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A Evolução do Estado: da Teocracia ao Neoliberalismo - AMB

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ANO 7/Nº 13 - 1 o Semestre de 2004 R E V I S TA D A<br />

c i d a d a n i a e<br />

justiça


Presidente<br />

Cláudio Baldino Maciel – Ajuris (RS)<br />

Secretário-geral<br />

Guinther Spode – Ajuris (RS)<br />

Secretário-geral adjunto<br />

Alexandre Aronne de Abreu<br />

Diretor-tesoureiro<br />

Ronal<strong>do</strong> Adi Castro <strong>da</strong> Silva – Ajuris (RS)<br />

Assessores:<br />

Nelo Ricar<strong>do</strong> Presser – Ajuris (RS)<br />

Ricar<strong>do</strong> Gehling – Amatra IV (RS)<br />

Vice-presidentes<br />

Cláudio Augusto Montalvão <strong>da</strong>s Neves – Amepa (PA)<br />

Douglas Alencar Rodrigues – Amatra X (DF)<br />

Guilherme Newton <strong>do</strong> Monte Pinto – Amam (RN)<br />

Gustavo Tadeu Alkmim – Amatra I (RJ)<br />

Heral<strong>do</strong> de Oliveira Silva – Apamagis (MG)<br />

Joaquim Herculano Rodrigues – Amagis (MG)<br />

Jorge Wagih Massad – Amapar (PR)<br />

Luiz Gonzaga Mendes Marques – Amamsul (MS)<br />

Roberto Lemos <strong>do</strong>s Santos Filho – Ajufesp (SP)<br />

Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro – Amma (MA)<br />

Thiago Ribas Filho – Amaerj (RJ)<br />

Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Estadual<br />

Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço – AMC (SC)<br />

Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Federal<br />

José Paulo Baltazar Júnior – Justiça Federal (RS)<br />

Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Trabalho<br />

Hugo Cavalcanti. - (Amatra VI)<br />

Coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Militar<br />

Carlos Augusto C. de Moraes Rego – Amajum (DF)<br />

Coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Aposenta<strong>do</strong>s<br />

Cássio Gonçalves – Amatra III (RJ)<br />

Conselho Fiscal<br />

João Pinheiro de Souza – Amab (BA)<br />

Jomar Ricar<strong>do</strong> Saunders Fernandes – Amazon (AM)<br />

Wellington <strong>da</strong> Costa Citty – Amages (ES)<br />

Revista Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e Justiça<br />

É uma publicação <strong>da</strong> Diretoria de Comunicação Social <strong>da</strong> <strong>AMB</strong><br />

Vice-presidente de Comunicação Social<br />

Thiago Ribas Filho<br />

Conselho Editorial<br />

Felippe Augusto de Miran<strong>da</strong> Rosa (presidente), Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, Antônio J. Dall’Agnol<br />

Júnior, Antônio Rulli Júnior, Benedito Silvério Ribeiro, Cândi<strong>do</strong> Dinamarco, Ester Kosovski, Frederico<br />

José Leite Gueiros, João Baptista Lopes, Joaquim Falcão, José Eduar<strong>do</strong> Olivé Malha<strong>da</strong>s, Kazuo<br />

Watanabe, Paulo Roberto Bastos Furta<strong>do</strong>, Sálvio de Figueire<strong>do</strong> Teixeira e Sérgio Bermudes<br />

Diretor <strong>da</strong> revista<br />

Sérgio Cavalieri Filho<br />

Editor<br />

Jessé Torres Pereira Júnior<br />

Editor executivo<br />

Warner Bento Filho<br />

Tel: 61 328 0166<br />

e-mail: imprensa@amb.com.br<br />

Diagramação<br />

TDA Desenho & Arte<br />

www.t<strong>da</strong>brasil.com.br<br />

Tiragem<br />

16 mil<br />

Foto capa:<br />

Joana França


Apresentação<br />

Como se pode ver, a revista Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e Justiça está de cara nova. Os inova<strong>do</strong>res formato e<br />

linguagem gráfica buscam tornar a leitura ain<strong>da</strong> mais agradável. Acreditamos tratar-se de um<br />

invólucro à altura de seu conteú<strong>do</strong>.<br />

Diferentemente de edições anteriores, optamos por tratar de diversos assuntos, sem deter a<br />

publicação em um único tema. Desta maneira, podemos apresentar artigos sobre questões tão<br />

distintas como a inclusão social de porta<strong>do</strong>res de necessi<strong>da</strong>des especiais, a evolução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, a<br />

reforma trabalhista, e o Poder Judiciário e a democracia, entre tantos outros.<br />

Esta edição traz, ain<strong>da</strong>, parte <strong>da</strong>s palestras proferi<strong>da</strong>s no XVIII Congresso Brasileiro de<br />

Magistra<strong>do</strong>s, realiza<strong>do</strong> pela Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s Brasileiros em Salva<strong>do</strong>r, em outubro de<br />

2003. Esperamos, desta maneira, trazer <strong>ao</strong>s nossos leitores, que não se limitam <strong>ao</strong>s integrantes<br />

<strong>da</strong> magistratura brasileira, mais uma boa colaboração <strong>ao</strong> debate, fun<strong>da</strong>mental na construção de<br />

um Judiciário melhor.<br />

O ano de 2004 anuncia-se importante para a magistratura brasileira, na medi<strong>da</strong> em que se<br />

discute a reestruturação constitucional <strong>do</strong> Poder Judiciário, bem como de alterações na legisla-<br />

ção ordinária que imprimam maior celeri<strong>da</strong>de à prestação <strong>do</strong>s serviços jurisdicionais.<br />

Presente de forma atuante e influente em to<strong>do</strong> esse debate, a <strong>AMB</strong> não esquece <strong>da</strong> necessi-<br />

<strong>da</strong>de de fomentar o debate técnico e teórico, que renove o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> cotidiano <strong>da</strong> magistratu-<br />

ra, qualifican<strong>do</strong>-a ca<strong>da</strong> vez mais para o exercício de sua função social.<br />

Cláudio Maciel<br />

Presidente<br />

Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s Brasileiros<br />

7


Sumário<br />

O poder judiciário no regime democrático 7<br />

Fábio Konder Comparato<br />

Os Valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo Banco Mundial para os judiciários nacionais 17<br />

Ana Paula Lucena Silva Candeas<br />

A reforma trabalhista 41<br />

Grijalbo Fernandes Coutinho<br />

Independencia del poder judicial 47<br />

Luis Lezcano Claude<br />

A justiça na américa latina e os objetivos <strong>da</strong> flam 73<br />

Guinther Spode<br />

A conferência de durban contra o racismo e a responsabili<strong>da</strong>de de to<strong>do</strong>s 79<br />

J. A. Lindgren Alves<br />

Perfeccionismo e o princípio <strong>do</strong> respeito universal 103<br />

Maria Clara Dias<br />

A evolução <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>: <strong>da</strong> teocracia <strong>ao</strong> neoliberalismo 113<br />

José Vi<strong>da</strong>l de Freitas Filho<br />

O formalismo jurídico e o mito <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de estrita 139<br />

Ana Karena Nobre<br />

Judicialização <strong>do</strong>s conflitos familiares 153<br />

Mônica Sifuentes<br />

O crime de roubo segui<strong>do</strong> <strong>do</strong> crime de resistência:<br />

absorção ou desígnios autônomos? 157<br />

Renato Flávio Marcão e Flávio Augusto Maretti Siqueira<br />

A inclusão social <strong>da</strong> pessoa com deficiência e o papel <strong>da</strong> terapia ocupacional 165<br />

Celina Camargo Bartalotti<br />

Arquivo Público: um segre<strong>do</strong> bem guar<strong>da</strong><strong>do</strong>? 175<br />

Ana Paula Mendes de Miran<strong>da</strong><br />

Trabalho Escravo: quem é o escravo, quem escraviza e o que liberta 187<br />

Jorge Antonio Ramos Vieira<br />

Princípio <strong>da</strong> autonomia administrativa e financeira <strong>do</strong><br />

Judiciário e a lei de responsabili<strong>da</strong>de fiscal 195<br />

Luis Felipe Salomão<br />

Ong’s e o judiciário: parceria possível 209<br />

Viviane senna<br />

Princípio constitucional <strong>da</strong> autonomia administrativa e<br />

Financeira <strong>do</strong> poder judiciário e a lei de responsabili<strong>da</strong>de fiscal 213<br />

Romano José Enzweiler


Justiça e<br />

Na I<strong>da</strong>de Moderna, só se pode considerar<br />

democrático o regime político fun<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

na soberania popular, e cujo objetivo<br />

último consiste no respeito integral <strong>ao</strong>s<br />

direitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> pessoa humana.<br />

A soberania <strong>do</strong> povo, não dirigi<strong>da</strong> à<br />

realização <strong>do</strong>s direitos humanos, conduz<br />

necessariamente <strong>ao</strong> arbítrio <strong>da</strong> maioria. O<br />

respeito integral <strong>ao</strong>s direitos <strong>do</strong> homem,<br />

por sua vez, é inalcançável, quan<strong>do</strong> o poder<br />

político supremo não pertence <strong>ao</strong> povo.<br />

O Poder Judiciário, enquanto órgão<br />

de um Esta<strong>do</strong> democrático, há de ser<br />

estrutura<strong>do</strong> em função de ambas essas<br />

exigências. Ressalte-se, contu<strong>do</strong>, que,<br />

diferentemente <strong>do</strong>s demais Poderes<br />

Públicos, o Judiciário apresenta uma<br />

notável particulari<strong>da</strong>de: embora seja<br />

ele, por definição, o principal garante<br />

<strong>do</strong> respeito integral <strong>ao</strong>s direitos<br />

humanos, na generali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s países os<br />

magistra<strong>do</strong>s, salvo raras exceções, não<br />

são escolhi<strong>do</strong>s pelo voto popular.<br />

Democracia<br />

O Poder Judiciário no Regime Democrático<br />

Na ver<strong>da</strong>de, o fator que compatibiliza<br />

Fábio Konder Comparato<br />

o Poder Judiciário com o espírito <strong>da</strong><br />

democracia (no senti<strong>do</strong> que Montesquieu<br />

conferiu <strong>ao</strong> vocábulo) é um atributo<br />

eminente, o único capaz de suprir a<br />

ausência <strong>do</strong> sufrágio eleitoral: é aquele<br />

prestígio público, fun<strong>da</strong><strong>do</strong> no amplo<br />

respeito moral, que na civilização<br />

romana denominava-se auctoritas.<br />

Ora, esta, numa democracia, fun<strong>da</strong>-se<br />

essencialmente na independência e na<br />

responsabili<strong>da</strong>de com que o órgão estatal<br />

em seu conjunto, e os agentes públicos<br />

individualmente considera<strong>do</strong>s, exercem<br />

as funções políticas que a Constituição,<br />

enquanto manifestação original de<br />

vontade <strong>do</strong> povo soberano, lhes atribui.<br />

Se quisermos, portanto, verificar<br />

quão democrático é o Poder Judiciário<br />

no Brasil, devemos analisar a sua<br />

organização e o seu funcionamento,<br />

segun<strong>do</strong> os requisitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong><br />

independência e <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de.<br />

São as duas partes em que se divide a<br />

presente exposição.<br />

11


12<br />

O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />

Independência<br />

Esclareçamos, desde logo, o senti<strong>do</strong> téc-<br />

nico <strong>do</strong> termo. Diz-se que o Poder Judi-<br />

ciário em seu conjunto é independente,<br />

quan<strong>do</strong> não está submeti<strong>do</strong> <strong>ao</strong>s demais<br />

Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Por sua vez, dizem-se<br />

independentes os magistra<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong><br />

não há subordinação hierárquica entre<br />

eles, não obstante a multiplici<strong>da</strong>de de<br />

instâncias e graus de jurisdição. Com<br />

efeito, <strong>ao</strong> contrário <strong>da</strong> forma como é es-<br />

trutura<strong>da</strong> a Administração Pública, os<br />

magistra<strong>do</strong>s não dão nem recebem or-<br />

dens, uns <strong>do</strong>s outros.<br />

A independência funcional <strong>da</strong> magis-<br />

tratura, assim entendi<strong>da</strong>, é uma garantia<br />

institucional <strong>do</strong> regime democrático. O<br />

conceito de garantia institucional foi<br />

elabora<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>utrina publicista alemã<br />

à época <strong>da</strong> República de Weimar, para<br />

designar as formas de organização <strong>do</strong>s<br />

Poderes Públicos, cuja função é assegu-<br />

rar o respeito <strong>ao</strong>s direitos subjetivos fun-<br />

<strong>da</strong>mentais, declara<strong>do</strong>s na Constituição. 1<br />

Desde a nossa primeira Constitui-<br />

ção republicana, seguimos, em matéria<br />

de organização <strong>do</strong>s Poderes Públicos, o<br />

modelo original norte-americano, cujo<br />

pressuposto ideológico foi o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em<br />

delimitar e restringir a competência <strong>do</strong><br />

Poder Legislativo, o qual teria, na opi-<br />

nião <strong>do</strong>s Pais Fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s, uma inclinação natural <strong>ao</strong> abuso<br />

de poder. “O corpo legislativo”, escreveu<br />

Madison, “estende por to<strong>da</strong> parte a es-<br />

fera de sua ativi<strong>da</strong>de, e engole to<strong>do</strong>s os<br />

poderes no seu turbilhão impetuoso”. 2<br />

Acrescentou que o Poder Executivo deve<br />

ser temi<strong>do</strong> num regime monárquico, ou<br />

mesmo quan<strong>do</strong> o povo exerce diretamen-<br />

te a função legislativa. “Mas numa re-<br />

pública representativa”, ponderou, “em<br />

que a magistratura executiva é limita<strong>da</strong>,<br />

tanto na extensão, como na duração <strong>do</strong>s<br />

seus poderes, e onde o poder de legislar<br />

é exerci<strong>do</strong> por uma assembléia cheia de<br />

confiança nas suas próprias forças, pela<br />

certeza que tem <strong>da</strong> sua influência sobre o<br />

povo; [...] em tal esta<strong>do</strong> de coisas é con-<br />

tra as empresas ambiciosas desse poder<br />

que o povo deve dirigir os seus ciúmes e<br />

esgotar to<strong>da</strong>s as precauções.” 3<br />

Acontece que em nosso país - como<br />

na generali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s nações latino-ameri-<br />

canas, de resto - a tradição colonial mol-<br />

<strong>do</strong>u os costumes políticos no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

máxima concentração de poderes na pes-<br />

soa <strong>do</strong> Chefe de Esta<strong>do</strong>. Ao a<strong>do</strong>tarmos,<br />

pois, o regime presidencial de governo,<br />

em que o Chefe de Esta<strong>do</strong> é, <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo, Chefe de Governo, na<strong>da</strong> mais fi-<br />

zemos <strong>do</strong> que criar, sob pretexto de uma<br />

reprodução <strong>do</strong> modelo norte-americano,<br />

um presidencialismo exacerba<strong>do</strong>.<br />

Já durante o regime monárquico, ali-<br />

ás, a pre<strong>do</strong>minância inconteste <strong>da</strong> vontade<br />

imperial sobre to<strong>do</strong>s os órgãos <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>,<br />

e até mesmo acima <strong>da</strong> vontade popular,<br />

pelo exercício <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r, era<br />

1 Sobre o assunto vejam-se, na <strong>do</strong>utrina brasileira, PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., Malheiros Editores, capítulo 15, e na<br />

<strong>do</strong>utrina alemã contemporânea, KLAUS STERN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, tomo III/1, Munique, Verlag C. H. Beck, 1988, § 68;<br />

2 The Federalist, ensaio nº 48, The Modern Library, Nova York, pág. 322.<br />

3 Ibidem, pp. 322/323.


O povo não<br />

foi educa<strong>do</strong><br />

a exercer<br />

direitos e a<br />

exigir justiça,<br />

mas tem si<strong>do</strong><br />

habitualmente<br />

<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong><br />

a procurar<br />

auxílios e<br />

favores.<br />

bem conheci<strong>da</strong>. Como frisou o Marquês<br />

de Itaboraí (Rodrigues Torres), “o Impe-<br />

ra<strong>do</strong>r reina, governa e administra”. Sua<br />

Majestade concentrava em suas mãos to-<br />

<strong>da</strong>s as prerrogativas <strong>do</strong> Poder Executivo, o<br />

qual, como reconheceu Joaquim Nabuco,<br />

sempre foi onipotente, sen<strong>do</strong> esta onipo-<br />

tência, em suas palavras, “o traço saliente<br />

<strong>do</strong> nosso sistema político”. 4<br />

Não era, assim, de admirar que du-<br />

rante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> imperial o Judiciá-<br />

rio se apresentasse como fiel servi<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

governo. Ele era “uma mola <strong>da</strong> máquina<br />

administrativa”, como reconheceu sem<br />

disfarces o Visconde de Uruguai. 5 Nas<br />

palavras candentes de José Antonio Pi-<br />

menta Bueno, o futuro Marquês de São<br />

Vicente e o mais autoriza<strong>do</strong> constitucio-<br />

nalista <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> imperial, “o governo<br />

é quem dá as vantagens pecuniárias,<br />

os acessos, honras e distinções; é quem<br />

conserva ou remove, enfim quem dá os<br />

despachos não só <strong>ao</strong>s magistra<strong>do</strong>s, mas a<br />

seus filhos, parentes e amigos”. 6<br />

A Constituição de 1891, procuran<strong>do</strong><br />

corrigir tais abusos, determinou em seu<br />

art. 57 que “os juízes federais são vitalí-<br />

cios e perderão o cargo unicamente por<br />

sentença judicial”. Acrescentou que “os<br />

seus vencimentos serão determina<strong>do</strong>s<br />

por lei e não poderão ser diminuí<strong>do</strong>s”.<br />

Mas como a Constituição só se referiu,<br />

aí, <strong>ao</strong>s juízes federais, alguns Esta<strong>do</strong>s<br />

resolveram não observar essas garantias<br />

em relação <strong>ao</strong>s seus magistra<strong>do</strong>s. O Su-<br />

4 Um Estadista <strong>do</strong> Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, pág. 239.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

premo Tribunal Federal, chama<strong>do</strong> a se<br />

pronunciar sobre o assunto, julgou que<br />

as garantias de vitalicie<strong>da</strong>de, inamovi-<br />

bili<strong>da</strong>de e irredutibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s venci-<br />

mentos <strong>da</strong> magistratura deviam ser ob-<br />

serva<strong>da</strong>s, como princípio constitucional,<br />

por to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> federação; o que<br />

veio, afinal, a ser consagra<strong>do</strong> pela refor-<br />

ma constitucional de 1926. No entanto,<br />

como tais garantias não se consideravam<br />

aplicáveis <strong>ao</strong>s juízes temporários, essa<br />

escapatória foi largamente aproveita<strong>da</strong>,<br />

não só pela União, como também pelos<br />

Esta<strong>do</strong>s federa<strong>do</strong>s.<br />

Consoli<strong>do</strong>u-se, com isto, o costume<br />

político, segun<strong>do</strong> o qual as relações entre<br />

o Executivo e os demais órgãos estatais<br />

não são de potência a potência, mas de<br />

quase vassalagem destes para com aquele;<br />

ou, mais exatamente, de submissão geral à<br />

pessoa <strong>do</strong> Presidente ou <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r de<br />

Esta<strong>do</strong>; o que representa, de certa forma,<br />

a transposição na esfera estatal <strong>do</strong> tradi-<br />

cional relacionamento <strong>do</strong> coronel <strong>do</strong> in-<br />

terior com os seus agrega<strong>do</strong>s e capatazes. 7<br />

Da mesma forma, entre o povo e o Esta<strong>do</strong>,<br />

personifica<strong>do</strong> na figura <strong>do</strong> Chefe <strong>do</strong> Exe-<br />

cutivo, quase nunca se estabelece uma<br />

relação de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, mas sim uma situa-<br />

ção de dependência ou proteção pessoal,<br />

análoga à que existe entre pais e filhos, ou<br />

entre padrastos e entea<strong>do</strong>s. O povo não foi<br />

educa<strong>do</strong> a exercer direitos e a exigir justi-<br />

ça, mas tem si<strong>do</strong> habitualmente <strong>do</strong>mesti-<br />

ca<strong>do</strong> a procurar auxílios e favores.<br />

5 Ensaio sobre o Direito Administrativo, t. II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862, pág. 261.<br />

6 Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1857, pág. 39.<br />

7 Relembre-se o já clássico ensaio de VICTOR NUNES LEAL, Coronelismo, Enxa<strong>da</strong> e Voto, cuja 1ª edição é de 1949.<br />

13


14<br />

O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />

É isto o que tende a falsear com-<br />

pletamente posição <strong>da</strong> magistratura<br />

em nossa organização de Poderes. É<br />

ingênuo acreditar que a evolução consti-<br />

tucional pôs, finalmente, juízes e tribu-<br />

nais <strong>ao</strong> abrigo <strong>da</strong> avassala<strong>do</strong>ra hegemo-<br />

nia governamental.<br />

Se quisermos, portanto, garantir a<br />

independência <strong>do</strong> Poder Judiciário, pre-<br />

cisamos, sobretu<strong>do</strong>, protegê-lo contra as<br />

indevi<strong>da</strong>s incursões <strong>do</strong> Executivo em seu<br />

território.<br />

É nesse senti<strong>do</strong> que passo a alinhar<br />

algumas sugestões de reforma.<br />

Preenchimento de cargos nos<br />

Tribunais<br />

O Supremo Tribunal Federal deveria<br />

ser composto por quinze Ministros, um<br />

terço <strong>do</strong>s quais por indicação <strong>do</strong> próprio<br />

Tribunal, o outro terço indica<strong>do</strong> pelo Mi-<br />

nistério Público Federal e o último terço<br />

de indicação <strong>da</strong> Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> Brasil. As indicações seriam sempre<br />

feitas em listas tríplices, e a escolha <strong>do</strong>s<br />

Ministros competiria <strong>ao</strong> Sena<strong>do</strong> Federal,<br />

em votação com o quorum qualifica<strong>do</strong> de<br />

<strong>do</strong>is terços <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res.<br />

No Superior Tribunal de Justiça,<br />

manter-se-ia a mesma composição previs-<br />

ta no art. 104, parágrafo único, <strong>da</strong> Cons-<br />

tituição, mas a designação <strong>do</strong>s Ministros<br />

incumbiria também <strong>ao</strong> Sena<strong>do</strong> Federal,<br />

deliberan<strong>do</strong> com o mesmo quorum quali-<br />

fica<strong>do</strong> que se acaba de indicar.<br />

Igualmente para o Tribunal Superior<br />

<strong>do</strong> Trabalho, manter-se-ia a mesma com-<br />

posição determina<strong>da</strong> no art. 111, § 1º, <strong>da</strong><br />

Constituição, mas as indicações seriam<br />

feitas em listas tríplices pelo próprio<br />

Tribunal, o Ministério Público <strong>do</strong> Traba-<br />

lho e a Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil,<br />

com a escolha definitiva sen<strong>do</strong> feita pelo<br />

Sena<strong>do</strong> Federal, nas mesmas condições<br />

acima indica<strong>da</strong>s.<br />

Quanto <strong>ao</strong>s demais tribunais federais<br />

e os tribunais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e <strong>do</strong> Distrito<br />

Federal, quatro quintos <strong>do</strong>s seus inte-<br />

grantes deveriam ser escolhi<strong>do</strong>s dentre<br />

Juízes de Direito, alternativamente por<br />

antigui<strong>da</strong>de e por concurso público, e<br />

o quinto restante na forma <strong>do</strong> disposto<br />

no art. 94 <strong>da</strong> Constituição. Seria, assim,<br />

aboli<strong>do</strong> o critério de escolha por mereci-<br />

mento, o qual enseja uma inevitável mar-<br />

gem de arbítrio por parte <strong>do</strong>s tribunais<br />

de justiça.<br />

Emen<strong>da</strong>s constitucionais<br />

regula<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> organização, <strong>da</strong>s<br />

prerrogativas e <strong>do</strong> funcionamento<br />

<strong>do</strong> Judiciário<br />

Em se tratan<strong>do</strong> de emen<strong>da</strong>r a Cons-<br />

tituição para regular a organização e o<br />

funcionamento <strong>do</strong>s Poderes Públicos,<br />

bem como para a fixação <strong>da</strong>s prerrogati-<br />

vas <strong>do</strong>s seus agentes, a proposta deveria<br />

ser submeti<strong>da</strong> a referen<strong>do</strong> popular. Na<strong>da</strong><br />

é mais característico <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

usurpação <strong>da</strong> soberania <strong>do</strong> povo, esta-<br />

beleci<strong>da</strong> entre nós, <strong>do</strong> que a facili<strong>da</strong>de<br />

com que o impropriamente chama<strong>do</strong><br />

poder constituinte deriva<strong>do</strong> se atribui a<br />

prerrogativa de decidir, em definitivo,<br />

assuntos de tanta relevância para a vi<strong>da</strong><br />

democrática.<br />

Em relação <strong>ao</strong> Judiciário, porém, essa<br />

exigência ain<strong>da</strong> não é bastante. É que, <strong>ao</strong><br />

contrário <strong>do</strong>s demais Poderes, ele tem es-<br />

ta<strong>do</strong>, pela tradição constitucional, alheio<br />

Se quisermos<br />

garantir a<br />

dependência<br />

<strong>do</strong> Poder<br />

Judiciário,<br />

precisamos,<br />

sobretu<strong>do</strong>,<br />

protegê-lo<br />

contra as<br />

indevi<strong>da</strong>s<br />

incursões <strong>do</strong><br />

Executivo em<br />

seu território.


