vas constituem um patrimônio que está<br />
sen<strong>do</strong> sempre negocia<strong>do</strong> numa relação de<br />
troca 8 entre a socie<strong>da</strong>de e o arquivo.<br />
Sen<strong>do</strong> o arquivo a instituição à qual<br />
se atribuiu a função, efetiva e simbólica,<br />
de guar<strong>da</strong>r os <strong>do</strong>cumentos, e ten<strong>do</strong> em<br />
vista o papel que o segre<strong>do</strong> exerce na<br />
socie<strong>da</strong>de – ser o elemento diferencia-<br />
<strong>do</strong>r – compreende-se o porquê de certas<br />
práticas apropriativas e manipula<strong>do</strong>ras<br />
persistirem, apesar de um discurso mo-<br />
derno e democrático a favor <strong>do</strong> direito à<br />
informação. Por ter o poder de controlar<br />
a revelação <strong>do</strong>s fatos, o arquivo reforça o<br />
seu papel de instituição <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> na es-<br />
trutura social, legitima<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> conheci-<br />
mento como algo esotérico, onde somente<br />
os “inicia<strong>do</strong>s” podem ter o direito à ver-<br />
<strong>da</strong>de, que confere poder e autori<strong>da</strong>de a<br />
quem possuí-la.<br />
Do c<strong>ao</strong>s à ordem: o segre<strong>do</strong><br />
revela<strong>do</strong><br />
Neste artigo procurei desenvolver algu-<br />
mas questões que pudessem contribuir<br />
para a compreensão de como os arquivos<br />
públicos tratam de seus acervos. Uma<br />
primeira conclusão alcança<strong>da</strong> é a de que<br />
no Brasil não existem regras públicas e<br />
claras de acesso, podemos dizer que não<br />
existe uma “política de consulta”, assim<br />
ca<strong>da</strong> arquivo é “independente”, orien-<br />
tan<strong>do</strong>-se apenas pelos critérios pessoais<br />
de um diretor temporário, que chega <strong>ao</strong><br />
cargo através de uma nomeação, o que<br />
deixa a instituição vulnerável <strong>ao</strong>s seus<br />
projetos pessoais, que nem sempre têm<br />
como prioritário o interesse <strong>do</strong> próprio<br />
arquivo e <strong>do</strong> público.<br />
A não existência de uma “política<br />
de consulta” dificulta a obtenção <strong>da</strong><br />
informação deseja<strong>da</strong>, o que provoca no<br />
usuário <strong>do</strong>is tipos de sentimento: a des-<br />
confiança, pois não crê que seja possível<br />
encontrar alguma coisa no meio “<strong>da</strong>quela<br />
confusão de papel”; e o alívio, ou surpre-<br />
sa, <strong>ao</strong> constatar que os <strong>do</strong>cumentos exis-<br />
tem, estão guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s e são acessíveis.<br />
Quan<strong>do</strong> a isso se acrescenta uma tra-<br />
dição inquisitorial, segun<strong>do</strong> a qual a sus-<br />
peição rege as relações fazen<strong>do</strong> com que<br />
o suspeito seja culpa<strong>do</strong> até que se prove<br />
o contrário, aumenta-se a dificul<strong>da</strong>de<br />
na obtenção <strong>da</strong>s informações deseja<strong>da</strong>s,<br />
pois o usuário é muitas vezes visto com<br />
desconfiança. Como diz Cláudia Heyne-<br />
mann, “no Brasil, os <strong>do</strong>cumentos públicos<br />
e as pessoas que por eles se interessam são<br />
suspeitos” (1989: 77).<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a instituição também<br />
não é considera<strong>da</strong> pelos usuários muito con-<br />
fiável, pois pode estar “train<strong>do</strong>” a sua con-<br />
fiança <strong>ao</strong> não lhes fornecer o que procuram.<br />
O que foi confirma<strong>do</strong> por um funcionário:<br />
“nem sempre se pode confiar nas respostas<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s sobre um <strong>do</strong>cumento que não foi<br />
7 Kim Schepelle chama a atenção que tanto no Direito quanto na Medicina o poder é basea<strong>do</strong> no controle e na sonegação <strong>da</strong> informação, aqueles que detêm<br />
o conhecimento o controlam de mo<strong>do</strong> a excluir os outros <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de acesso <strong>ao</strong> mesmo.<br />
8 Sobre as relações de troca ver Mauss (1974).<br />
Por ter o poder<br />
de controlar<br />
a revelação<br />
<strong>do</strong>s fatos, o<br />
arquivo reforça<br />
o seu papel<br />
de instituição<br />
<strong>do</strong> segre<strong>do</strong><br />
na estrutura<br />
social.
encontra<strong>do</strong>, às vezes se diz que ele está<br />
na restauração, mas na ver<strong>da</strong>de ele está<br />
desapareci<strong>do</strong>”.<br />
Se analisarmos a atual Lei de Arqui-<br />
vos veremos que os direitos <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão<br />
de acesso às informações estão formal-<br />
mente resguar<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Porém, como res-<br />
salta Wanderley Guilherme <strong>do</strong>s Santos, o<br />
mero reconhecimento <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia não assegura uma parti-<br />
cipação justa na distribuição de bens e<br />
valores sociais. De mo<strong>do</strong> que o maior<br />
obstáculo <strong>ao</strong> acesso é a desorganização<br />
<strong>do</strong>s acervos, que desempenha um papel<br />
fun<strong>da</strong>mental à medi<strong>da</strong> que impede a<br />
obtenção <strong>da</strong> informação, como disse um<br />
entrevista<strong>do</strong>:<br />
“a maior parte <strong>da</strong> <strong>do</strong>cumentação produ-<br />
zi<strong>da</strong> é ostensiva, não é sigilosa, a dificul-<br />
<strong>da</strong>de <strong>do</strong> acesso está na sua organização<br />
e a falta de uma política de gestão, pois<br />
a informação não organiza<strong>da</strong> não serve<br />
para na<strong>da</strong>, a informação armazena<strong>da</strong> é<br />
imprestável”.<br />
Assim sen<strong>do</strong>, pode-se afirmar que a<br />
falta de uma organização real <strong>do</strong>s arqui-<br />
vos é a causa <strong>da</strong> transformação <strong>do</strong> ma-<br />
terial preserva<strong>do</strong> em sigiloso, à medi<strong>da</strong><br />
que só possibilita o seu acesso <strong>ao</strong>s poucos<br />
que conseguem compreender a sua lógica<br />
de funcionamento, tal qual a biblioteca<br />
descrita por Umberto Eco em seu livro O<br />
nome <strong>da</strong> rosa.<br />
Somente a efetiva discussão sobre<br />
essa questão poderá ocasionar uma mu-<br />
<strong>da</strong>nça nesses procedimentos, visan<strong>do</strong> re-<br />
pensar a forma como construímos a nossa<br />
memória, a nossa identi<strong>da</strong>de e nossa ci-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Para Michel Pollak, a memória<br />
tem como função interferir no processo<br />
de construção <strong>da</strong>s representações indivi-<br />
duais e coletivas, permitin<strong>do</strong> a relação <strong>do</strong><br />
presente com o passa<strong>do</strong>. Portanto:<br />
“a construção <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de é um fenôme-<br />
no que se produz em referência a outros,<br />
em referência <strong>ao</strong>s critérios de aceitabili<strong>da</strong>-<br />
de, de credibili<strong>da</strong>de, e que se faz por meio<br />
<strong>da</strong> negociação direta com outros. (...) a<br />
memória e a identi<strong>da</strong>de são valores dispu-<br />
ta<strong>do</strong>s em conflitos sociais e intergrupais”<br />
(1992: 204-205).<br />
A per<strong>da</strong> progressiva <strong>da</strong> memória<br />
equivale à per<strong>da</strong> progressiva <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>-<br />
de, quan<strong>do</strong> a memória social é reduzi<strong>da</strong>,<br />
anula<strong>da</strong> ou abafa<strong>da</strong>, a socie<strong>da</strong>de perde<br />
a habili<strong>da</strong>de de conservar sua própria<br />
história. A identi<strong>da</strong>de se extravia e as<br />
pessoas perdem a capaci<strong>da</strong>de de exercer<br />
seu papel na coletivi<strong>da</strong>de, de exercer a<br />
sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. A existência de uma me-<br />
mória viva é fun<strong>da</strong>mental <strong>ao</strong>s processos<br />
de construção de identi<strong>da</strong>de e ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,<br />
<strong>da</strong>í a importância de “instituições-me-<br />
mória” eficientes e confiáveis.<br />
Esses fatos reiteram a importância <strong>da</strong><br />
preservação <strong>do</strong> acervo estar vincula<strong>da</strong> à<br />
possibili<strong>da</strong>de de acesso <strong>do</strong> público às ins-<br />
tituições, de tal mo<strong>do</strong> que os obstáculos<br />
administrativos e/ou corporativos sejam<br />
supera<strong>do</strong>s, evitan<strong>do</strong>-se a concentração<br />
de poder decisório nas mãos de uns pou-<br />
cos. De mo<strong>do</strong> que esse acesso deve ser<br />
assegura<strong>do</strong> pela existência de critérios<br />
explícitos e publicamente conheci<strong>do</strong>s,<br />
que constituem o princípio fun<strong>da</strong>mental<br />
necessário à garantia <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong>s direitos.<br />
185
186<br />
ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />
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187
Pelourinho,<br />
centro histórico<br />
de Salva<strong>do</strong>r.<br />
Bahia, Brasil.<br />
Uma nova Justiça para um Novo Tempo<br />
O XVIII Congresso Brasileiro de Magistra<strong>do</strong>s passou para a história como o maior evento já<br />
promovi<strong>do</strong> pela magistratura nacional. Mais de três mil pessoas participaram, em Salva<strong>do</strong>r, <strong>da</strong>s<br />
discussões sobre “Uma Nova Justiça Para um Novo Tempo”, o tema central <strong>do</strong> encontro, que se<br />
realizou entre os dias 22 e 25 de outubro, no Centro de Convenções <strong>da</strong> Bahia. Nas próximas pá-<br />
ginas, a íntegra de algumas <strong>da</strong>s palestras proferi<strong>da</strong>s durante o Congresso.
Jorge Car<strong>do</strong>so / CBPress
Quem é o Escravo, Quem Escraviza e o que Liberta 1 Trabalho<br />
Escravo<br />
.<br />
Antes de iniciar o que venho dizer aqui<br />
hoje, quero aproveitar a oportuni<strong>da</strong>de<br />
para agradecer à <strong>AMB</strong>, ANAMATRA,<br />
AMATRA VIII, TST, OIT e CPT, pelo<br />
apoio e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de que me prestaram em<br />
momento difícil ocasiona<strong>do</strong> por situação<br />
de grave risco à minha integri<strong>da</strong>de física<br />
em decorrência <strong>do</strong> efetivo combate <strong>ao</strong><br />
trabalho escravo em nosso País. Pelo<br />
mesmo motivo quero também fazer<br />
menção especial <strong>ao</strong> TRT <strong>da</strong> 8ª Região,<br />
que deu solução <strong>ao</strong> impasse, embora meu<br />
afastamento <strong>da</strong> jurisdição, certamente,<br />
tenha representa<strong>do</strong> retrocesso na luta<br />
contra a prática escravagista, não por causa<br />
<strong>do</strong> meu empenho pessoal decorrente <strong>do</strong><br />
exercício <strong>da</strong> jurisdição, mas porque tal<br />
situação sinalizou <strong>ao</strong> crime organiza<strong>do</strong> a<br />
incapaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Brasileiro frente<br />
<strong>ao</strong>s grandes desafios a serem enfrenta<strong>do</strong>s<br />
Jorge Antonio Ramos Vieira 2<br />
no combate a tais organizações, nefastas<br />
<strong>ao</strong>s direitos sociais e que se mostram<br />
recalcitrantes em relação à efetivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
direitos humanos em nosso País, seja na<br />
ci<strong>da</strong>de, seja no campo.<br />
Como disse em nota oficial, divulga<strong>da</strong><br />
pela imprensa e pelas Associações<br />
Nacionais, os escravagistas <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Pará<br />
estão “rin<strong>do</strong> à toa” e, penhora<strong>da</strong>mente,<br />
agradecem pela omissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que<br />
não consegue <strong>da</strong>r proteção <strong>ao</strong>s seus<br />
próprios Agentes Políticos, que, como eu,<br />
sonharam sonho possível, e trabalharam,<br />
arriscan<strong>do</strong> a própria vi<strong>da</strong>, por acreditarem,<br />
ingenuamente até, em política pública que<br />
visa a erradicação <strong>do</strong> trabalho escravo no<br />
Brasil e que ontem (22/10/2003), mais uma<br />
vez, foi lança<strong>da</strong> nacionalmente, em Brasília,<br />
soleni<strong>da</strong>de para qual fui convi<strong>da</strong><strong>do</strong>, mas<br />
de cujo honroso convite resolvi declinar,<br />
1 Palestra proferi<strong>da</strong> no XVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE MAGISTRADOS, Salva<strong>do</strong>r/BA, 23/10/2003 - 1° Painel: Trabalho Escravo.<br />
Parte <strong>do</strong> tema (Quem escraviza) foi abor<strong>da</strong><strong>do</strong> pelo painelista na 3ª Edição <strong>do</strong> Fórum Social Mundial, em Porto Alegre/RS. Na presente palestra o tema<br />
foi amplia<strong>do</strong> para abor<strong>da</strong>r os demais aspectos <strong>da</strong> questão (Quem é o escravo, e o que liberta).<br />
2 Juiz Titular <strong>da</strong> Vara <strong>do</strong> Trabalho de Parauapebas/PA - TRT 8ª Região; Coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Fórum Estadual para Erradicação <strong>do</strong> Trabalho Força<strong>do</strong> no<br />
Pará (FERTRAF/PA); Membro <strong>da</strong> Comissão de Promoção e Fiscalização <strong>do</strong> Trabalho Rural no PA; Diretor <strong>da</strong> AMATRA VIII.<br />
191
192<br />
TRABALHO ESCRAVO: QUEM É O ESCRAVO, QUEM ESCRAVIZA E O QUE LIBERTA.<br />
para estar aqui hoje, falan<strong>do</strong> sobre o mesmo<br />
tema, <strong>ao</strong>s meus colegas, Juízes <strong>do</strong> Brasil,<br />
que nos momentos mais difíceis não me<br />
viraram as costas e nem me impuseram<br />
entraves burocráticos, lembra<strong>do</strong>s na última<br />
hora, na tentativa de impor à vítima culpa<br />
pela omissão denuncia<strong>da</strong> e anuncia<strong>da</strong>.<br />
Conquanto possa identificar a fragili<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, quero aqui reafirmar meu compromis-<br />
so com a Justiça <strong>do</strong> meu País na implemen-<br />
tação de medi<strong>da</strong>s concretas que imponham o<br />
respeito <strong>ao</strong>s direitos humanos e dizer que so-<br />
nhei um sonho possível, mas que, para torná-lo<br />
reali<strong>da</strong>de, era preciso, antes, acor<strong>da</strong>rmos aque-<br />
les que <strong>do</strong>rmem tranqüilos se o merca<strong>do</strong> assim<br />
também estiver, zelan<strong>do</strong> pelo cumprimento de<br />
metas questionáveis <strong>do</strong> ponto de vista social.<br />
Para se sonhar um sonho possível, não é ne-<br />
cessário ter apenas “vontade política”, porém,<br />
mais <strong>do</strong> que vontade, é preciso ter CORAGEM<br />
política para enfrentar interesses poderosos de<br />
grupos influentes com os quais alianças impen-<br />
sáveis, até pouco tempo atrás, são feitas mesmo<br />
que se tenha de negar o passa<strong>do</strong> e, negan<strong>do</strong> o<br />
passa<strong>do</strong>, talvez acabem por gerar não apenas<br />
um presente incerto, mas também um futuro<br />
me<strong>do</strong>nho, esse sim um pesadelo possível, con-<br />
cretizável, principalmente para aqueles que,<br />
anônimos, são utiliza<strong>do</strong>s como meio de ganho<br />
em um sistema que talvez agrade <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>,<br />
mas certamente aniquila direitos adquiri<strong>do</strong>s,<br />
relativiza priori<strong>da</strong>des inadiáveis e contingencia<br />
despesas necessárias com políticas basilares<br />
comprometen<strong>do</strong>-se com outras, apenas assis-<br />
tenciais e populistas, de efetivi<strong>da</strong>de duvi<strong>do</strong>sa,<br />
e, nem mesmo estas, conseguem ser implemen-<br />
ta<strong>da</strong>s a contento porque, para sua efetivação,<br />
são considera<strong>do</strong>s apenas gráficos e a pontuação<br />
<strong>do</strong> risco, atos questionáveis <strong>do</strong> ponto de vista<br />
social, repito.<br />
Sobre esse esta<strong>do</strong> de coisas é preciso<br />
alertar a socie<strong>da</strong>de, apesar <strong>do</strong> que diz o<br />
“Ministério <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de”, que, através de sua<br />
máquina de propagan<strong>da</strong>, financia<strong>da</strong> por nós,<br />
o povo, sempre consegue impor sua vontade<br />
- que é a <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>; suas ver<strong>da</strong>des, que são<br />
mentiras conta<strong>da</strong>s repeti<strong>da</strong>s vezes, e assim,<br />
por meio de meias ver<strong>da</strong>des ou completas<br />
mentiras, sempre consegue pôr sobre os om-<br />
bros <strong>do</strong>s mais fracos a responsabili<strong>da</strong>de pelos<br />
males que afetam os interesses <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>,<br />
impostos e declara<strong>do</strong>s como interesses <strong>do</strong><br />
povo, sempre manipula<strong>do</strong> para que <strong>do</strong>cil-<br />
mente faça mais sacrifícios enquanto aguar-<br />
<strong>da</strong> o “espetáculo <strong>do</strong> crescimento”.<br />
As situações presentes me fazem re-<br />
lembrar George Orwel, pois quan<strong>do</strong> se tem<br />
coragem para negar o passa<strong>do</strong> e ignorar<br />
antigos amigos, pode-se fazer qualquer coi-<br />
sa em nome de uma “força estranha”, não<br />
palpável, mas presente como “O GRANDE<br />
IRMÃO”, tão presente que sentimos seu<br />
cheiro, sua presença, sua força e seu poder<br />
dissemina<strong>do</strong> e entranha<strong>do</strong> na ver<strong>da</strong>deira<br />
caixa preta, ou caixa de Pan<strong>do</strong>ra, na qual<br />
entramos e onde estão encerra<strong>do</strong>s vários<br />
monstros, <strong>do</strong>s quais o trabalho escravo<br />
é apenas uma <strong>da</strong>s grandes pragas a nos<br />
assolar e incomo<strong>da</strong>r no alvorecer de uma<br />
“nova era”, que, por ser tão pareci<strong>da</strong> com a<br />
“antiga”, já não mais nos permite distinguir<br />
quem são os homens e quem são os bichos.<br />
Assim, dileta platéia, inicio minha<br />
exposição, citan<strong>do</strong> Orwel (“1984” e “A Re-<br />
volução <strong>do</strong>s Bichos”) pois, nunca antes,<br />
como agora, vejo tanta semelhança entre<br />
as Obras em questão e a reali<strong>da</strong>de que nos<br />
cerca, nos vigia e nos impõe sua ver<strong>da</strong>de de<br />
forma ca<strong>da</strong> vez mais sufocante e totalitária.<br />
Por isso, mais uma vez, advirto aqueles que<br />
Para se sonhar<br />
um sonho<br />
possível, não<br />
é necessário<br />
ter apenas<br />
“vontade<br />
política”,<br />
porém, mais <strong>do</strong><br />
que vontade,<br />
é preciso ter<br />
CORAGEM<br />
política
se curvam <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>: “quem se assenta no<br />
lombo <strong>do</strong> tigre, acaba em seu ventre”.<br />
Embora possa constatar to<strong>da</strong>s essas<br />
estranhas e assusta<strong>do</strong>ras situações, não pos-<br />
so deixar de registrar a satisfação de estar<br />
na ci<strong>da</strong>de de Salva<strong>do</strong>r/BA, berço <strong>do</strong> desco-<br />
brimento, e, segun<strong>do</strong> um poeta brasileiro,<br />
nasci<strong>do</strong> neste grande Esta<strong>do</strong>, esta é a terra<br />
“que Deus entendeu de <strong>da</strong>r a primazia,<br />
pro bem pro mal, primeira mão na Bahia;<br />
primeira missa, primeiro índio abati<strong>do</strong><br />
também; que Deus entendeu de <strong>da</strong>r to<strong>da</strong> a<br />
magia, pro bem pro mal, primeiro chão na<br />
Bahia; primeiro carnaval, primeiro pelouri-<br />
nho também” (Gilberto Gil - “To<strong>da</strong> menina<br />
Baiana”). Que Deus enfim, também enten-<br />
deu de <strong>da</strong>r to<strong>da</strong> beleza e que deu <strong>ao</strong> Brasil<br />
muito de sua cultura e de suas tradições.<br />
O tema que abor<strong>do</strong> não é <strong>do</strong>s mais le-<br />
ves, pois representa grave violência contra<br />
os direitos humanos em nosso País. Para<br />
entender o moderno trabalho escravo, na<br />
visão central de “Uma Nova Justiça Para<br />
Um Novo Tempo”, é necessário sabermos<br />
quem são os principais personagens dessa<br />
tragédia brasileira.<br />
“A escravidão no Brasil foi aboli<strong>da</strong>,<br />
ain<strong>da</strong> na época <strong>do</strong> Império, com a chama<strong>da</strong><br />
“Lei Áurea”, de 1888”. Quem ouve a frase<br />
pode assim estranhar que ain<strong>da</strong> hoje se fale<br />
no assunto. Esclareço, então, que a escravi-<br />
dão de que se trata agora não é a mesma.<br />
Modernamente, é processo de exploração<br />
violento de seres humanos cativos por dívi<strong>da</strong>s<br />
contraí<strong>da</strong>s pela necessi<strong>da</strong>de de sobrevivência,<br />
e força<strong>do</strong>s a trabalhar porque não têm opção.<br />
Recruta<strong>do</strong>s em bolsões de miséria, são leva<strong>do</strong>s<br />
para locais de difícil acesso, sem possibili<strong>da</strong>de<br />
de fuga, às vezes vigia<strong>do</strong>s por homens arma-<br />
<strong>do</strong>s, atraí<strong>do</strong>s através de falsas promessas.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
Neste aspecto, o escravo moderno pode<br />
ser entendi<strong>do</strong> como o trabalha<strong>do</strong>r, de qual-<br />
quer i<strong>da</strong>de ou sexo, que, não ten<strong>do</strong> como<br />
subsistir em sua ci<strong>da</strong>de de origem, é leva<strong>do</strong><br />
pela necessi<strong>da</strong>de a procurar trabalho em re-<br />
giões distantes, através de aliciamento feito<br />
por pessoas que lucram com o fornecimento<br />
e a utilização de sua força de trabalho em<br />
proprie<strong>da</strong>des rurais, geralmente localiza<strong>da</strong>s<br />
na Região Amazônica, onde o acesso é difí-<br />
cil ou quase impossível, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as enormes<br />
distâncias a serem percorri<strong>da</strong>s e as dificul-<br />
<strong>da</strong>des impostas pela própria floresta, o que<br />
impossibilita a fuga <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r escravo<br />
ou suas localização e resgate, pois, na maio-<br />
ria <strong>da</strong>s vezes, sequer sabe, ou pode-se saber,<br />
onde se encontra, sen<strong>do</strong> inútil fugir, ou pro-<br />
curá-lo, até porque não teria mesmo para<br />
onde ir, ou como ser encontra<strong>do</strong> não fossem<br />
as denúncias <strong>do</strong>s poucos que conseguem es-<br />
capar e chegar até um órgão confiável. Fuga<br />
sempre perigosa e muito arrisca<strong>da</strong>.<br />
Assim, o “escravo moderno” é menos<br />
que o boi (que é cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, vacina<strong>do</strong> e bem<br />
alimenta<strong>do</strong>), que a terra (que é protegi<strong>da</strong> e<br />
bem vigia<strong>da</strong>) e que a proprie<strong>da</strong>de (sempre<br />
defendi<strong>da</strong> com firmeza). Dessarte, o tra-<br />
balha<strong>do</strong>r escraviza<strong>do</strong>, por não integrar o<br />
patrimônio <strong>do</strong> “escravagista moderno”, este<br />
não se preocupa com sua saúde, segurança e<br />
higidez física ou mental, sen<strong>do</strong> totalmente<br />
DESCARTÁVEL, utiliza<strong>do</strong> apenas como<br />
meio de produção e não liga<strong>do</strong> <strong>ao</strong> proprie-<br />
tário por qualquer liame, legal ou social, na<br />
visão <strong>da</strong>queles que se utilizam <strong>da</strong> prática ou<br />
que pretendem legalizá-la.<br />
Quem escraviza nunca está sozinho. Há<br />
uma rede criminosa composta por vários<br />
agentes, ca<strong>da</strong> um com finali<strong>da</strong>de própria,<br />
cria<strong>da</strong> para exploração de seres humanos<br />
193
194<br />
TRABALHO ESCRAVO: QUEM É O ESCRAVO, QUEM ESCRAVIZA E O QUE LIBERTA.<br />
como fonte de riquezas, sem nenhuma res-<br />
ponsabili<strong>da</strong>de, em benefício de organização<br />
produtiva que viceja, principalmente, na<br />
Região Norte <strong>do</strong> País, em particular no Sul<br />
<strong>do</strong> Pará, onde exerço jurisdição.<br />
Assim, há aqueles que aliciam os traba-<br />
lha<strong>do</strong>res (“gatos”); há os que disponibilizam<br />
locais (“pensões”) para facilitar o alicia-<br />
mento; há também aqueles que se utilizam<br />
<strong>do</strong> trabalho escravo (<strong>do</strong>nos ou “grileiros”<br />
<strong>da</strong> terra) e ain<strong>da</strong> mantêm estabelecimento<br />
(“cantina”) onde lhes vendem bens que<br />
deveriam fornecer gratuitamente, endivi-<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-os, prenden<strong>do</strong>-os à terra por dívi<strong>da</strong>s<br />
ilegais e intermináveis, já que impedi<strong>do</strong>s de<br />
sair enquanto não quita<strong>do</strong>s seus “débitos”<br />
com os alicia<strong>do</strong>res/toma<strong>do</strong>res. Aliás, tal<br />
se torna impossível, uma vez que jamais<br />
conseguem pagar a compra <strong>da</strong> própria<br />
alimentação e equipamentos de trabalho,<br />
cujos preços são exorbitantes exatamente<br />
para tornar impossível a quitação <strong>do</strong> débito,<br />
pago com trabalho árduo e degra<strong>da</strong>nte, em<br />
condições subumanas de higiene, segurança<br />
e saúde no trabalho.<br />
Mas dizer que “gatos”, estalajadeiros e<br />
<strong>do</strong>nos ou possui<strong>do</strong>res <strong>da</strong> terra são os únicos<br />
escraviza<strong>do</strong>res e que a miséria leva as pesso-<br />
as a se submeterem a tais condições de tra-<br />
balho é ver o problema por ótica limita<strong>da</strong>.<br />
Socie<strong>da</strong>des criminosas e miséria há em<br />
várias regiões, mas nem por isso pode-se<br />
dizer que onde existam tais fatores haja<br />
também trabalho escravo.<br />
Quem me ouve poderia, então, in<strong>da</strong>gar:<br />
o que existe nas regiões onde se verifica a<br />
moderna escravidão que faz com que o con-<br />
certo de vontades cause o fenômeno?<br />
Além dessas organizações criminosas<br />
e <strong>da</strong> miséria <strong>do</strong> nosso povo, há outro fator<br />
que também escraviza: a ausência <strong>do</strong> Es-<br />
ta<strong>do</strong>, onde deveria fazer-se presente, e sua<br />
presença, quan<strong>do</strong> esta é “questionável” e<br />
suspeita, fazen<strong>do</strong> imperar a barbárie e pos-<br />
sibilitan<strong>do</strong> a utilização <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />
como meio de obtenção de riquezas, sem<br />
responsabili<strong>da</strong>de social.<br />
A permissivi<strong>da</strong>de, passivi<strong>da</strong>de, conivência<br />
ou ausência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> são determinantes para<br />
que tal cadeia produtiva viceje. Se o Esta<strong>do</strong><br />
permitir, o explora<strong>do</strong>r continuará com sua<br />
ativi<strong>da</strong>de ilegal, pois, quanto mais sonegar<br />
direitos, mais enriquecerá, e essa forma de<br />
produção cria cultura selvagem, onde o boi e a<br />
terra são mais importantes <strong>do</strong> que o homem.<br />
Esse mo<strong>do</strong> de produção, mol<strong>da</strong><strong>do</strong> pela<br />
“pata <strong>do</strong> boi” e condiciona<strong>do</strong> pelas necessi-<br />
<strong>da</strong>des <strong>do</strong> rebanho, inverte a lei natural, na<br />
escala média de valores de qualquer civi-<br />
lização, excluí<strong>da</strong>s as questões de natureza<br />
religiosa, pois o animal passa a ser mais<br />
importante <strong>do</strong> que o homem e gera selva-<br />
geria, proporciona<strong>da</strong>, principalmente, pela<br />
limitação estatal (financeira, orçamentária,<br />
de pessoal, de investimentos e de custeio<br />
<strong>da</strong>s ações erradicantes) e pela corrupção.<br />
Tais limitações proporcionam brutali<strong>da</strong>de,<br />
excluem a civilização e o Esta<strong>do</strong> de Direito,<br />
geran<strong>do</strong> guetos, com códigos de conduta<br />
próprios, inadequa<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> interesse civi-<br />
lizatório e que impõem limites à própria<br />
atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, impon<strong>do</strong> sanções (até<br />
capitais) contra aqueles que denunciam ou<br />
combatem a prática criminosa no Brasil.<br />
Essas circunstâncias criam um tipo de<br />
socie<strong>da</strong>de cruel, que aceita seja a proprie-<br />
<strong>da</strong>de mais importante que a vi<strong>da</strong>, e isso<br />
também escraviza. O mo<strong>do</strong> de produção<br />
escravagista moderno é suficientemente<br />
plástico para admitir em sua cadeia produ-
O Esta<strong>do</strong> se<br />
faz presente<br />
na cadeia<br />
produtiva<br />
escravagista<br />
quan<strong>do</strong><br />
incentiva<br />
proprie<strong>da</strong>des<br />
e proprietários<br />
rurais já<br />
denuncia<strong>do</strong>s<br />
tiva a violência contra os direitos humanos,<br />
<strong>ao</strong> la<strong>do</strong> de safras recordes, alta tecnologia de<br />
inseminação artificial, criação e manejo de<br />
rebanhos bem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e proprie<strong>da</strong>des com<br />
vastos e quase ilimita<strong>do</strong>s recursos econômi-<br />
cos e financeiros, com grande influência em<br />
nosso sistema político.<br />
Contu<strong>do</strong>, como disse acima, nem sem-<br />
pre há ausência estatal, mas, infelizmente,<br />
quan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> se faz presente tal atuação<br />
é nefasta, na maioria <strong>do</strong>s casos.<br />
O Esta<strong>do</strong> se faz presente na cadeia<br />
produtiva escravagista quan<strong>do</strong> incentiva<br />
proprie<strong>da</strong>des e proprietários rurais já denun-<br />
cia<strong>do</strong>s, flagra<strong>do</strong>s e condena<strong>do</strong>s pela prática,<br />
entregan<strong>do</strong> seus recursos através de financia-<br />
mentos públicos e incentivos fiscais. Assim,<br />
há aqui um para<strong>do</strong>xo de difícil explicação: se<br />
de um la<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> Brasileiro nos paga para<br />
erradicar o regime de escravidão no País, não<br />
pode financiar os mesmos produtores que se<br />
utilizam de tal prática. Deve, assim, definir<br />
suas priori<strong>da</strong>des, independentemente <strong>do</strong>s<br />
interesses <strong>da</strong>s banca<strong>da</strong>s que necessita, e com<br />
elas se alia, para aprovar seus projetos que<br />
tanto agra<strong>da</strong>m <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>.<br />
Conquanto duras, estas são constata-<br />
ções de quem vive o problema de perto e vê,<br />
diariamente, esse esta<strong>do</strong> de coisas que nos<br />
levam a criticar as políticas públicas até aqui<br />
implanta<strong>da</strong>s para erradicar o problema, meta<br />
ousa<strong>da</strong> que o governo federal se propôs, atra-<br />
vés de programa lança<strong>do</strong> em março de 2003.<br />
E o que liberta? A resposta parece óbvia,<br />
mas, de tão óbvia, é difícil compreender<br />
porque o problema parece não ter solução. A<br />
libertação só ocorre quan<strong>do</strong> há o que chamo<br />
de esforço civilizatório, capaz de levar o Es-<br />
ta<strong>do</strong> de Direito às regiões em que esse está<br />
ausente, com finali<strong>da</strong>de de erradicação <strong>da</strong><br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
selvageria a que já me referi alhures.<br />
Neste aspecto e com tal missão, Órgãos<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Brasileiro vêm atuan<strong>do</strong> de forma<br />
decisiva para combater o trabalho escravo<br />
no País, logo, nem tu<strong>do</strong> está perdi<strong>do</strong>, mas<br />
há deficiências que devem ser resolvi<strong>da</strong>s<br />
imediatamente. Ou o Esta<strong>do</strong> bem agra<strong>da</strong> <strong>ao</strong><br />
merca<strong>do</strong> e contém seus gastos, elevan<strong>do</strong> seu<br />
“superávit primário”, ou realmente investe<br />
na execução <strong>do</strong> programa de ERRADICA-<br />
ÇÃO a que se propôs. Nesse senti<strong>do</strong>, aprovou<br />
a criação de novas Varas <strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Traba-<br />
lho, que já está interioriza<strong>da</strong>, mas para insta-<br />
lação a longo prazo... Assim, criou os Órgãos,<br />
mas não os instalou, logo, estamos na mesma<br />
situação, mas com um sopro de esperança.<br />
Vamos aguar<strong>da</strong>r o “parecer <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>” e<br />
ver se a instalação <strong>da</strong>s Varas será priori<strong>da</strong>de,<br />
já que, segun<strong>do</strong> o Relatório de ilustre Sena-<br />
<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> PT/PA que aprovou a criação <strong>da</strong>s<br />
Varas Trabalhistas, cerca de 50 (cinqüenta)<br />
delas estão liga<strong>da</strong>s diretamente à erradicação<br />
<strong>do</strong> Trabalho Escravo, no Brasil.<br />
A Justiça <strong>do</strong> Trabalho no Pará, através<br />
de Ações Civis Públicas ou Coletivas, pro-<br />
postas pelo Ministério Público <strong>do</strong> Trabalho,<br />
vem aplican<strong>do</strong> pesa<strong>da</strong>s multas e impon<strong>do</strong><br />
sanções financeiras <strong>ao</strong>s <strong>do</strong>nos <strong>da</strong> terra que<br />
se utilizam desse “mo<strong>do</strong> de produção”, para<br />
torná-lo economicamente inviável, se o em-<br />
preendimento a<strong>do</strong>tar, como “mão-de-obra”,<br />
trabalha<strong>do</strong>res submeti<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> regime es-<br />
cravocrata. Do mesmo mo<strong>do</strong>, nos casos em<br />
que identifiquei financiamentos públicos,<br />
determinei <strong>ao</strong>s Bancos que interrompessem<br />
o fornecimento <strong>do</strong>s créditos, com base na<br />
ilicitude verifica<strong>da</strong>.<br />
A sanção pecuniária assume relevo<br />
fun<strong>da</strong>mental para erradicação <strong>do</strong> trabalho<br />
escravo, pois quebra a lucrativi<strong>da</strong>de desse<br />
195
196<br />
TRABALHO ESCRAVO: QUEM É O ESCRAVO, QUEM ESCRAVIZA E O QUE LIBERTA.<br />
tipo de empreendimento criminoso e impõe<br />
observância <strong>da</strong> legislação trabalhista, impe-<br />
din<strong>do</strong> que o trabalha<strong>do</strong>r continue a ser en-<br />
tendi<strong>do</strong> como meio de ganho fácil, na mão<br />
<strong>da</strong>queles que pensam estar acima <strong>da</strong>s Leis.<br />
Impõe ain<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s <strong>do</strong>nos <strong>da</strong> terra responsabi-<br />
li<strong>da</strong>de social para com seus emprega<strong>do</strong>s, eis<br />
que, por força de medi<strong>da</strong>s judiciais, inclu-<br />
sive liminares, são obriga<strong>do</strong>s a respeitar os<br />
direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, com fiscalização<br />
efetiva <strong>do</strong> cumprimento <strong>da</strong>s decisões pelo<br />
Esta<strong>do</strong>-Juiz, com a participação <strong>do</strong> MPT,<br />
Equipe de Fiscalização Móvel <strong>do</strong> Ministério<br />
<strong>do</strong> Trabalho e Polícia Federal, que acompa-<br />
nham e atuam nas chama<strong>da</strong>s Varas Móveis<br />
<strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Trabalho.<br />
Contu<strong>do</strong>, conforme venho sempre in-<br />
sistin<strong>do</strong>, somente sanções econômicas não<br />
são suficientes, embora até aqui, sejam as<br />
mais eficientes e concretas. É preciso que se<br />
apurem os delitos e os criminosos sejam con-<br />
dena<strong>do</strong>s a penas restritivas de liber<strong>da</strong>de, pois<br />
o Código Penal Brasileiro prevê como crime,<br />
sujeito a reclusão, a prática aqui defini<strong>da</strong><br />
(art. 149, CPB), que geralmente está em con-<br />
curso com vários outros tipos penais. É ne-<br />
cessário pôr na cadeia aqueles que exploram<br />
trabalha<strong>do</strong>res como escravos e compõem a<br />
rede criminosa que atua e dá suporte opera-<br />
cional à moderna escravidão. Neste aspecto,<br />
uma solução simples, <strong>do</strong> ponto de vista legis-<br />
lativo, é o reconhecimento <strong>da</strong> competência<br />
<strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Trabalho para conhecer e julgar<br />
tais crimes, pois, estan<strong>do</strong> interioriza<strong>da</strong>, a<br />
Justiça Trabalhista está melhor aparelha<strong>da</strong><br />
para solucionar tais questões, inclusive com<br />
menor custo para o erário pois os Órgãos<br />
Jurisdicionais já cria<strong>do</strong>s e instala<strong>do</strong>s estão<br />
funcionan<strong>do</strong> nas áreas de maior incidência<br />
e têm, efetivamente, <strong>da</strong><strong>do</strong> a devi<strong>da</strong> resposta<br />
<strong>ao</strong>s escravagistas deste novo tempo, impon-<br />
<strong>do</strong>-lhes sanções econômicas que inviabilizam<br />
o mo<strong>do</strong> produtivo fun<strong>da</strong><strong>do</strong> na exploração<br />
cruel de seres humanos.<br />
De outra face, posso afirmar: o que<br />
liberta é o comprometimento social <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, através de seus vários Órgãos, no<br />
senti<strong>do</strong> de impor a observância <strong>da</strong>s Leis; a<br />
repressão contra o crime organiza<strong>do</strong>, que<br />
acumula riquezas através <strong>da</strong> exploração<br />
degra<strong>da</strong>nte <strong>do</strong> trabalho humano; e o con-<br />
tínuo esforço civilizatório para substituir<br />
a selvageria pelo Esta<strong>do</strong> Democrático de<br />
Direito, que somente pode ser alcança<strong>do</strong><br />
mediante políticas públicas de combate <strong>ao</strong>s<br />
fatores que levam as populações a condições<br />
miseráveis, facilitan<strong>do</strong> possam ser agentes<br />
transforma<strong>do</strong>s e transforma<strong>do</strong>res <strong>da</strong> socie-<br />
<strong>da</strong>de onde vivem, pois somente se deixa<br />
escravizar aquele que não tem consciência<br />
de sua condição de ci<strong>da</strong>dão e está submeti-<br />
<strong>do</strong> à miséria absoluta, e só escraviza aquele<br />
que acredita na impuni<strong>da</strong>de de seus atos.<br />
Desse mo<strong>do</strong>, como resolver a situação de<br />
miséria em que vive nosso povo não é tarefa<br />
para apenas um governo, principalmente<br />
com políticas assistencialistas equivoca<strong>da</strong>s,<br />
e, independentemente disso, tal poderá levar<br />
gerações, logo, para se ter solução mais efe-<br />
tiva e rápi<strong>da</strong> para o problema, o Esta<strong>do</strong> tem<br />
que concentrar seus esforços na outra ponta<br />
<strong>do</strong> fenômeno, ou seja, os escravagistas.<br />
Neste ponto, tramita na Câmara <strong>do</strong>s<br />
Deputa<strong>do</strong>s, em Brasília, PEC que trata <strong>da</strong><br />
expropriação <strong>da</strong>s terras <strong>da</strong>queles que utilizam<br />
práticas escravocratas, já aprova<strong>da</strong> no Sena<strong>do</strong><br />
Federal. A expropriação, sem maiores delon-<br />
gas, é medi<strong>da</strong> que certamente desencorajará<br />
práticas dessa natureza em nosso País.<br />
Ao la<strong>do</strong> <strong>da</strong> expropriação e <strong>da</strong> interrup-<br />
É necessário<br />
pôr na cadeia<br />
aqueles que<br />
exploram<br />
trabalha<strong>do</strong>res<br />
como escravos<br />
e compõem a<br />
rede criminosa<br />
que atua e<br />
dá suporte<br />
operacional<br />
à moderna<br />
escravidão.