<strong>ao</strong> procedimento de emen<strong>da</strong> ou reforma<br />

<strong>da</strong> Constituição. Enten<strong>do</strong> que, <strong>da</strong><strong>da</strong> a po-<br />

sição relativamente inferior <strong>do</strong> Judiciário<br />

em relação <strong>ao</strong>s demais Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

no equilíbrio constitucional de compe-<br />

tências, é indispensável estabelecer a<br />

regra de que to<strong>da</strong> e qualquer proposta de<br />

emen<strong>da</strong> à Constituição, relativa <strong>ao</strong> Poder<br />

Judiciário e a magistratura nacional, seja<br />

de iniciativa exclusiva <strong>do</strong> Supremo Tri-<br />

bunal Federal, analogamente <strong>ao</strong> que esta-<br />

belece a Constituição no que concerne <strong>ao</strong><br />

Estatuto <strong>da</strong> Magistratura (art. 93).<br />

Autonomia financeira <strong>do</strong> Poder<br />

Judiciário e fixação <strong>do</strong>s subsídios<br />

<strong>da</strong> magistratura<br />

A Constituição Federal, em seu art.<br />

99, estabeleceu a autonomia administra-<br />

tiva e financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário. Isto<br />

não impediu, contu<strong>do</strong>, que o Executivo,<br />

pressiona<strong>do</strong> pelo Fun<strong>do</strong> Monetário Inter-<br />

nacional, e com a cumplici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Con-<br />

gresso Nacional, promulgasse a chama<strong>da</strong><br />

Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal (Lei<br />

Complementar nº 101, de 4/5/2000), que<br />

fixou limites intransponíveis para as des-<br />

pesas de pessoal <strong>do</strong> Judiciário, sem que<br />

este houvesse participa<strong>do</strong> oficialmente<br />

<strong>do</strong> processo de elaboração <strong>da</strong> lei.<br />

O adequa<strong>do</strong> funcionamento <strong>da</strong> Justi-<br />

ça para a proteção efetiva <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de<br />

humana, princípio supremo <strong>da</strong> ordem ju-<br />

rídica, não se compadece, claro está, com<br />

essa visão fiscalista <strong>da</strong> coisa pública. É<br />

indispensável e urgente iniciar uma vigo-<br />

rosa campanha nacional para a fixação,<br />

por lei complementar, de um número mí-<br />

nimo de juízes de primeira instância, na<br />

União, nos Esta<strong>do</strong>s e no Distrito Federal,<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

em função <strong>do</strong> número efetivo de habitan-<br />

tes, e de uma correspondente proporção<br />

mínima de magistra<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s tribunais de<br />

segun<strong>da</strong> instância, em relação <strong>ao</strong>s juízes<br />

de primeira instância, bem como de um<br />

número mínimo de membros <strong>do</strong>s tribu-<br />

nais superiores, em relação <strong>ao</strong>s integran-<br />

tes <strong>do</strong>s tribunais de segun<strong>da</strong> instância.<br />

Nunca é demais lembrar que a prestação<br />

de justiça é a mais nobre <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des-<br />

fins <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, não poden<strong>do</strong>, portanto,<br />

em hipótese alguma, subordinar-se à<br />

regra instrumental de balanceamento <strong>da</strong>s<br />

contas públicas.<br />

Quanto à fixação <strong>do</strong>s subsídios <strong>da</strong><br />

magistratura, dever-se-ia partir, no plano<br />

federal, <strong>da</strong> regra de que os subsídios <strong>do</strong>s<br />

Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal,<br />

<strong>do</strong> Presidente e <strong>do</strong> Vice-Presidente <strong>da</strong><br />

República, bem como <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s<br />

Federais e Sena<strong>do</strong>res seria feita conjun-<br />

tamente pelos representantes desses três<br />

Poderes.<br />

Competiria, em segui<strong>da</strong>, <strong>ao</strong> Supremo<br />

Tribunal Federal fixar os subsídios <strong>do</strong>s<br />

magistra<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s tribunais superiores, <strong>do</strong>s<br />

Tribunais Regionais Federais, <strong>do</strong>s Tri-<br />

bunais e Juízes Eleitorais, <strong>do</strong>s Tribunais<br />

e Juízes <strong>do</strong> Trabalho, e <strong>do</strong>s Tribunais e<br />

Juízes Militares federais. No plano esta-<br />

dual, haveria análogo procedimento, res-<br />

peita<strong>do</strong>s os limites máximos fixa<strong>do</strong>s pela<br />

Constituição.<br />

Isenção política <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s<br />

Ultimamente, tem-se vulgariza<strong>do</strong> a<br />

prática de magistra<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

tribunais superiores <strong>da</strong> República, fa-<br />

zerem pronunciamentos públicos sobre<br />

assuntos de governo, sem qualquer liga-<br />

15


16<br />

O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />

ção com os interesses <strong>da</strong> magistratura na-<br />

cional. A recente entrevista jornalística<br />

concedi<strong>da</strong> pelo Presidente <strong>do</strong> Supremo<br />

Tribunal Federal, Ministro Maurício<br />

Correia, a uma revista de circulação na-<br />

cional, bem ilustrou esse abuso.<br />

Será ain<strong>da</strong> preciso relembrar que<br />

tais atitudes contribuem fortemente para<br />

destruir o prestígio público e a necessá-<br />

ria aura de imparciali<strong>da</strong>de que é apaná-<br />

gio <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s? Quem não percebe,<br />

afinal, que, depois de pronunciar-se<br />

publicamente, fora <strong>do</strong> contexto de um<br />

litígio judicial, contra ou a favor <strong>da</strong> atu-<br />

ação de governantes ou parlamentares, o<br />

magistra<strong>do</strong> perde a isenção para julgar,<br />

eventualmente, causas em que esses go-<br />

vernantes ou parlamentares se achem,<br />

direta ou indiretamente, envolvi<strong>do</strong>s?<br />

Faz-se mister, portanto, acrescentar<br />

à ve<strong>da</strong>ção constante <strong>do</strong> art. 36, inciso<br />

III, <strong>da</strong> atual Lei Orgânica <strong>da</strong> Magistra-<br />

tura Nacional, 8 mais uma, concernente<br />

a pronunciamentos públicos, feitos por<br />

magistra<strong>do</strong>s fora <strong>do</strong>s processos judi-<br />

ciais, sobre políticas de governo, ou atos<br />

de quaisquer agentes públicos, ressalva-<br />

<strong>da</strong> a crítica impessoal manifesta<strong>da</strong> em<br />

obras <strong>do</strong>utrinárias ou no exercício <strong>do</strong><br />

magistério.<br />

Responsabili<strong>da</strong>de<br />

A essência <strong>do</strong> regime republicano, como<br />

a etimologia indica, é o fato de que o po-<br />

der político não pertence, como um ativo<br />

patrimonial, <strong>ao</strong>s governantes ou agentes<br />

estatais, mas é um bem comum <strong>do</strong> povo.<br />

Res publica, res populi, dizia-se em<br />

Roma. 9 É só neste preciso senti<strong>do</strong> que se<br />

pode falar em poder público.<br />

Ora, o corolário lógico desse princí-<br />

pio fun<strong>da</strong>mental é a necessária correla-<br />

ção existente entre poder e responsabi-<br />

li<strong>da</strong>de. Quanto maior o poder, maior a<br />

responsabili<strong>da</strong>de, entendi<strong>da</strong> esta como o<br />

dever que incumbe <strong>ao</strong> detentor <strong>do</strong> poder,<br />

em nome de outrem, de responder pela<br />

forma como o exerce.<br />

A responsabili<strong>da</strong>de des<strong>do</strong>bra-se, na<br />

ver<strong>da</strong>de, em duas relações: a correspon-<br />

dente <strong>ao</strong> dever de prestar contas (que na<br />

língua inglesa denomina-se accountabi-<br />

lity) e a relação de sujeição às sanções<br />

comina<strong>da</strong>s em lei pelo mau exercício <strong>do</strong><br />

poder (liability).<br />

Numa república democrática, os con-<br />

troles institucionais de abuso de poder<br />

pelos órgãos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> são de duas espé-<br />

cies: o horizontal, liga<strong>do</strong> <strong>ao</strong> mecanismo<br />

<strong>da</strong> separação de Poderes, e o vertical,<br />

fun<strong>da</strong><strong>do</strong> na soberania popular. Na ver-<br />

<strong>da</strong>de, a democracia é o regime político<br />

no qual ninguém, nem mesmo o povo<br />

soberano, exerce um poder absoluto, sem<br />

controles. O poder soberano <strong>do</strong> povo só<br />

pode ser exerci<strong>do</strong>, legitimamente, no<br />

quadro <strong>da</strong> Constituição. E é, justamen-<br />

te, <strong>ao</strong> Poder Judiciário que incumbe a<br />

magna função de interpretar os limites<br />

constitucionais dentro <strong>do</strong>s quais há de<br />

ser exerci<strong>da</strong> a soberania popular.<br />

8 “É ve<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>ao</strong> magistra<strong>do</strong>: ... III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo<br />

depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalva<strong>da</strong> a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício <strong>do</strong> magistério.”<br />

9 Cícero, De re publica, livro I, XXV, 39.


É forçoso<br />

reconhecer<br />

que os<br />

controles<br />

institucionais<br />

<strong>da</strong> ação <strong>do</strong><br />

Judiciário,<br />

em nossa<br />

socie<strong>da</strong>de, são<br />

muito frouxos<br />

e mesmo, em<br />

certos setores,<br />

praticamente<br />

inexistentes.<br />

Se assim é, se o próprio povo sobera-<br />

no tem a sua ação limita<strong>da</strong> nos termos <strong>da</strong><br />

Constituição, com maioria de razão deve<br />

a atuação <strong>do</strong> Judiciário ser submeti<strong>da</strong><br />

a uma fiscalização permanente de sua<br />

regulari<strong>da</strong>de. Ora, é forçoso reconhecer<br />

que os controles institucionais <strong>da</strong> ação<br />

<strong>do</strong> Judiciário, em nossa socie<strong>da</strong>de, são<br />

muito frouxos e mesmo, em certos seto-<br />

res, praticamente inexistentes.<br />

Comecemos pelo controle horizontal.<br />

Se se exige, com razão, total inde-<br />

pendência <strong>do</strong> Judiciário no julgamento<br />

<strong>do</strong>s demais Poderes Públicos à luz <strong>do</strong>s<br />

man<strong>da</strong>mentos constitucionais e legais,<br />

não se compreende por que o corpo de<br />

magistra<strong>do</strong>s não deva se submeter, por<br />

igual, a um controle externo <strong>do</strong> seu com-<br />

portamento por outros órgãos, para efeito<br />

de apuração de suas responsabili<strong>da</strong>des,<br />

tanto no nível penal, quanto no civil e no<br />

disciplinar.<br />

É falacioso objetar que a fiscalização<br />

ab extra <strong>da</strong> ação <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s impor-<br />

taria na per<strong>da</strong> de sua independência de<br />

julgamento e <strong>do</strong> seu poder disciplinar<br />

interno. Em primeiro lugar, porque esse<br />

exame não implica, em hipótese alguma,<br />

uma revisão <strong>da</strong>s decisões processuais ou<br />

de mérito, <strong>da</strong><strong>da</strong>s por juízes e tribunais.<br />

Ele tem por objeto, de um la<strong>do</strong>, o mo<strong>do</strong><br />

como os magistra<strong>do</strong>s se desempenham<br />

no exercício dessa sua função privativa e,<br />

de outro la<strong>do</strong>, a sua conduta pessoal fora<br />

dessa atuação funcional. Em segun<strong>do</strong> lu-<br />

gar, porque o controle externo não pode<br />

jamais abranger a competência de jul-<br />

gamento, assim como a censura judicial<br />

<strong>do</strong>s atos <strong>do</strong> Poder Legislativo e <strong>do</strong> Poder<br />

Executivo não significa a assunção pelo<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Judiciário <strong>da</strong>s funções privativas desses<br />

ramos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Em terceiro lugar, por-<br />

que um mecanismo de exame externo <strong>do</strong><br />

funcionamento <strong>do</strong> Judiciário não acarre-<br />

ta a abolição <strong>do</strong> poder disciplinar interno<br />

<strong>do</strong>s órgãos judiciais, mas o complementa.<br />

Atualmente, existe um poder cen-<br />

sório geral <strong>do</strong> Judiciário, atribuí<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />

Conselho Nacional <strong>da</strong> Magistratura<br />

(Lei Orgânica <strong>da</strong> Magistratura Nacional<br />

- Lei Complementar nº 35, de 14/03/<br />

1979). Mas esse órgão, constituí<strong>do</strong> por<br />

7 (sete) Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribunal<br />

Federal, tem si<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> inoperante,<br />

pois não dispõe, como é óbvio, <strong>da</strong> menor<br />

condição de exercer a fiscalização <strong>do</strong> de-<br />

sempenho funcional de to<strong>do</strong>s os juízes e<br />

tribunais <strong>do</strong> país.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, o mais adequa<strong>do</strong>, numa<br />

democracia, é ter a fiscalização não ju-<br />

dicial <strong>do</strong>s Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> exerci<strong>da</strong><br />

por um órgão de representação popular.<br />

Entre nós, porém, nenhum <strong>do</strong>s órgãos<br />

legislativos existentes apresenta condi-<br />

ções aceitáveis para desempenhar essa<br />

função. O Sena<strong>do</strong> Federal não represen-<br />

ta o povo brasileiro, mas sim os Esta<strong>do</strong>s<br />

federa<strong>do</strong>s e o Distrito Federal. E quanto<br />

à Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s e às Assem-<br />

bléias Legislativas, elas mal dão conta<br />

<strong>da</strong>s funções que lhes foram atribuí<strong>da</strong>s<br />

pela Constituição, e não suportariam,<br />

como é evidente, assumir mais outra, de<br />

tão grande complexi<strong>da</strong>de.<br />

O ideal seria instituir um outro ór-<br />

gão de representação popular, tanto no<br />

nível federal, quanto no estadual, com a<br />

competência exclusiva de exercer to<strong>da</strong>s<br />

as funções de fiscalização e inquérito<br />

atualmente atribuí<strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s órgãos legisla-<br />

17


18<br />

O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO<br />

tivos, além <strong>da</strong> supervisão permanente <strong>do</strong><br />

funcionamento <strong>do</strong> Poder Judiciário.<br />

A segun<strong>da</strong> melhor solução seria ins-<br />

tituir, na União, em ca<strong>da</strong> Esta<strong>do</strong> e no<br />

Distrito Federal, um órgão de controle,<br />

composto de agentes <strong>da</strong>s funções essen-<br />

ciais <strong>da</strong> Justiça, a saber, o Ministério<br />

Público e a advocacia (nesta incluí<strong>da</strong>s a<br />

advocacia e a defensoria públicas). Esse<br />

órgão teria a incumbência de verificar o<br />

cumprimento, por to<strong>do</strong>s os magistra<strong>do</strong>s,<br />

inclusive os Ministros <strong>do</strong> Supremo Tri-<br />

bunal Federal, <strong>do</strong>s deveres funcionais<br />

declara<strong>do</strong>s em lei (atualmente, arts. 35 e<br />

seguintes <strong>da</strong> Lei Orgânica <strong>da</strong> Magistra-<br />

tura), e de encaminhar as conclusões de<br />

seus inquéritos às autori<strong>da</strong>des competen-<br />

tes para a aplicação <strong>da</strong>s sanções legais.<br />

Nessa ordem de idéias, não parece<br />

adequa<strong>do</strong> que, em matéria de crimes<br />

comuns, os Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribu-<br />

nal Federal mantenham o privilégio de<br />

serem julga<strong>do</strong>s pelos seus pares. Poder-<br />

se-ia, assim, cogitar <strong>da</strong> criação de um<br />

órgão judiciário especial para tais casos,<br />

composto pelos cinco Ministros mais<br />

antigos em atuação no Superior Tribunal<br />

de Justiça.<br />

No tocante <strong>ao</strong> controle vertical <strong>da</strong><br />

atuação <strong>da</strong> magistratura, convém recor-<br />

<strong>da</strong>r que a Carta Política <strong>do</strong> Império, em<br />

seu art. 157, instituiu uma ação criminal<br />

contra os juízes de direito, “por suborno,<br />

peita, peculato e concussão”, a qual po-<br />

deria ser intenta<strong>da</strong> “dentro de ano e dia<br />

pelo próprio queixoso, ou por qualquer<br />

<strong>do</strong> Povo, guar<strong>da</strong><strong>da</strong> a ordem <strong>do</strong> Processo<br />

estabeleci<strong>da</strong> na Lei”.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, essa espécie de ação po-<br />

pular criminal, limita<strong>da</strong> exclusivamente<br />

à hipótese em que o réu é magistra<strong>do</strong>,<br />

não mais se justifica nos dias atuais.<br />

Conviria, no entanto, criar uma ação<br />

popular criminal subsidiária, mediante<br />

a<strong>da</strong>ptação <strong>do</strong> disposto no art. 5º, inciso<br />

LIX, <strong>da</strong> Constituição Federal, to<strong>da</strong> vez<br />

que o réu seja um agente público. Em<br />

tal hipótese, a ação penal subsidiária<br />

deveria ser admiti<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o<br />

representante <strong>do</strong> Ministério Público se<br />

recusasse, expressamente, a oferecer a<br />

denúncia.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, não se deve nunca<br />

esquecer de garantir cumpri<strong>da</strong>mente a<br />

to<strong>do</strong>s os jurisdiciona<strong>do</strong>s o respeito <strong>ao</strong><br />

direito fun<strong>da</strong>mental de obter, no Judiciá-<br />

rio, um julgamento isento.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, proponho a a<strong>do</strong>ção de<br />

uma providência processual simples, a<br />

fim de resolver o problema - assaz fre-<br />

qüente, aliás - de os jurisdiciona<strong>do</strong>s se<br />

encontrarem efetivamente priva<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

direito de ser julga<strong>do</strong>s de forma impar-<br />

cial na comarca em que são <strong>do</strong>micilia<strong>do</strong>s.<br />

Suponha-se a hipótese de um juiz de<br />

direito que, em região de agu<strong>do</strong> conflito<br />

agrário, coloque-se objetivamente - de<br />

mo<strong>do</strong> intencional ou não, pouco importa<br />

- <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s proprietários rurais, e se<br />

empenhe em distribuir, mais a torto que<br />

a direito, condenações criminais a man-<br />

cheias contra to<strong>do</strong>s os que atuem, direta<br />

ou indiretamente, a favor <strong>da</strong> reforma<br />

agrária; além de julgar sistematicamen-<br />

te improcedentes as ações possessórias<br />

e reipersecutórias intenta<strong>da</strong>s por essas<br />

mesmas pessoas. As regras processuais<br />

concernentes à suspeição não têm aí apli-<br />

cação, em princípio, pois não se consegue<br />

provar nenhum interesse pessoal <strong>do</strong> ma-


gistra<strong>do</strong> na solução <strong>da</strong>s lides submeti<strong>da</strong>s<br />

à sua decisão.<br />

Para a solução de casos dessa nature-<br />

za, poder-se-ia cogitar de atribuir a qual-<br />

quer parte em juízo, em qualquer espécie<br />

de processo, o direito de obter o desafo-<br />

ramento <strong>do</strong> feito para o juízo que vier a<br />

ser designa<strong>do</strong> pelo tribunal de segun<strong>da</strong><br />

instância. Seria um direito potestativo,<br />

exercitável, portanto, sem que o seu<br />

titular tenha que alegar motivo algum.<br />

A freqüência com que for exerci<strong>do</strong> esse<br />

direito, em determina<strong>do</strong> juízo, serviria<br />

como indício de que o magistra<strong>do</strong> já<br />

não goza <strong>da</strong> indispensável confiança <strong>do</strong>s<br />

jurisdiciona<strong>do</strong>s, haven<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> a sua<br />

auctoritas funcional.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Eis aí as sugestões que me pareceu<br />

importante e oportuno oferecer à consi-<br />

deração geral, como subsídio <strong>ao</strong>s traba-<br />

lhos de aperfeiçoamento <strong>da</strong> organização<br />

<strong>do</strong> Poder Judiciário em nosso país.<br />

São Paulo, 1º de outubro de 2003<br />

Fábio Konder Comparato<br />

Doutor Honoris Causa <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

de Coimbra<br />

Doutor em Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Paris<br />

Professor Titular <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de<br />

Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo<br />

19


Valores e<br />

A hegemonia <strong>do</strong> sistema econômico capi-<br />

talista se manifesta na construção de con-<br />

sensos quanto a valores liga<strong>do</strong>s à economia<br />

de merca<strong>do</strong> tanto no plano mundial quanto<br />

nos diversos planos nacionais. O discurso<br />

pre<strong>do</strong>minante, em grande parte produzi<strong>do</strong><br />

por organizações econômicas e financeiras<br />

multilaterais, propõe que as instituições<br />

políticas e jurídicas nacionais operem em<br />

favor <strong>da</strong> economia global.<br />

os Judiciários<br />

O Banco Mundial, enquanto organis-<br />

mo internacional especializa<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema<br />