ção <strong>ao</strong>s créditos públicos e priva<strong>do</strong>s (inclusi-<br />
ve chaman<strong>do</strong> à responsabili<strong>da</strong>de patrimonial<br />
as instituições financeiras que proporcionam<br />
recursos para proprie<strong>da</strong>des onde se constate<br />
utilização de trabalho escravo), a imposição<br />
de penali<strong>da</strong>des pecuniárias de grande monta<br />
e a aplicação <strong>da</strong> lei penal com efetivi<strong>da</strong>de,<br />
também são medi<strong>da</strong>s que podem, eficaz-<br />
mente, erradicar o problema e apagar essa<br />
mancha <strong>da</strong> nossa terra, no campo ou nas<br />
ci<strong>da</strong>des. Essas medi<strong>da</strong> podem fazer com que<br />
seja economicamente inviável a utilização <strong>do</strong><br />
trabalho escravo e, por isso, impor <strong>ao</strong>s maus<br />
produtores rurais mu<strong>da</strong>nça de comporta-<br />
mento e de mo<strong>do</strong> de produção arcaico, que<br />
somente gera violência, crimes ambientais,<br />
trabalha<strong>do</strong>res mutila<strong>do</strong>s por acidentes, so-<br />
negações fiscal e previdenciária, assassinatos<br />
e lucros para o particular em detrimento<br />
<strong>do</strong>s interesses <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que<br />
emprega recursos preciosos em proprie<strong>da</strong>des<br />
cuja função social é duvi<strong>do</strong>sa.<br />
O que liberta, também, é nossa capaci-<br />
<strong>da</strong>de de indignação, enquanto ci<strong>da</strong>dãos ou<br />
Membros de Poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, eis que, por<br />
nossas ações, ou omissões, temos responsabili-<br />
<strong>da</strong>de pelos destinos de nossa Nação e de nosso<br />
Povo, principalmente pela transformação <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de, onde seja direito e obrigação de<br />
to<strong>do</strong>s o cumprimento <strong>da</strong>s Leis e a realização<br />
<strong>da</strong> Justiça, para que possamos ser, assim, ver-<br />
<strong>da</strong>deiramente, homens livres e liberta<strong>do</strong>res.<br />
Aqui tracei algumas medi<strong>da</strong>s que, segu-<br />
ramente, se implanta<strong>da</strong>s, poderão, a médio<br />
prazo, erradicar práticas escravagistas que<br />
ain<strong>da</strong> vicejam no Esta<strong>do</strong> Brasileiro, mas,<br />
para implementá-las, como já disse, é preci-<br />
so coragem, e não apenas “vontade” políti-<br />
ca. Ou enfrentamos o problema e elegemos<br />
como priori<strong>da</strong>de a efetivação <strong>do</strong>s direitos<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
humanos em nosso País, ou vamos ficar nos<br />
discursos, na criação de comissões e nas<br />
manchetes de jornais. Esses fatores podem<br />
até gerar votos e notorie<strong>da</strong>de, mas não erra-<br />
dicarão o problema.<br />
Concluin<strong>do</strong>, espero que as palavras di-<br />
tas aqui não sejam lança<strong>da</strong>s em solo estéril.<br />
Roguemos a to<strong>do</strong>s os Santos, principal-<br />
mente nesta terra que tem uma igreja para<br />
ca<strong>da</strong> dia <strong>do</strong> ano, que a brisa <strong>da</strong> Bahia e <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de de São Salva<strong>do</strong>r leve essas semen-<br />
tes de UMA NOVA JUSTIÇA PARA UM<br />
NOVO TEMPO, e deposite seus esporos<br />
nas mentes <strong>da</strong>queles que legislam, que go-<br />
vernam e que julgam, principalmente em<br />
Brasília, de onde emana o poder de fazê-las<br />
germinar; que o sol <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> lhes seja fa-<br />
vorável; que encontrem as condições certas<br />
de cultivo, em nossas mãos, Juízes <strong>do</strong> Brasil,<br />
para que se transformem no que sonhamos<br />
e tornem-se árvores fron<strong>do</strong>sas nas quais<br />
nossos semelhantes, ain<strong>da</strong> que excluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
“espetáculo <strong>do</strong> crescimento”, possam, en-<br />
fim, também aproveitar de sua sombra.<br />
Também rogo <strong>ao</strong>s Juízes <strong>do</strong> Brasil, que<br />
possam ver<strong>da</strong>deiramente ostentar este título<br />
e tu<strong>do</strong> o que ele representa, para que além<br />
de aplicar as Leis possamos fazer e distribuir<br />
Justiça, pois, “ou o Direito serve a vi<strong>da</strong>, ou<br />
não serva pra na<strong>da</strong>” (Legaz y Lacambra).<br />
Muito Obriga<strong>do</strong>.<br />
Jorge Antonio Ramos Vieira é Juiz Titular <strong>da</strong><br />
Vara <strong>do</strong> Trabalho de Parauapebas/PA - TRT<br />
8ª Região; Coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Fórum Estadual<br />
para Erradicação <strong>do</strong> Trabalho Força<strong>do</strong> no<br />
Pará (FERTRAF/PA); Membro <strong>da</strong> Comissão<br />
de Promoção e Fiscalização <strong>do</strong> Trabalho Ru-<br />
ral no PA; Diretor <strong>da</strong> AMATRA VIII.<br />
197
Orçamento<br />
Judiciário<br />
Princípio <strong>da</strong> Autonomia Administrativa e Financeira<br />
<strong>do</strong> Judiciário e a Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />
I - Introdução<br />
Extremamente honra<strong>do</strong> com o convite<br />
formula<strong>do</strong> pelo colega e companheiro<br />
de lutas, Desembarga<strong>do</strong>r Cláudio Bal-<br />
dino Maciel (Presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>), uma<br />
<strong>da</strong>s grandes lideranças <strong>da</strong> magistratu-<br />
ra nacional e que vem fazen<strong>do</strong> gestão<br />
impecável à frente <strong>da</strong> nossa enti<strong>da</strong>de<br />
maior, sinto-me como receben<strong>do</strong> uma<br />
homenagem em nome <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro - que, com<br />
fibra e determinação, vêm granjean<strong>do</strong><br />
o reconhecimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de a que<br />
servem.<br />
Permito-me, ain<strong>da</strong>, em nome <strong>do</strong> Co-<br />
ordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Estadual <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>,<br />
Juiz Rodrigo Collaço, sau<strong>da</strong>r to<strong>do</strong>s os<br />
presidentes de associações de magistra-<br />
<strong>do</strong>s e to<strong>da</strong>s as lideranças <strong>da</strong> magistra-<br />
tura nacional. Rodrigo vem se transfor-<br />
man<strong>do</strong> em um símbolo, uma liderança<br />
moderna que representa o modelo de<br />
magistra<strong>do</strong> que desejamos.<br />
Luis Felipe Salomão<br />
Peço licença para uma homenagem<br />
especial à expressiva delegação de co-<br />
legas <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e o faço nas<br />
figuras emblemáticas de Thiago Ribas<br />
Filho, Luiz Fernan<strong>do</strong> Ribeiro de Carva-<br />
lho e Doris Castro Neves. Magistra<strong>do</strong>s<br />
que dedicaram e dedicam seus esforços<br />
<strong>ao</strong>s avanços associativos e à construção<br />
<strong>do</strong> Judiciário <strong>do</strong>s nossos sonhos.<br />
Agradeço <strong>ao</strong>s colegas Cláudio Cesare<br />
e Maria de Fátima Stern, Presidentes<br />
<strong>da</strong>s Associações locais de Magistra<strong>do</strong>s,<br />
pela generosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acolhi<strong>da</strong> e a exce-<br />
lente organização <strong>do</strong> conclave.<br />
Meus colegas congressistas desse<br />
XVIII Congresso Brasileiro de Magis-<br />
tra<strong>do</strong>s.<br />
Distingüi<strong>do</strong> para abor<strong>da</strong>r o tema<br />
<strong>do</strong> “Princípio <strong>da</strong> Autonomia Adminis-<br />
trativa e Financeira <strong>do</strong> Judiciário e a<br />
Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal”, pro-<br />
curei destacar os <strong>do</strong>is principais as-<br />
pectos de ambas as questões: o político<br />
e o técnico.<br />
199
200<br />
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />
JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
Com efeito, após uma rápi<strong>da</strong> abor-<br />
<strong>da</strong>gem histórica tanto em relação <strong>ao</strong><br />
orçamento público como <strong>ao</strong> próprio de-<br />
senvolvimento <strong>do</strong> tema no que pertine<br />
<strong>ao</strong> Judiciário, propõe-se uma análise<br />
compara<strong>da</strong> <strong>da</strong> situação de autonomia<br />
<strong>da</strong> magistratura e salienta-se a expe-<br />
riência pioneira <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />
onde os juízes vêm contribuin<strong>do</strong> com<br />
sugestões para elaboração <strong>da</strong>s propos-<br />
tas orçamentárias <strong>do</strong> Poder Judiciário,<br />
assim como para o plano bienal de ação<br />
governamental. O Rio de Janeiro é hoje<br />
um Esta<strong>do</strong> onde o Judiciário, por força<br />
de lei, é auto-sustentável em matéria<br />
financeira, administran<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a receita<br />
e aplican<strong>do</strong>-a no custeio e gestão.<br />
Esse é o plano de trabalho, que espe-<br />
ro possa despertar o interesse e a parti-<br />
cipação <strong>do</strong>s colegas.<br />
A autonomia administrativa e fi-<br />
nanceira <strong>do</strong> Judiciário passa, neces-<br />
sariamente, pela análise <strong>do</strong>s aspectos<br />
orçamentários e afeta diretamente a<br />
independência <strong>do</strong> Poder.<br />
Acredito que existe um texto que<br />
pode servir como fio condutor para o<br />
que se pretende dizer.<br />
Trata-se de apertadíssimo resumo<br />
<strong>do</strong> livro que me foi presentea<strong>do</strong> pela<br />
Colega de Diretoria <strong>da</strong> AMAERJ, e que<br />
muito vem colaboran<strong>do</strong> com a vi<strong>da</strong> asso-<br />
ciativa, a juíza Andréa Pachá, de autoria<br />
<strong>do</strong> consagra<strong>do</strong> dramaturgo norueguês<br />
Ibsen, denomina<strong>do</strong> “Um inimigo <strong>do</strong><br />
povo”. Esse texto já fora por mim lem-<br />
bra<strong>do</strong> no inesquecível e pioneiro Con-<br />
gresso de Juízes Estaduais, que ocorreu<br />
em Balneário Camburiú, mas que vale<br />
agora ser repeti<strong>do</strong> para fixação <strong>da</strong> idéia.<br />
Apesar de escrito em 1922, o livro é<br />
de impressionante atuali<strong>da</strong>de.<br />
O personagem que <strong>do</strong>mina a trama<br />
e prende a atenção <strong>do</strong> leitor é o Doutor<br />
Tomas Stockmann. Ele aju<strong>do</strong>u a fun<strong>da</strong>r<br />
um balneário que se transformou em sen-<br />
sação para turistas, trazen<strong>do</strong> prosperi<strong>da</strong>-<br />
de <strong>ao</strong> lugarejo onde vivia. De repente, ele<br />
descobre que as águas <strong>da</strong> estação, porque<br />
mal capta<strong>da</strong>s (ca<strong>da</strong> um pretendeu gor<strong>da</strong>s<br />
indenizações com o sistema de canaliza-<br />
ção) são perigosas. Quan<strong>do</strong> avisa que irá<br />
denunciar a situação, há uma trama que<br />
estabelece soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de entre o Prefeito<br />
<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de (irmão <strong>do</strong> Dr. Stockmann), a<br />
imprensa e os acionistas. Desejam impor<br />
os custos <strong>ao</strong>s contribuintes e fazer com<br />
que to<strong>do</strong>s identifiquem no Dr. Stock-<br />
mann o “inimigo <strong>do</strong> povo”.<br />
A trama <strong>do</strong> Ibsen pode ser relaciona-<br />
<strong>da</strong> <strong>ao</strong> tema aqui abor<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
O conflito entre o interesse “público<br />
X priva<strong>do</strong>”, entre a “ver<strong>da</strong>de X menti-<br />
ra”, e o final em que o personagem de-<br />
seja reiniciar tu<strong>do</strong> com o idealismo que<br />
marca as suas peças: “E quan<strong>do</strong> formos<br />
homens livres e distintos, que é o que<br />
faremos então? Vocês escorraçarão os<br />
lobos para além <strong>da</strong>s montanhas”.<br />
Como menciona Heguel, em singular<br />
advertência: “A história é a consciência<br />
progressiva <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.”<br />
II - Síntese histórica<br />
brevíssima sobre o<br />
Orçamento Público e sua<br />
finali<strong>da</strong>de atual<br />
A história <strong>do</strong> orçamento público remon-<br />
ta à Inglaterra (1217), quan<strong>do</strong> o Rei<br />
A autonomia<br />
administrativa<br />
e financeira <strong>do</strong><br />
Judiciário afeta<br />
diretamente a<br />
independência<br />
<strong>do</strong> Poder.