<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, atua como elemento<br />

facilita<strong>do</strong>r <strong>da</strong> economia de merca<strong>do</strong>. Nessa<br />

quali<strong>da</strong>de, promove o debate em torno <strong>da</strong><br />

reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, em particular <strong>do</strong> Judici-<br />

ário, para favorecer um ambiente propício<br />

para os investimentos. O Banco propõe<br />

que o Judiciário combata a “síndrome <strong>da</strong><br />

ilegali<strong>da</strong>de”, proteja a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>,<br />

Os valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo Banco<br />

Mundial para os judiciários nacionais 1<br />

Ana Paula Lucena Silva Candeas 2<br />

garanta o cumprimento <strong>do</strong>s contratos e seja<br />

previsível.<br />

Ativi<strong>da</strong>de paranormativa<br />

Com esse fim, o Banco produz pesquisas<br />

e publicações, promove conferências e fi-<br />

nancia projetos sobre o papel <strong>do</strong>s tribunais<br />

nacionais. Esse esforço reflete uma ativi-<br />

<strong>da</strong>de paranormativa que visa a influenciar<br />

os Judiciários em seus valores e seu modus<br />

operandi com vistas a a<strong>da</strong>ptá-los à econo-<br />

mia globaliza<strong>da</strong>.<br />

Segun<strong>do</strong> Dupuy (1995:146), o conceito<br />

de ativi<strong>da</strong>de paranormativa é quase des-<br />

conheci<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>utrina. Entretanto, na<br />

prática, essa noção é de grande importância<br />

para a harmonização progressiva <strong>da</strong>s le-<br />

gislações nacionais nos <strong>do</strong>mínios técnicos<br />

mais varia<strong>do</strong>s. A ativi<strong>da</strong>de paranormativa<br />

1 Este artigo baseia-se no capítulo 2 <strong>da</strong> dissertação de mestra<strong>do</strong> <strong>da</strong> autora :Juízes para o merca<strong>do</strong>? Os valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo Banco Mundial para<br />

o Judiciário em um mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong>. O objetivo <strong>do</strong> texto é apresentar uma tipologia de valores extraí<strong>da</strong> de <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> Banco Mundial afim de<br />

fomentar o debate sobre suas recomen<strong>da</strong>ções <strong>ao</strong>s Judiciários nacionais.<br />

2 Ana Paula Lucena Silva Candeas é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Ciência Política e Relações Internacionais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Brasília e pós-gradua<strong>da</strong> em Direito Constitucional francês e Direito Internacional Público pela Université Paris II (Pantheon-Assas).<br />

21


22<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

<strong>da</strong>s organizações internacionais, principal-<br />

mente <strong>da</strong>s instituições especializa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

Nações Uni<strong>da</strong>s, se traduz na uniformização<br />

de referências, nomenclaturas, linhas di-<br />

retoras, legislações-tipo e códigos diversos.<br />

Essa massa de normas, princípios e valores<br />

é coloca<strong>da</strong> à disposição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s a título<br />

indicativo, seja pela via de resoluções, seja<br />

simplesmente por publicações produzi<strong>da</strong>s<br />

pelos secretaria<strong>do</strong>s dessas organizações.<br />

Essa definição permite compreender<br />

como o Banco Mundial estabelece um pa-<br />

drão para os Judiciários nacionais. O Banco<br />

não atua de maneira direta como outras<br />

instituições <strong>do</strong> sistema <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s<br />

(OMS, OIT ou FAO), que, por sua autori-<br />

<strong>da</strong>de técnica, têm muitas de suas recomen-<br />

<strong>da</strong>ções incorpora<strong>da</strong>s a legislações nacionais.<br />

Ao contrário, o Banco procura padronizar<br />

as concepções de Judiciário e de sistemas de<br />

justiça de forma indireta, “meramente indi-<br />

cativa”, como diz Dupuy.<br />

As ativi<strong>da</strong>des paranormativas buscam a<br />

harmonização de comportamentos <strong>do</strong>s ato-<br />

res sociais, não pela adesão a normas cujo<br />

descumprimento acarretaria sanção, mas a<br />

valores ou idéias, crian<strong>do</strong> consensos para<br />

que se tornem um “entendimento rotineiro”<br />

(Rosenau, 2000: 31).<br />

Um <strong>do</strong>s instrumentos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de pa-<br />

ranormativa são as publicações, <strong>do</strong> que são<br />

exemplos os <strong>do</strong>cumentos a respeito <strong>do</strong> Ju-<br />

diciário pelo Banco Mundial. Uma leitura<br />

destes evidencia uma série de valores des-<br />

tina<strong>do</strong>s a aprimorar o funcionamento <strong>do</strong>s<br />

sistemas judiciais: previsibili<strong>da</strong>de nas de-<br />

cisões, independência, eficiência, transpa-<br />

rência, credibili<strong>da</strong>de, combate à corrupção,<br />

proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, acessibi-<br />

li<strong>da</strong>de (méto<strong>do</strong>s alternativos de solução de<br />

controvérsias) e respeito <strong>ao</strong>s contratos. Com<br />

isso, o Banco busca fazer com que o consen-<br />

so deixe de ser apenas internacional e seja<br />

internaliza<strong>do</strong> pelos Judiciários nacionais.<br />

Muitos desses valores, tais como inde-<br />

pendência, eficiência, transparência e acessi-<br />

bili<strong>da</strong>de já estão incorpora<strong>do</strong>s nos discursos<br />

e na prática <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s brasileiros, que<br />

têm busca<strong>do</strong> aprimoramento institucional.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, entretanto, os magistra<strong>do</strong>s<br />

em geral parecem refratários <strong>ao</strong> valor “previ-<br />

sibili<strong>da</strong>de” <strong>da</strong>s decisões judiciais.<br />

Com efeito, duas percepções se opõem<br />

<strong>ao</strong> que seja previsibili<strong>da</strong>de: a percepção <strong>do</strong>s<br />

economistas e a <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s. A preocu-<br />

pação de alguns economistas e investi<strong>do</strong>res,<br />

refleti<strong>da</strong> nos <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> Banco Mun-<br />

dial, é a de que o Judiciário seja previsível<br />

e eficiente, reduzin<strong>do</strong> a margem de risco,<br />

garantin<strong>do</strong> o cumprimento <strong>do</strong>s contratos,<br />

proferin<strong>do</strong> decisões não-politiza<strong>da</strong>s nem<br />

desestabiliza<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> confiança <strong>do</strong>s in-<br />

vesti<strong>do</strong>res. Por seu turno, os magistra<strong>do</strong>s<br />

estão impregna<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

valores democráticos sob uma perspectiva<br />

de justiça: no processo de formação de seu<br />

convencimento, o juiz busca restabelecer o<br />

equilíbrio <strong>da</strong>s partes, em particular usan<strong>do</strong><br />

o princípio <strong>da</strong> eqüi<strong>da</strong>de no julgamento so-<br />

bre contratos.<br />

Documentos <strong>do</strong> Banco Mundial<br />

sobre reforma <strong>do</strong> Judiciário<br />

Os relatórios anuais <strong>do</strong> Banco Mundial são<br />

publica<strong>do</strong>s desde 1978. Os relatórios que<br />

enfatizam o papel <strong>do</strong> Judiciário são os de<br />

no. 19, de 1997 – “O Esta<strong>do</strong> num mun<strong>do</strong><br />

em transformação” – e o de no. 24, de 2002<br />

– “Instituições para os merca<strong>do</strong>s”. Além<br />

A preocupação<br />

de alguns<br />

economistas<br />

e investi<strong>do</strong>res<br />

é a de que o<br />

Judiciário seja<br />

previsível e<br />

eficiente.


disso, merece destaque o Documento Téc-<br />

nico 319S – “El sector judicial en América<br />

Latina y el Caribe: Elementos de Reforma”.<br />

O relatório de 1997 discute o novo papel<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> diante de acontecimentos como a<br />

desintegração <strong>da</strong>s economias planeja<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

ex-União Soviética e <strong>da</strong> Europa Oriental, a<br />

crise fiscal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-Previdência, o papel<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no “milagre” econômico <strong>do</strong> leste<br />

<strong>da</strong> Ásia, a desintegração de Esta<strong>do</strong>s e as<br />

emergências humanitárias em várias partes<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Já o relatório de 2002 trata <strong>da</strong><br />

criação de instituições que promovem mer-<br />

ca<strong>do</strong>s inclusivos e integra<strong>do</strong>s e contribuem<br />

para um crescimento estável e integra<strong>do</strong>,<br />

para melhorar a ren<strong>da</strong> e reduzir a pobreza.<br />

Além desses <strong>do</strong>cumentos, cabe exa-<br />

minar a primeira conferência <strong>do</strong> Banco<br />

Mundial sobre o Judiciário, realiza<strong>da</strong> em<br />

2000: “Comprehensive Legal and Judicial de-<br />

velopment – Toward an agen<strong>da</strong> for a just and<br />

equitable society in the 21st century” 3 . Essa<br />

conferência debateu elementos de um sis-<br />

tema legal e judicial “exitoso” (successful),<br />

alternativas para promover o controle sobre<br />

os governos, acesso à justiça, mecanismos<br />

informais de solução de controvérsias, re-<br />

dução <strong>da</strong> corrupção, apoio <strong>do</strong>s meios de<br />

comunicação à reforma <strong>do</strong> Judiciário, con-<br />

dições para um Judiciário independente,<br />

treinamento para a reforma <strong>do</strong> Judiciário,<br />

compartilhamento <strong>do</strong> conhecimento, parti-<br />

cipação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil e estratégias para<br />

programas legais e judiciais.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e<br />

desenvolvimento<br />

A reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, em suas diversas<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des, apresenta-se como condição<br />

necessária <strong>ao</strong> desenvolvimento <strong>do</strong> capitalis-<br />

mo global. O Banco Mundial, como um <strong>do</strong>s<br />

agentes <strong>da</strong> governança global 4 , reconhece<br />

que os Judiciários nacionais podem exercer<br />

o papel de facilita<strong>do</strong>res ou representarem<br />

óbices <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong> economia de merca-<br />

<strong>do</strong> em escala mundial.<br />

O Banco visa a influenciar os Judici-<br />

ários em <strong>do</strong>is níveis: o institucional e o<br />

individual (juízes). No primeiro, a adesão a<br />

esses valores engajaria os Judiciários em um<br />

processo de modernização, a<strong>da</strong>ptan<strong>do</strong>-os<br />

às deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong> nova economia globaliza-<br />

<strong>da</strong>. No nível individual, a convergência de<br />

valores tornaria os próprios juízes agentes<br />

<strong>da</strong> construção desse consenso no interior de<br />

sua corporação, impulsionan<strong>do</strong> a reforma<br />

<strong>do</strong> Judiciário (Dakolias, 1997:72). Os ma-<br />

gistra<strong>do</strong>s assumiriam o papel de guardiães<br />

de um ambiente propício <strong>ao</strong>s investimentos,<br />

asseguran<strong>do</strong> judicialmente o respeito à pro-<br />

prie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e <strong>ao</strong>s contratos. O Banco<br />

enfatiza que a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não é um<br />

tema puramente nacional, visto que deci-<br />

sões toma<strong>da</strong>s por cortes podem influenciar<br />

fluxos transnacionais.<br />

Como um clima favorável <strong>ao</strong>s investi-<br />

mentos priva<strong>do</strong>s necessita de um ambiente<br />

de estabili<strong>da</strong>de e previsibili<strong>da</strong>de para os<br />

3 Realiza<strong>da</strong> em Washington em junho de 2000. Vale destacar duas palestras: “Rethinking the processes and criteria for success”, apresenta<strong>do</strong> por Bryant<br />

G. Garth, Diretor <strong>da</strong> “American Bar Foun<strong>da</strong>tion”, e “Pending challenges of judicial reform”, de Alfre<strong>do</strong> Fuentes Hernández, Diretor Executivo <strong>da</strong><br />

“Corporação para a Excelência <strong>da</strong> Justiça” <strong>da</strong> Colômbia.<br />

4 Governança traduz o conjunto de funções que precisam ser executa<strong>da</strong>s para <strong>da</strong>r viabili<strong>da</strong>de a qualquer sistema humano, ativi<strong>da</strong>des apoia<strong>da</strong>s em objetivos<br />

comuns; a governança tem um propósito consciente, de natureza política ou econômica, por exemplo, embora não necessariamente tenha origem em<br />

diretrizes formalmente prescritas (Rosenau, 2000:14-16).<br />

23


24<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

negócios, o Banco a impulsiona a reforma<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – e, em particular, <strong>do</strong> Judiciário<br />

– para garantir essa previsibili<strong>da</strong>de, sobre-<br />

tu<strong>do</strong> em matéria contratual 5 . Desse mo<strong>do</strong>,<br />

na visão <strong>do</strong> Banco Mundial, os Judiciários<br />

nacionais não constituiriam fator de risco<br />

para os investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s.<br />

Em reação a esse argumento, o Presi-<br />

dente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>, Cláudio Baldino Maciel,<br />

contesta o merca<strong>do</strong> como mecanismo sufi-<br />

ciente para disciplinar com justiça a vi<strong>da</strong><br />

em socie<strong>da</strong>de e defende que o valor precí-<br />

puo para o Judiciário é a justiça:<br />

o desenvolvimento econômico é, por certo,<br />

finali<strong>da</strong>de a ser obti<strong>da</strong> pelos governos. Mas<br />

não é, decidi<strong>da</strong>mente, tarefa <strong>do</strong> Judiciário<br />

produzir – e não deve produzir - desenvolvi-<br />

mento econômico. O Judiciário produz – e<br />

deve produzir – justiça (Maciel, 2001: 7).<br />

No final <strong>do</strong>s anos oitenta e início <strong>do</strong>s<br />

noventa, o Banco Mundial buscou contribuir<br />

para a implementação <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s refor-<br />

mas de primeira geração (abertura comercial<br />

e financeira, privatizações, desregulamenta-<br />

ção etc.). Em segui<strong>da</strong>, passou a investir nas<br />

reformas de segun<strong>da</strong> geração, de natureza<br />

institucional – a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

O Relatório de 1997 <strong>do</strong> Banco Mundial,<br />

intitula<strong>do</strong> “O Esta<strong>do</strong> num mun<strong>do</strong> em trans-<br />

formação”, liga a atuação <strong>do</strong> Judiciário à<br />

prosperi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s economias, ten<strong>do</strong> em vista<br />

seu papel de resolver disputas entre atores<br />

econômicos. Segun<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento, a pros-<br />

peri<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s economias requer disposições<br />

institucionais que resolvam disputas entre<br />

empresas, ci<strong>da</strong>dãos e governos e esclare-<br />

çam ambigüi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s leis e regulamentos<br />

e imponham sua observância. O Banco<br />

reconhece que nenhum mecanismo é mais<br />

importante <strong>do</strong> que o Judiciário formal, visto<br />

que somente esse Poder tem acesso à autori-<br />

<strong>da</strong>de coercitiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para impor a exe-<br />

cução <strong>do</strong>s seus ditames, e somente ele está<br />

investi<strong>do</strong> de autori<strong>da</strong>de formal para decidir<br />

sobre a legali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s atos <strong>do</strong>s Poderes Le-<br />

gislativo e Executivo. Contu<strong>do</strong>, o Judiciário<br />

só pode desempenhar esse papel se forem<br />

satisfeitas três condições essenciais: inde-<br />

pendência, poder de execução <strong>da</strong>s decisões<br />

e organização eficiente (Banco Mundial,<br />

1997: 105).<br />

Em alguns casos, as operações de em-<br />

préstimo para capacitação e desenvolvi-<br />

mento institucional incluíram componentes<br />

liga<strong>do</strong>s à reforma judicial. Em outros, a<br />

reforma era estipula<strong>da</strong> como condição <strong>do</strong><br />

ajuste estrutural apoia<strong>do</strong> pelo financiamen-<br />

to <strong>do</strong> Banco. Além disso, o Banco apoiou<br />

projetos exclusivamente volta<strong>do</strong>s para a<br />

reforma legal e judicial, habitualmente<br />

conheci<strong>do</strong>s como projetos free-standing. O<br />

Banco colabora ain<strong>da</strong> na formação de con-<br />

sensos em torno <strong>da</strong> reforma <strong>do</strong> Judiciário<br />

financian<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s e seminários.<br />

Segun<strong>do</strong> a AJURIS, o Banco Mundial foi<br />

diretamente influencia<strong>do</strong> pela a agen<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

“Consenso de Washington” em matéria de<br />

5 A assistência técnica e financeira <strong>do</strong> Banco Mundial visa a estabelecer um bom clima para negócio (good business climate) por meio <strong>do</strong>s seguintes<br />

instrumentos: estabelecimento de leis, regulamentos e agências governamentais necessários para a garantia de investimentos priva<strong>do</strong>s; investimento em<br />

infraestrutura (transportes e comunicações); capacitação de governos; privatização de empresas estatais e desmantelamento de monopólios; redução<br />

<strong>do</strong>s riscos políticos <strong>do</strong> investimento (com o crescimento <strong>da</strong> confiança <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>, haveria investimentos em empreendimentos que, de outra forma,<br />

pareceriam arrisca<strong>do</strong>s); estímulo à maior eficiência e competição e menor vulnerabili<strong>da</strong>de à corrupção; e atração de capital priva<strong>do</strong> externo (Banco<br />

Mundial, 1998: 10 e 14).<br />

Operações de<br />

empréstimo para<br />

capacitação e<br />

desenvolvimento<br />

institucional<br />

incluíram<br />

componentes<br />

liga<strong>do</strong>s à reforma<br />

judicial.


eformas estruturais que também deveriam<br />

envolver o Judiciário (AJURIS: 2001). Tais<br />

reformas impunham uma redução <strong>do</strong> papel<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, considera<strong>do</strong> como organiza<strong>do</strong>r<br />

ou regula<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s instâncias sociais, que seria<br />

compeli<strong>do</strong> a ceder lugar <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>. O Pre-<br />

sidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>, Cláudio Baldino Maciel,<br />

também critica a ação <strong>do</strong> Banco Mundial:<br />

o referi<strong>do</strong> banco, que está financian<strong>do</strong> a re-<br />

forma <strong>do</strong> Judiciário em diversos países peri-<br />

féricos, apresenta a cartilha <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>s<br />

investi<strong>do</strong>res estrangeiros. Está ali consgra<strong>da</strong><br />

a necessi<strong>da</strong>de, para os investi<strong>do</strong>res, de maior<br />

previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões judiciais (Maciel,<br />

2001: 3).<br />

Pesquisa de Vianna et alli (1997: 245)<br />

buscou identificar a visão <strong>do</strong>s magistra-<br />

<strong>do</strong>s brasileiros em relação <strong>ao</strong> papel <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> e sua capaci<strong>da</strong>de de intervenção,<br />

temas centrais para o Banco. A maioria<br />

<strong>do</strong>s juízes considerou de alta priori<strong>da</strong>de<br />

“descentralizar as ativi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e<br />

desburocratizá-lo” (56,3 %) e “integrar a<br />

economia brasileira <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong> mundial,<br />

com a supressão <strong>da</strong>s restrições <strong>ao</strong> capital<br />

estrangeiro” (28,6 %). Apenas 9,2% <strong>do</strong>s<br />

juízes defenderam “máximo de intervenção<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”; 15,4% desejaram “mínimo de<br />

intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”; 29% se mostraram<br />

“tendencialmente favoráveis à intervenção<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”; e a grande maioria (46,4%) se<br />

disse “tendencialmente desfavorável à inter-<br />

venção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”.<br />

Os pesquisa<strong>do</strong>res indicaram que a opi-<br />

nião <strong>do</strong>s juízes flutua entre máxima e míni-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

ma intervenção, comportan<strong>do</strong> tendências de<br />

difícil precisão. Na opinião <strong>do</strong>s autores <strong>da</strong><br />

pesquisa, isso poderia indicar uma abertura<br />

<strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s novos processos de com-<br />

posição entre o público e o priva<strong>do</strong>, entre a<br />

socie<strong>da</strong>de e a política em processo no Brasil<br />

e no mun<strong>do</strong> (Vianna et allii, 1997: 242-245).<br />

O merca<strong>do</strong> e a reforma <strong>do</strong><br />

Judiciário<br />

No capitalismo globaliza<strong>do</strong> 6 , o Esta<strong>do</strong> tem<br />

uma relação contraditória com o merca<strong>do</strong><br />

(O’Donnell, 2001: 106). Nessa lógica, incum-<br />

be <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> controlar e inclusive cancelar<br />

alguns efeitos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> com relação <strong>ao</strong>s<br />

setores mais fracos ou vulneráveis de sua<br />

população. Ora, de um la<strong>do</strong>, o segre<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

eficiência <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> é premiar os fortes e<br />

eficientes e eliminar os fracos; por outro la<strong>do</strong>,<br />

parte fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

no regime democrático, é proteger os fracos<br />

<strong>do</strong> excesso de autori<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> (Idem: 107).<br />

O’Donnell vê o para<strong>do</strong>xo: <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo que tende a erodir a autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, a globalização funciona mediante<br />

a expansão <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, que, por sua<br />

vez, necessitam de Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de<br />

autori<strong>da</strong>de para manter a eficácia <strong>do</strong> im-<br />

pério <strong>da</strong> lei, incluin<strong>do</strong> um Poder Judicial<br />

eficiente e honesto (Idem: 107). Neste<br />

senti<strong>do</strong>, para esse autor, defender um<br />

Esta<strong>do</strong> forte é uma atitude que também<br />

favorece o merca<strong>do</strong> (market friendly).<br />

O mesmo para<strong>do</strong>xo aparente aparece<br />

na posição assumi<strong>da</strong> pelo Banco Mundial<br />

6 Globalização é aquí considera<strong>da</strong> o processo (ou conjunto de processos) que compreende uma transformação na organização espacial <strong>da</strong>s relações e<br />

transações sociais, avalia<strong>da</strong> em função de seu alcance, intensi<strong>da</strong>de, veloci<strong>da</strong>de e repercussão, e que gera fluxos e redes transcontinentais ou interregionais<br />

de ativi<strong>da</strong>de, de interação e de exercício de poder (Held et allii, 2002: XLIX).<br />

25


26<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

de que a expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> exige o<br />

aperfeiçoamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – em especial<br />

o fortalecimento <strong>do</strong> Poder Judiciário,<br />

como garante <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de institucional,<br />