João, na Carta Magna, expressou que<br />
“nenhum tributo <strong>ao</strong> auxílio será insti-<br />
tuí<strong>do</strong> no reino, senão pelo seu Conselho<br />
Comum”.<br />
Em duas palavras, está aí o germe <strong>do</strong><br />
“planejamento/controle”.<br />
A pressão por regras claras e trans-<br />
parentes quanto a receitas e despesas<br />
públicas permeou as lutas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
nas Revoluções Francesa e Americana<br />
(século XVII) e também na Inconfidên-<br />
cia Mineira <strong>do</strong> Brasil (século XVIII).<br />
Mas foi só a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século<br />
XIX que os orçamentos públicos passa-<br />
ram a ter a feição atual, com o princípio<br />
<strong>da</strong> anuali<strong>da</strong>de, sua votação antes <strong>do</strong><br />
início <strong>do</strong> exercício, inclusão de to<strong>da</strong>s as<br />
previsões financeiras e a não vinculação<br />
<strong>da</strong> receita às despesas específicas.<br />
A partir <strong>da</strong> metade <strong>do</strong> século XX,<br />
foi estabeleci<strong>da</strong> uma significativa dife-<br />
rença entre as práticas orçamentárias<br />
norte-americana (presidencialismo)<br />
e européia. Os EUA conferem amplos<br />
poderes <strong>ao</strong> Legislativo nessa matéria,<br />
enquanto os europeus prestigiam o<br />
Executivo (Cabinet) - e qualquer des-<br />
confiança, há a troca <strong>do</strong> governo no<br />
regime parlamentarista.<br />
No Brasil, a Constituição Imperial,<br />
de 1824, estabelecia que o Ministro <strong>da</strong><br />
Fazen<strong>da</strong> era o responsável pela elabo-<br />
ração e encaminhamento à Assembléia<br />
Geral <strong>do</strong>s Orçamentos e de “to<strong>da</strong>s as<br />
“despesas” e “receitas públicas”.<br />
A Constituição de 1891, que se<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
seguiu à proclamação <strong>da</strong> República,<br />
transferiu <strong>ao</strong> Congresso a atribuição <strong>da</strong><br />
elaboração orçamentária, engloban<strong>do</strong> os<br />
Poderes <strong>da</strong> Nova República.<br />
Com a Constituição outorga<strong>da</strong> de<br />
1934, no entanto, perde espaço o Par-<br />
lamento e volta a reinar absoluto o<br />
Executivo - que elaborava e decretava o<br />
orçamento.<br />
Diante <strong>da</strong> redemocratização (Consti-<br />
tuição de 1946), houve nova alteração: o<br />
Executivo elaborava proposta orçamen-<br />
tária, que depois era discuti<strong>da</strong> e vota<strong>da</strong><br />
nas duas Casas <strong>do</strong> Congresso.<br />
Durante o perío<strong>do</strong> de ditadura, é<br />
desnecessário qualquer outro comentá-<br />
rio sobre o tratamento <strong>do</strong> tema. O or-<br />
çamento era elabora<strong>do</strong> e implementa<strong>do</strong><br />
pelo Executivo, pois não havia Congres-<br />
so funcionan<strong>do</strong>.<br />
Contu<strong>do</strong>, com o advento <strong>da</strong> Consti-<br />
tuição de 1988, a matéria passou a ser<br />
trata<strong>da</strong> com destaque e de maneira de-<br />
talha<strong>da</strong> 1 . O Congresso volta a ter papel<br />
destaca<strong>do</strong>.<br />
Em aperta<strong>da</strong> síntese, o especialista<br />
na matéria Desembarga<strong>do</strong>r Jessé Tor-<br />
res 2 , expõe com muita clareza o ciclo re-<br />
lativo à proposta pública orçamentária:<br />
Extrai-se <strong>da</strong> Constituição, especialmente<br />
de seus arts. 165 e seguintes, que, a ca<strong>da</strong><br />
ano, o Poder Legislativo deve aprovar a<br />
Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)<br />
e a Lei <strong>do</strong> Orçamento (LOA), que re-<br />
gerão a execução, <strong>do</strong> ponto de vista <strong>da</strong><br />
receita e <strong>da</strong> despesa, <strong>do</strong>s programas e<br />
1 Arts. 165 a 169, CF/88.<br />
2 Gerente <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> Especial <strong>do</strong> TJ/RJ e que elaborou este texto especialmente para os associa<strong>do</strong>s <strong>da</strong> AMAERJ.<br />
201
202<br />
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />
JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
projetos <strong>do</strong> interesse <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de e <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> no exercício seguinte.<br />
A LDO estabelece objetivos, metas e prio-<br />
ri<strong>da</strong>des. A LOA define quais os programas<br />
e projetos que se compatibilizam com as<br />
diretrizes <strong>da</strong> LDO e distribui os recursos<br />
previstos entre eles, estiman<strong>do</strong> as receitas e<br />
fixan<strong>do</strong> as despesas de ca<strong>da</strong> qual. A LDO<br />
precede a LOA e orienta a elaboração des-<br />
ta, por isto que <strong>ao</strong> Legislativo não é <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
entrar em recesso sem aprovar a LDO.<br />
Ambas as leis começam o seu ciclo vital<br />
no primeiro semestre de ca<strong>da</strong> exercício,<br />
embora almejem o exercício subseqüente.<br />
Note-se que quan<strong>do</strong> o art. 100 <strong>da</strong> CF/88<br />
estabelece 1º de julho como a <strong>da</strong>ta limite<br />
para a inserção <strong>do</strong>s precatórios judiciais<br />
no orçamento <strong>do</strong> ano seguinte, está a indi-<br />
car que este deve ter a sua proposta con-<br />
soli<strong>da</strong><strong>da</strong> e apresenta<strong>da</strong> até essa <strong>da</strong>ta. Os<br />
Poderes encaminham as suas respectivas<br />
propostas <strong>ao</strong> Executivo, que as consoli<strong>da</strong><br />
e remete <strong>ao</strong> Legislativo, que é o competen-<br />
te para transformá-las em lei (art. 48, II).<br />
Daí a regra <strong>do</strong> art. 99, § 1º, <strong>da</strong> CF/88<br />
- “Os tribunais elaborarão suas propostas<br />
orçamentárias dentro <strong>do</strong>s limites estipula-<br />
<strong>do</strong>s conjuntamente com os demais Poderes<br />
na lei de diretrizes orçamentárias”.<br />
O ciclo orçamentário des<strong>do</strong>bra-se em<br />
quatro etapas: elaboração (<strong>da</strong>s propos-<br />
tas), aprovação (<strong>da</strong>s propostas consoli-<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s e sua conversão em lei), execução<br />
(durante o exercício a que se referirem<br />
a LDO e a LOA) e controle (avaliação,<br />
quanto à legali<strong>da</strong>de, legitimi<strong>da</strong>de e eco-<br />
nomici<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> aplicação <strong>do</strong>s recursos<br />
orçamentários, durante e após o exer-<br />
cício, pelos órgãos de controle interno e<br />
externo - CF/88, art. 74).<br />
O orçamento público, além de ser expressão<br />
constitucional e legal de relações entre os<br />
Poderes (a Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />
trouxe várias regras e inovações nesse sen-<br />
ti<strong>do</strong>, to<strong>da</strong>s restritivas), deve traduzir um<br />
processo de escolhas e servir como instru-<br />
mento de gestão <strong>da</strong>s organizações.<br />
III - O planejamento como<br />
decisão política<br />
A decisão de planejar, coordenar as<br />
ações e controlar despesas e investimen-<br />
tos públicos é essencialmente política.<br />
Vale dizer, depende de coragem e<br />
determinação <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r públi-<br />
co, pois significa imprimir quali<strong>da</strong>de<br />
<strong>ao</strong> gasto <strong>da</strong>s receitas, de sorte a que sua<br />
conformação aten<strong>da</strong>, essencialmente,<br />
<strong>ao</strong>s anseios sociais. O planejamento e<br />
controle implicam em amarras (sadias)<br />
<strong>ao</strong> administra<strong>do</strong>r.<br />
3 “O planejamento no Brasil - Observações sobre o plano de metas”, Ministro Celso Lafer, 1987.<br />
4 Relatório Simonsen: Diagnóstico <strong>da</strong> Comissão Mista Brasil-EUA (1951); Plano Saute (1948).<br />
Nosso país não tem uma tradição de<br />
planejamento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de pública, tam-<br />
pouco uma vivência grande na elabora-<br />
ção de orçamentos públicos.<br />
As Instituições Públicas, em regra ge-<br />
ral, não são vistas como sinônimos de efici-<br />
ência pela população, muito <strong>ao</strong> contrário.<br />
A partir de 1940 3 , ocorrem as pri-<br />
meiras tentativas de controle e planos<br />
de metas na administração brasileira 4 .<br />
A decisão<br />
de planejar,<br />
coordenar<br />
as ações e<br />
controlar<br />
despesas e<br />
investimentos<br />
públicos é<br />
essencialmente<br />
política.
Sobretu<strong>do</strong> o “Plano de Metas” (1956/61)<br />
pode ser considera<strong>do</strong> a grande e pionei-<br />
ra experiência de planejamento público<br />
no Brasil.<br />
Até esse momento (em torno de<br />
1961), havia no país uma forte atuação<br />
de movimentos sociais que impulsiona-<br />
vam o planejamento <strong>da</strong>s políticas pú-<br />
blicas. No entanto, a partir de 1970 (em<br />
plena ditadura), com o fim <strong>do</strong> “milagre<br />
econômico”, surge a crise fiscal que dele<br />
decorre e, com esse malogro, a escassez<br />
de recursos públicos se transforma na<br />
tônica <strong>do</strong> momento 5 .<br />
O que se denominou “crise <strong>da</strong> ad-<br />
ministração pública” tinha suas raízes<br />
profun<strong>da</strong>s 6 :<br />
a) baixa capaci<strong>da</strong>de e pouca experiência<br />
<strong>do</strong>s órgãos públicos em planejamento,<br />
com conseqüências na elaboração <strong>do</strong> defi-<br />
ciente orçamento público.<br />
b) deficiência e falta de controle na polí-<br />
tica de recursos humanos (pouca motiva-<br />
ção <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res).<br />
c) falta de recursos tecnológicos adequa<strong>do</strong>s.<br />
Para superar essa situação de defa-<br />
sagem, que se perdura desde então, afi-<br />
gura-se necessário uma severa reforma<br />
<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> - que já vem sen<strong>do</strong> aplica<strong>da</strong><br />
em países desenvolvi<strong>do</strong>s, e que, a partir<br />
<strong>da</strong>í, espera-se uma guina<strong>da</strong> nas políticas<br />
públicas visan<strong>do</strong> transformações econô-<br />
micas e sociais.<br />
A par <strong>do</strong> indispensável planejamen-<br />
to, conjuga<strong>do</strong> com procedimentos de<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
ordenamento e controle <strong>da</strong> despesa pú-<br />
blica, a estratégia para a saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> crise,<br />
a permitir melhor gerenciamento <strong>da</strong>s<br />
contas públicas, passa por algumas re-<br />
ceitas básicas.<br />
Não só os países em desenvolvimen-<br />
to, mas também as superpotências se<br />
deparam com a “ferrugem” <strong>da</strong> máquina<br />
estatal.<br />
Nos EUA, entre 1993 e 1996, foi im-<br />
planta<strong>do</strong> o programa “Reinventan<strong>do</strong> o<br />
Governo: funcionar melhor e custar me-<br />
nos”. Parte-se de um modelo de gestão<br />
com três características básicas: clareza<br />
na definição de objetivos; indica<strong>do</strong>res<br />
de desempenho defini<strong>do</strong>s; sistema de<br />
responsabili<strong>da</strong>de partilha<strong>da</strong>.<br />
Nos processos de modernização <strong>da</strong><br />
administração pública, em quase to<strong>do</strong>s<br />
os países que tiveram sucesso, não foi<br />
possível a empreita<strong>da</strong> sem que houvesse<br />
interação com a socie<strong>da</strong>de. Em outras<br />
palavras, é fun<strong>da</strong>mental que haja trans-<br />
parência e responsabili<strong>da</strong>de comparti-<br />
lha<strong>da</strong>, com medi<strong>da</strong>s tais como:<br />
1) publici<strong>da</strong>de de Governo (publicação<br />
de orçamentos, balanços, de maneira<br />
clara e transparente).<br />
2) prestação de contas <strong>da</strong>s ações públicas.<br />
3) participação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de na elabora-<br />
ção <strong>da</strong> proposta pública de orçamento.<br />
Recentemente, em <strong>do</strong>is diplomas<br />
legais, fica patente a intenção <strong>do</strong> legis-<br />
la<strong>do</strong>r brasileiros de rumar nessa trilha<br />
(art. 9º, § 4º, 32, § 4º, 45, 48, 49 e 67<br />
5 Foi para buscar o equilíbrio fiscal que o Brasil recorreu a organismos multilaterais de financiamento, como o BID e Banco Mundial.<br />
6 Transparência e controle social como paradigmas para gestão pública no Esta<strong>do</strong> Moderno, Milton Coelho Neto (RT, 2002).<br />
203
204<br />
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />
JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
<strong>da</strong> Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal (Lei<br />
Complementar 101/2000) e arts. 2o, II,<br />
XIII, 4o, III, b e § 3º, 40, 44 <strong>do</strong> Estatuto<br />
<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de - Lei 10.257/2001).<br />
A responsabili<strong>da</strong>de compartilha<strong>da</strong>,<br />
ademais, não deve ser vista como evento<br />
isola<strong>do</strong> ou descontínuo: a participação<br />
popular é processo dialético de avalia-<br />
ção e inovação.<br />
O controle social <strong>da</strong> administração<br />
pública, por certo, não exclui os demais<br />
controles, antes os estimula a atuar 7 .<br />
IV - Brevíssimo<br />
histórico sobre as formas<br />
administrativas <strong>do</strong> Judiciário<br />
e a evolução quanto à<br />
elaboração <strong>do</strong> seu orçamento<br />
Dos tempos em que os juízes eram os<br />
sacer<strong>do</strong>tes, passan<strong>do</strong> pela fase que <strong>da</strong>s<br />
sentenças surgiam as leis (<strong>do</strong>s quais o<br />
Código de Hamurabi, exposto no Mu-<br />
seu <strong>do</strong> Louvre, é ain<strong>da</strong> um exemplo),<br />
a imbricação entre religião e direito, o<br />
formalismo <strong>do</strong> direito arcaico, o direito<br />
grego e depois o romano, saltan<strong>do</strong> pela<br />
i<strong>da</strong>de média (o direito feu<strong>da</strong>l), até os<br />
dias atuais <strong>do</strong> direito contemporâneo,<br />
a administração <strong>da</strong> Justiça passou por<br />
enormes transformações. Nota<strong>da</strong>mente,<br />
quan<strong>do</strong> o poder deixa de ser exerci<strong>do</strong><br />
pelos monarcas e passa a existir a idéia<br />
de nação e esta<strong>do</strong>.<br />
Os três grandes sistemas jurídicos<br />
modernos, como se sabe, são: o <strong>da</strong> civil<br />
law (sistema continental ou romano/<br />
germânico), em contraparti<strong>da</strong> <strong>ao</strong> sis-<br />
tema <strong>da</strong> common law (preponderância<br />
para os precedentes) e o sistema soviéti-<br />
co (regime socialista) 8 .<br />
As fórmulas, portanto, de adminis-<br />
tração <strong>da</strong> Justiça são especialmente va-<br />
riáveis de acor<strong>do</strong> com o sistema jurídico<br />
a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo país e, ain<strong>da</strong> levan<strong>do</strong> em<br />
conta, sobretu<strong>do</strong>, a forma de Esta<strong>do</strong> e de<br />
Governo.<br />
Partin<strong>do</strong> para exame histórico <strong>da</strong><br />
situação peculiar <strong>do</strong> Brasil, necessária<br />
a leitura <strong>da</strong> obra primorosa <strong>do</strong> magis-<br />
tra<strong>do</strong> gaúcho Lenine Nequete 9 , que<br />
conta um pouco <strong>da</strong> trajetória acerca <strong>do</strong><br />
funcionamento <strong>do</strong> Poder Judiciário no<br />
nosso país.<br />
Lembra o Ministro Carlos Mário <strong>da</strong><br />
Silva Velloso (STF), na apresentação <strong>do</strong><br />
trabalho <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r e magistra<strong>do</strong>,<br />
que a trajetória <strong>do</strong> Judiciário brasileiro,<br />
desde o Brasil-Colônia, foi longa e pe-<br />
nosa. Ele afirma:<br />
“... essa trajetória sempre foi ascen-<br />
dente. É dizer, a Justiça brasileira, a<br />
partir <strong>do</strong> descobrimento, a partir, mais<br />
exatamente, de 1530, quan<strong>do</strong>, Martins<br />
Afonso de Souza foi investi<strong>do</strong>, pelo Rei<br />
de Portugal, de poderes de jurisdição<br />
administrativa e judiciária, até os nossos<br />
dias, é uma história de sucessos, de con-<br />
quistas, com a ampliação - o que, aliás,<br />
é a tônica <strong>do</strong> constitucionalismo contem-<br />
7 J. Habernas fala em tornar mais real a democracia formal.<br />
8 O renoma<strong>do</strong> constitucionalista português Jorge Miran<strong>da</strong> (Teoria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>da</strong> Constituição, 2002, Forense), fala em quatro grandes sistemas e famílias<br />
constitucionais na atuali<strong>da</strong>de (inglesa, norte-americana, francesa e soviética).<br />
9 “O Poder Judiciário no Brasil”, quatro volumes, STF, 2000.
porâneo - <strong>da</strong>s atribuições <strong>do</strong> Judiciário<br />
brasileiro”.<br />
Tanto quanto no Brasil-Colônia,<br />
passan<strong>do</strong> pelo Império, até chegar a<br />
proclamação <strong>da</strong> República, a ativi<strong>da</strong>de<br />
judicial era apêndice <strong>da</strong> função admi-<br />
nistrativa, sem qualquer autonomia<br />
- especialmente no que tange a ausência<br />
total de orçamento próprio: é que existia<br />
o Poder Modera<strong>do</strong>r (na ver<strong>da</strong>de, poder<br />
único), que apagava a existência <strong>do</strong>s<br />
Poderes Legislativo e Judiciário.<br />
Mas foi desengana<strong>da</strong>mente a partir<br />
<strong>da</strong> República que a magistratura foi<br />
sen<strong>do</strong> reconheci<strong>da</strong>, desde o primeiro<br />
momento, como integrante de um <strong>do</strong>s<br />
Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e, paulatinamente,<br />
foi ganhan<strong>do</strong> independência e conso-<br />
li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> garantias (não <strong>do</strong>s juízes, mas<br />
<strong>do</strong>s jurisdiciona<strong>do</strong>s).<br />
Desde a Constituição de 1891 até a<br />
atual de 1988, procurou-se preservar a<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
intangibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Poder Judiciário e<br />
<strong>do</strong>s juízes 10 .<br />
Mas em tempo algum houve regras<br />
tão claras, no tocante à transparência e<br />
engajamento <strong>da</strong> magistratura no funcio-<br />
namento <strong>da</strong> máquina judiciária como<br />
atualmente existe.<br />
Vale mencionar alguns tópicos em<br />
relação à transparência <strong>do</strong>s atos judi-<br />
ciais e administrativos.<br />
Recentemente, no julgamento <strong>da</strong><br />
liminar <strong>da</strong> ADIN n° 2.700 (RJ), o STF<br />
deixou assenta<strong>do</strong>:<br />
“Por maioria, o Tribunal deferiu a me-<br />
di<strong>da</strong> acautela<strong>do</strong>ra para suspender, até<br />
a decisão final <strong>da</strong> ação, a eficácia <strong>do</strong><br />
artigo 156 <strong>da</strong> Constituição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> Rio de Janeiro, considera<strong>da</strong> a re<strong>da</strong>-<br />
ção imprimi<strong>da</strong> pela Emen<strong>da</strong> Constitu-<br />
cional n. 28, de 25 de junho de 2002,<br />
<strong>do</strong> mesmo Esta<strong>do</strong>, venci<strong>do</strong>s os Senhores<br />
Ministros Sepúlve<strong>da</strong> Pertence e o Presi-<br />
dente, o Senhor Ministro Marco Auré-<br />
10 - Constituição de 16/07/1934:<br />
Artigo 104 - Da Justiça <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> DF e <strong>do</strong>s Territórios: concurso, lista tríplice; promoção por merecimento e antigui<strong>da</strong>de; vencimentos que não<br />
exce<strong>da</strong>m a diferença de 30%; merecimento por escutínio secreto <strong>do</strong> Tribunal para a lista tríplice;<br />
Artigo 80 - Juízes federais sem concurso<br />
Artigo 64 - vitalicie<strong>da</strong>de - 75 anos, inamovibili<strong>da</strong>de e irredutibili<strong>da</strong>de de vencimentos.<br />
- Constituição de 10/11/1937:<br />
Artigo 91 - vitalicie<strong>da</strong>de - 68 anos, inamovibili<strong>da</strong>de e iredutibili<strong>da</strong>de.<br />
Artigo 103 - concurso, lista tríplice; Remuneração - 30%<br />
- Constituição de 18/09/1946:<br />
Artigo 95 - vitalicie<strong>da</strong>de, inamovibili<strong>da</strong>de, irredutibili<strong>da</strong>de, compulsória <strong>ao</strong>s 70 anos.<br />
Artigo 124 - concurso público, lista tríplice; promoção por merecimento de juiz de qualquer entrância e lista tríplice pelo Governa<strong>do</strong>r; antigui<strong>da</strong>de pelo<br />
Tribunal; antigui<strong>da</strong>de - recusa somente por 3/4 <strong>do</strong> tribunal; vencimentos diferença não excedente de 30%.<br />
- Constituição de 24/01/1967:<br />
Artigo 108 - vitalicie<strong>da</strong>de; inamovibili<strong>da</strong>de; irredutibili<strong>da</strong>de; 2/3 para disponibili<strong>da</strong>de com ampla defesa.<br />
Artigo 136 - ingresso por concurso, lista tríplice; promoção, entrância por entrância, merecimento e antigui<strong>da</strong>de; maioria absoluta para recusar o mais<br />
antigo; <strong>ao</strong> Tribunal, merecimento e antigui<strong>da</strong>de, recusa por maioria absoluta.<br />
- Emen<strong>da</strong> Constitucional nº 1, de 17/10/69:<br />
Artigo 113 - irredutibili<strong>da</strong>de, vitalicie<strong>da</strong>de, aposenta<strong>do</strong>ria 70/30.<br />
Artigo 144 - concurso, lista tríplice; promoção por antigui<strong>da</strong>de e merecimento; obrigatória a promoção na 5ª vez consecutiva em lista de merecimento;<br />
recusa pela maioria absoluta; critério de promoção por merecimento - frequência e aprovação em escola de aperfeiçoamento de magistra<strong>do</strong>s; vencimentos<br />
- diferença de menos de 20%. O <strong>da</strong> entrância mais eleva<strong>da</strong> não menos de 2/3 <strong>do</strong>s vencimentos <strong>do</strong>s desembarga<strong>do</strong>res.<br />
205
206<br />
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />
JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
lio. Ausente, justifica<strong>da</strong>mente, o Senhor<br />
Ministro Celso de Mello. Plenário,<br />
17.10.2002.” 11<br />
Vale aqui mencionar, ain<strong>da</strong>, o aviso<br />
Kantiano acerca <strong>da</strong> transparência, que<br />
faz suspeitar como injusto tu<strong>do</strong> aquilo<br />
que não possa, de algum mo<strong>do</strong>, tornar-<br />
se público 12 .<br />
Por outro la<strong>do</strong>, há ain<strong>da</strong> tribunais<br />
que criaram Ouvi<strong>do</strong>rias que, quan<strong>do</strong><br />
atuantes, conferem transparência e<br />
servem de canal de contato entre o ci-<br />
<strong>da</strong>dão-jurisdiciona<strong>do</strong> e a administração<br />
judiciária.<br />
No que pertine à autonomia adminis-<br />
11 Artigo 156 <strong>da</strong> Constituição Estadual <strong>do</strong> Rio de Janeiro, com a re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Emen<strong>da</strong> Constitucional nº 28: “A magistratura estadual terá seu regime<br />
jurídico estabeleci<strong>do</strong> no Estatuto <strong>da</strong> Magistratura, observa<strong>do</strong>s os seguintes princípios:<br />
1 - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, por concurso público de provas e títulos, promovi<strong>do</strong> pelo Tribunal de Justiça com a<br />
participação <strong>da</strong> Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil, em to<strong>da</strong>s as suas fases, obedecen<strong>do</strong>-se, nas nomeações, à ordem de classificação;<br />
II - promoção de entrância para entrância, alterna<strong>da</strong>mente, por antigui<strong>da</strong>de e merecimento, observa<strong>do</strong> o seguinte:<br />
a) é obrigatória a promoção <strong>do</strong> juiz que figure por três vezes consecutivas, ou cinco alterna<strong>da</strong>s, em listas de merecimento;<br />
a) a promoção por merecimento pressupõe <strong>do</strong>is anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte <strong>da</strong> lista de antigui<strong>da</strong>de<br />
desta, salvo se não houver, com tais requisitos, quem aceite o lugar vago;<br />
a) a aferição <strong>do</strong> merecimento pelos critérios de presteza e segurança no exercício <strong>da</strong> jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos reconheci<strong>do</strong>s<br />
de aperfeiçoamento;<br />
a) na apuração <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, o Tribunal de Justiça somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo voto nominal, aberto e motiva<strong>do</strong> de <strong>do</strong>is terços <strong>do</strong>s<br />
membros efetivos de seu Órgão Especial, conforme procedimento próprio, repetin<strong>do</strong>-se a votação até fixar-se a indicação, ve<strong>da</strong><strong>do</strong>s o escrutínio secreto e o<br />
voto não declara<strong>do</strong>;<br />
a) a recusa de promoção de juízes por antigui<strong>da</strong>de será toma<strong>da</strong> pelo voto nominal de <strong>do</strong>is terços de to<strong>do</strong>s os membros efetivos <strong>do</strong> Órgão Especial <strong>do</strong><br />
Tribunal, tal como previsto no artigo 93, II, “d”, <strong>da</strong> Constituição Federal, motivan<strong>do</strong>-se ca<strong>da</strong> voto, e pressupõe a prévia aplicação de penali<strong>da</strong>de após o<br />
regular processo administrativo disciplinar, ou a notícia de fato grave, que dê ensejo a instauração <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> processo, nos termos <strong>da</strong> legislação própria;<br />
a) concretiza<strong>da</strong> a recusa de promoção, deverá ser instaura<strong>do</strong> processo administrativo disciplinar no prazo de quinze dias, sob pena de nuli<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
deliberação e responsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> órgão coletivo.<br />
III - o acesso <strong>ao</strong>s Tribunais de segun<strong>do</strong> grau será feito por antigui<strong>da</strong>de e merecimento, alterna<strong>da</strong>mente, apura<strong>do</strong>s na última entrância ou no Tribunal de<br />
Alça<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> se tratar de promoção para o Tribunal de Justiça, observa<strong>do</strong>s o inciso II e a classe de origem;<br />
IV - previsão de cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistra<strong>do</strong>s como requisitos para ingresso e promoção na carreira;<br />
V - os vencimentos <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s serão fixa<strong>do</strong>s com diferença não superior a dez por cento de uma para outra <strong>da</strong>s categorias <strong>da</strong> carreira, não poden<strong>do</strong>,<br />
a título nenhum, exceder os <strong>do</strong>s Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal;<br />
VI - a aposenta<strong>do</strong>ria com proventos integrais é compulsória, por invalidez ou <strong>ao</strong>s setenta anos de i<strong>da</strong>de, e facultativa, <strong>ao</strong>s trinta anos de serviço, após cinco<br />
anos de exercício efetivo na judicatura;<br />
VII - o juiz titular residirá na respectiva comarca;<br />
VIII - o ato de remoção, disponibili<strong>da</strong>de e aposenta<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, por interesse público, fun<strong>da</strong>r-se-á em decisão por voto de <strong>do</strong>is terços <strong>do</strong> órgão<br />
especial <strong>do</strong> Tribunal de Justiça, assegura<strong>da</strong> ampla defesa;<br />
IX - to<strong>do</strong>s os julgamentos <strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong> Poder Judiciário serão públicos, e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as decisões, sob pena de nuli<strong>da</strong>de, poden<strong>do</strong> a lei, se o<br />
interesse público o exigir, limitar a presença, em determina<strong>do</strong>s atos, às próprias partes e seus advoga<strong>do</strong>s, ou somente a estes;<br />
X - to<strong>da</strong>s as decisões administrativas <strong>do</strong>s tribunais serão motivi<strong>da</strong>s, aquelas sobre a promoção de magistra<strong>do</strong>s serão públicas mediante votação aberta e as<br />
disciplinares serão toma<strong>da</strong>s pelo voto <strong>da</strong> maioria absoluta <strong>do</strong>s membros efetivos <strong>do</strong>s órgãos competentes, observa<strong>do</strong> o seguinte:<br />
a) a motivação <strong>da</strong>s decisões administrativas pressupõe que ca<strong>da</strong> magistra<strong>do</strong> que participe de órgão de deliberação coletiva apresente de forma clara,<br />
objetiva e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> as razões de seu voto individual;<br />
a) a decisão administrativa final, que represente a vontade <strong>do</strong> órgão de deliberação coletiva como um to<strong>do</strong>, também deverá ser apresenta<strong>da</strong> e redigi<strong>da</strong> de<br />
forma clara, objetiva e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>, apresentan<strong>do</strong> as razões <strong>da</strong> decisão que represente a vontade <strong>do</strong>s seus membros, conforme o quórum exigi<strong>do</strong> para a<br />
votação;<br />
a) a decisão administrativa final, bem como os votos individuais <strong>do</strong>s membros <strong>do</strong> órgão de deliberação coletiva, serão devi<strong>da</strong>mente publica<strong>do</strong>s no órgão<br />
oficial de comunicação, asseguran<strong>do</strong>-se a não identificação <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, que, pessoalmente ou através de seu procura<strong>do</strong>r, será intima<strong>do</strong> e poderá<br />
requerer, previamente, que a decisão seja toma<strong>da</strong> apenas na presença <strong>da</strong>s partes e seus procura<strong>do</strong>res, em se tratan<strong>do</strong> de deliberação sobre infração<br />
disciplinar.<br />
XI - nos tribunais com número superior a vinte e cinco julga<strong>do</strong>res poderá ser constituí<strong>do</strong> órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco<br />
membros, para o exercício <strong>da</strong>s atribuições administrativas e jurisdicionais <strong>da</strong> competência <strong>do</strong> tribunal pleno.<br />
12 Kant, “Zum Ewigen Frieden, Volume: XI, Werkausgabe, Frankfurt Aum Main, 1988, p.250.
À falta de um<br />
percentual fixo<br />
<strong>da</strong>s receitas<br />
líqui<strong>da</strong>s <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>, que<br />
deveria ser<br />
estabeleci<strong>do</strong><br />
no texto<br />
constitucional,<br />
o que ocorre é<br />
que a grande<br />
maioria <strong>do</strong>s<br />
tribunais<br />
necessita<br />
<strong>da</strong> famosa<br />
“suplementação<br />
de verba”.<br />
trativa e financeira 13 , nesse mesmo passo,<br />
há também muito ain<strong>da</strong> por fazer. 14<br />
Muito se avançou, é ver<strong>da</strong>de, pois<br />
quem não se lembra <strong>da</strong>s nomeações <strong>do</strong>s<br />
magistra<strong>do</strong>s pelos governa<strong>do</strong>res, <strong>da</strong>s<br />
férias <strong>do</strong>s juízes deferi<strong>da</strong>s no Palácio<br />
<strong>do</strong> Executivo, exemplos de práticas que<br />
ocorriam antes <strong>da</strong> Constituição/88.<br />
Ain<strong>da</strong> na questão <strong>da</strong> autonomia<br />
administrativa <strong>do</strong> Judiciário, cumpre<br />
mencionar o recrutamento <strong>do</strong>s juízes.<br />
A proposta de reforma constitucional<br />
que será vota<strong>da</strong> no Sena<strong>do</strong> prevê que o<br />
concurso será feito por órgão externo <strong>ao</strong><br />
Judiciário. Fala-se também em estabele-<br />
cer paradigmas mínimos para realização<br />
<strong>do</strong>s concursos nos Esta<strong>do</strong>s. Assim como<br />
um exame de seleção <strong>do</strong> candi<strong>da</strong>to, a<br />
nível federal, para poder se habilitar<br />
nos Esta<strong>do</strong>s. E a autonomia? E o pacto<br />
federativo?<br />
Tirante alguns esta<strong>do</strong>s brasileiros<br />
que possuem leis que conferem inde-<br />
pendência financeira <strong>ao</strong> Judiciário 15 , o<br />
enuncia<strong>do</strong> constitucional ain<strong>da</strong> não pas-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
sa de mera promessa inalcançável.<br />
À falta de um percentual fixo <strong>da</strong>s<br />
receitas líqui<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que deveria<br />
ser estabeleci<strong>do</strong> no texto constitucional,<br />
o que ocorre é que a grande maioria <strong>do</strong>s<br />
tribunais necessita <strong>da</strong> famosa “suple-<br />
mentação de verba”, uma porta escan-<br />
cara<strong>da</strong> para a “troca de favores” e con-<br />
descendências administrativas mediante<br />
práticas intoleráveis e incompatíveis<br />
com a ética que deve nortear o adminis-<br />
tra<strong>do</strong>r público.<br />
A Lei <strong>da</strong> Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />
ain<strong>da</strong> estabelece o percentual de 6%<br />
para o limite de gastos com pessoal <strong>do</strong><br />
Judiciário (art. 20, II, “b”, <strong>da</strong> Lei Com-<br />
plementar 101/2002) 16 .<br />
Em termos de direito compara<strong>do</strong>,<br />
buscan<strong>do</strong> análise apenas em <strong>do</strong>is para-<br />
digmas (norte-americano e europeu),<br />
assevere-se que, nos EUA, tanto a elabo-<br />
ração como a destinação <strong>do</strong> orçamento<br />
<strong>do</strong> Judiciário tem ampla participação<br />
popular. Inclusive, em alguns esta<strong>do</strong>s,<br />
o custeio <strong>do</strong>s tribunais é proveniente de<br />
13 - “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto <strong>da</strong> Magistratura, observa<strong>do</strong>s os seguintes<br />
princípios:<br />
IX - to<strong>do</strong>s os julgamentos <strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong> Poder Judiciário serão públicos, e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as decisões, sob pena de nuli<strong>da</strong>de, poden<strong>do</strong> a lei, se o<br />
interesse público o exigir, limitar a presença, em determina<strong>do</strong>s atos, às próprias partes e a seus advoga<strong>do</strong>s, ou somente a estes;<br />
X - as decisões administrativas <strong>do</strong>s tribunais serão motiva<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> as disciplinares toma<strong>da</strong>s pelo voto <strong>da</strong> maioria absoluta de seus membros;<br />
- Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegura<strong>da</strong> autonomia administrativa e financeira.<br />
Parágrafo 1º. Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro <strong>do</strong>s limites estipula<strong>do</strong>s conjuntamente com os demais Poderes na lei de<br />
diretrizes orçamentárias.<br />
Parágrafo 2º. O encaminhamento <strong>da</strong> proposta, ouvi<strong>do</strong>s os outros tribunais interessa<strong>do</strong>s, compete:<br />
I. No âmbito <strong>da</strong> União, <strong>ao</strong>s Presidentes <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal e <strong>do</strong>s Tribunais Superiores, com a aprovação <strong>do</strong>s respectivos tribunais.<br />
II. No âmbito <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e no <strong>do</strong> Distrito Federal e Territórios, <strong>ao</strong>s Presidentes <strong>do</strong>s Tribunais de Justiça, com a aprovação <strong>do</strong>s respectivos tribunais.”<br />
14 Em pesquisa realiza<strong>da</strong> nas Constituições atuais <strong>do</strong>s EUA, Itália, França, Alemanha, Rússia, nenhum Judiciário tem essa autonomia assegura<strong>da</strong> no<br />
texto constitucional.<br />
15 No Rio de Janeiro, o art. 1º <strong>da</strong> Lei Estadual n° 2.524/96, dispõe: “Fica cria<strong>do</strong>, na estrutura administrativa <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />
o Fun<strong>do</strong> Especial <strong>do</strong> Tribunal de Justiça - FETJ”. Ain<strong>da</strong> assim, a folha de pagamento <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res e magistra<strong>do</strong>s é provi<strong>da</strong> pelo Executivo, sen<strong>do</strong> o<br />
Tribunal responsável por to<strong>da</strong>s as despesas de custeio.<br />
16 A propósito <strong>da</strong> origem <strong>da</strong> LRF como imposição <strong>do</strong> FMI e sua inspiração na legislação semelhante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Unitário <strong>da</strong> Nova Zelândia, confira-se<br />
“Aspectos Constitucionais <strong>da</strong> LRF”, Jessé Torres, Revista <strong>da</strong> EMERJ, v. 04, n° 15, 2001, pág. 63. O STF já declarou constitucional o artigo 20 <strong>da</strong><br />
LRF (Adin 2238).<br />
207
208<br />
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />
JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
uma combinação de recursos públicos e<br />
priva<strong>do</strong>s.<br />
Em relação à Europa, há uma pro-<br />
posta <strong>da</strong> Associação Européia de Magis-<br />
tra<strong>do</strong>s para a Democracia e as Liber<strong>da</strong>-<br />
des (MEDEL) para o “Estatuto Europeu<br />
<strong>da</strong> Magistratura”, que passaria a incor-<br />
porar os avanços que já ocorrem em al-<br />
guns países <strong>da</strong>quele velho continente.<br />
Vale conferir os artigos 3.2, 3.3 e 3.4<br />
<strong>da</strong> proposta:<br />
3.2 Na sua composição, metade, pelo<br />
menos, <strong>do</strong> Conselho deve ser constituí<strong>da</strong><br />
por magistra<strong>do</strong>s eleitos pelos seus pares<br />
segun<strong>do</strong> a regra <strong>da</strong> representação propor-<br />
cional. O Conselho incluirá, ain<strong>da</strong>, per-<br />
sonali<strong>da</strong>des designa<strong>da</strong>s pelo parlamento.<br />
To<strong>do</strong>s os seus membros devem ser nomea-<br />
<strong>do</strong>s por tempo determina<strong>do</strong>.<br />
3.3 O parlamento vota o orçamento <strong>da</strong><br />
Justiça sob proposta <strong>do</strong> Conselho Supe-<br />
rior <strong>da</strong> Magistratura e <strong>do</strong> Governo.<br />
O Conselho deve dispor de orçamento<br />
próprio para executar as sua atribuições.<br />
3.4 As reuniões <strong>do</strong> Conselho devem ser<br />
públicas, salvo nos casos referi<strong>do</strong>s no<br />
ponto 8.2., parágrafo 2º , que podem ser<br />
à porta fecha<strong>da</strong>.<br />
V - A elaboração <strong>da</strong><br />
proposta orçamentária<br />
<strong>do</strong> Poder Judiciário com<br />
a participação <strong>do</strong>s juízes.<br />
A experiência <strong>do</strong> Rio de<br />
Janeiro<br />
Convém relembrar que o ciclo orçamen-<br />
tário des<strong>do</strong>bra-se em quatro etapas:<br />
a) elaboração <strong>da</strong>s propostas;<br />
b) aprovação <strong>da</strong>s mesmas propostas, ago-<br />
ra consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s e converti<strong>da</strong>s em lei;<br />
c) execução;<br />
d) controle (durante e após o exercício).<br />
No caso <strong>do</strong> Rio de Janeiro, no ano de<br />
2002 houve a solicitação <strong>da</strong> Associação <strong>do</strong>s<br />
Magistra<strong>do</strong>s (AMAERJ) para que os ma-<br />
gistra<strong>do</strong>s pudessem participar <strong>da</strong> proposta<br />
orçamentária e <strong>da</strong> elaboração <strong>do</strong> plano<br />
bienal 17 , o que foi pioneiramente acolhi<strong>do</strong><br />
pelo ex-Presidente <strong>do</strong> Tribunal de Justiça,<br />
Desembarga<strong>do</strong>r Marcus Faver.<br />
A participação ocorre novamente no<br />
ano de 2003, atenden<strong>do</strong> a chama<strong>da</strong> <strong>do</strong> Pre-<br />
sidente <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> Rio de Janeiro, Desembarga<strong>do</strong>r Miguel<br />
Pachá.<br />
Como a experiência é pioneira, a ver<strong>da</strong>-<br />
de é que nós, juízes, ain<strong>da</strong> estamos “apren-<br />
den<strong>do</strong>” a trabalhar com essa ativi<strong>da</strong>de 18 .<br />
Ocorreram os passos ordinariamente<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong>s na elaboração <strong>da</strong> proposta orça-<br />
mentária, consideran<strong>do</strong>:<br />
I - os limites <strong>da</strong> receita <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> Espe-<br />
cial <strong>do</strong> Tribunal de Justiça (arreca<strong>da</strong>ção<br />
média mensal em torno de vinte e cinco<br />
milhões de reais);<br />
II - os programas e projetos <strong>do</strong> plano bienal<br />
de ação governamental 2001-2002 e 2003-<br />
2004 (o plano 1999-2000, o primeiro <strong>da</strong><br />
história <strong>do</strong> TJRJ, foi executa<strong>do</strong> em 82%);<br />
17 O ideal é que a participação ocorra em to<strong>da</strong>s as fases antes menciona<strong>da</strong>s.<br />
18 Aliás, convém aqui salientar que, no nosso Tribunal, a AMAERJ vem indican<strong>do</strong> um magistra<strong>do</strong> para participar de to<strong>da</strong> e qualquer Comissão<br />
importante, o que vem implementan<strong>do</strong> uma ver<strong>da</strong>deira renovação na gestão administrativa.