<strong>do</strong> respeito <strong>ao</strong>s contratos e de um ambien-<br />

te estável e previsível para os investi<strong>do</strong>res.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, o organismo internacional<br />

não favorece a tese <strong>da</strong> dicotomia entre<br />

Esta<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong>; <strong>ao</strong> contrário, o Banco<br />

procura mostrar essas duas enti<strong>da</strong>des<br />

como parceiras <strong>do</strong> desenvolvimento. Para<br />

o Banco, o Esta<strong>do</strong> é essencial para a im-<br />

plantação <strong>do</strong>s fun<strong>da</strong>mentos institucionais<br />

apropria<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s merca<strong>do</strong>s (Banco Mun-<br />

dial, 1997: 4). Merca<strong>do</strong> e Esta<strong>do</strong> não se<br />

situam em posição de competição, mas de<br />

cooperação unidirecional – o Esta<strong>do</strong> deve-<br />

ria fomentar o merca<strong>do</strong>.<br />

A reforma <strong>do</strong> Judiciário, para o Banco,<br />

representa uma reformulação <strong>do</strong> papel <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, para que se torne uma externali<strong>da</strong>-<br />

de não-prejudicial à expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />

O Judiciário seria, nessa lógica, uma exter-<br />

nali<strong>da</strong>de que deveria contribuir para que a<br />

litigiosi<strong>da</strong>de que surge na nova economia se<br />

paute pela proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e<br />

pelo respeito <strong>ao</strong>s contratos.<br />

O relatório de 1997 – “O Esta<strong>do</strong> num<br />

mun<strong>do</strong> em transformação” – discorre sobre<br />

o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> Governo no merca<strong>do</strong><br />

mundial como elementos <strong>da</strong> governança <strong>da</strong><br />

ordem global. Está presente a idéia de que<br />

um sistema normativo bem elabora<strong>do</strong> e um<br />

Judiciário eficiente e moderno podem aju-<br />

<strong>da</strong>r a socie<strong>da</strong>de a influenciar os resulta<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> para fins públicos (Idem: 6). A<br />

premissa é que um Esta<strong>do</strong> eficiente é fun-<br />

<strong>da</strong>mental para a expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />

Enfatiza-se, nesse Relatório, que merca-<br />

<strong>do</strong>s e governos são complementares: o Esta-<br />

<strong>do</strong> é essencial para a implantação <strong>do</strong>s fun-<br />

<strong>da</strong>mentos institucionais apropria<strong>do</strong>s para<br />

os merca<strong>do</strong>s, e a credibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> governo<br />

– a previsibili<strong>da</strong>de de suas normas e políti-<br />

cas e a constância de sua aplicação – pode<br />

ser tão importante para atrair investimentos<br />

priva<strong>do</strong>s quanto o conteú<strong>do</strong> dessas normas<br />

e políticas. Muitos <strong>do</strong>s melhores exemplos<br />

de desenvolvimento mostram Esta<strong>do</strong>s traba-<br />

lhan<strong>do</strong> em parceria com os merca<strong>do</strong>s para<br />

corrigir suas falhas, e não para substituí-los<br />

(Idem: 4 e 25).<br />

O Relatório de 1997 consagra o merca<strong>do</strong><br />

mundial de bens e serviços como um bem<br />

público internacional (Idem: 138). Para<br />

isso, são necessárias instituições formais<br />

de controle social, como um Judiciário<br />

independente, imparcial e eficaz. Caso con-<br />

trário, o Banco não descarta a intervenção<br />

de outros mecanismos de compromisso, até<br />

mesmo extraterritorial (Idem: 75).<br />

Os relatórios assinalam que o merca<strong>do</strong> é<br />

o meio pelo qual as socie<strong>da</strong>des podem atin-<br />

gir o desenvolvimento sustenta<strong>do</strong>, a partir<br />

de uma visão própria <strong>da</strong> relação entre Esta-<br />

<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong>.<br />

O relatório de 2002 busca trazer uma<br />

resposta <strong>do</strong> Banco à necessi<strong>da</strong>de de bases<br />

institucionais para os merca<strong>do</strong>s. Segun<strong>do</strong><br />

o <strong>do</strong>cumento, os “mecanismos externos de<br />

observância”, como os sistemas judiciais<br />

ou a arbitragem, são fun<strong>da</strong>mentais para o<br />

desenvolvimento de merca<strong>do</strong>s integra<strong>do</strong>s<br />

(Banco Mundial, 2002: III, 6 e 7).<br />

Dos vários elementos recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />

para a redução <strong>da</strong> pobreza e a obtenção <strong>do</strong><br />

desenvolvimento sustentável, o Banco des-<br />

taca a “base jurídica” e institucional 7 . Para<br />

promover o desenvolvimento, segun<strong>do</strong> o<br />

organismo internacional, o Esta<strong>do</strong> deve pro-<br />

A reforma <strong>do</strong><br />

Judiciário,<br />

para o Banco,<br />

representa uma<br />

reformulação<br />

<strong>do</strong> papel<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

para que se<br />

torne uma<br />

externali<strong>da</strong>de<br />

não-prejudicial<br />

à expansão <strong>do</strong><br />

merca<strong>do</strong>.


porcionar o que chama de “infra-estrutura<br />

institucional” – direitos de proprie<strong>da</strong>de,<br />

paz, lei e ordem, regras – capaz de incenti-<br />

var o investimento eficiente a longo prazo<br />

(Banco Mundial, 1997: 33).<br />

Nessa lógica, a determinação de certe-<br />

zas e de comportamento previsíveis é muito<br />

mais responsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que <strong>do</strong><br />

merca<strong>do</strong>, visto que, para expandir-se, este<br />

último necessita de um ambiente de esta-<br />

bili<strong>da</strong>de política e institucional. O Esta<strong>do</strong><br />

se torna, assim, prove<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s ingredientes<br />

para o comportamento <strong>do</strong>s agentes econô-<br />

micos. Nesse quadro, o Judiciário é insti-<br />

tuição chave para a manutenção desse am-<br />

biente quan<strong>do</strong> decide de maneira previsível<br />

e quan<strong>do</strong> obriga a cumprir contratos. No<br />

Relatório de 2002, o Banco Mundial afirma<br />

que a ausência de instituições judiciais sóli-<br />

<strong>da</strong>s eleva o risco <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des econômicas<br />

(Banco Mundial, 2002: Prefácio, III): as<br />

instituições, dessa forma, estão em função<br />

<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. O setor priva<strong>do</strong> depende <strong>da</strong><br />

confiabili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> eficácia de instituições<br />

como o prima<strong>do</strong> <strong>da</strong> lei e a proteção <strong>do</strong>s<br />

direitos de proprie<strong>da</strong>de (Banco Mundial,<br />

1997: 34). De fato, os agentes econômicos,<br />

<strong>ao</strong> estabelecerem seus índices de risco-país,<br />

observam o comportamento <strong>do</strong> Judiciário.<br />

Segun<strong>do</strong> o Relatório 2002, as reformas<br />

de Esta<strong>do</strong> não são somente iniciativa <strong>do</strong>s<br />

governos nacionais. Indivíduos, empresá-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

rios, companhias multinacionais e organi-<br />

zações multilaterais podem pressionar o<br />

governo no senti<strong>do</strong> de sua a<strong>do</strong>ção (Banco<br />

Mundial, 2002: 11).<br />

A visão que o Banco Mundial tem <strong>da</strong><br />

atuação <strong>do</strong>s Judiciários nacionais <strong>do</strong>s países<br />

em desenvolvimento é de crítica. Em uma<br />

pesquisa em que se investigou 3.600 firmas<br />

em 69 países (Banco Mundial, 1997: 35),<br />

a visão de investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s aju<strong>do</strong>u a<br />

construir alguns indica<strong>do</strong>res <strong>da</strong> “percepção<br />

de incerteza” 8 .Dentre eles figuram: a previsi-<br />

bili<strong>da</strong>de na formulação de normas, a estabi-<br />

li<strong>da</strong>de política, a punição de crimes contra a<br />

pessoa e a proprie<strong>da</strong>de, a ausência de corrup-<br />

ção e a i<strong>do</strong>nei<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema judiciário.<br />

Segun<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento, o setor priva<strong>do</strong><br />

não admite um Judiciário que impõe arbi-<br />

trariamente a aplicação <strong>da</strong>s regras. Sem um<br />

sistema judiciário bem desenvolvi<strong>do</strong>, as em-<br />

presas e os indivíduos tendem a buscar outros<br />

meios de fazer valer os contratos e resolver as<br />

controvérsias, incluin<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>s e mecanis-<br />

mos informais de coação (Idem: 36, 47 e 38)<br />

O Banco explicita quais os elemen-<br />

tos mais importantes para os Judiciários:<br />

independência para realizar nomeações,<br />

avaliações e sistemas de disciplinamento;<br />

administração judicial – tribunais, casos e<br />

códigos de procedimento; acesso à justiça;<br />

mecanismos alternativos de resolução de<br />

disputas; consultórios jurídicos; tribunais<br />

7 Os outros ingredientes são: um clima político propício, com estabili<strong>da</strong>de macroeconômica, investimentos em recursos humanos e infra-estrutura, proteção<br />

<strong>do</strong>s grupos vulneráveis, e proteção <strong>do</strong> meio ambiente (Banco Mundial,1997: 43).<br />

8 Na opinião <strong>da</strong>s empresas examina<strong>da</strong>s no Relatório, o sistema judiciário brasileiro é excessivamente complica<strong>do</strong>. As empresas afirmaram que o processo<br />

judicial é muito lento, devi<strong>do</strong> principalmente à complexi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> procedimento de apelação. Pesquisas <strong>do</strong> IDESP são mais detalha<strong>da</strong>s a esse respeito,<br />

e demonstram amiúde as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s empresas nacionais em seu relacionamento com o Judiciário. Apesar disso, segun<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento, “por mais<br />

complica<strong>do</strong> que seja, o sistema jurídico brasileiro parece proporcionar um recurso judicial seguro para as transações comerciais. A maioria <strong>da</strong>s empresas<br />

acha que o Judiciário é razoavelmente justo e previsível”. (Banco Mundial, 1997: 48). Um <strong>do</strong>s motivos disso é a existência de dispositivos priva<strong>do</strong>s<br />

que coíbem o oportunismo nas transações comerciais sem ter de passar por procedimentos judiciais, como o sistema de proteção de crédito, que publica<br />

informações sobre os maus paga<strong>do</strong>res.<br />

27


28<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

de pequenas causas; educação jurídica <strong>do</strong><br />

público em geral; e capacitação de advoga-<br />

<strong>do</strong>s e juízes (Dakolias, 1997: xii).<br />

O princípio <strong>da</strong> separação de poderes e a<br />

independência <strong>do</strong> Judiciário são considera-<br />

<strong>do</strong>s elementos essenciais <strong>ao</strong> controle <strong>da</strong> ação<br />

arbitrária e <strong>da</strong> corrupção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (Banco<br />

Mundial, 1997: 105). Já o combate à síndrome<br />

<strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de e a proteção <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

priva<strong>da</strong> se conectam <strong>ao</strong> respeito <strong>ao</strong>s contratos.<br />

Quanto à observância <strong>do</strong> cumprimento <strong>do</strong>s<br />

contratos, o Banco lembra que sem institui-<br />

ções judiciais sóli<strong>da</strong>s que obriguem a cumprir<br />

os contratos, os empresários consideram que<br />

muitas ativi<strong>da</strong>des são demasia<strong>do</strong> arrisca<strong>da</strong>s<br />

(Banco Mundial, 2002: III, 64 e 77).<br />

O Banco apresenta que um Judiciário<br />

ideal que interprete e aplique a lei com<br />

eqüi<strong>da</strong>de e eficiência deve apresentar<br />

previsibili<strong>da</strong>de no resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s casos;<br />

acessibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> população <strong>ao</strong>s tribunais,<br />

independentemente de seu nível de ren<strong>da</strong>;<br />

termos “razoáveis” de resolução; e senten-<br />

ças apropria<strong>da</strong>s (Dakolias, 1997:4).<br />

A Primeira Conferência <strong>do</strong> Banco Mun-<br />

dial sobre o Judiciário, de 2000, detectou<br />

sinais contraditórios sobre a reforma <strong>do</strong><br />

Judiciário: um otimismo persistente <strong>do</strong>s<br />

reforma<strong>do</strong>res e conclusões negativas em<br />

torno <strong>do</strong> sucesso <strong>do</strong>s programas de reforma.<br />

Foram elenca<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s fatores respon-<br />

sáveis pelo reduzi<strong>do</strong> êxito <strong>da</strong>s reformas, que<br />

produzem dissensos entre magistra<strong>do</strong>s e<br />

outros atores infra-estatais: falta de vontade<br />

política, poder <strong>do</strong>s interesses entrinchei-<br />

ra<strong>do</strong>s, corrupção e pouca participação de<br />

ONGs locais e globais (Garth, 2001: 13).<br />

A conferência discorreu sobre o fracasso<br />

<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “movimento lei e desenvol-<br />

vimento”, realiza<strong>do</strong> nas déca<strong>da</strong>s de 1960<br />

e 1970, que consistiu em um esforço de<br />

“exportar” um conjunto de instituições e<br />

práticas, a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s sobretu<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s, que seriam supostamente capazes<br />

de viabilizar maior respeito à lei (Idem: 14).<br />

Esse movimento levantou críticas de “impe-<br />

rialismo legal”. Garth sublinha as “compli-<br />

cações estruturais” que limitam a eficácia<br />

<strong>da</strong>s reformas basea<strong>da</strong>s na importação de leis<br />

estrangeiras (Idem: 16) 9 . Primeiro, pelo fato<br />

de que a reforma de “instituições legais” é<br />

muito mais difícil <strong>do</strong> que, por exemplo, a<br />

reforma de bancos centrais. Embora o autor<br />

não explicite, seu argumento deixa claro<br />

que as reformas de segun<strong>da</strong> geração são<br />

mais difíceis de internalização <strong>do</strong> que as re-<br />

formas de primeira geração, ten<strong>do</strong> em vista<br />

a resistência de membros <strong>da</strong> elite política.<br />

Outra dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> importação <strong>da</strong>s<br />

reformas legais é o fato de que o papel <strong>da</strong><br />

lei e <strong>do</strong> sistema judiciário é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo<br />

significa<strong>do</strong> dessas instituições no sistema<br />

norte-americano, <strong>ao</strong> passo que o “modelo<br />

europeu” de Esta<strong>do</strong> forte e de supremacia<br />

legislativa seria mais a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> no resto <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> (Idem: 17). Apesar disso, o autor<br />

indica que há uma tendência de fortaleci-<br />

mento <strong>do</strong> papel judicial no Esta<strong>do</strong>.<br />

Na conferência “Pending challenges of<br />

judicial reform”, Alfre<strong>do</strong> Fuentes Hernández<br />

9 Garth discor<strong>da</strong>, entretanto, que esse movimento tenha si<strong>do</strong> um fracasso completo (Idem: 15). Cita o caso <strong>do</strong> Brasil, que aproveitou <strong>do</strong>s programas<br />

de cooperação <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> para ganhar acesso a “tecnologias legais, credenciais e contatos” <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Além disso, o País estabeleceu leis e<br />

instituições inspira<strong>da</strong>s no sistema norte-americano – normas de seguros, combate à corrupção e proprie<strong>da</strong>de intelectual. Segun<strong>do</strong> o autor, embora os esforços<br />

de reforma <strong>da</strong>s leis brasileiras com base na “expertise” <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s não tenham mu<strong>da</strong><strong>do</strong> de forma “dramática” o “lugar <strong>da</strong> lei” no Brasil, abriram<br />

o caminho para os esforços de reforma que ocorreriam uma geração mais tarde.<br />

O Banco lembra<br />

que sem<br />

instituições<br />

judiciais sóli<strong>da</strong>s<br />

que obriguem<br />

a cumprir os<br />

contratos, os<br />

empresários<br />

consideram<br />

que muitas<br />

ativi<strong>da</strong>des são<br />

demasia<strong>do</strong><br />

arrisca<strong>da</strong>s.


afirma a reforma judicial como componente<br />

essencial <strong>do</strong> fortalecimento <strong>da</strong> democracia e<br />

<strong>da</strong> redefinição <strong>da</strong>s interações entre o Esta<strong>do</strong><br />

e seus ci<strong>da</strong>dãos (Hernández, 2001: 342). A<br />

falta de uma visão empresarial na adminis-<br />

tração <strong>da</strong>s cortes e <strong>do</strong>s processos judiciais é<br />

aponta<strong>da</strong> como um <strong>do</strong>s objetivos <strong>da</strong> reforma.<br />

A conferência assinala que o sucesso de pro-<br />

jetos de reforma <strong>do</strong> Judiciário dependerá <strong>da</strong><br />

superação de “impedimentos culturais” que<br />

opõem obstáculos a tais reformas; trata-se<br />

de restrições informais profun<strong>da</strong>mente “en-<br />

trincheira<strong>da</strong>s” nas tradições e nos padrões<br />

de comportamento institucional que geram<br />

atitudes contrárias às mu<strong>da</strong>nças (Idem:<br />

344). Tais elementos mostram um Judiciário<br />

conserva<strong>do</strong>r, contra o que devem ser usa<strong>do</strong>s<br />

“méto<strong>do</strong>s criativos” (Idem: 345).<br />

Os valores recomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo<br />

Banco Mundial<br />

Os valores identifica<strong>do</strong>s abaixo encontram-se<br />

nas recomen<strong>da</strong>ções <strong>do</strong> Banco Mundial diri-<br />

gi<strong>do</strong>s à reforma <strong>do</strong>s Judiciários 10 . O Banco<br />

recomen<strong>da</strong> uma série de valores: acesso à jus-<br />

tiça (acessibili<strong>da</strong>de), credibili<strong>da</strong>de, eficiência,<br />

transparência, independência, previsibili<strong>da</strong>de,<br />

proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e respeito <strong>ao</strong>s<br />

contratos. Após a apresentação de ca<strong>da</strong> um des-<br />

ses valores na perspectiva <strong>do</strong> Banco, será dis-<br />

cuti<strong>da</strong> a reação <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s brasileiros, no<br />

senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> aceitação ou rejeição desses valores.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

a) Acesso à Justiça (acessibili<strong>da</strong>de)<br />

Esse valor é recomen<strong>da</strong><strong>do</strong> de maneira<br />

mais evidente no <strong>do</strong>cumento 319 S. Não se<br />

trata <strong>do</strong> acesso <strong>da</strong> população <strong>ao</strong> Judiciário,<br />

mas <strong>do</strong> acesso à Justiça 11 . Isso porque, na<br />

concepção proposta pelo Banco, a idéia <strong>do</strong><br />

monopólio <strong>da</strong> administração <strong>da</strong> justiça é<br />

mitiga<strong>da</strong> por outras esferas que competem<br />

com o Judiciário como, por exemplo, os<br />

MARD (Mecanismos Alternativos de Reso-<br />

lução de Disputas).<br />

O Banco compreende que o acesso pode<br />

ser avalia<strong>do</strong> por meio de fatores como o<br />

tempo requeri<strong>do</strong> para sentenciar um caso,<br />

os custos diretos e indiretos incorri<strong>do</strong>s pelas<br />

partes em litígio, o conhecimento a com-<br />

preensão e o seguimento <strong>do</strong>s procedimentos<br />

por parte <strong>do</strong>s usuários potenciais e mesmo<br />

o acesso físico <strong>ao</strong>s tribunais. Em outras pa-<br />

lavras, um sistema judicial pode apresentar<br />

barreiras econômicas, psicológicas, infor-<br />

mativas e físicas (Dakolias, 1997: 42).<br />

A conferência <strong>do</strong> Banco Mundial sobre<br />

o Judiciário identifica obstáculos opera-<br />

cionais e estruturais <strong>ao</strong> acesso à justiça por<br />

parte <strong>do</strong>s grupos sociais mais vulneráveis.<br />

Os primeiros compreendem os obstáculos<br />

relaciona<strong>do</strong>s à eficiência e à eficácia <strong>da</strong> admi-<br />

nistração <strong>do</strong> sistema de justiça. Entre os obs-<br />

táculos estruturais figuram a organização <strong>do</strong><br />

Judiciário (que pode “<strong>da</strong>r as costas <strong>ao</strong> povo”),<br />

a situação de vulnerabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s pobres e a<br />

falta de conscientização <strong>do</strong>s grupos vulnerá-<br />

10 Alguns <strong>do</strong>cumentos, como o relatório de 1997, enfatizam mais a previsibili<strong>da</strong>de e o respeito à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e <strong>ao</strong>s contratos. Já a ênfase <strong>do</strong><br />

Relatório de 2002 foi a eficiência, o acesso à justiça (destacan<strong>do</strong>-se os méto<strong>do</strong>s alternativos de resolução de disputas) e a transparência. O <strong>do</strong>cumento 319<br />

S retoma os mesmos valores repertoria<strong>do</strong>s nos <strong>do</strong>cumentos anteriores.<br />

11 Confrontan<strong>do</strong>-se os valores de acessibili<strong>da</strong>de e eficiência, é possível dizer que questão mais prioritária que “entrar na justiça” é como “sair <strong>da</strong> justiça”<br />

– como produzir sentenças em tempo adequa<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> o Ministro <strong>do</strong> STJ, Paulo Costa Leite, o interesse maior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de não é o mero acesso <strong>ao</strong><br />

Judiciário, mas sua eficiência: “não adianta garantirmos o direito de bater às portas <strong>do</strong> Judiciário, temos que garantir que a decisão será coloca<strong>da</strong> em<br />

prática em tempo razoável” (Jornal <strong>do</strong> Commercio-RJ, 2/2/2002).<br />

29


30<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

veis (Abregú 2001: 57-59). Além disso, o Judi-<br />

ciário é visto como assenta<strong>do</strong> sobre as bases de<br />

suas próprias necessi<strong>da</strong>des corporativas e de<br />

sua própria lógica, o que produz “barrica<strong>da</strong>s”<br />

<strong>ao</strong>s agentes externos que preten<strong>da</strong>m “ultra-<br />

passar o ‘território judicial’” (Idem: 60).<br />

Algumas dessas “barrica<strong>da</strong>s” seriam<br />

localização geográfica <strong>do</strong>s tribunais, arqui-<br />

tetura <strong>do</strong>s edifícios que sediam as cortes,<br />

desenvolvimento de linguagem judicial e<br />

reificação <strong>do</strong>s clientes.<br />

O Banco Mundial considera que os<br />

MARD são um meio capaz de <strong>da</strong>r maior<br />

acesso à justiça (Banco Mundial 2002: 126).<br />

Tais mecanismos seriam instrumentos de<br />

competição com o Judiciário, aumentan<strong>do</strong><br />

as pressões sobre a eficiência desse Poder.<br />

Para ser competitivo, o sistema judicial<br />

deve se mostrar mais atraente que os meca-<br />

nismos tipicamente priva<strong>do</strong>s de resolução<br />

de conflitos e de imposição <strong>do</strong> estabeleci-<br />

mento de acor<strong>do</strong>s (Pinheiro, 2000: 25).<br />

Os MARD não são tão dissimina<strong>do</strong>s no<br />

sistema judicial brasileiro. Um <strong>do</strong>s mecanis-<br />

mos previstos é a arbitragem, a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> desde<br />

1996 12 . As decisões arbitrais têm força obriga-<br />

tória entre as partes, equivalen<strong>do</strong> a um título<br />

executivo extra-judicial. A maior parte <strong>da</strong>s<br />

empresas multinacionais instala<strong>da</strong>s no País,<br />

principalmente as trazi<strong>da</strong>s pelo processo de<br />

privatização a<strong>do</strong>tam o juízo arbitral em seus<br />

contratos. Antes, as multinacionais criavam<br />

cláusulas contratuais estabelecen<strong>do</strong> um foro<br />

internacional para as pendências judiciais.<br />

Não é possível afirmar se os juízes bra-<br />

sileiros são contra ou a favor os MARD. O<br />

que é certo é que têm busca<strong>do</strong> a simplifica-<br />

ção de procedimentos como uma forma de<br />

preservar o monopólio <strong>do</strong> juris dictio.<br />

Exemplos relevantes de mecanismos<br />

de ampliação <strong>do</strong> acesso <strong>ao</strong> Judiciário são as<br />

câmaras de conciliação prévia, os juiza<strong>do</strong>s<br />

especiais e a mediação. Em 2001 foi lança<strong>do</strong><br />

projeto <strong>da</strong> Escola Nacional de Magistratura<br />

para a criação <strong>do</strong>s media<strong>do</strong>res. Quanto <strong>ao</strong>s<br />

juiza<strong>do</strong>s especiais, destina<strong>do</strong>s a produzir<br />

decisões ágeis e baratas para pequenos con-<br />

flitos, o Tribunal de Justiça-DF pôs em prá-<br />

tica, em 1999, um criativo sistema integra<strong>do</strong><br />

por um juiza<strong>do</strong> volante para questões de<br />

trânsito e um juiza<strong>do</strong> central criminal, que<br />

consegue <strong>da</strong>r sentenças no mesmo dia.<br />

Em São Paulo, o Judiciário local nego-<br />

ciou parceria com a FIESP, o SEBRAE e a<br />

Associação Comercial para poder atender<br />

o aumento de deman<strong>da</strong> de causas de até 40<br />

salários mínimos.<br />

Outra ilustração é a justiça itinerante<br />

em Brasília, que vai <strong>ao</strong>s bairros <strong>da</strong> periferia<br />

com ônibus transforma<strong>do</strong> em tribunal 13 .<br />

b) Credibili<strong>da</strong>de<br />

No relatório de 1997, é sublinha<strong>da</strong> a<br />

importância de uma instituição ser perce-<br />

bi<strong>da</strong> como confiável. A credibili<strong>da</strong>de está<br />

relaciona<strong>da</strong> com outros valores, como pre-<br />

visibili<strong>da</strong>de, transparência e constância <strong>da</strong><br />

instituição (Banco Mundial, 1997: 4). Além<br />

12 Lei de Arbitragem (no 9.307/96). O Decreto 4.311, publica<strong>do</strong> no Diário Oficial de 24/7/2002, insere o Brasil na Convenção de Nova York de 1959,<br />

firma<strong>da</strong> no âmbito <strong>da</strong> ONU, principal acor<strong>do</strong> mundial sobre arbitragem, que trata <strong>do</strong> reconhecimento e execução <strong>da</strong>s sentenças arbitrais estrangeiras.<br />

13 O ônibus tem sala de audiência e ante-sala para os concilia<strong>do</strong>res. Integram a equipe, além <strong>do</strong> juiz, concilia<strong>do</strong>res, escrivão e atendente judiciária. Um<br />

celular aju<strong>da</strong> a localizar testemunhas e acusa<strong>do</strong>s. Os<br />

concilia<strong>do</strong>res conseguem resolver 60% <strong>da</strong>s pendências na hora. Os casos mais complexos são julga<strong>do</strong>s em menos de 30 dias. No ano de seu lançamento<br />

(2000), o ônibus-tribunal atendeu a mais de 6 mil pessoas e proferiu mais de 1.200 decisões.


O Judiciário,<br />

para ser<br />

eficiente, na<br />

perspectiva<br />

<strong>do</strong> Banco,<br />

necessita<br />

maximizar sua<br />

capaci<strong>da</strong>de<br />

de resolver as<br />

deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de.<br />

disso, pesam a percepção de estabili<strong>da</strong>de<br />

política, a proteção em relação a crimes<br />

contra a pessoa e a proprie<strong>da</strong>de, a i<strong>do</strong>nei-<br />

<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema judiciário e a ausência de<br />

corrupção. Para o Banco, um Judiciário con-<br />

fiável é idôneo, não aplica arbitrariamente<br />

as regras, não é imprevisível nem corrupto.<br />

Quan<strong>do</strong> o Banco menciona corrupção,<br />

refere-se <strong>ao</strong> sistema como um to<strong>do</strong>, e não<br />

apenas a juízes individualmente corruptos.<br />

Embora tenha juízes idôneos, o sistema<br />

Judiciário pode ser classifica<strong>do</strong> como pouco<br />

credível pelas empresas, quan<strong>do</strong> estas de-<br />

pendem <strong>da</strong> corrupção para instrumentalizar<br />

o “impulso processual” (agilizar o an<strong>da</strong>-<br />

mento <strong>do</strong>s processos).<br />

Os custos de um sistema judiciário<br />

serão repassa<strong>do</strong>s ou calcula<strong>do</strong>s pelas empre-<br />

sas quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> concretização de negócios e<br />

investimentos.<br />

c) Eficiência<br />

O Banco Mundial utiliza o conceito de<br />

eficiência para qualificar a ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

em relação à expansão <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s. A<br />

marca de um Esta<strong>do</strong> eficiente, além <strong>da</strong> sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de facilitar ações coletivas, é<br />

a sua capaci<strong>da</strong>de de estabelecer as regras<br />

que definem os merca<strong>do</strong>s e permitem o<br />

seu funcionamento. O setor priva<strong>do</strong> pode<br />

suplementar os direitos formais de pro-<br />

prie<strong>da</strong>de e contrato, mas não consegue<br />

conduzir os merca<strong>do</strong>s sem a ação <strong>do</strong> Es-<br />

ta<strong>do</strong>. Os governos, segun<strong>do</strong> o Banco, têm<br />

de fazer mais <strong>do</strong> que estabelecer as regras<br />

<strong>do</strong> jogo; também têm de garantir que essas<br />

regras sejam aplica<strong>da</strong>s de maneira coe-<br />

rente, de maneira que os agentes priva<strong>do</strong>s<br />

– empresas, sindicatos, associações de clas-<br />

se – possam confiar em que as regras não<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

sejam mu<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>da</strong> noite para o dia (Banco<br />

Mundial, 1997: 35).<br />

Conforme o Banco, a eficiência <strong>do</strong> Es-<br />

ta<strong>do</strong> deve ser a marca <strong>da</strong> nova economia,<br />

que define sua capaci<strong>da</strong>de de promover de<br />

maneira eficiente ações coletivas em áreas<br />

tais como lei e ordem, saúde pública e infra-<br />

estrutura básica. Relativizan<strong>do</strong> um pouco<br />

a ênfase no merca<strong>do</strong>, o Banco assinala que<br />

a eficiência é o resulta<strong>do</strong> que se obtém <strong>ao</strong><br />

utilizar essa capaci<strong>da</strong>de para atender a<br />

deman<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles bens por parte <strong>da</strong> socie-<br />

<strong>da</strong>de: um Esta<strong>do</strong> pode ser capaz, mas não<br />

muito eficiente, se sua capaci<strong>da</strong>de não for<br />

utiliza<strong>da</strong> no interesse <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de (Banco<br />

Mundial, 1997: 3).<br />

Assim, o Judiciário, para ser eficien-<br />

te, na perspectiva <strong>do</strong> Banco, necessita<br />

maximizar sua capaci<strong>da</strong>de de resolver as<br />

deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. O relatório de<br />

2002 esclarece que os elementos <strong>da</strong> efici-<br />

ência são rapidez, custo, eqüi<strong>da</strong>de e aces-<br />

so à justiça (Banco Mundial, 2001: 118).<br />

A definição de eficiência relaciona<strong>da</strong> <strong>ao</strong><br />

comportamento <strong>do</strong> Judiciário também<br />

está relaciona<strong>da</strong> com o equilíbrio entre es-<br />

ses elementos e a imparciali<strong>da</strong>de. Segun-<br />

<strong>do</strong> o Banco, é necessário que os sistemas<br />

judiciais encontrem um equilíbrio entre a<br />

necessi<strong>da</strong>de de proporcionar una solução<br />

rápi<strong>da</strong> e econômica – acessível – e impar-<br />

cial (Banco Mundial, 2001: 131).<br />

Portanto, um Judiciário eficiente não<br />

é apenas aquele que produz decisões com<br />

rapidez, mas o que combina essa quali<strong>da</strong>-<br />

de com outros valores – <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />

que normalmente ocorre, quan<strong>do</strong> se res-<br />

salta o aspecto <strong>da</strong> rapidez e se negligen-<br />

ciam os custos, a eqüi<strong>da</strong>de e o acesso para<br />

os ci<strong>da</strong>dãos.<br />

31


32<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

O Banco Mundial sugere aplicar o prin-<br />

cípio basilar <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> – a competição<br />

– como vetor para as reformas institucionais,<br />

e, em particular, fator de aprimoramento <strong>da</strong><br />

eficiência <strong>do</strong> sistema judicial. A interpre-<br />

tação que se depreende <strong>do</strong>s textos é que o<br />

Judiciário pode tornar-se mais eficiente <strong>ao</strong><br />

concorrer com outros mecanismos para a<br />

resolução <strong>do</strong>s litígios. Por isso, o Banco esti-<br />

mula a aplicação <strong>do</strong>s MARD (mecanismos<br />

alternativos de resolução de disputas), quais<br />

sejam, arbitragem, mediação, conciliação e<br />

os juízes de paz, para romper com o “mono-<br />

pólio <strong>do</strong> poder judicial” (Dakolias,1997: xiv).<br />

Cumpre ressaltar, nesse senti<strong>do</strong>, que a<br />

percepção <strong>do</strong> Banco quanto <strong>ao</strong>s sistemas de<br />

Justiça não compreende o Judiciário como<br />

detentor <strong>do</strong> monopólio <strong>do</strong> juris dictio. O<br />

organismo internacional argumenta que os<br />

MARD representam, em muitos países, ins-<br />

trumento rápi<strong>do</strong> e econômico para oferecer<br />

justiça. A avaliação é bastante franca:<br />

“La presencia de méto<strong>do</strong>s alternativos de<br />

solución de controversias puede reducir las<br />

oportuni<strong>da</strong>des de corrupción en las econo-<br />

mias en dessarrollo. Un sistema judicial que<br />

compite con otras instituciones tiene menos<br />

posibili<strong>da</strong>des de extraer rentas de los litigan-<br />

tes” (Banco Mundial, 2002:127).<br />

Nessa perspectiva, a competição entre<br />

instituições sobre a resolução de disputas<br />

(Judiciário e os MARD), é salutar, pois elas<br />

buscarão ser mais eficientes para não perder<br />

poder, nem “clientes”. O relatório de 2002<br />

considera que o juiz é “contrata<strong>do</strong>” para<br />

cumprir eficientemente a função de julgar, e<br />

que a presença de instituições complementa-<br />

res (incluin<strong>do</strong> a pressão <strong>do</strong>s meios de comu-<br />

nicação) incentivariam os juízes a atuar com<br />

eficiência (Banco Mundial, 2002: 124).<br />

Além <strong>da</strong> competição entre méto<strong>do</strong>s<br />

alternativos de solução de litígios, o Ban-<br />

co Mundial sublinha a importância <strong>do</strong><br />

princípio <strong>da</strong> separação de poderes e de um<br />

Judiciário forte e independente. O organis-<br />

mo justifica sua posição afirman<strong>do</strong> que a<br />

economia requer mecanismos formais de<br />

controle pelos quais o Esta<strong>do</strong> e suas auto-<br />

ri<strong>da</strong>des sejam responsabiliza<strong>do</strong>s pelos seus<br />

atos. Se a durabili<strong>da</strong>de e a credibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />

mecanismos de controle formal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

são fracas, deve-se, segun<strong>do</strong> o Banco, subs-<br />

tituí-los temporariamente por mecanismos<br />

externos, como a adjudicação internacional<br />

(Banco Mundial, 1997: 104-105) 14 . São men-<br />

ciona<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong>, os acor<strong>do</strong>s internacionais<br />

(OMC, ALCA, UE) como mecanismos de<br />

fortalecimento de compromissos externos.<br />

Os magistra<strong>do</strong>s brasileiros têm-se<br />

mostra<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais receptivos <strong>ao</strong> valor<br />

“eficiência”, o que é demonstra<strong>do</strong> pelos<br />

avanços nas seguintes áreas: simplificação<br />

de procedimentos; instauração de juiza<strong>do</strong>s<br />

especiais para causas de pequeno valor eco-<br />

nômico; implantação <strong>da</strong> justiça itinerante<br />

– por exemplo, por via fluvial na Amazônia;<br />

promoção de seminários e estu<strong>do</strong>s sobre<br />

custos e agilização processual; iniciativas<br />

legislativas; e visibili<strong>da</strong>de nos meios de co-<br />

municação por meio de informes publicitá-<br />

rios. Além dessas iniciativas, a preocupação<br />

14 O exemplo de adjudicação posto no relatório é o <strong>da</strong> Jamaica. A confiança <strong>do</strong> sistema judicial desse país, conforme o Banco, é fortaleci<strong>da</strong> por ser o<br />

Conselho Priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> Reino Uni<strong>do</strong> o tribunal de apelação de última instância. Outro exemplo é o caso <strong>do</strong> sistema judicial <strong>da</strong>s Filipinas que, por falta de<br />

credibili<strong>da</strong>de, faz com que empresas nacionais e estrangeiras optem pela adjudicação extraterritorial <strong>do</strong>s seus contratos.<br />

O Banco<br />

Mundial sugere<br />

aplicar o<br />

princípio basilar<br />

<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> – a<br />

competição –<br />

como vetor para<br />

as reformas<br />

institucionais,<br />

e, em particular,<br />

fator de<br />

aprimoramento<br />

<strong>da</strong> eficiência <strong>do</strong><br />

sistema judicial.


maior <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s em matéria de efici-<br />

ência se manifesta na incorporação de novas<br />

tecnologias, sobretu<strong>do</strong> a disponibilização<br />

de alguns atos processuais pela internet nos<br />

sites <strong>do</strong>s órgãos judiciais 15 .<br />

A a<strong>do</strong>ção de avanços tecnológicos, so-<br />

bretu<strong>do</strong> a informatização, para tornar mais<br />

ágil a “rotinização” <strong>do</strong> Judiciário, reduzin-<br />

<strong>do</strong> custos operacionais e administrativos,<br />

merece atenção particular. Apesar de a<br />

digitalização encontrar obstáculo no Código<br />

de Processo Civil, que determina a mate-<br />

riali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo, começam a surgir<br />

novi<strong>da</strong>des como “autos virtuais”, distribui-<br />

ção eletrônica de petições iniciais e troca de<br />

informações entre bancos de <strong>da</strong><strong>do</strong>s 16 . O uso<br />

de “interrogatório on line” pode ser ca<strong>da</strong><br />

vez mais usa<strong>do</strong> 17 . Tribunais propõem código<br />

de barras nos processos a fim de reduzir o<br />

tempo de tramitação <strong>do</strong>s processos, a fim de<br />

evitar que os <strong>da</strong><strong>do</strong>s sejam processa<strong>do</strong>s nova-<br />

mente em ca<strong>da</strong> tribunal. Há também a idéia<br />

de “execução fiscal virtual”, na qual o pro-<br />

cesso de execução não seria mais impresso,<br />

mas ficaria grava<strong>do</strong> no banco de <strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />

União. Intimações podem ser envia<strong>da</strong>s por<br />

fax e correio eletrônico.<br />

d) Transparência<br />

Para o Banco Mundial, a definição <strong>da</strong><br />

transparência está conecta<strong>da</strong> com a res-<br />

ponsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízes e a necessi<strong>da</strong>de<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

de prestação de contas (accountability) 18 .<br />

A transparência envolve a prestação de<br />

informações que facilitem a vigilância <strong>do</strong><br />

desempenho judicial e repercutam sobre<br />

reputação <strong>do</strong>s juízes (Banco Mundial, 2002:<br />

132). A transparência, portanto, traduz a<br />

obrigação de render contas à socie<strong>da</strong>de so-<br />

bre a função de julgar. Segun<strong>do</strong> o Banco, a<br />

corrupção encontra incentivo quan<strong>do</strong> uma<br />

autori<strong>da</strong>de dispõe de uma ampla margem<br />

discricionária e pouca obrigação de prestar<br />

contas (Banco Mundial, 1997:109).<br />

Se, de um la<strong>do</strong>, os juízes compõem uma<br />

instituição que não emerge <strong>da</strong>s urnas como os<br />

parlamentares e os titulares <strong>do</strong>s cargos eletivos<br />

<strong>do</strong> Executivo, por outro, os magistra<strong>do</strong>s são<br />

obriga<strong>do</strong>s a justificar exaustiva e racionalmen-<br />

te suas decisões de mo<strong>do</strong> muito mais rigoroso<br />

que os membros de outros Poderes. A respon-<br />

sabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízes é presta<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s órgãos<br />

correcionais <strong>do</strong>s tribunais e a sua corporação.<br />

Na visão <strong>do</strong> Banco, não é o simples au-<br />

mento de recursos financeiros e humanos<br />

que fará <strong>do</strong> Judiciário uma instituição mais<br />

eficiente e útil à expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, mas<br />

a introdução de mecanismos que tornem os<br />

juízes responsáveis perante os usuários <strong>do</strong><br />

sistema (Banco Mundial, 2002: 118-119).<br />

O Banco Mundial define transparência<br />

como o oferecimento de informação que<br />

facilite a vigilância <strong>do</strong> desempenho judicial<br />

e repercuta na reputação <strong>do</strong>s juízes, como,<br />

15 Os prazos para recursos passarão a contar no momento de registro junto <strong>ao</strong> sistema, para o que serão necessárias alterações nos artigos <strong>do</strong>s Códigos de<br />

Processo Civil e de Processo Penal.<br />

16 Acor<strong>do</strong> entre STJ, TRFs, Ministérios <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> e Previdência Social, Procura<strong>do</strong>ria-Geral <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> Nacional e INSS permite a distribuição<br />

eletrônica em processos de execução fiscal.<br />

17 O STJ fez, entretanto, a ressalva de que o procedimento deve ser usa<strong>do</strong> apenas excepcionalmente.<br />

18 “What we mean by accountability is that one official or organization is required to explain and justify its actions to another body or authority,<br />

according to specific criteria, where the body or authority, to which account is given, normally has power to take remedial action” (Galligan, 2000: 31). A<br />

accountability envolve processos externos de supervisão judicial, ombudsmen, inspetores, auditores e tribunais especiais, bem como procedimentos internos<br />

de apelação, recursos e reclamações (Idem: 34 e 35.).<br />

33


34<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

por exemplo, o estabelecimento de bases de<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong>s judiciais que facilitem o seguimento<br />

<strong>do</strong>s casos e dificultem sua manipulação<br />

(Banco Mundial 2002: 124).<br />

A implantação <strong>do</strong> canal de televisão<br />

especial <strong>do</strong> Judiciário, conheci<strong>do</strong> como “TV<br />

Justiça”, em julho de 2002, se insere na estra-<br />

tégia de transparência 19 . A TV teria também<br />

um papel didático, poden<strong>do</strong> ser usa<strong>da</strong> para<br />

treinamento e cursos de aperfeiçoamento.<br />

Sob a coordenação <strong>do</strong> Conselho <strong>da</strong> Justiça<br />

Federal, os 5 Tribunais Regionais e as varas<br />

<strong>da</strong> Justiça Federal em to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s terão<br />

suas matérias televisivas elabora<strong>da</strong>s pela<br />

Rede Minas e afilia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Associação Brasi-<br />

leira de Emissoras de TV Educativa.<br />

A veiculação <strong>da</strong> informação processual<br />

pela rede internet é também uma manifes-<br />

tação de transparência.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, os magistra<strong>do</strong>s em geral<br />

são refratários à prestação de contas como<br />

medi<strong>da</strong> de transparência, no senti<strong>do</strong> de que<br />

implica uma forma de controle externo <strong>ao</strong><br />

Judiciário; encaram a medi<strong>da</strong> como per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

autonomia funcional. Pesquisa <strong>do</strong> IDESP 20<br />

(“A visão <strong>do</strong>s juízes sobre a Reforma <strong>do</strong> Judi-<br />

ciário”) revelou que a resistência <strong>do</strong>s juízes<br />

à criação de um órgão de controle externo <strong>do</strong><br />

Judiciário diminuiu de forma considerável 21 .<br />

e) Independência<br />

Um Judiciário independente será um<br />

alia<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mental contra a corrupção<br />

e contra a arbitrarie<strong>da</strong>de, na opinião <strong>do</strong><br />

Banco. Na ótica <strong>do</strong> Banco, a evolução <strong>do</strong><br />

capitalismo requer um sistema judicial ca-<br />

paz de interpretar e executar as leis de una<br />

maneira eficiente e previsível. O aumento<br />

<strong>da</strong>s transações com pessoas desconheci<strong>da</strong>s<br />

– próprio <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des anônimas – cria<br />

a necessi<strong>da</strong>de de resolução formal de con-<br />

flitos de maneira imparcial e impessoal<br />

(Dakolias, 1997: 3).<br />

No <strong>do</strong>cumento 319 S são descritos três<br />

tipos de independência. O primeiro é a<br />

independência decisória ou funcional, que<br />

implica a capaci<strong>da</strong>de de tomar decisões de<br />

acor<strong>do</strong> com a lei, e não de acor<strong>do</strong> com fato-<br />

res políticos externos (pressões <strong>do</strong>s outros<br />

poderes públicos, <strong>do</strong>s membros <strong>do</strong> sistema<br />

judicial, <strong>da</strong>s relações pessoais ou públicas<br />

com as partes em conflito).<br />

A independência decisória tem duas<br />

definições propostas pelo Banco:<br />

El gra<strong>do</strong> en que los jueces pueden realmente<br />

decidir casos de acuer<strong>do</strong> con sus propias deter-<br />

minaciones de la evidencia, la ley y la justicia,<br />

libres de coerción, lisonjas, intromisiones o<br />

amenazas de las autori<strong>da</strong>des gubernamentales<br />

o los ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos priva<strong>do</strong>s (Roseenn). (…)<br />