III - as previsões que nossa Secretaria<br />
de Planejamento colhe junto <strong>ao</strong>s órgãos<br />
responsáveis pelas despesas (as de custeio,<br />
que são as que cui<strong>da</strong>m <strong>da</strong> manutenção,<br />
e as de capital, que são as que investem<br />
em obras e equipamentos, cujo somatório,<br />
neste exercício, situa-se na média mensal<br />
de quinze milhões de reais);<br />
IV - e que as despesas com a folha de<br />
pessoal (incluin<strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>s e serven-<br />
tuários, ativos e inativos, em to<strong>do</strong> o Es-<br />
ta<strong>do</strong>), que superam cem milhões <strong>ao</strong> mês,<br />
constituem encargo <strong>do</strong> Tesouro Estadual,<br />
não <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> a legislação esta-<br />
dual que a este criou.<br />
Hoje, o Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> Rio de Janeiro tem um caixa de R$<br />
260 milhões de reais. Esses <strong>da</strong><strong>do</strong>s são pu-<br />
blica<strong>do</strong>s mensalmente no Diário Oficial,<br />
assim como o patrimônio <strong>do</strong>s gestores <strong>do</strong><br />
Fun<strong>do</strong> estão disponíveis no site <strong>do</strong> Tribu-<br />
nal de Justiça (www.tj.rj.gov.br).<br />
Nesse passo, a Administração Judiciá-<br />
ria Superior <strong>do</strong> RJ buscou iniciar um mé-<br />
to<strong>do</strong> novo de elaboração de proposta orça-<br />
mentária, de mo<strong>do</strong> a contar com a partici-<br />
pação, igualmente, <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s.<br />
Vale a leitura de um trecho elabora-<br />
<strong>do</strong> pelo colega Jessé Torres 19 :<br />
Por isto que, no Judiciário, a elaboração<br />
<strong>da</strong> proposta orçamentária anual não<br />
deve mais ser vista como uma questão ex-<br />
clusivamente técnica. Além <strong>do</strong>s matizes<br />
técnicos, indissociáveis <strong>da</strong>s balizas que a<br />
ordem constitucional e legal traça, a pro-<br />
19 Texto já menciona<strong>do</strong>.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
posta orçamentária deve refletir aquele<br />
compromisso, de cuja consecução muito<br />
se pode e deve esperar <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, seu<br />
artífice principal. Este acha-se na ponta<br />
<strong>da</strong> prestação jurisdicional, entregan<strong>do</strong>-<br />
a a ca<strong>da</strong> dia <strong>ao</strong>s titulares de direitos e<br />
interesses em conflito. Sente, em conse-<br />
qüência, as dificul<strong>da</strong>des que se erguem<br />
à execução <strong>da</strong>quela prestação, sejam as<br />
de ordem estratégica (definição de prin-<br />
cípios, objetivos, metas e priori<strong>da</strong>des <strong>do</strong><br />
sistema a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pela organização), ge-<br />
rencial (a estruturação <strong>do</strong>s meios dispo-<br />
níveis ou mobilizáveis pelos gestores, com<br />
o fim de propiciar a melhor realização<br />
<strong>da</strong> missão institucional), ou operacional<br />
(a gestão cotidiana desses meios). Tu<strong>do</strong>,<br />
infira-se, poden<strong>do</strong> confluir ou defluir <strong>do</strong><br />
orçamento, se compreendi<strong>do</strong> este como<br />
poderoso instrumento de gestão.<br />
É evidente que ca<strong>da</strong> magistra<strong>do</strong>, na<br />
região em que exerce a jurisdição, terá<br />
uma perspectiva <strong>da</strong>quelas dificul<strong>da</strong>des.<br />
Sua manifestação, concilia<strong>da</strong> com a ma-<br />
nifestação <strong>do</strong>s demais, é que propiciará a<br />
visão sistêmica <strong>do</strong> conjunto e aju<strong>da</strong>rá na<br />
definição, com maior pertinência e senso<br />
de reali<strong>da</strong>de, <strong>do</strong>s programas e projetos a<br />
serem estabeleci<strong>do</strong>s como prioritários em<br />
face <strong>do</strong>s recursos disponíveis. É o desafio<br />
que se abre <strong>ao</strong> Judiciário que quer ser,<br />
como nós queremos, fiel intérprete <strong>da</strong>s<br />
expectativas <strong>do</strong>s jurisdiciona<strong>do</strong>s e <strong>da</strong><br />
ordenação racional <strong>do</strong>s recursos orga-<br />
nizacionais, materiais e humanos para<br />
atendê-las em tempo razoável.<br />
209
210<br />
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />
JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
Pioneiro em atos que possibilitaram<br />
maior transparência administrativa, o TJ-<br />
RJ, através <strong>do</strong> Ato Normativo n° 01/99,<br />
instituiu o Centro de Acompanhamento e<br />
Controle de Custos <strong>do</strong> Poder Judiciário, o<br />
qual produz um relatório periódico <strong>do</strong>s gas-<br />
tos jurisdicionais e administrativos de to<strong>da</strong>s<br />
as Comarcas 20 .<br />
Os Planos de Ação Governamental,<br />
respal<strong>da</strong><strong>do</strong>s em Lei Complementar, especial-<br />
mente no que se refere <strong>ao</strong> planejamento, à<br />
geração de despesa, <strong>ao</strong> controle e à transpa-<br />
rência de recursos públicos, ensejam seguran-<br />
ça <strong>ao</strong> Administra<strong>do</strong>r Público <strong>do</strong> Judiciário.<br />
Fazen<strong>do</strong> parte também <strong>do</strong> plano estra-<br />
tégico, foram indica<strong>do</strong>s pela AMAERJ 11<br />
juízes de direito (<strong>da</strong>s diversas regiões <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>) para colaborarem na elaboração<br />
<strong>da</strong> Proposta Orçamentária <strong>do</strong> Tribunal de<br />
Justiça/RJ para o exercício de 2003 21 .<br />
A AMAERJ intermediou a integração<br />
<strong>da</strong> Secretaria de Planejamento com o ma-<br />
gistra<strong>do</strong>s 22 , objetivan<strong>do</strong> um orçamento par-<br />
ticipativo. Dentre outras sugestões envia<strong>da</strong>s<br />
pelos juízes, que serão incluí<strong>da</strong>s na próxima<br />
edição <strong>do</strong> Plano de Ação Governamental<br />
para o biênio de 2003/2004, podemos citar:<br />
- melhoria nas instalações físicas;<br />
- aquisição de equipamentos de informática;<br />
- construção de Foros;<br />
- realização de seminários, congressos e<br />
cursos de atualização 23 .<br />
Desta união resultou maior conhe-<br />
cimento, tanto de parte <strong>da</strong> Secretaria de<br />
Planejamento no que concerne às reais<br />
necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s Comarcas que compõem o<br />
Poder Judiciário, quanto <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s,<br />
no que se refere às dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s<br />
pela Administração em atender to<strong>da</strong>s as<br />
reivindicações propostas, ten<strong>do</strong> em vista as<br />
limitações impostas pela arreca<strong>da</strong>ção e pela<br />
Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal.<br />
A proposta é uma só: melhores condições<br />
de trabalho para um atendimento adequa<strong>do</strong><br />
<strong>ao</strong> ci<strong>da</strong>dão, usuário <strong>do</strong> sistema judicial.<br />
No entanto, não se olvi<strong>da</strong> aqui o fato ge-<br />
ral, aplicável <strong>ao</strong> Judiciário, de que “quan<strong>do</strong><br />
algum governante decide abrir espaço para<br />
a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia participar <strong>da</strong>s decisões públi-<br />
cas, “a burocracia como grupo faz tu<strong>do</strong> para<br />
coagir uma real participação. Daí a necessi-<br />
<strong>da</strong>de de atuar com muita sabe<strong>do</strong>ria política<br />
para assegurar a preservação <strong>do</strong>s mecanis-<br />
mos que institucionalizam a participação” 24 .<br />
VI - Conclusão<br />
Em tempos atuais de globalização econô-<br />
mica, o merca<strong>do</strong> passa a ser coloca<strong>do</strong> como<br />
20 Ca<strong>da</strong> processo custa, no Rio de Janeiro, o valor de R$ 353,12 e, por habitante R$ 23,48 (<strong>da</strong><strong>do</strong>s recolhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Relatório de acompanhamento de custos,<br />
referente <strong>ao</strong> 2º quadrimestre de 2002).<br />
21 Juízes Márcia Cunha Silva Araújo de Carvalho (Capital); Maria Sandra Rocha Kayat (Niterói); Alexandre Teixeira De Souza (Região<br />
Correspondente Ao 3º Nurc); Elizabete Alves De Aguiar (Região Correspondente Ao 4º Nurc); Renato De Oliveira Freitas (Região Correspondente Ao<br />
5º Nurc); Denise Appolinária Dos Reis Oliveira (Região Correspondente Ao 6º Nurc); Francisco Ferraro Junior (Região Correspondente Ao 7º Nurc);<br />
Lúcia Regina Esteves De Magalhães (Região Correspondente Ao 8º Nurc); Andrea Barroso Silva (Região Correspondente Ao 9º Nurc); Alexandre<br />
Correa Leite (Região Correspondente Ao 10º Nurc); Alexandre Chini Neto (Região Correspondente Ao 11º Nurc).<br />
22 Foi fun<strong>da</strong>mental a participação <strong>da</strong> Des. Leila Mariano (1ª Vice-Presidente <strong>da</strong> AMAERJ e Diretora <strong>da</strong> ESAJ - Escola de Administração <strong>do</strong><br />
Tribunal de Justiça) nessa interlocução com a Administração.<br />
23 Muitas solicitações e sugestões já foram atendi<strong>da</strong>s e outras tantas constam <strong>do</strong> plano de ação <strong>da</strong> próxima gestão. Estão sen<strong>do</strong> entregues “laptops” para<br />
to<strong>do</strong>s os juízes de primeiro grau, que contarão também com um segun<strong>do</strong> assessor remunera<strong>do</strong>.<br />
24 Enrique Saraiva, Cadernos de Estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> EPAB/FGV, dezembro/98).<br />
A AMAERJ<br />
intermediou a<br />
integração <strong>da</strong><br />
Secretaria de<br />
Planejamento<br />
com o<br />
magistra<strong>do</strong>s22,<br />
objetivan<strong>do</strong><br />
um orçamento<br />
participativo.