El gra<strong>do</strong> en que los jueces creen que pueden<br />

decidir – y asi lo hacen – de acuer<strong>do</strong> a sus<br />

propias actitudes, valores y conceptos sobre el<br />

papel de un juez (en su interpretación de<br />

la ley) (Becker) (apud Dakolias, 1997: 8).<br />

O segun<strong>do</strong> tipo é a independência inter-<br />

na, que se concretiza pela não-interferência<br />

no processo decisório <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s de<br />

órgãos de instâncias superiores. Por último,<br />

19 Trata-se de uma TV a cabo (como a Court TV, canal norte-americano), nos moldes <strong>do</strong> Legislativo e <strong>do</strong> canal universitário, pela qual seriam transmiti<strong>do</strong>s<br />

julgamentos que tenham relevância nacional.<br />

20 Instituto de Estu<strong>do</strong>s Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo.<br />

21 A proposta de criação <strong>do</strong> Conselho Nacional de Justiça para fazer o controle administrativo <strong>do</strong> Poder Judiciário é aprova<strong>da</strong> por 39 % <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s<br />

(em 1993, pesquisa mostrava que 86,5 % eram contra). Valor Econômico, 20/02/2001.<br />

Um Judiciário<br />

independente<br />

será um alia<strong>do</strong><br />

fun<strong>da</strong>mental<br />

contra a<br />

corrupção<br />

e contra a<br />

arbitrarie<strong>da</strong>de,<br />

na opinião <strong>do</strong><br />

Banco.


a independência pessoal, que diz respeito às<br />

prerrogativas <strong>da</strong> carreira de magistra<strong>do</strong> como<br />

segurança em sua nomeação para o exercício<br />

<strong>do</strong> cargo, inamovibili<strong>da</strong>de, irredutibili<strong>da</strong>de de<br />

salários, mesmo quan<strong>do</strong> uma decisão adversa<br />

<strong>ao</strong>s que detêm o poder político ou judicial<br />

(Becker apud Dakolias, 1997: 8).<br />

No relatório de 2002, a aplicação siste-<br />

mática <strong>da</strong> lei com independência aparece<br />

como elemento <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de (Banco<br />

Mundial, 2002: 119).<br />

Flávio Dino, ex–presidente <strong>da</strong> AJUFE,<br />

assinala que a independência implica que<br />

os magistra<strong>do</strong>s desejam decidir livres de<br />

pressões, inclusive aquelas exerci<strong>da</strong>s pe-<br />

los agentes econômicos. As pesquisas <strong>do</strong><br />

IDESP e <strong>do</strong> IUPERJ 22 , por seu turno, con-<br />

cluem que os juízes <strong>da</strong> base <strong>do</strong> sistema são<br />

mais propensos <strong>ao</strong> valor independência que<br />

<strong>ao</strong> valor previsibili<strong>da</strong>de, tal como deseja<strong>da</strong><br />

pelos agentes econômicos.<br />

O valor independência também está li-<br />

<strong>da</strong>go <strong>ao</strong> <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de. Sobre esse aspecto,<br />

Vianna et alli (1996: 74) colocaram diante<br />

<strong>do</strong>s juízes entrevista<strong>do</strong>s duas proposições,<br />

perguntan<strong>do</strong>-lhes com quais mais se inden-<br />

tificavam:<br />

1 - O Poder Judiciário não é neutro; em<br />

suas decisões, o magistra<strong>do</strong> deve interpretar<br />

a lei no senti<strong>do</strong> de aproximá-la <strong>do</strong>s processos<br />

sociais substantivos e, assim, influir na mu-<br />

<strong>da</strong>nça social.<br />

2 - A não-neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário ameaça<br />

as liber<strong>da</strong>des e a mu<strong>da</strong>nça social não deve ser<br />

objeto de apreciação por parte desse Poder.<br />

22 Instituto Universitário de Pesquisas <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

A adesão <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s à primeira<br />

opção se deu nas três instâncias. Com maior<br />

incidência junto <strong>ao</strong>s juízes <strong>do</strong> primeiro grau<br />

– juízes singulares (83,5%); em segui<strong>da</strong>, no<br />

segun<strong>do</strong> grau – desembarga<strong>do</strong>res (79,1%); e,<br />

também com alto nível de incidência, junto<br />

<strong>ao</strong>s Ministros de terceira instância (76,1%).<br />

Segun<strong>do</strong> os autores, os <strong>da</strong><strong>do</strong>s empíricos con-<br />

trariam o senso comum e opinião de abali-<br />

za<strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> jurídico, para<br />

quem o Poder Judiciário é neutro.<br />

Arman<strong>do</strong> Castelar Pinheiro 23 analisa a<br />

não-neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário como um<br />

fenômeno de “politização” <strong>da</strong>s decisões<br />

judiciais. A “politização” também resulta,<br />

segun<strong>do</strong> o autor, <strong>da</strong> tentativa de alguns ma-<br />

gistra<strong>do</strong>s protegerem certos grupos sociais<br />

vistos como partes mais fracas nas disputas<br />

leva<strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s tribunais. Agin<strong>do</strong> assim, conclui<br />

o autor, os juízes seriam parciais, distorcen-<br />

<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> de justiça de forma intencional<br />

e determinista. Os tribunais podem ser<br />

tendenciosos por três fatores: devi<strong>do</strong> à cor-<br />

rupção, por serem politiza<strong>do</strong>s (favorecen<strong>do</strong><br />

a certas classes de litigantes, como membros<br />

<strong>da</strong> elite, trabalha<strong>do</strong>res, deve<strong>do</strong>res, nacio-<br />

nais, etc.) ou por não gozarem de indepen-<br />

dência em relação <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, curvan<strong>do</strong>-se<br />

à sua vontade quan<strong>do</strong> o governo é parte <strong>da</strong><br />

disputa (Pinheiro, 2000: 29).<br />

Na interpretação de Vianna et alli, por<br />

outro la<strong>do</strong>, a “não-neutrali<strong>da</strong>de” ou “politi-<br />

zação” <strong>da</strong>s decisões não significa desrespei-<br />

to <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito e à Constituição por<br />

parte <strong>do</strong>s juízes 24 . Segun<strong>do</strong> esse autor, o juiz<br />

23 Conferência “O Judiciário e a Economia na Visão <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s” proferi<strong>da</strong> no seminário “Reforma <strong>do</strong> Judiciário: Problemas, Desafios e<br />

Perspectivas”, promovi<strong>do</strong> pelo IDESP (Pinheiro, 2001).<br />

24 À não neutrali<strong>da</strong>de aderem 83,0% <strong>do</strong>s juízes, e à neutrali<strong>da</strong>de, 17, 0 % (Vianna et allii, 1997: 260).<br />

35


36<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

brasileiro é influencia<strong>do</strong> por um contexto<br />

de transição e mu<strong>da</strong>nças. Ele não se des-<br />

prende inteiramente <strong>da</strong>s grandes referên-<br />

cias <strong>da</strong> sua formação <strong>do</strong>utrinária, basea<strong>da</strong><br />

no campo <strong>da</strong> civil law e <strong>do</strong> positivismo ju-<br />

rídico, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que se enxerga<br />

como um agente efetivo no processo de pro-<br />

dução <strong>do</strong> Direito, indican<strong>do</strong> sua instalação<br />

no campo político-cultural <strong>da</strong> common law<br />

(Vianna et alli, 1997: 259).<br />

Na pesquisa de Vianna, uma tabela inti-<br />

tula<strong>da</strong> “a atitude em face <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> Poder<br />

Judiciário no País” demonstra o alinhamento<br />

<strong>da</strong>s opiniões <strong>da</strong> seguinte maneira: 14,6% de-<br />

fenderam o “papel ético-moral <strong>da</strong> magistra-<br />

tura”; 10,6% julgaram que esse papel deveria<br />

estar “limita<strong>do</strong> à solicitação <strong>da</strong>s partes <strong>do</strong><br />

conflito”; mas a grande maioria (74,8%) po-<br />

sicionou-se a favor <strong>da</strong> “promoção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

de Direito” (Vianna et alli, 1997: 260).<br />

Sobre a “atitude em face <strong>do</strong> papel <strong>do</strong><br />

Poder Judiciário na consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> demo-<br />

cracia no país”, os índices foram os seguin-<br />

tes: 4,1% consideraram “o Judiciário como<br />

uma elite que exerce ação pe<strong>da</strong>gógica para<br />

elevação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia”; 7,7% definiram “a<br />

magistratura como guardiã <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des”;<br />

61,7% conceituaram “o magistra<strong>do</strong> como fiel<br />

intérprete <strong>da</strong> lei”; e 26,6% afirmaram que “o<br />

Judiciário exerce um papel ativo no senti<strong>do</strong><br />

de reduzir as desigual<strong>da</strong>des sociais”.<br />

Com base nessas respostas, os autores<br />

caracterizaram três tipos de juiz. O primei-<br />

ro seria um tipo caracteriza<strong>do</strong> pela não-<br />

neutrali<strong>da</strong>de, com ênfase nas instituições <strong>da</strong><br />

democracia representativa e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de<br />

Direito. Nessa visão, o ator é o juiz singular,<br />

e não a corporação.<br />

O segun<strong>do</strong> tipo é o juiz que atribui<br />

significa<strong>do</strong> ético moral à intervenção <strong>do</strong><br />

Judiciário, e muito freqüentemente confere<br />

a este Poder um papel ativo na redução <strong>da</strong>s<br />

desigual<strong>da</strong>des sociais.<br />

Nesse caso, o ator é a corporação, e a<br />

ativi<strong>da</strong>de judicante não é neutra. O terceiro<br />

tipo de juiz combinaria a perspectiva <strong>da</strong><br />

defesa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito <strong>ao</strong> tema <strong>da</strong> neu-<br />

trali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário; ademais, a limita-<br />

ção <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de judicante estaria associa<strong>da</strong><br />

à solicitação <strong>da</strong>s partes em conflito em tor-<br />

no de um bem juridicamente disciplina<strong>do</strong><br />

(Viana et allii, 1997: 260-261).<br />

Essa tipologia indica que, apesar <strong>da</strong><br />

maior parte entender a não-neutrali<strong>da</strong>de<br />

como um traço <strong>do</strong> Poder Judiciário, essa<br />

posição não contraria o Esta<strong>do</strong> de Direito.<br />

f) Previsibili<strong>da</strong>de<br />

Observa-se o choque de duas visões so-<br />

bre a previsibili<strong>da</strong>de. Uma, que privilegia o<br />

valor <strong>da</strong> previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões, linha<br />

de pensamento a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> pelo Banco Mun-<br />

dial e pela Nova Economia Institucional 25 .<br />

A outra lógica se constrói em reação à pri-<br />

meira, e enfatiza o valor <strong>da</strong> independência<br />

judicial, considera<strong>do</strong> superior <strong>ao</strong> <strong>da</strong> previ-<br />

sibili<strong>da</strong>de. Essa última tendência é a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong><br />

pela <strong>AMB</strong> (Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s<br />

Brasileiros) e pela AJUFE (Associação <strong>do</strong>s<br />

Juízes Federais <strong>do</strong> Brasil).<br />

25 Os estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Nova Economia Institucional são desenvolvi<strong>do</strong>s no Brasil pelo IDESP, especialmente por Arman<strong>do</strong> Castelar Pinheiro. É possível<br />

observar o confronto dessas duas lógicas no Seminário “Reforma <strong>do</strong> Judiciário: Problemas, Desafios e Perspectivas” promovi<strong>do</strong> pelo IDESP em 2001,<br />

que apresentou e debateu o resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> pesquisa “A visão <strong>do</strong>s juízes sobre as relações entre o judiciário e a economia” (que cobriu 738 juízes de primeira<br />

e segun<strong>da</strong> instâncias).


Em um contexto<br />

de incertezas,<br />

na visão <strong>do</strong><br />

Banco, um<br />

requisito<br />

essencial para<br />

os investi<strong>do</strong>res<br />

é que as<br />

instituições<br />

estatais<br />

proporcionem a<br />

previsibili<strong>da</strong>de<br />

de suas normas<br />

e políticas e a<br />

constância de<br />

sua aplicação.<br />

Arman<strong>do</strong> Castelar Pinheiro desenvolve<br />

o conceito de previsibili<strong>da</strong>de a partir de<br />

duas variáveis: os custos para o merca<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

morosi<strong>da</strong>de processual e a politização <strong>da</strong>s<br />

decisões <strong>do</strong> Judiciário 26 . Já a interpretação<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos juízes é diferente: na opinião de<br />

Flávio Dino, ex-Presidente <strong>da</strong> AJUFE, os<br />

juízes federais entendem que essa argumen-<br />

tação economicista visa a assegurar uma co-<br />

erência <strong>do</strong> conjunto de decisões que garanta<br />

as expectativas <strong>do</strong>s investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s<br />

(entrevista, maio de 2001).<br />

Para o Banco Mundial, o Esta<strong>do</strong> deve<br />

atuar como vetor de certezas. Na opinião<br />

<strong>do</strong> organismo, se um Esta<strong>do</strong> mu<strong>da</strong> fre-<br />

qüentemente as regras ou não esclarece as<br />

regras pelas quais ele próprio se guia, as<br />

empresas e os indivíduos não podem ter<br />

certeza hoje <strong>do</strong> que amanhã será lucrativo<br />

ou não lucrativo, lícito ou ilícito. Nesse<br />

caso, tendem a a<strong>do</strong>tar estratégias arrisca-<br />

<strong>da</strong>s para se protegerem contra um futuro<br />

incerto – ingressan<strong>do</strong>, por exemplo, na<br />

economia informal ou envian<strong>do</strong> capital <strong>ao</strong><br />

exterior, prejudican<strong>do</strong> a economia nacional<br />

(Banco Mundial, 1997: 33).<br />

Em um contexto de incertezas, na visão<br />

<strong>do</strong> Banco, um requisito essencial para os<br />

investi<strong>do</strong>res é que as instituições estatais<br />

proporcionem a previsibili<strong>da</strong>de de suas nor-<br />

mas e políticas e a constância de sua aplica-<br />

ção (Idem: 4). A previsibili<strong>da</strong>de seria ain<strong>da</strong><br />

mais importante que a eficiência (Idem: 47)<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

No Relatório de 1997 é apresenta<strong>do</strong><br />

resulta<strong>do</strong> de pesquisa que explicitou a vi-<br />

são de investi<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s: nos países em<br />

desenvolvimento, mais de 70% <strong>do</strong>s empre-<br />

sários disseram que a imprevisibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

Judiciário era um grande problema para as<br />

suas ativi<strong>da</strong>des (Idem: 36). A “previsibili<strong>da</strong>-<br />

de <strong>da</strong> imposição judicial <strong>da</strong> lei” é um <strong>do</strong>s 5<br />

indica<strong>do</strong>res 27 aponta<strong>do</strong>s pelos empresários<br />

para a credibili<strong>da</strong>de (Idem: 35, 36 e 186).<br />

Quanto às condições que contribuem para<br />

um ambiente de credibili<strong>da</strong>de para os in-<br />

vestimentos, a previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões<br />

judiciais é menciona<strong>da</strong> reitera<strong>da</strong>mente, de<br />

forma liga<strong>da</strong> à credibili<strong>da</strong>de e <strong>ao</strong> combate à<br />

“síndrome <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de”.<br />

Porém, a previsibili<strong>da</strong>de não traz ele-<br />

mentos objetivos que a expliquem, como<br />

acontece com a eficiência (custos, rapidez,<br />

acesso à justiça). Portanto, um problema é<br />

definir quais os elementos <strong>da</strong> arbitrarie<strong>da</strong>-<br />

de na aplicação <strong>da</strong>s normas (Banco Mun-<br />

dial,1997: 43).<br />

Outro aspecto a ser considera<strong>do</strong> é a pre-<br />

visibili<strong>da</strong>de sistêmica, que se traduz em me-<br />

di<strong>da</strong>s que tornem os tribunais mais previsí-<br />

veis – tais como <strong>da</strong>r maior homogenei<strong>da</strong>de às<br />

decisões <strong>do</strong>s juízes e aumentar a informação<br />

nelas conti<strong>da</strong>. Essa discussão envolve a po-<br />

lêmica sobre os mecanismos centraliza<strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong> sistema, como súmula vinculante, reper-<br />

cussão geral de recurso especial e incidente<br />

de interpretação de trata<strong>do</strong> ou de lei federal.<br />

26 “As decisões são previsíveis quan<strong>do</strong> a variância ex-ante <strong>do</strong> ganho líqui<strong>do</strong> <strong>do</strong>s custos é pequena <strong>do</strong> ponto de vista <strong>da</strong>s partes. Vale notar que essa variância<br />

é forma<strong>da</strong> tanto pela variância <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> em si (i.e., perde ou ganha), como <strong>do</strong> tempo necessário para se alcançar uma decisão. Ambas representam<br />

fatores indesejáveis e atuam como desincentivos para recorrer <strong>ao</strong> Judiciário. A previsibili<strong>da</strong>de é alta quan<strong>do</strong> a probabili<strong>da</strong>de de se vencer é próxima de<br />

zero ou um e a variância <strong>do</strong> tempo gasto para se tomar a decisão é pequena. Os tribunais podem ser imprevisíveis porque as leis e/ ou contratos são escritos<br />

precariamente, porque os juízes são incompetentes ou mal informa<strong>do</strong>s, ou porque as partes se mostram inseguras em relação <strong>ao</strong> tempo que será necessário<br />

aguar<strong>da</strong>r até que uma decisão seja toma<strong>da</strong>” (Pinheiro et allii, 2000:28-29).<br />

27 Os outros indica<strong>do</strong>res são previsibili<strong>da</strong>de no processo normativo, percepção subjetiva de instabili<strong>da</strong>de política, segurança pessoal e patrimonial e<br />

corrupção.<br />

37


38<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

Essa previsibili<strong>da</strong>de se traduz em me-<br />

canismos de racionalização <strong>do</strong> sistema pelo<br />

vértice (STJ ou STF) repertoria<strong>do</strong>s nos vários<br />

projetos de Reforma <strong>do</strong> Judiciário. Defenso-<br />

res desses mecanismos argumentam que tais<br />

medi<strong>da</strong>s diminuem os incentivos para as par-<br />

tes erra<strong>da</strong>s litigarem (Pinheiro, 2000: 35).<br />

Os Tribunais Superiores defendem tais<br />

mecanismos, <strong>ao</strong> passo que os juízes singu-<br />

lares defendem o modelo atual por meio de<br />

suas associações (<strong>AMB</strong> e AJUFE), que per-<br />

mitiria uma ampla forma de recurso. Uma<br />

crítica à previsibili<strong>da</strong>de sistêmica por meio<br />

<strong>da</strong> súmula vinculante foi feita no discurso<br />

de posse de Cláudio Baldino Maciel:<br />

a súmula vinculante, o mais emblemático<br />

instituto previsto pelo movimento de concen-<br />

tração de poderes na cúpula <strong>do</strong> Judiciário e<br />

de paulatina e constante per<strong>da</strong> de expressão<br />

judicial <strong>da</strong> primeira e segun<strong>da</strong> instâncias<br />

e, com isso, <strong>da</strong> erosão <strong>do</strong> controle difuso <strong>da</strong><br />

constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis, tal instituto <strong>da</strong><br />

súmula vinculante, repito, embora se apresen-<br />

te como a panacéia para o volume de serviço,<br />

serve de fato à pretendi<strong>da</strong> maior previsibili<strong>da</strong>-<br />

de <strong>do</strong> sistema judiciário em suas decisões, tu<strong>do</strong><br />

sob o enfoque <strong>da</strong> eficiência econômica e <strong>do</strong>s<br />

interesses <strong>do</strong> capital. Nota<strong>da</strong>mente <strong>do</strong> capital<br />

estrangeiro e de seus representantes, que exi-<br />

gem, como melhores condições para investir<br />

e lucrar, <strong>do</strong>is movimentos convergentes <strong>do</strong><br />

Judiciário nacional: primeiro, a maior previ-<br />

sibli<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema; segun<strong>do</strong>, o maior grau de<br />

coerção judicial no cumprimento <strong>do</strong>s contra-<br />

tos, quaisquer que sejam eles, afasta<strong>da</strong>s tanto<br />

quanto possível as cláusulas protecionistas que<br />

se destinam a tornar os pactos minimamente<br />

equânimes entre partes por vezes tão dramati-<br />

camente desiguais (Maciel, 2001: 3).<br />

Portanto, o presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong> – e<br />

também o ex–presidente <strong>da</strong> AJUFE, Flávio<br />

Dino – sobrepõem o valor <strong>da</strong> independência<br />

sobre o <strong>da</strong> previsibili<strong>da</strong>de, por desejarem<br />

preservar a “soberania <strong>do</strong> juiz” singular. O<br />

presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong> critica o <strong>do</strong>cumento 319<br />

S <strong>do</strong> Banco Mundial:<br />

Muitas vezes, a interpretação <strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />

um judiciário independente <strong>ao</strong>s postula<strong>do</strong>s<br />

constitucionais e legais constitui estorvo<br />

<strong>ao</strong>s intereses <strong>do</strong>s detentores <strong>do</strong>s capitais e à<br />

globalização econômica. (...) Hoje, contu<strong>do</strong>,<br />

mais <strong>do</strong> que interpretar fatos, podemos ter<br />

acesso a propostas concretas de agências fi-<br />

nanceiras mundiais, que mais <strong>do</strong> que nunca<br />

demonstram o interesse específico, enfático e<br />

crescente no Judiciário <strong>do</strong>s países, digamos,<br />

periféricos. (...)<br />

De acor<strong>do</strong> com o referi<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento [319<br />

S], “muitos países <strong>da</strong> América Latina e <strong>do</strong><br />

Caribe já iniciaram a reforma <strong>do</strong> Judiciá-<br />

rio, aumentan<strong>do</strong> a deman<strong>da</strong> de assistência<br />

e assessoria <strong>ao</strong> Banco Mundial”. (...) os<br />

elementos <strong>da</strong> reforma <strong>do</strong> Judiciário e algu-<br />

mas proprie<strong>da</strong>des preliminares precisam ser<br />

formula<strong>da</strong>s. Quem as está formulan<strong>do</strong>? Os<br />

povos latino-americanos e caribenhos? Seus<br />

juízes, seus opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito? Não.<br />

Quem está formulan<strong>do</strong> tais propostas é o<br />

Banco Mundial (Maciel, 2001:7) 28 .<br />

28 O magistra<strong>do</strong> continua sua crítica: “Tal <strong>do</strong>cumento (...) prevê claramente a necessi<strong>da</strong>de de reformas de fun<strong>do</strong> nos Poderes Judiciários <strong>da</strong> América Latina<br />

e <strong>do</strong> Caribe. Propõe, então, um projeto de reforma global, com a<strong>da</strong>ptações às condições específicas de ca<strong>da</strong> país, mas com a mesma natureza e com a<br />

mesma lógica: quebrar a natureza monopolística <strong>do</strong> Judiciário, melhor garantir o direito de proprie<strong>da</strong>de e propiciar o desenvolvimento econômico e <strong>do</strong> setor<br />

priva<strong>do</strong>, fragilizan<strong>do</strong> a expressão institucional <strong>do</strong> Poder Judiciário e tornan<strong>do</strong>-o menos operante nas garantias de direitos e liber<strong>da</strong>des, desde que estejam<br />

em jogo as necessi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Capital, sobre tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> capital internacional” (Maciel, 2001: 7).


Se o Judiciário<br />

é visto<br />

como “um<br />

subsistema<br />

autônomo”,<br />

seus membros<br />

permanecem<br />

em uma zona<br />

ambígua,<br />

<strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo liga<strong>da</strong><br />

<strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>ao</strong><br />

merca<strong>do</strong> e à<br />

socie<strong>da</strong>de civil<br />

em geral.<br />

A oposição <strong>do</strong>s juízes singulares não<br />

ocorre por resistência à harmonia sistêmica<br />

ou à maior previsibili<strong>da</strong>de determina<strong>da</strong> pe-<br />

los Tribunais Superiores, mas porque aque-<br />

les magistra<strong>do</strong>s possuem uma orientação<br />

majoritariamente favorável à soberania <strong>do</strong><br />

juiz no exercício de sua judicatura e dese-<br />

jam manter limita<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de de inter-<br />

venção <strong>do</strong>s Tribunais Superiores (Vianna et<br />

alli, 1997: 292). Portanto, os magistra<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />

base <strong>do</strong> sistema têm como valor mais caro a<br />

independência, ain<strong>da</strong> que em detrimento <strong>da</strong><br />

previsibili<strong>da</strong>de.<br />

A fim de exemplificar essa orientação,<br />

Vianna et alli construíram um indica<strong>do</strong>r so-<br />

bre a “atitude em face <strong>da</strong> soberania 29 <strong>do</strong> juiz<br />

e sua relação com as instâncias superiores”.<br />

Os juízes muito pouco orienta<strong>do</strong>s pela idéia<br />

de soberania seriam favoráveis a uma maior<br />

uniformização e harmonização <strong>do</strong> sistema<br />

pelo vértice, ou seja, pelos Tribunais Su-<br />

periores. Já aqueles orienta<strong>do</strong>s ou muito<br />

orienta<strong>do</strong>s pela idéia de soberania, que são<br />

a maioria, vêem com desagra<strong>do</strong> a presença<br />

racionaliza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> vértice <strong>do</strong> sistema 30 .<br />

Vianna et alli estabeleceram uma cor-<br />

relação entre <strong>do</strong>is indica<strong>do</strong>res: o relativo<br />

à soberania <strong>do</strong> juiz e o indica<strong>do</strong>r referente<br />

<strong>ao</strong> padrão de intervenção <strong>do</strong> Judiciário. Os<br />

autores observaram uma correlação positiva<br />

entre a valorização <strong>da</strong> soberania <strong>do</strong> juiz e<br />

a atribuição de um papel ativo à magistra-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

tura nos processos de mu<strong>da</strong>nça social: <strong>do</strong>is<br />

terços <strong>do</strong>s juízes classifica<strong>do</strong>s na categoria<br />

“intervenção alta” 31 se disseram também<br />

“orienta<strong>do</strong>s” e “muito orienta<strong>do</strong>s” pela<br />

noção de soberania <strong>do</strong> juiz (Vianna et allii,<br />

1997: 292).<br />

Se por um la<strong>do</strong> os juízes podem ser<br />

considera<strong>do</strong>s parciais e imprevisíveis em<br />

relação às expectativas <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, por<br />

outro os que reconhecem seu papel pro-<br />

tagônico parecem ver no Poder Judiciário<br />

um subsistema autônomo dentro <strong>da</strong> esfera<br />

estatal, capaz de intervir sobre a reali<strong>da</strong>-<br />

de social (Vianna et alli 1997: 263). Se o<br />

Judiciário é visto como “um subsistema<br />

autônomo”, seus membros permanecem<br />

em uma zona ambígua, <strong>ao</strong> mesmo tempo<br />

liga<strong>da</strong> <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong> e à socie<strong>da</strong>de<br />

civil em geral. Por isso, os argumentos <strong>do</strong>s<br />

que enfatizam a preponderância <strong>do</strong> “valor<br />

independência” em detrimento <strong>do</strong> “valor<br />

previsibili<strong>da</strong>de” não podem ser toma<strong>do</strong>s<br />

como oposição <strong>ao</strong>s valores de merca<strong>do</strong>,<br />

deven<strong>do</strong> ser considera<strong>do</strong>s defensores des-<br />

se padrão ambíguo de intervenção desse<br />

“subsistema estatal autônomo”.<br />

g) Proteção à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e<br />

respeito <strong>ao</strong>s contratos<br />

Como já dito, conforme o Banco Mun-<br />

dial, o Esta<strong>do</strong> e as instituições são responsá-<br />

veis pela preservação de um ambiente pro-<br />

29 Soberania está relaciona<strong>da</strong> <strong>ao</strong> posicionamento <strong>do</strong> juiz vis-à-vis <strong>da</strong>s condições institucionais em que exerce sua ativi<strong>da</strong>de judicante; já a autonomia se<br />

relaciona com a atitude <strong>do</strong>s juízes em face <strong>da</strong> intervenção de outras instituições e agentes no processo de seleção e promoção <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s (Vianna et<br />

allii, 1997: 289).<br />

30 As porcentagens obti<strong>da</strong>s relativas a esse índice foram: 19% se disseram muito pouco orienta<strong>do</strong>s pela idéia de soberania; 22,9% pouco orienta<strong>do</strong>s; 31,7%<br />

orienta<strong>do</strong>s; e 26,6% muito orienta<strong>do</strong>s (Vianna et alli, 1997: 292).<br />

31 Intervenção alta, intervenção baixa e neutrali<strong>da</strong>de foram indica<strong>do</strong>res construí<strong>do</strong>s para medir a atitude <strong>do</strong>s juízes em face <strong>da</strong> intervenção <strong>do</strong> Judiciário.<br />

Os juízes classifica<strong>do</strong>s no indica<strong>do</strong>r intervenção alta são aqueles que se aproximam de uma perspectiva oposta à noção de neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Poder Judiciário<br />

e à ativi<strong>da</strong>de judicante basea<strong>da</strong> no modelo <strong>da</strong> certeza jurídica (intervenção <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> solicita<strong>do</strong> pelas partes <strong>do</strong> conflito, em torno de um bem<br />

juridicamente disciplina<strong>do</strong> e a neutrali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário) (Vianna et allii, 1997: 261-262).<br />

39


40<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

pício <strong>ao</strong>s negócios e à expansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />

Para isso, o Esta<strong>do</strong> deve basear-se em <strong>do</strong>is<br />

pilares: o respeito <strong>ao</strong>s contratos e a proteção<br />

à proprie<strong>da</strong>de. Os merca<strong>do</strong>s se sustentam<br />

em alicerces institucionais, que por sua<br />

vez se assentam sobre valores (Banco Mun-<br />

dial,1997:4).<br />

Quanto <strong>ao</strong> respeito <strong>ao</strong>s contratos, as insti-<br />

tuições podem eventualmente interpretar esse<br />

princípio de forma mais ou menos ampla,<br />

corrigin<strong>do</strong> distorções nos merca<strong>do</strong>s para fins<br />

públicos de eqüi<strong>da</strong>de. Porém, não se admite,<br />

no Esta<strong>do</strong> de direito, qualquer interferência<br />

no outro pilar – a proteção à proprie<strong>da</strong>de pri-<br />

va<strong>da</strong> (Banco Mundial, 2002:99).<br />

A proteção contra o roubo, a violência,<br />

os atos pre<strong>da</strong>tórios e os atos arbitrários <strong>do</strong><br />

Governo é considera<strong>da</strong> pelo Banco Mundial<br />

a condição mais importante para a proteção<br />

<strong>do</strong>s direitos de proprie<strong>da</strong>de. Tal condição,<br />

naturalmente, depende de um Judiciário<br />

eficaz. Esse Poder é um <strong>do</strong>s agentes <strong>do</strong> com-<br />

bate à impuni<strong>da</strong>de e impõe limites à ação<br />

<strong>do</strong> Executivo e <strong>do</strong> Legislativo.<br />

O IDESP entrevistou, em 2000, 738<br />

juízes de primeira e segun<strong>da</strong> instâncias <strong>do</strong>s<br />

diversos ramos <strong>da</strong> Justiça em 11 Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />

Federação (Sadek, 2001: 2). Nessa investi-<br />

gação, os magistra<strong>do</strong>s foram confronta<strong>do</strong>s<br />

com o seguinte dilema:<br />

Na aplicação <strong>da</strong> lei, existe freqüentemente<br />

uma tensão entre contratos, que precisam<br />

ser observa<strong>do</strong>s, e os interesses de segmentos<br />

sociais menos privilegia<strong>do</strong>s, que precisam<br />

ser atendi<strong>do</strong>s. Consideran<strong>do</strong> o conflito que<br />

surge nesses casos entre esses <strong>do</strong>is objetivos,<br />

duas posições opostas têm si<strong>do</strong> defendi<strong>da</strong>s:<br />

A. Os contratos devem ser sempre respeita-<br />

<strong>do</strong>s, independentemente de suas repercus-<br />

sões sociais;<br />

B. O juiz tem um papel social a cumprir, e<br />

a busca <strong>da</strong> justiça social justifica decisões<br />

que violem os contratos. Com qual <strong>da</strong>s<br />

duas posições o (a) senhor (a) concor<strong>da</strong><br />

mais? (Pinheiro, 2001a: 10)<br />

Os magistra<strong>do</strong>s expressaram que o<br />

papel social <strong>do</strong> juiz é preponderante, e as<br />

decisões devem privilegiar a justiça social<br />

em detrimento <strong>do</strong>s contratos (73,1%). Se<br />

os magistra<strong>do</strong>s estão diante <strong>da</strong>s opções<br />

“respeitar sempre os contratos indepen-<br />

dentemente de suas repercursões sociais”<br />

ou “tomar decisões que violem os contra-<br />

tos na busca <strong>da</strong> justiça social”, a tendên-<br />

cia será “desrespeitar” os contratos. Con-<br />

tu<strong>do</strong>, nota Pinheiro que o posicionamento<br />

<strong>do</strong>s juízes varia conforme a área a que se<br />

refere a causa, sen<strong>do</strong> mais forte em dis-<br />

putas envolven<strong>do</strong> direitos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r,<br />

meio ambiente e disputas trabalhistas e<br />

previdenciárias. Em causas comerciais, os<br />

magistra<strong>do</strong>s posicionaram-se majoritaria-<br />

mente em favor <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de respei-<br />

tar contratos (Pinheiro, 2001a: 10).<br />

A oposição entre a visão <strong>do</strong>s magistra-<br />

<strong>do</strong>s e a <strong>do</strong>s agentes econômicos, em prin-<br />

cípio, pode estar ancora<strong>da</strong> em sistemas<br />

distintos: os primeiros se baseiam no Es-<br />

ta<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> passo que os segun<strong>do</strong>s se assen-<br />

tam no Merca<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, em uma época<br />

imersa no processo de globalização, as<br />

visões <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s economistas<br />

não serão as únicas em oposição. O mais<br />

importante neste contexto é a permanên-<br />

cia <strong>do</strong> diálogo entre esses <strong>do</strong>is segmentos<br />

sociais na esfera nacional para que as<br />

instituições possam ser aprimora<strong>da</strong>s e os<br />

efeitos nocivos <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> possam ser<br />

corrigi<strong>do</strong>s.


Os valores<br />

eficiência,<br />

acessibili<strong>da</strong>de,<br />

transparência<br />

e credibili<strong>da</strong>de<br />

norteiam a<br />

ação <strong>do</strong>s<br />

magistra<strong>do</strong>s.<br />

Considerações finais<br />

Por meio <strong>da</strong> “ativi<strong>da</strong>de paranormativa”, o<br />

Banco Mundial procura construir consensos<br />

internacionais que modifiquem o conjunto<br />

de valores sobre os quais se baseiam a ativi-<br />

<strong>da</strong>de processual e a produção de sentenças.<br />

O organismo atua, nesse contexto, como<br />

coadjuvante <strong>do</strong> processo de reforma <strong>do</strong> Ju-<br />

diciário, como parte <strong>da</strong> reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

estimulan<strong>do</strong>, com sua expertise, a constru-<br />

ção de um consenso sobre a necessi<strong>da</strong>de de<br />

mu<strong>da</strong>nças de méto<strong>do</strong>s, forma e de fun<strong>do</strong> no<br />

sistema judicial.<br />

As recomen<strong>da</strong>ções <strong>do</strong>s Relatórios para<br />

o Judiciário devem ser avalia<strong>da</strong>s em termos<br />

internos (administração e condução <strong>da</strong> má-<br />

quina burocrática judicial) – mais evidente<br />

no relatório de 2002 – e externos (reflexo de<br />

suas decisões no merca<strong>do</strong>) – realça<strong>do</strong> no re-<br />

latório de 1997. Ao buscar a modernização<br />

<strong>da</strong> administração <strong>do</strong> processo – recomen<strong>da</strong>-<br />

ção de ação interna –, a instituição judicial<br />

também produziria, na visão <strong>do</strong> Banco,<br />

conseqüências externas, como a diminuição<br />

<strong>do</strong> tempo de demora na solução <strong>do</strong>s litígios<br />

e maior confiabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sistema, benefi-<br />

cian<strong>do</strong> seus usuários e a socie<strong>da</strong>de em geral<br />

(por exemplo, atrain<strong>do</strong> investimentos).<br />

A política de imagem de demonstrar<br />

que o Judiciário em geral, e os Tribunais<br />

Superiores em particular, estão-se moder-<br />

nizan<strong>do</strong> parte <strong>do</strong>s própios juízes. Os juízes<br />

têm emiti<strong>do</strong> opiniões por meio de artigos,<br />

notifican<strong>do</strong> sua atuação; os Tribunais têm<br />

utiliza<strong>do</strong> suas assessorias de imprensa ou de<br />

comunicação social.<br />

Os valores eficiência, acessibili<strong>da</strong>de,<br />

transparência e credibili<strong>da</strong>de norteiam a ação<br />

<strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s. O Judiciário tem desenvol-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

vi<strong>do</strong> uma política de imagem institucional,<br />

capacita<strong>do</strong> seus quadros e investi<strong>do</strong> em novas<br />

tecnologias para a administração processual<br />

e o fornecimento de informações processuais,<br />

incluin<strong>do</strong> ácordãos e jurisprudência, a fim<br />

de demonstrar que se está modernizan<strong>do</strong>. As<br />

informações divulga<strong>da</strong>s também denotam a<br />

valorização <strong>da</strong> transparência, contribuin<strong>do</strong><br />

para a credibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> instituição. Há ain<strong>da</strong><br />

um ativismo <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s na introdução<br />

de mecanismos de acesso à justiça, que res-<br />

ponde tanto a motivos de afirmação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>-<br />

<strong>da</strong>nia e <strong>da</strong> democracia quanto <strong>ao</strong> interesse de<br />

preservar seu poder de juris dictio frente <strong>ao</strong>s<br />

MARD concorrentes <strong>do</strong> Judiciário.<br />

A preocupação <strong>do</strong> Judiciário brasileiro<br />

com os valores de eficiência, transparência,<br />

credibili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de não está rela-<br />

ciona<strong>da</strong> diretamente com as recomen<strong>da</strong>ções<br />

<strong>do</strong> Banco Mundial, que a maioria <strong>do</strong>s juízes<br />

desconhece. Muitos <strong>do</strong>s valores defendi<strong>do</strong>s<br />

pelo Banco (eficiência, independência,<br />

transparência, acessibili<strong>da</strong>de) são a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />

pelo Judiciário brasileiro, que busca apri-<br />

morar-se institucionalmente, até mesmo<br />

sugerin<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Legislativo elementos <strong>da</strong> Re-<br />

forma <strong>do</strong> Poder Judiciário.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, representantes <strong>do</strong>s<br />

segmentos <strong>da</strong> base <strong>do</strong> Judiciário (<strong>AMB</strong>,<br />

AJUFE) consideram que a a<strong>do</strong>ção de alguns<br />

aspectos convergentes com as recomen<strong>da</strong>-<br />

ções <strong>do</strong> Banco Mundial caracterizariam<br />

“ingerência interna” desse organismo in-<br />

ternacional. Detecta-se, principalmente,<br />

uma tendência de relativo afastamento <strong>do</strong>s<br />

magistra<strong>do</strong>s brasileiros em relação <strong>ao</strong>s pro-<br />

pósitos <strong>do</strong> Banco Mundial em matéria de<br />

previsibili<strong>da</strong>de e respeito <strong>ao</strong>s contratos. Em<br />

contraposição, detectam-se críticas à “poli-<br />

tização” <strong>da</strong>s sentenças, veicula<strong>da</strong>s através<br />

41


42<br />

OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO<br />

MUNDIAL PARA OS JUDICIÁRIOS NACIONAIS<br />

<strong>da</strong> imprensa por parte de agentes econômi-<br />

cos nacionais com conexões globais.<br />

O Banco Mundial valoriza o merca<strong>do</strong><br />

como motor <strong>do</strong> desenvolvimento sem men-<br />

cionar a democracia. Se o modelo proposto<br />

pelo Banco fosse efetivamente implementa-<br />

<strong>do</strong>, os ci<strong>da</strong>dãos, usuários potenciais <strong>do</strong> Ju-<br />

diciário, muito provavelmente pouco se im-<br />

portariam se os magistra<strong>do</strong>s atuassem como<br />

“juízes para merca<strong>do</strong>s”, segun<strong>do</strong> a lógica <strong>do</strong><br />

organismo internacional. Os ci<strong>da</strong>dãos conta-<br />

riam com uma instituição próxima de suas<br />

necessi<strong>da</strong>des. Contu<strong>do</strong>, em um contexto de<br />

desigual<strong>da</strong>des econômicas e sociais, marca-<br />

<strong>da</strong>s por forças de merca<strong>do</strong> que trazem desen-<br />

Bibliografia<br />

volvimento como também exclusão, é impor-<br />

tante que os ci<strong>da</strong>dãos possuam um Judiciário<br />

pauta<strong>do</strong> pelos valores descritos neste artigo,<br />

não simplesmente para o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> economia de merca<strong>do</strong>, mas sobretu<strong>do</strong><br />

para a afirmação <strong>da</strong> democracia.<br />

Ana Paula Lucena Silva Candeas é mestre<br />

em Relações Internacionais pelo Instituto<br />

de Ciência Política e Relações Internacio-<br />

nais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília e pós-gra-<br />

dua<strong>da</strong> em Direito Constitucional francês e<br />

Direito Internacional Público pela Univer-<br />

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43


AReforma<br />

Trabalhista<br />

Instituí<strong>do</strong> o Fórum Nacional <strong>do</strong><br />

Trabalho pelo Presidente <strong>da</strong> República,<br />

pretende o governo discutir com as<br />

enti<strong>da</strong>des sindicais <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e<br />

<strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>res mu<strong>da</strong>nças na legislação<br />

trabalhista, forman<strong>do</strong> propostas a serem<br />

encaminha<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> Congresso Nacional.<br />

Anuncia-se, precipuamente, que as normas<br />

trabalhistas encontram-se ultrapassa<strong>da</strong>s e<br />

por essa razão merecem sofrer processo de<br />

alteração.<br />

Há setores que simplesmente pregam<br />

o fim <strong>do</strong> direito legisla<strong>do</strong> e <strong>da</strong>s normas<br />

protetoras <strong>da</strong> força-de-trabalho, sob o<br />

argumento <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de a<strong>da</strong>ptação <strong>do</strong><br />

país à nova reali<strong>da</strong>de mundial <strong>da</strong>s relações<br />

entre o capital e o trabalho e <strong>ao</strong>s meios<br />

modernos de produção alcança<strong>do</strong>s pela<br />

socie<strong>da</strong>de capitalista nos últimos anos.<br />

Antes de analisar o mérito desta<br />

percuciente questão, devo relatar o senti<strong>do</strong><br />

histórico <strong>do</strong> trabalho, bem como a razão de<br />

ser <strong>do</strong> Direito <strong>do</strong> Trabalho e <strong>do</strong> princípio<br />

básico que o orienta, qual seja, o tutelar.<br />

Grijalbo Fernandes Coutinho<br />

Desde que o homem passou a viver em<br />

socie<strong>da</strong>de, o trabalho é talvez o componente<br />

mais importante nas relações entre<br />

tribos e classes, elemento que distingue<br />

a posição social, econômica e política de<br />

seus membros. Nas épocas <strong>da</strong>s primeiras<br />

tribos, conhecia-se a forma de trabalho<br />

determina<strong>da</strong> pela i<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s pessoas, onde<br />

os mais velhos, cumpri<strong>do</strong> o ritual anterior,<br />

usufruíam <strong>da</strong> força-de-trabalho <strong>do</strong>s mais<br />

jovens, sem que deste fato resultasse<br />

qualquer exploração econômica, mas apenas<br />

a observância de uma rotina opressora<br />

determina<strong>da</strong> pelo fator tempo. Há também<br />

a época <strong>do</strong> comunismo primitivo, com a<br />

divisão de to<strong>da</strong> a produção entre as pessoas,<br />

sem nenhuma exploração econômica.<br />

A primeira efetiva exploração <strong>do</strong><br />

trabalho em larga escala ocorre na<br />

socie<strong>da</strong>de escravista, através <strong>da</strong> qual o<br />

homem sujeita-se à mais degra<strong>da</strong>nte<br />

condição de vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> ser humano, seja pela<br />

coerção física, seja pela coerção econômica.<br />

É interessante notar que na decanta<strong>da</strong><br />

45


46<br />

A REFORMA TRABALHISTA<br />

Democracia Direta Ateniense de poucos<br />

séculos antes de Cristo, o serviço escravo,<br />

fruto <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s inimigos de guerra<br />

e <strong>do</strong> empobrecimento de pessoas antes<br />

considera<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>dãs, era encara<strong>do</strong> com<br />

extrema naturali<strong>da</strong>de e até indispensável<br />

para que os ci<strong>da</strong>dãos cui<strong>da</strong>ssem de tarefas<br />

outras menos desgastantes e mais volta<strong>da</strong>s<br />

para o desenvolvimento <strong>do</strong> intelecto.<br />

O filósofo Sócrates pôs o de<strong>do</strong> em várias<br />

feri<strong>da</strong>s <strong>da</strong> democracia decadente, crítica que<br />

o levou à pena de morte, mas não se rebelou<br />

contra a escravidão reinante, apesar de consi-<br />

derar que to<strong>da</strong>s as pessoas são capazes de en-<br />

tender as ver<strong>da</strong>des filosóficas, bastan<strong>do</strong> para<br />

isso que usem a razão e de que o escravo ti-<br />

nha a mesma razão de um ci<strong>da</strong>dão livre. Em<br />

Sólon, há introdução de leis que estabelecem<br />

limites na exploração <strong>do</strong> trabalho escravo,<br />

com a eliminação <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> patrono sobre<br />

os familiares <strong>do</strong>s clientes e de suas terras.<br />

A socie<strong>da</strong>de romana, herdeira <strong>da</strong> cultu-<br />

ra helenística, valeu-se <strong>do</strong> trabalho escravo<br />

para consoli<strong>da</strong>r o império que <strong>do</strong>minou boa<br />

parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, inclusive no perío<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