instância máxima de regulação social.<br />
O fenômeno denomina<strong>do</strong> de “novo ca-<br />
pitalismo” desconhece fronteiras jurídicas<br />
entre as nações e permite o trânsito de capi-<br />
tais sem qualquer controle governamental.<br />
A transnacionalização <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, no<br />
dizer <strong>do</strong> professor José Eduar<strong>do</strong> Faria, coloca<br />
o Judiciário em uma encruzilha<strong>da</strong>, um Poder<br />
em busca de uma identi<strong>da</strong>de funcional.<br />
Vale aqui uma rápi<strong>da</strong> menção a uma<br />
fábula indiana, cujo texto circulou pela<br />
internet, de sorte a ilustrar o que se pre-<br />
tende desenvolver. Uma expedição de<br />
caça rumou para a África e anunciava a<br />
descoberta de uma fórmula mágica para<br />
o sucesso <strong>da</strong> empreita<strong>da</strong>: um flautista<br />
que, <strong>ao</strong> som <strong>do</strong> instrumento, fazia parar<br />
as feras e permitia a caça<strong>da</strong> fácil. No<br />
início, a inovação se mostrou um suces-<br />
so. Inúmeras feras foram abati<strong>da</strong>s com<br />
grande facili<strong>da</strong>de, o que fez os caça<strong>do</strong>res<br />
relaxarem nas tarefas de defesa. Certo<br />
dia, porém, um leão não se intimi<strong>do</strong>u<br />
com a flauta e, alteran<strong>do</strong> a lógica <strong>da</strong><br />
expedição, a caça passou a caça<strong>do</strong>r,<br />
abaten<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os integrantes <strong>do</strong> grupo.<br />
Moral <strong>da</strong> fábula: prepare-se sempre para<br />
enfrentar o leão sur<strong>do</strong>, preveja o futuro<br />
e previna soluções. Sempre se prepare<br />
para situações difíceis e inespera<strong>da</strong>s.<br />
Temos um quadro no Brasil de hoje<br />
bastante complexo, a demonstrar que<br />
não houve preparo adequa<strong>do</strong> para resol-<br />
ver o dilema em que se encontra o Poder<br />
Judiciário.<br />
A autonomia administrativa e finan-<br />
ceira <strong>do</strong> Judiciário é exigência e condi-<br />
ção para a construção de um Judiciário<br />
melhor.<br />
O momento, ademais, é de participação.<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
A magistratura quer estar engaja<strong>da</strong><br />
e atuante, contribuin<strong>do</strong> para identificar<br />
os pontos onde haja possibili<strong>da</strong>de de<br />
melhorar a sua ativi<strong>da</strong>de-fim.<br />
A participação ordena<strong>da</strong>, transpa-<br />
rente e qualifica<strong>da</strong> de magistra<strong>do</strong>s na<br />
elaboração <strong>da</strong> proposta orçamentária<br />
de certo que lhe conferirá maior teor de<br />
aptidão para responder <strong>ao</strong>s reptos <strong>do</strong><br />
novo século, em matéria de eficiência<br />
no desempenho <strong>da</strong> jurisdição, afastan<strong>do</strong><br />
a concentração de poderes e superan<strong>do</strong><br />
a compartimentação que caracterizam<br />
a cultura administrativa <strong>da</strong> elaboração<br />
orçamentária. Será mais um encargo,<br />
dentre tantos outros que integram o<br />
nosso dia-a-dia. Mas, afinal, esta é a<br />
responsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário, a que<br />
decerto corresponderão a vocação e o<br />
compromisso a que a toga nos conclama.<br />
Thiago de Mello, o poeta caboclo,<br />
escreveu os “Estatutos <strong>do</strong> homem - Ato<br />
Institucional Permanente”, em 1964, no<br />
Chile, e o dedicou a Carlos Heitor Cony.<br />
Os artigos finais são pérolas e se encai-<br />
xam no nosso tema:<br />
“Fica proibi<strong>do</strong> o uso <strong>da</strong> palavra liber<strong>da</strong>-<br />
de, a qual será suprimi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s dicionários<br />
e <strong>do</strong> pântano enganoso <strong>da</strong>s bocas.<br />
A partir deste instante a liber<strong>da</strong>de será<br />
alvo vivo e transparente como um fogo<br />
ou um rio, e a sua mora<strong>da</strong> será sempre o<br />
coração <strong>do</strong> homem”.<br />
Luis Felipe Salomão é Juiz de Direito<br />
no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Presidente<br />
<strong>da</strong> Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s - AMA-<br />
ERJ, Professor Universitário e Expositor<br />
<strong>da</strong> Escola <strong>da</strong> Magistratura - RJ.<br />
211
Parceria<br />
Possível<br />
Ong’s e o Judiciário: Parceria Possível<br />
Segun<strong>do</strong> o pensa<strong>do</strong>r colombiano Ber-<br />
nar<strong>do</strong> Toro, a maior invenção <strong>do</strong> século XX<br />
não se deu no campo científico-tecnológico,<br />
mas no campo <strong>do</strong> direito. Esta invenção foi a<br />
Declaração Universal <strong>do</strong>s Direitos Humanos<br />
(1948). Pensem <strong>da</strong>qui a cem, duzentos, tre-<br />
zentos anos. Os nossos atuais computa<strong>do</strong>res<br />
serão relíquias, instrumentos tão rudimen-<br />
tares como a comunicação por nuvens de<br />
fumaça ou o cálculo feito com a aju<strong>da</strong> de um<br />
ábaco. Os Direitos Humanos, no entanto,<br />
ain<strong>da</strong> serão um tema atual, que terá guar<strong>da</strong>-<br />
<strong>do</strong> to<strong>do</strong> seu frescor e sua imediatici<strong>da</strong>de.<br />
Por que isso ocorre? Isso ocorre porque<br />
os Direitos Humanos são o principal ins-<br />
trumento para a consecução de um projeto<br />
de humani<strong>da</strong>de cuja construção - apesar de<br />
to<strong>do</strong>s os avanços científicos e tecnológicos<br />
<strong>do</strong> homem - ain<strong>da</strong> está nos seus alicerces.<br />
Trata-se <strong>do</strong> projeto de construção de uma<br />
vi<strong>da</strong> digna para to<strong>do</strong>s.<br />
Na realização desse projeto, as ONG’s e<br />
os poderes públicos - respeita<strong>da</strong>s a identi<strong>da</strong>-<br />
de, a autonomia e o dinamismo de ca<strong>da</strong> um<br />
Viviane Senna<br />
- podem e devem ser interlocutores e par-<br />
ceiros. Na visão que venho defenden<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />
longo <strong>do</strong>s últimos anos, o Esta<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong><br />
empresarial e as organizações <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
civil sem fins de lucro podem e devem ser<br />
interlocutores (para refletir e dialogar) e<br />
parceiros (para agir conjuntamente) na pro-<br />
moção e defesa de objetivos nobres, superio-<br />
res e comuns;<br />
Objetivos nobres, superiores e comuns<br />
são objetivos que transcendem os interesses<br />
individuais, setoriais e corporativos <strong>do</strong>s<br />
diversos segmentos tanto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de,<br />
como <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Eu sempre tenho dito que<br />
o erro não está nas pessoas, setores sociais<br />
e corporações defenderem seus interesses.<br />
Isto é compreensível e legítimo. O erra<strong>do</strong> - e<br />
isto sim é muito grave - é fazê-lo de costas<br />
para o to<strong>do</strong>. E o que é o to<strong>do</strong>? O to<strong>do</strong> a que<br />
me refiro é o grande projeto de nação e de<br />
humani<strong>da</strong>de representa<strong>do</strong> pela Declaração<br />
Universal <strong>do</strong>s Diretos Humanos, ou seja, o<br />
projeto de se construir uma vi<strong>da</strong> digna para<br />
to<strong>do</strong>s.<br />
213
214<br />
ONG’S E O JUDICIÁRIO: PARCERIA POSSÍVEL<br />
O que é construir uma vi<strong>da</strong> digna para<br />
to<strong>do</strong>s? Na visão de Hanna Arendt, é asse-<br />
gurar a to<strong>do</strong>s os seres humanos o exercício<br />
pleno <strong>do</strong> direito de ter direitos e <strong>do</strong> dever<br />
de ter deveres no marco de uma ordem so-<br />
cial fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na democracia.<br />
Os Direitos Humanos - os senhores<br />
sabem muito melhor <strong>do</strong> que eu - são uni-<br />
versais e indivisíveis. Universais porque são<br />
para to<strong>do</strong>s. E indivisíveis porque formam<br />
uma totali<strong>da</strong>de solidária, que abrange os<br />
direitos individuais e coletivos. Os direitos<br />
individuais (civis e políticos) e os direitos<br />
coletivos (sociais, econômicos, culturais e<br />
ambientais) formam o conteú<strong>do</strong> mesmo <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Não podemos construir uma vi<strong>da</strong><br />
digna para to<strong>do</strong>s contemplan<strong>do</strong> a uns e ne-<br />
gligencian<strong>do</strong> a outros. O principal, o maior<br />
e talvez o único grande problema brasileiro<br />
é sermos um país de apartação, um país<br />
dramaticamente dividi<strong>do</strong> entre ci<strong>da</strong>dãos e<br />
sub-ci<strong>da</strong>dãos. Subnutrição, subemprego,<br />
sub-habitação, sub-educação, subdesenvol-<br />
vimento e tu<strong>do</strong> mais que começa com sub<br />
são as expressões deste cruel esta<strong>do</strong> de coi-<br />
sas, que nos acompanha em to<strong>da</strong>s as fases<br />
de nossa evolução histórica.<br />
Superar tu<strong>do</strong> isso é um objetivo nobre,<br />
superior e comum em que o Poder Judici-<br />
ário e as ONG’s podem e devem atuar con-<br />
juntamente, ou seja, como interlocutores<br />
e parceiros. Um objetivo nobre, superior e<br />
comum é uma causa. Uma causa é alguma<br />
coisa pela qual vale a pena trabalhar e lu-<br />
tar. Superar a subci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia é um objetivo<br />
comum <strong>da</strong>queles que atuam no marco <strong>da</strong>s<br />
políticas públicas e <strong>da</strong>queles que atuam no<br />
marco <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de social.<br />
Norberto Bobbio escreveu que “tu<strong>do</strong> é<br />
política, mas a política não é tu<strong>do</strong>”. Acima<br />
<strong>da</strong> política deve estar a ética, colocan<strong>do</strong><br />
limites à luta legítima <strong>da</strong>s pessoas e <strong>da</strong>s<br />
organizações para fazer prevalecer seus<br />
pontos de vistas e defender seus interesses<br />
no âmbito <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> democrático de direito,<br />
no que ele sabiamente chama de as regras<br />
<strong>do</strong> jogo democrático.<br />
Em razão disto é que tenho defendi<strong>do</strong><br />
com veemência a a<strong>do</strong>ção de uma ética de<br />
co-responsabili<strong>da</strong>de pelo to<strong>do</strong> como cami-<br />
nho para o Brasil enfrentar e vencer os seus<br />
grandes desafios. E quais são esses desafios?<br />
O desafio econômico <strong>da</strong> inserção competiti-<br />
va e soberana de nosso país numa economia<br />
internacional em acelera<strong>do</strong> e irreversível<br />
processo de globalização. O desafio social<br />
de erradicar as desigual<strong>da</strong>des intoleráveis,<br />
que nos dividem entre ci<strong>da</strong>dãos e subci<strong>da</strong>-<br />
dãos. E o desafio ético-político <strong>do</strong> respeito<br />
<strong>ao</strong>s direitos humanos e de participação de-<br />
mocrática <strong>da</strong> população.<br />
Para responder a estes três desafios,<br />
precisamos construir e tirar <strong>do</strong> papel três<br />
agen<strong>da</strong>s:<br />
(i) uma agen<strong>da</strong> de transformação produtiva,<br />
para enfrentar o desafio econômico,<br />
(ii) uma agen<strong>da</strong> de eqüi<strong>da</strong>de social, para<br />
enfrentar as desigual<strong>da</strong>des intoleráveis,<br />
(iii) uma agen<strong>da</strong> de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e justiça, para<br />
assegurar o respeito <strong>ao</strong>s direitos humanos e<br />
elevar e qualificar os níveis de participação<br />
democrática de nossa população;<br />
Não se pode pensar numa agen<strong>da</strong> de<br />
ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e justiça sem pensar numa justiça<br />
acessível e ágil e esta não é uma causa ape-<br />
nas <strong>do</strong> Judiciário. É uma causa <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
como um to<strong>do</strong>. Existem ONG’s que lutam<br />
pelo direito no campo <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de so-<br />
cial nas mais diversas áreas ou no empenho<br />
Não se pode<br />
pensar numa<br />
agen<strong>da</strong> de<br />
ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />
e justiça<br />
sem pensar<br />
numa justiça<br />
acessível e<br />
ágil.
- como é o caso <strong>do</strong> Instituto Ayrton Senna<br />
- para ampliar a cobertura e melhorar a<br />
quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s políticas públicas.<br />
Existem ONG’s que lutam pelo di-<br />
reito no campo <strong>do</strong> direito, defenden<strong>do</strong> os<br />
direitos <strong>da</strong> criança e <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente, <strong>do</strong><br />
jovem, <strong>da</strong> mulher, <strong>do</strong> deficiente, <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so,<br />
<strong>da</strong>s minorias e <strong>do</strong>s priva<strong>do</strong>s de liber<strong>da</strong>de.<br />
O Instituto Ayrton Senna é uma ONG.<br />
Nós temos a advocacia no cerne de nossa<br />
missão institucional. Não praticamos, no<br />
entanto, uma advocacia jurídica. Não atu-<br />
amos nos tribunais. Optamos por defen-<br />
der a causa que abraçamos - o desenvol-<br />
vimento <strong>do</strong> potencial <strong>da</strong>s novas gerações<br />
(crianças, a<strong>do</strong>lescentes e jovens) - por<br />
meio de uma advocacia ética, social e po-<br />
lítica. Nossa advocacia é para fazer saírem<br />
<strong>do</strong> papel leis como o Estatuto <strong>da</strong> Criança<br />
e <strong>do</strong> A<strong>do</strong>lescente e a LDB (Leis de Dire-<br />
trizes e Bases <strong>da</strong> Educação Nacional).<br />
Em que as ONG’s e o Poder Judiciário<br />
podem ser parceiros? As vestes talares - di-<br />
zia Santiago Dantas - não têm o branco <strong>da</strong><br />
paz, o verde <strong>da</strong> esperança, o vermelho <strong>da</strong><br />
luta e o azul <strong>da</strong> sereni<strong>da</strong>de. Resolver con-<br />
flitos com base na lei é uma tarefa muitas<br />
vezes dura e espinhosa. Por isso as vestes<br />
talares têm a cor negra <strong>da</strong> abnegação e <strong>da</strong><br />
renúncia. Ser um magistra<strong>do</strong> é renunciar a<br />
quase to<strong>da</strong>s a outras ativi<strong>da</strong>des em favor <strong>do</strong><br />
exercício <strong>da</strong> função judicante. Aos magis-<br />
tra<strong>do</strong>s, porém, não está ve<strong>da</strong><strong>do</strong> o exercício<br />
<strong>do</strong> magistério, <strong>da</strong> função de educar. To<strong>do</strong><br />
juiz pode exercer a função de professor <strong>ao</strong><br />
la<strong>do</strong> <strong>da</strong> função de magistra<strong>do</strong>. Sem jamais<br />
interferir no exercício <strong>da</strong> função judican-<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
te, vejo que ONG’s e o Judiciário podem e<br />
devem exercer juntos a função de educar a<br />
socie<strong>da</strong>de brasileira - com ênfase especial<br />
nas novas gerações: crianças, a<strong>do</strong>lescentes e<br />
jovens - para o exercício pleno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />
nos seus mais diversos âmbitos.<br />
Portanto, assim como um juiz pode<br />
acumular com o exercício <strong>da</strong> magistratura<br />
a função de professor, o Poder Judiciário<br />
pode e deve acumular em parceria com as<br />
ONG’s a função de educar o povo brasileiro<br />
para o exercício pleno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, para o<br />
exercício <strong>do</strong> direito de ter direitos e o dever<br />
de ter deveres. O Programa Eleitor <strong>do</strong> Futu-<br />
ro idealiza<strong>do</strong> pelo meu amigo Dr. Antônio<br />
Fernan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Amaral e Silva, quan<strong>do</strong> pre-<br />
sidente <strong>do</strong> TRE de Santa Catarina e, hoje,<br />
posto em prática por vários tribunais eleito-<br />
rais em to<strong>do</strong> país, é um exemplo vivo desta<br />
possibili<strong>da</strong>de, viabili<strong>da</strong>de e necessi<strong>da</strong>de de<br />
parceria entre o Esta<strong>do</strong> e as organizações <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de civil.<br />
Muitos outros programas nesta linha<br />
são possíveis e necessários nos mais di-<br />
versos âmbitos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>dã. Portanto a<br />
educação - insisto eu - é uma causa comum<br />
entre as ONG’s e o Judiciário. Numa demo-<br />
cracia o soberano é o povo. Se quisermos ter<br />
bons governos capazes de conduzir o país<br />
na consecução <strong>do</strong>s seus grandes objetivos<br />
nacionais permanentes, precisamos educar<br />
o soberano. E isto deve começar pelas crian-<br />
ças, os a<strong>do</strong>lescentes e os jovens.<br />
Muito obriga<strong>da</strong>!<br />
Viviane Senna é psicóloga e empresária. É<br />
Presidente <strong>do</strong> Instituto Ayrton Senna.<br />
215
Autonomia<br />
e Responsabili<strong>da</strong>de<br />
Princípio Constitucional <strong>da</strong> Autonomia<br />
Administrativa e Financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário e a<br />
Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />
Ó mar salga<strong>do</strong>, quanto <strong>do</strong> teu sal São lágri-<br />
mas de Portugal<br />
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,<br />
Quantos filhos em vão rezaram, Quantas<br />
noivas ficaram por casar... Para que fosses<br />
nosso, ó mar!<br />
Valeu a pena? Tu<strong>do</strong> vale a pena Se a alma<br />
não é pequena.<br />
Quem quer passar além <strong>do</strong> Boja<strong>do</strong>r Tem<br />
que passar além <strong>da</strong> <strong>do</strong>r<br />
Deus <strong>ao</strong> mar o perigo e o abismo deu, Mas<br />
nele é que espelhou o céu.<br />
Senhoras e senhores,<br />
Permitam-me dedicar esta singela palestra<br />
à inteligência e inspira<strong>do</strong>ra coragem <strong>do</strong><br />
Ministro Maurício Corrêa, Presidente <strong>do</strong><br />
Supremo Tribunal Federal. Dedico-a, tam-<br />
bém, <strong>ao</strong> Desembarga<strong>do</strong>r Cláudio Maciel,<br />
presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>, <strong>ao</strong> Desembarga<strong>do</strong>r<br />
Amaral e Silva, presidente <strong>do</strong> TJSC, <strong>ao</strong> Juiz<br />
Rodrigo Collaço, presidente <strong>da</strong> AMC e a<br />
to<strong>do</strong>s os Magistra<strong>do</strong>s que, como eles, estão<br />
aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a construir um Poder Judiciário<br />
mais forte e uni<strong>do</strong>.<br />
Para iniciar nosso encontro, tomei de<br />
empréstimo os versos de Pessoa os quais<br />
traduzem, com singular beleza e poesia, o<br />
destemor necessário para enfrentar desafios<br />
e encarar o desconheci<strong>do</strong>. Talvez, e digo<br />
apenas talvez, seja necessário experimentar-<br />
mos a <strong>do</strong>r para, também nós juízes, ultra-<br />
passarmos o Boja<strong>do</strong>r.<br />
Mas como estamos na simpática Bahia,<br />
na<strong>da</strong> melhor <strong>do</strong> que citar um ilustre filho<br />
<strong>da</strong> terra a respeito <strong>da</strong>s conseqüências de<br />
uma palestra “li<strong>da</strong>”, como esta agora apre-<br />
senta<strong>da</strong>. Referia Jorge Ama<strong>do</strong> que “no<br />
embalo <strong>da</strong>s palavras <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r, meu pensa-<br />
mento não tar<strong>da</strong> a afastar-se <strong>do</strong> assunto em<br />
debate e parte, despreocupa<strong>do</strong>, em outras<br />
direções, as mais diversas”.<br />
Romano José Enzweiler<br />
É desejo sincero que as minhas palavras<br />
não os embalem no sono desta cáli<strong>da</strong> manhã<br />
de sexta-feira, mas os despertem, sem qual-<br />
217
218<br />
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E<br />
FINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
quer presunção, para os riscos de sermos<br />
Juízes, numa era estrutura<strong>da</strong> em cima <strong>do</strong><br />
desprezo pelo tempo e pelo espaço.<br />
Para tanto, valen<strong>do</strong>-me agora de Mon-<br />
taigne, divi<strong>do</strong> com a seleta audição “a res-<br />
ponsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra, que é metade de<br />
quem diz e metade de quem ouve”.<br />
Meus preza<strong>do</strong>s,<br />
O Judiciário, perplexo e atônito diante <strong>da</strong><br />
arrogância de um bizarro presidencialismo<br />
imperial que faz inaugurar uma espécie<br />
de nova I<strong>da</strong>de Média, desenha<strong>da</strong> nas in-<br />
terrogações <strong>do</strong> futuro e nos horizontes <strong>da</strong><br />
desorganização social, não quer, não pode e<br />
não vai calar.<br />
Vivemos horas amargas, numa constela-<br />
ção de autocracias e despotismos, e por isso<br />
nos é reserva<strong>da</strong> a defesa <strong>do</strong> humanismo tão<br />
maltrata<strong>do</strong>, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> razão no meio<br />
de asfixiante incerteza.<br />
Promovem-se reformas constitucionais<br />
às pressas, a partir de argumentos de terror.<br />
Celebra-se a superficiali<strong>da</strong>de irresponsá-<br />
vel no trato <strong>da</strong>s coisas públicas, ten<strong>do</strong>-se<br />
transforma<strong>do</strong> a falta de conhecimento em<br />
predica<strong>do</strong> <strong>do</strong> poder. Buscam fazer com que<br />
tenhamos orgulho <strong>da</strong> ignorância e menos-<br />
prezo pelos que se esforçam e aprendem.<br />
Criticam a erudição, ridicularizam o saber<br />
e desacreditam as ciências, jogan<strong>do</strong>-nos no<br />
abismo <strong>da</strong> pobreza fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong>ra, a fim<br />
de justificar a entronização <strong>do</strong>s medíocres.<br />
A lógica <strong>da</strong> argumentação está sen<strong>do</strong><br />
substituí<strong>da</strong> pela lógica <strong>da</strong> exterminação.<br />
Devemos denunciar o estarrece<strong>do</strong>r e<br />
aflitivo silêncio <strong>da</strong> intelectuali<strong>da</strong>de bra-<br />
sileira, <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de, a qual, em plena<br />
era comunicacional, continua de costas<br />
volta<strong>da</strong>s para a democracia, ignoran<strong>do</strong> sua<br />
destruição, admitin<strong>do</strong> seu esfacelamento<br />
inclusive, mas não só, através <strong>do</strong> grotesco<br />
desprestigiamento <strong>do</strong> Judiciário, como algo<br />
exótico, fugin<strong>do</strong> às responsabili<strong>da</strong>des que<br />
deveria assumir, aceitan<strong>do</strong> até com compla-<br />
cência argumentos falaciosos e mesquinhos<br />
publica<strong>do</strong>s por uma imprensa canhestra,<br />
comprometi<strong>da</strong> com o discurso oficial na<br />
exata e direta medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> liberação de verbas<br />
palacianas.<br />
Sim, desde situações prosaicas como a<br />
falta de material para procedimentos ordi-<br />
nários no Hospital <strong>do</strong> Câncer, em razão <strong>da</strong><br />
má administração promovi<strong>da</strong> pelas esco-<br />
lhas políticas efetua<strong>da</strong>s em detrimento <strong>da</strong>s<br />
opções técnicas, até as contas CC5 jamais<br />
explica<strong>da</strong>s, tu<strong>do</strong> é difuso neste complexo<br />
cenário de virulenta demagogia, que angus-<br />
tia mais e mais na medi<strong>da</strong> em que observa-<br />
mos, incrédulos, a ausência de um plano de<br />
governo substituí<strong>do</strong>, barbaramente, por um<br />
plano de poder, que se quer justificar pelo<br />
simples exercício desse poder, preferencial-<br />
mente eterno.<br />
O universo ético, agora páli<strong>do</strong> e obs-<br />
curo, transfigurou-se diante <strong>da</strong> imperati-<br />
vi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> deificação merca<strong>do</strong>lógica, cedeu<br />
passo à ideologia redutora, carente <strong>do</strong><br />
enquadramento <strong>do</strong>s fatos a uma teoria <strong>do</strong><br />
conhecimento que sintetize o seu significa-<br />
<strong>do</strong> histórico.<br />
É isso: em nome <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de produzi<strong>da</strong><br />
pela competência midiática em tempos de<br />
relações fugazes e epidérmicas, que no fun-<br />
<strong>do</strong> nunca se satisfazem, estamos permitin<strong>do</strong><br />
que matem a história e, com ela, o direito e<br />
as conquistas <strong>da</strong> civili<strong>da</strong>de.<br />
E esse pós-modernismo confuso nos lega<br />
uma de suas expressões mais cruéis, qual<br />
Buscam fazer<br />
com que<br />
tenhamos<br />
orgulho <strong>da</strong><br />
ignorância e<br />
menosprezo<br />
pelos que se<br />
esforçam e<br />
aprendem.
seja, o nihilismo <strong>do</strong>entio. Na<strong>da</strong> <strong>do</strong> que existe<br />
é bom e deve, portanto, ser substituí<strong>do</strong>.<br />
É bem possível que o filósofo iraniano<br />
Daryush Shayegan tenha razão: o mun<strong>do</strong><br />
caótico em que vivemos é o ponto de con-<br />
vergência de três fenômenos - o desencan-<br />
tamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a destruição <strong>da</strong> razão e<br />
a virtualização. Há, de fato, uma excessiva<br />
veloci<strong>da</strong>de nas coisas. Descartam-se as pes-<br />
soas, esquecen<strong>do</strong>-se que o amor, para ser<br />
amor, tem de ter continui<strong>da</strong>de.<br />
Pois que o apavorante movimento <strong>da</strong>s<br />
privatizações segue inexorável. A educação,<br />
com seus rentáveis colégios e universi<strong>da</strong>-<br />
des particulares, a saúde, com seus planos<br />
e carências, a segurança, que só permite<br />
esteja arma<strong>do</strong> o desprepara<strong>do</strong> vigilante <strong>da</strong>s<br />
empresas especializa<strong>da</strong>s, a previdência, com<br />
a abertura <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> para grandes grupos<br />
internacionais e agora... a justiça... Tu<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />
alcance <strong>da</strong>queles - e só <strong>da</strong>queles - que pude-<br />
rem pagar, num evidente sepultar de direi-<br />
tos prestacionais prometi<strong>do</strong>s pela linhagem<br />
político-populista, que modificam, irreme-<br />
diavelmente, nossa fisionomia cultural.<br />
O fato real é que a própria democracia,<br />
eleito valor supremo de nossa comuni<strong>da</strong>de<br />
civilizacional, para existir, pressupõe a<br />
liber<strong>da</strong>de e a independência <strong>da</strong>s pessoas<br />
e instituições. No estreito contexto desta<br />
palestra, para que isso seja de fato efetivo e<br />
ver<strong>da</strong>deiro, há de se respeitar a autonomia<br />
financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário, conforme<br />
estampa<strong>do</strong> no artigo 99 <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong><br />
República.<br />
Em resumo, as questões que preten<strong>do</strong><br />
trabalhar são estas: 1. Analisan<strong>do</strong> a história<br />
<strong>do</strong>s povos ocidentais, é possível falar-se em<br />
democracia contemporânea sem observar<br />
o princípio <strong>da</strong> separação <strong>do</strong>s poderes? 2. É<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
imprescindível, para tanto, que haja inde-<br />
pendência orçamentária e financeira, a den-<br />
sificar o princípio maior? 3. A autonomia<br />
financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário, portanto,<br />
pode-se incluir dentre as cláusulas pétreas,<br />
protegi<strong>da</strong> de eventuais reformas? 4. Pode<br />
a Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal mitigar,<br />
legitimamente, este princípio, sem trans-<br />
formar o país numa “democracia vazia”<br />
ou promover, ain<strong>da</strong> mais, a hipertrofia <strong>do</strong><br />
Executivo?<br />
Pois bem!<br />
Neste mun<strong>do</strong> pós-moderno, vivemos o di-<br />
lema <strong>da</strong> dissintonia, <strong>da</strong> incompatibili<strong>da</strong>de<br />
estrutural entre os tempos <strong>do</strong> direito e <strong>da</strong><br />
economia, passan<strong>do</strong> a Constituição, repre-<br />
sentação mais digna e exuberante de nossa<br />
leitura <strong>do</strong>s fatos, a partir <strong>da</strong> normatização<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a encarnar uma caricatura desfigu-<br />
ra<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />
Também nesta quadra, estamos apren-<br />
den<strong>do</strong> a conviver com fenômenos até então<br />
desconheci<strong>do</strong>s, de difícil “digestão”, como a<br />
desterritorialização <strong>da</strong>s decisões e a despoli-<br />
tização <strong>da</strong> economia, ven<strong>do</strong> nossas decisões<br />
locais serem monitora<strong>da</strong>s por organismos<br />
multilataterais.<br />
A “dinâmica <strong>da</strong> política economiciza-<br />
<strong>da</strong>” produziu a “tragédia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”, <strong>ao</strong><br />
transformá-lo em mero “ator local”.<br />
Numa simplificação singela e não sem<br />
riscos, poderíamos dizer que se “trata-se <strong>do</strong><br />
novo autoritarismo de uma socie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>mi-<br />
na<strong>da</strong> por grupos que não conhecem limites<br />
às suas pretensões e não querem a política<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> limitan<strong>do</strong>-os”. No contexto, “a<br />
panacéia para to<strong>do</strong>s os problemas sociais<br />
passa a ser o desmonte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a desju-<br />
219
220<br />
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E<br />
FINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
ridificação.”<br />
Não precisamos destacar os perigos<br />
implica<strong>do</strong>s na destruição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, “na<br />
sua deslegitimação, com a completa ato-<br />
mização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Uma socie<strong>da</strong>de civil<br />
forte necessita de um Esta<strong>do</strong> forte, pois sem<br />
isso não tem como atingir as suas próprias<br />
finali<strong>da</strong>des.”<br />
Com isso, atinge-se e macula-se núcleo<br />
<strong>da</strong> Constituição, tais os direitos fun<strong>da</strong>men-<br />
tais e a própria democracia.<br />
Para contornar os efeitos <strong>do</strong> fenômeno,<br />
agravan<strong>do</strong> a crise <strong>do</strong> constitucionalismo, o<br />
governo utiliza os dispositivos constitucio-<br />
nais de maneira retórica, minimizan<strong>do</strong> com<br />
isso a pressão sobre o sistema político pelo<br />
não cumprimento <strong>da</strong>s promessas que fez e,<br />
assim, engrossa sua legitimação popular,<br />
desfocan<strong>do</strong> como<strong>da</strong>mente a responsabili<strong>da</strong>-<br />
de pelas frustrações causa<strong>da</strong>s.<br />
Assim posto, não é exagero ver caracte-<br />
riza<strong>da</strong>s as democracias atuais pelo desinte-<br />
resse generaliza<strong>do</strong> <strong>da</strong>s pessoas em relação<br />
à política, pela grande influência <strong>do</strong> poder<br />
econômico sobre os processos eleitorais,<br />
pela manipulação <strong>da</strong> opinião pública pelos<br />
meios de comunicação, pela corrupção ge-<br />
neraliza<strong>da</strong> <strong>do</strong>s governos, pela ausência de<br />
fideli<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s governantes <strong>ao</strong>s princípios de<br />
seus parti<strong>do</strong>s e às propostas de campanha,<br />
pela internacionalização <strong>da</strong>s questões que,<br />
ver<strong>da</strong>deiramente, configuram a autodeter-<br />
minação de uma nação.<br />
Esta baixa densi<strong>da</strong>de democrática, para<br />
utilizarmos a expressão de Samir Amim,<br />
acompanha-nos desde sempre. Dizia Rui<br />
Barbosa, no final <strong>do</strong> século XIX, que “(..)<br />
o presidencialismo brasileiro não é senão a<br />
ditadura em esta<strong>do</strong> crônico, a irresponsa-<br />
bili<strong>da</strong>de geral, a irresponsabili<strong>da</strong>de conso-<br />
li<strong>da</strong><strong>da</strong>, a irresponsabili<strong>da</strong>de sistemática <strong>do</strong><br />
Poder Executivo”.<br />
Para ficarmos apenas com nossa reali-<br />
<strong>da</strong>de presente: durante a campanha política<br />
foram sonega<strong>do</strong>s os planos de reforma <strong>da</strong><br />
previdência e tributária e, <strong>ao</strong> mesmo tempo,<br />
tais projetos foram, se não urdi<strong>do</strong>s, <strong>ao</strong> me-<br />
nos chancela<strong>do</strong>s expressamente pelo FMI.<br />
A questão, preciso referir, não se esgota no<br />
malferimento de um ultrapassa<strong>do</strong> modelo<br />
de soberania formal. É muito mais profun-<br />
<strong>da</strong> e perversa, principalmente em países<br />
localiza<strong>do</strong>s na região periférica <strong>do</strong> sistema<br />
decisional, como procurarei demonstrar.<br />
Assim é que desde a Convenção de Fi-<br />
ladélfia, acentuou-se a idéia de que o prin-<br />
cípio político <strong>da</strong> separação <strong>do</strong>s poderes é<br />
essencial para a liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s povos e, pois,<br />
elemento estruturante <strong>da</strong> democracia.<br />
O mesmo se pode asseverar acerca <strong>da</strong><br />
ordem político-constitucional brasileira<br />
inaugura<strong>da</strong> em 1988 que, <strong>ao</strong> elencar a sepa-<br />
ração <strong>do</strong>s poderes como princípio basilar,<br />
cláusula pétrea portanto, veio coroar uma<br />
tradição de quase <strong>do</strong>is séculos.<br />
Observe-se, pois, que assiste inteira<br />
razão <strong>ao</strong> Ministro Carlos Ayres <strong>ao</strong> destacar<br />
que as cláusulas pétreas, introduzi<strong>da</strong>s no<br />
Texto Maior, corporificam a democracia<br />
mesma, sen<strong>do</strong> expressão <strong>da</strong> limitação <strong>do</strong><br />
poder, <strong>da</strong> contenção <strong>do</strong> poder, <strong>da</strong> divisão<br />
<strong>do</strong> poder e, finalmente, <strong>da</strong> participação <strong>do</strong><br />
povo no poder.<br />
Dessa forma, defender as cláusulas<br />
pétreas, defender a separação <strong>do</strong>s poderes é<br />
defender a integri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> democracia bra-<br />
sileira.<br />
Verifiquemos, agora, a segun<strong>da</strong> questão<br />
proposta, isto é, se se afigura imprescin-<br />
dível, para tanto, que haja independência<br />
Defender as<br />
cláusulas<br />
pétreas,<br />
defender a<br />
separação<br />
<strong>do</strong>s poderes<br />
é defender a<br />
integri<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
democracia<br />
brasileira.
orçamentária e financeira, a densificar o<br />
princípio maior.<br />
Simplifiquemos as coisas e desde já res-<br />
pon<strong>da</strong>mos: o Poder Judiciário sobrevive e se<br />
justifica em razão de sua independência, <strong>da</strong><br />
autonomia de suas decisões. Existe, <strong>ao</strong> fim<br />
<strong>da</strong>s contas, segun<strong>do</strong> a moderna <strong>do</strong>utrina,<br />
não para fiscalizar a implementação efetiva<br />
<strong>do</strong> programa constitucional, mas para con-<br />
trolar a violação de direitos fun<strong>da</strong>mentais<br />
pelas maiores eventuais. O Judiciário é<br />
considera<strong>do</strong>, como visto agora acima, um<br />
guardião desse grande momento em que se<br />
forja a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nação.<br />
Quan<strong>do</strong> o Presidente <strong>da</strong> República pede<br />
e reforma <strong>do</strong> Judiciário, acusan<strong>do</strong> o Poder<br />
de possuir “caixas pretas”, no fun<strong>do</strong> o que<br />
faz “é agir como interlocutor <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>”,<br />
que quer o Judiciário “barato” e que não<br />
atrapalhe os negócios priva<strong>do</strong>s, a livre nego-<br />
ciação, principalmente <strong>do</strong> poderoso sistema<br />
financeiro. Se, para tanto, for necessário,<br />
como parece, desmoralizar os Juízes, paci-<br />
ência. “Para o merca<strong>do</strong>, a questão <strong>da</strong> justiça<br />
é uma questão absolutamente secundária.”<br />
O que devemos reafirmar, à exaustão,<br />
é que “sem a mediação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a econo-<br />
mia se torna uma espoliação organiza<strong>da</strong>,<br />
não mais permitin<strong>do</strong> que o Esta<strong>do</strong> tome<br />
decisões de merca<strong>do</strong>, mas ele (o merca<strong>do</strong>) a<br />
tomar decisões de Esta<strong>do</strong>.”<br />
Numa palavra: o Judiciário transfor-<br />
mou-se no superego de uma socie<strong>da</strong>de<br />
profun<strong>da</strong>mente transtorna<strong>da</strong> pela nova eco-<br />
nomia de merca<strong>do</strong> transnacional e deve, <strong>ao</strong><br />
mesmo tempo e, até para<strong>do</strong>xalmente, pro-<br />
mover as conquistas materiais e as vanta-<br />
gens advin<strong>da</strong>s com a mais flui<strong>da</strong> circulação<br />
<strong>do</strong>s fatores de produção mas, igualmente,<br />
superar <strong>ao</strong> menos a vulgata <strong>da</strong> economia<br />
CIDADANIA E JUSTIÇA<br />
ultra-liberal e <strong>da</strong>r <strong>ao</strong> conceito de moderni-<br />
<strong>da</strong>de um significa<strong>do</strong> mais abrangente <strong>do</strong><br />
que a patética “merca<strong>do</strong>rização” <strong>da</strong>s coisas<br />
e <strong>do</strong>s seres. Enfim, <strong>ao</strong> direito cabe “limitar<br />
o poder econômico, pois que, sem essa limi-<br />
tação, não há como impedir os fenômenos<br />
correlatos <strong>da</strong> concentração de ren<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />
exclusão social.”<br />
Sem o Judiciário livre e altivo, portanto,<br />
“as liber<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>mentais não passam de<br />
ornamento gráfico na tessitura formal <strong>do</strong>s<br />
dispositivos constitucionais”.<br />
Num mun<strong>do</strong> singulariza<strong>do</strong> pela con-<br />
tundência <strong>do</strong>s fatores econômicos, é lícito<br />
intuir que sem um orçamento próprio,<br />
confecciona<strong>do</strong> conjuntamente pelos Poderes<br />
e geri<strong>do</strong> pelo próprio Judiciário, será ele<br />
transforma<strong>do</strong> numa filial, num departa-<br />
mento <strong>do</strong> Poder Executivo.<br />
Portanto, o que se verifica é que o sub-<br />
princípio <strong>da</strong> autonomia financeira <strong>do</strong> Judi-<br />
ciário densifica e materializa outro princí-<br />
pio maior, elenca<strong>do</strong> como cláusula pétrea: a<br />
separação <strong>do</strong>s poderes.<br />
Não há dúvi<strong>da</strong>s, portanto, que a in-<br />
tangibili<strong>da</strong>de, a imutabili<strong>da</strong>de que marca<br />
o princípio sobranceiro <strong>da</strong> separação <strong>do</strong>s<br />
poderes também se aplica, sem embargo, à<br />
autonomia financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário.<br />
Nenhuma lei complementar, tal a de<br />
responsabili<strong>da</strong>de fiscal pode, sequer tangen-<br />
cialmente, sombrear os princípios-síntese<br />
<strong>da</strong> República brasileira. Quan<strong>do</strong> houver<br />
colidência, será ela sempre resolvi<strong>da</strong> a favor<br />
<strong>da</strong> norma constitucional que define e densi-<br />
fica a separação <strong>do</strong>s poderes.<br />
E é exatamente por isso que o artigo<br />
99 <strong>da</strong> Carta <strong>da</strong> República deve ser leva<strong>do</strong><br />
a efeito por to<strong>do</strong>s os Tribunais, exigin<strong>do</strong> a<br />
participação concreta na formulação <strong>da</strong>s po-<br />
221
222<br />
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E<br />
FINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />
líticas públicas dentre as quais se destacam,<br />
à obvie<strong>da</strong>de, a justiça e a segurança.<br />
Cabe <strong>ao</strong>s próprios Juízes, e a mais nin-<br />
guém, fazer cumprir a máxima de Hegel<br />
retoma<strong>da</strong>, de certa forma, por Chersterton,<br />
de que a ver<strong>da</strong>deira reali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem é<br />
a sua ação, e que a palavra que não procura<br />
tornar-se ação... é palavra inútil.<br />
Despeço-me <strong>do</strong>s eminentes colegas, agra-<br />
decen<strong>do</strong> a paciência e educação com que me<br />
toleraram, trazen<strong>do</strong> como mensagem final a<br />
sempre lúci<strong>da</strong> percepção de Ruy Barbosa:<br />
“A Constituição está em destroços e o que nos<br />
ameaça agora é, com a última ruína de nos-<br />
sas liber<strong>da</strong>des, a per<strong>da</strong> total de nós mesmos.<br />
Não é a Constituição que se acha em perigo;<br />
é a pátria, o Brasil, a nossa integri<strong>da</strong>de, a<br />
nossa coletivi<strong>da</strong>de, tu<strong>do</strong> o que somos, tu<strong>do</strong><br />
o que éramos, tu<strong>do</strong> o que aspiramos a ser, a<br />
nossa existência mesma nos seus elementos<br />
morais, em to<strong>da</strong>s as condições de sua reali<strong>da</strong>-<br />
de, de seu valor, de sua atuali<strong>da</strong>de e de seu<br />
futuro, <strong>da</strong> sua duração e <strong>da</strong> sua força, <strong>do</strong> seu<br />
empréstimo e <strong>do</strong> seu futuro.”<br />
Muito obriga<strong>do</strong>.<br />
Romano José Enzweiler<br />
Juiz de Direito
R E V I S TA D A