República. Logo, a História <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de<br />

está, lamentavelmente, entrelaça<strong>da</strong> com os<br />

serviços força<strong>do</strong>s.<br />

Nos modelos seguintes de socie<strong>da</strong>de, o<br />

trabalho humano continuou a ser explora-<br />

<strong>do</strong>, mas com a pre<strong>do</strong>minância de caracterís-<br />

ticas distintas <strong>da</strong> escravidão. O feu<strong>da</strong>lismo<br />

notabilizou-se pela submissão econômica<br />

<strong>do</strong>s vassalos <strong>ao</strong>s senhores proprietários de<br />

terras, estes apoia<strong>do</strong>s pela nobreza.<br />

Outras formas de trabalho surgiram<br />

com as cruza<strong>da</strong>s, expandin<strong>do</strong>-se o comércio<br />

e forman<strong>do</strong>-se uma nova classe detentora<br />

<strong>do</strong> poder econômico em substituição <strong>ao</strong><br />

<strong>do</strong>mínio até então pertencente <strong>ao</strong>s senhores<br />

feu<strong>da</strong>is: a burguesia. Os iluministas perce-<br />

beram que havia impossibili<strong>da</strong>de de uma<br />

convivência pacífica entre a ordem política<br />

<strong>do</strong>s reis e o regime capitalista <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

individual, inclusive de trabalho, materia-<br />

lizan<strong>do</strong> essa incongruência na famosa En-<br />

ciclopédia, cujo resulta<strong>do</strong> final foi o acon-<br />

tecimento de uma <strong>da</strong>s maiores revoluções<br />

políticas de to<strong>do</strong>s os tempos: a francesa.<br />

A revolução industrial na Inglaterra,<br />

no século XVIII, consoli<strong>da</strong> o capitalismo de<br />

uma outra fase, revelan<strong>do</strong>, porém, formas<br />

de exploração de trabalho cruéis, mediante<br />

jorna<strong>da</strong>s longas de até 16 horas por dia, tra-<br />

balho de menores e de mulheres, sem qual-<br />

quer proteção à saúde ou social. As reações<br />

propiciaram o surgimento <strong>da</strong>s primeiras<br />

legislações de proteção <strong>ao</strong> trabalho. Marx,<br />

o maior estudioso <strong>do</strong> capitalismo e também<br />

o mais crítico, vislumbrava no excedente<br />

não remunera<strong>do</strong> <strong>da</strong> força-de-trabalho, pelos<br />

patrões, o que denominou de mais-valia,<br />

to<strong>da</strong> a base de sustentação deste regime, a<br />

ser enfrenta<strong>do</strong> na luta pelo fim <strong>da</strong>s classes<br />

sociais e instauração <strong>do</strong> socialismo, estágio<br />

para a socie<strong>da</strong>de comunista.<br />

O nascimento <strong>do</strong> Direito <strong>do</strong> Trabalho<br />

é, pois, fruto <strong>da</strong> reação <strong>da</strong> classe operária<br />

à selvageria <strong>do</strong> capitalismo, como também<br />

atende, em parte, <strong>ao</strong>s anseios <strong>da</strong> burguesia<br />

amedronta<strong>da</strong> com o comunismo que ron<strong>da</strong>-<br />

va a Europa.<br />

No Brasil, o fenômeno retar<strong>do</strong>u <strong>da</strong><strong>do</strong> o<br />

atraso de sua economia, volta<strong>da</strong> para o cam-<br />

po, com a utilização <strong>da</strong> mão-de-obra escrava<br />

durante mais de três séculos. As primeiras<br />

leis de proteção social surgiram no final <strong>do</strong><br />

século XIX e no início <strong>do</strong> século XX, que<br />

foram depois reuni<strong>da</strong>s na denomina<strong>da</strong> Con-<br />

soli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s Leis <strong>do</strong> Trabalho, em 1943.


É forçoso<br />

concluir que<br />

o Esta<strong>do</strong><br />

nunca agiu por<br />

vontade própria<br />

para propiciar<br />

cenário<br />

favorável <strong>ao</strong>s<br />

trabalha<strong>do</strong>res.<br />

É forçoso concluir que o Esta<strong>do</strong>, este<br />

ser abstrato, mas que dispõe <strong>da</strong> força para<br />

criar e fazer valer as normas jurídicas, nun-<br />

ca agiu por vontade própria para propiciar<br />

cenário favorável <strong>ao</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, proce-<br />

den<strong>do</strong> de um ou outro mo<strong>do</strong> pela pressão<br />

política legitimamente exerci<strong>da</strong> por tais<br />

atores sociais. Não foi diferente no Brasil,<br />

em que pese o equívoco de se atribuir a Ge-<br />

túlio Vargas a responsabili<strong>da</strong>de pelas con-<br />

quistas trabalhistas postas na CLT.<br />

Deveria o Esta<strong>do</strong> não apenas zelar<br />

pelo respeito <strong>ao</strong>s direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>-<br />

res previstos na Constituição Federal e na<br />

legislação ordinária, como também lançar<br />

mão de instrumentos hábeis para ampliá-<br />

los, de mo<strong>do</strong> a reduzir as desigual<strong>da</strong>des<br />

sociais. Em senti<strong>do</strong> oposto, tem si<strong>do</strong> o Esta-<br />

<strong>do</strong>, através de seus representantes legais, o<br />

responsável pela instituição de políticas que<br />

eliminam direitos e garantias históricas.<br />

Além deste fato, várias são as normas de<br />

proteção <strong>ao</strong> trabalha<strong>do</strong>r descumpri<strong>da</strong>s ou<br />

não implementa<strong>da</strong>s pela omissão <strong>do</strong>s pode-<br />

res públicos, inclusive pelo Judiciário.<br />

O discurso atual é no senti<strong>do</strong> de que <strong>ao</strong><br />

invés <strong>do</strong> respeito <strong>ao</strong> direito legisla<strong>do</strong> <strong>do</strong> tra-<br />

balho, deve se buscar a flexibilização a fim<br />

de permitir uma relação ``mais moderna``<br />

entre o capital e o trabalho, de preferência,<br />

sem nenhuma intervenção estatal, hipótese<br />

capaz de lançar novos postos de trabalho.<br />

O Governo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so<br />

aprofun<strong>do</strong>u a política neoliberal de desre-<br />

gulamentação <strong>da</strong>s relações de trabalho, <strong>ao</strong><br />

ve<strong>da</strong>r a concessão de reajuste remuneratório<br />

com base na inflação, <strong>ao</strong> criar o contrato de<br />

trabalho a tempo parcial e o banco de ho-<br />

ras, <strong>ao</strong> implantar a prescrição parcial para<br />

o trabalha<strong>do</strong>r rural, além de tantas outras<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

medi<strong>da</strong>s que diminuíram direitos <strong>do</strong>s em-<br />

prega<strong>do</strong>s. Tentou, no último momento, apli-<br />

car a mais dura pena com a prevalência <strong>do</strong><br />

negocia<strong>do</strong> sobre o legisla<strong>do</strong>, não alcança<strong>da</strong><br />

pela reação de várias enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>-<br />

de civil organiza<strong>da</strong>, inclusive a Anamatra.<br />

No setor público, inúmeras conquistas <strong>do</strong>s<br />

servi<strong>do</strong>res desapareceram após a sucessiva<br />

edição de medi<strong>da</strong>s provisórias que altera-<br />

ram dispositivos <strong>da</strong> lei 8.112/90.<br />

Na<strong>da</strong>, porém, é isola<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> reflexo de<br />

um contexto mundial perverso e falacioso que<br />

recomen<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nças na legislação trabalhista.<br />

É inegável que o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> bem estar<br />

social sofreu abalo a partir <strong>do</strong>s anos 70, com<br />

a crise <strong>do</strong> petróleo de 1973 e <strong>do</strong> próprio capi-<br />

talismo de forma mais constante, além <strong>da</strong> al-<br />

teração <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de produção, <strong>do</strong> enfraque-<br />

cimento <strong>do</strong> movimento sindical e <strong>do</strong> fim <strong>do</strong><br />

denomina<strong>do</strong> socialismo <strong>do</strong> Leste Europeu,<br />

tu<strong>do</strong> a autorizar o crescimento <strong>da</strong>s idéias<br />

neoliberais numa espécie de retorno, no que<br />

diz respeito à relação capital X trabalho, <strong>ao</strong><br />

perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> início <strong>da</strong> revolução industrial.<br />

A revolução tecnológica verifica<strong>da</strong> nos<br />

últimos anos, especialmente na área de in-<br />

formática, efetivamente, reduziu algumas<br />

tarefas laborais e retirou muitos postos de<br />

trabalho, avanço que deveria ser comparti-<br />

lha<strong>do</strong> com os emprega<strong>do</strong>s e não apenas para<br />

solidificar a sua apropriação pelo capital.<br />

Não obstante a mu<strong>da</strong>nça de rumo no<br />

mo<strong>do</strong> de produção capitalista, de um mo-<br />

delo fordista-taylorista para o digital-toyo-<br />

tista, o trabalho vivo não desaparecerá, na<br />

precisa lição <strong>do</strong> professor Ricar<strong>do</strong> Antunes,<br />

pois sempre haverá necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> esforço<br />

humano, até mesmo para o funcionamento<br />

<strong>da</strong>s máquinas que reduzem as ativi<strong>da</strong>des<br />

laborais. De um modelo que produzia em<br />

47


48<br />

A REFORMA TRABALHISTA<br />

grande quanti<strong>da</strong>de, passamos a outro diri-<br />

gi<strong>do</strong> a setores específicos e apenas para o<br />

consumo imediato, mediante alta tecnolo-<br />

gia que reduz a utilização <strong>da</strong> mão-de-obra,<br />

com o enfraquecimento sindical pela ter-<br />

ceirização, pelo trabalho de equipe e pelos<br />

programas de quali<strong>da</strong>de total instala<strong>do</strong>s em<br />

pequenos núcleos para legitimar a grande<br />

massa de desemprega<strong>do</strong>s. Desprestigiar<br />

exagera<strong>da</strong>mente a força-de-trabalho, sobre-<br />

tu<strong>do</strong> num país de extremas desigual<strong>da</strong>des e<br />

de eleva<strong>do</strong>s índices de desemprego, é fazer<br />

o caminho inverso <strong>do</strong>s atentos capitalistas<br />

que admitiram a existência de leis traba-<br />

lhistas como forma de salvar a essência: o<br />

regime econômico.<br />

Quero dizer, assim, que as mu<strong>da</strong>nças<br />

verifica<strong>da</strong>s não romperam com o paradigma<br />

justifica<strong>do</strong>r <strong>da</strong> legislação trabalhista, qual<br />

seja, o <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de de forças entre o<br />

capital e o trabalho, <strong>da</strong>í porque a exigência<br />

<strong>do</strong> princípio tutelar <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> trabalho<br />

para proteger o emprega<strong>do</strong>. Apesar <strong>do</strong>s<br />

anos, continua atual a definição <strong>do</strong> francês<br />

Lacor<strong>da</strong>ire, <strong>ao</strong> declarar que “entre o forte e<br />

o fraco, entre o rico e o pobre, é a liber<strong>da</strong>de<br />

que escraviza, é a lei que liberta”.<br />

Não estou propon<strong>do</strong> a postura de sim-<br />

ples manutenção <strong>do</strong> direito positivo vigente<br />

que, muitas vezes, não se aplica a uma par-<br />

cela significativa <strong>da</strong> massa trabalha<strong>do</strong>ra. Há<br />

necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> aprimoramento <strong>da</strong>s relações<br />

sociais para tornar o Direito <strong>do</strong> Trabalho<br />

ver<strong>da</strong>deiro instrumento de emancipação <strong>do</strong><br />

destinatário <strong>da</strong> norma, preservan<strong>do</strong> as suas<br />

bases principiológicas, especialmente a <strong>do</strong><br />

princípio de proteção <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, célula<br />

matriz <strong>da</strong> intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nas rela-<br />

ções de trabalho.<br />

É imprescindível, nesse cenário, con-<br />

sagrar a autonomia priva<strong>da</strong> coletiva como<br />

preceito de emancipação social <strong>do</strong>s traba-<br />

lha<strong>do</strong>res e não como instrumento de pre-<br />

carização de seus direitos, uma vez que o<br />

resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> negociação não pode significar<br />

a per<strong>da</strong> <strong>da</strong>s garantias legais e históricas <strong>do</strong>s<br />

ci<strong>da</strong>dãos brasileiros, resultantes de mui-<br />

tas lágrimas e sangue e que, por isso, não<br />

podem ser reduzi<strong>da</strong>s a um singelo anacro-<br />

nismo. A plena liber<strong>da</strong>de sindical requer<br />

o fim <strong>do</strong> imposto compulsório, mas sem<br />

olvi<strong>da</strong>r a necessi<strong>da</strong>de de se repensar os me-<br />

canismos de financiamento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />

de resistência <strong>da</strong>s categorias profissionais,<br />

além <strong>da</strong> legitimação processual <strong>da</strong>s centrais<br />

sindicais para o ajuizamento de ações civis<br />

públicas e coletivas em geral, para tratar de<br />

interesses individuais homogêneos, difusos<br />

e coletivos, com a consagração <strong>da</strong> substitui-<br />

ção processual ampla.<br />

Preocupa-me quan<strong>do</strong> o Presidente Lula<br />

sinaliza que pode propor tratamento dife-<br />

rencia<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ponto de vista legal, <strong>ao</strong>s em-<br />

prega<strong>do</strong>s <strong>da</strong> pequenas e médias empresas<br />

em relação <strong>ao</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s grandes<br />

empresas, mediante o que se convencionou<br />

denominar de “simples trabalhista”, pre-<br />

carização de direitos que a magistratura<br />

trabalhista rejeita. Qualquer distinção entre<br />

emprega<strong>do</strong>res deve estar circunscrita <strong>ao</strong><br />

campo tributário e <strong>ao</strong> Sistema “S”. Não<br />

pode se cogitar de haver no Brasil remune-<br />

ração adequa<strong>da</strong> <strong>da</strong> mão-de-obra ou de que<br />

esta é gera<strong>do</strong>ra de desemprego. Não deve o<br />

Esta<strong>do</strong> patrocinar tal agressão.Os emprega-<br />

<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s grandes empresas devem alcançar<br />

melhores condições através <strong>da</strong> negociação<br />

coletiva, com o fortalecimento <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s<br />

sindicatos, respeitan<strong>do</strong> o mínimo previsto<br />

em lei para quaisquer trabalha<strong>do</strong>res.


Para enfrentar a<br />

nova reali<strong>da</strong>de,<br />

é preciso discutir<br />

a redução <strong>da</strong><br />

jorna<strong>da</strong> de<br />

trabalho semanal,<br />

sem a diminuição<br />

remuneratória,<br />

ve<strong>da</strong>r a realização<br />

de horas extras<br />

e instituir política<br />

básica de<br />

desenvolvimento<br />

econômico<br />

Esperamos, assim, que <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />

encaminhamento <strong>da</strong><strong>do</strong> pelo Governo Lula<br />

na reforma <strong>da</strong> Previdência, onde fez opção<br />

pelo desmonte <strong>do</strong> serviço público mediante<br />

a privatização <strong>do</strong> sistema em detrimento <strong>do</strong>s<br />

interesses <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res, tenha<br />

ele a percepção de quanto mais se concede <strong>ao</strong>s<br />

grupos financeiros, maior a volúpia em acabar<br />

com os direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />

Para enfrentar a nova reali<strong>da</strong>de, é preciso<br />

discutir a redução <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> de trabalho se-<br />

manal, sem a diminuição remuneratória, ve<strong>da</strong>r<br />

a realização de horas extras e instituir política<br />

básica de desenvolvimento econômico que<br />

privilegie, sem precarização <strong>da</strong> tutela existen-<br />

te, a criação de empregos e de programas de<br />

educação e treinamento <strong>da</strong> mão-de-obra, com<br />

a manutenção <strong>do</strong> sistema de proteção <strong>ao</strong> tra-<br />

balho integra<strong>do</strong> <strong>da</strong>s normas protetoras gerais e<br />

irrenunciáveis conti<strong>da</strong>s nas convenções <strong>da</strong> OIT<br />

e na Constituição <strong>da</strong> República.<br />

Tratan<strong>do</strong> especificamente <strong>do</strong> que já se<br />

encontra em vigor, tenho que o Esta<strong>do</strong> possui<br />

a obrigação de <strong>da</strong>r efetivi<strong>da</strong>de <strong>ao</strong>s direitos<br />

previstos na Constituição Federal e nas de-<br />

mais leis. A regulamentação <strong>da</strong> proteção <strong>ao</strong><br />

emprego contra a despedi<strong>da</strong> arbitrária pode-<br />

ria se <strong>da</strong>r através <strong>do</strong> encaminhamento e apro-<br />

vação de projeto de lei ou ain<strong>da</strong>, por meio <strong>do</strong><br />

cancelamento <strong>da</strong> denúncia <strong>da</strong> Convenção N°<br />

158, <strong>da</strong> OIT, tornan<strong>do</strong> mais democrática a re-<br />

lação entre o capital e o trabalho. Não pode o<br />

Esta<strong>do</strong> fazer letra morta o conceito de salário<br />

mínimo defini<strong>do</strong> pelo inciso IV, d artigo 7°,<br />

<strong>da</strong> CF, fixan<strong>do</strong>-o, pois, em valor que aten<strong>da</strong> as<br />

necessi<strong>da</strong>des ali previstas.<br />

A precarização tem si<strong>do</strong> tão intensa que<br />

mesmo sem alcançar pleno êxito no plano<br />

legislativo, estabelece práticas proibi<strong>da</strong>s por<br />

lei e que estão a deman<strong>da</strong>r atuação firme <strong>do</strong><br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Esta<strong>do</strong> para coibir fraudes no cooperativis-<br />

mo, nas comissões de conciliação de prévia<br />

e na terceirização desenfrea<strong>da</strong>. A marca<br />

maior desta ousadia exterioriza-se na exis-<br />

tência de trabalho escravo em algumas regi-<br />

ões e na utilização <strong>da</strong> mão-de-obra infantil,<br />

sem que o poder público forneça meios<br />

suficientes para enfrentar quadro tão dra-<br />

mático nas relações de trabalho no Brasil,<br />

sequer oferecen<strong>do</strong> segurança <strong>ao</strong>s trabalha-<br />

<strong>do</strong>res, padres, auditores fiscais <strong>do</strong> trabalho,<br />

juizes <strong>do</strong> trabalho, membros <strong>do</strong> MP e outros<br />

agentes públicos ameaça<strong>do</strong>s pela postura de<br />

combate <strong>ao</strong> trabalho escravo.<br />

O Esta<strong>do</strong>, que tem as suas ações deter-<br />

mina<strong>da</strong>s pelos homens e pelos interesses de<br />

grupos na socie<strong>da</strong>de, portanto, na<strong>da</strong> tem de<br />

neutro quanto as suas opções, como sem-<br />

pre aconteceu na História <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />

será movi<strong>do</strong> para garantir os direitos <strong>do</strong>s<br />

trabalha<strong>do</strong>res na mesma veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ca-<br />

paci<strong>da</strong>de de organização <strong>do</strong>s segmentos <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de que pretendem preservá-los.<br />

A reforma trabalhista terá importância<br />

no contexto atual se souber preservar as con-<br />

quistas históricas <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res previstas<br />

nos diversos instrumentos normativos e tor-<br />

nar mais democrática a relação entre o capi-<br />

tal e o trabalho. A sua principal função, no<br />

entanto, será a de mu<strong>da</strong>r conceitos equivoca-<br />

<strong>do</strong>s sobre o custo <strong>do</strong> trabalho e conscientizar<br />

os setores empresariais que é imprescindível<br />

distribuir a ren<strong>da</strong> hoje extremamente con-<br />

centra<strong>da</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> digni<strong>da</strong>de às pessoas e per-<br />

mitin<strong>do</strong> a existência de consumi<strong>do</strong>res, sob<br />

pena <strong>do</strong> colapso <strong>do</strong> próprio sistema.<br />

Grijalbo F. Coutinho<br />

Presidente <strong>da</strong> Anamatra.<br />

49


Independencia<br />

El tema de la independencia del Poder<br />

Judicial debe ser enfoca<strong>do</strong> desde una<br />

<strong>do</strong>ble perspectiva: como independencia<br />

institucional y como independencia<br />

funcional.<br />

Independencia institucional<br />

Cuan<strong>do</strong> hablamos de independencia<br />

institucional hacemos referencia al Poder<br />

Judicial como órgano-institución, como un<br />

poder en relación con los otros poderes que<br />

ejercen las diversas funciones del poder<br />

político en el Esta<strong>do</strong>.<br />

La vinculación del Poder Judicial<br />

con el Poder Ejecutivo, con el Poder<br />

Legislativo, con otros órganos de gobierno,<br />

es lo que vemos al hablar de independencia<br />

institucional del Poder Judicial.<br />

Al respecto, M. Riera Hunter afirma<br />

cuanto sigue:<br />

Luis Lezcano Claude<br />

* Conferencia pronuncia<strong>da</strong> en Chihuahua, México, el 4 de abril de 2003, en ocasión de la III Asamblea General de la Federación Latinoamericana de<br />

Magistra<strong>do</strong>s (FLAM).<br />

del Judicial<br />

Independencia del Poder Judicial*<br />

El fun<strong>da</strong>mento de la independencia<br />

institucional del Poder Judicial radica<br />

indefectiblemente en el principio de<br />

división o separación de Poderes. En<br />

reali<strong>da</strong>d, no existe una división de poderes<br />

puesto que el poder del Esta<strong>do</strong> es uno; lo<br />

que existe es una división, separación o<br />

reparto de funciones que son ejercita<strong>da</strong>s<br />

por órganos diferencia<strong>do</strong>s (Legislativo,<br />

Ejecutivo, Judicial), los cuales deben ser<br />

organiza<strong>do</strong>s de una manera tal que se<br />

encuentren en un esta<strong>do</strong> de ver<strong>da</strong>dero<br />

equilibrio institucional, sin que ninguno<br />

pre<strong>do</strong>mine sobre el otro. El resulta<strong>do</strong><br />

de este equilibrio es la independencia<br />

de los Poderes y, específicamente, la<br />

independencia del Poder Judicial. 1<br />

Se puede apreciar que históricamente<br />

existió una dependencia del Poder<br />

Judicial respecto del órgano ejecutivo. En<br />

consecuencia, la lucha inicial tuvo por<br />

1 Marcos Riera Hunter, La independencia del Poder Judicial. Derecho paraguayo y compara<strong>do</strong>, Asunción, La Ley Paraguaya S.A., 1991, p. 18.<br />

51


52<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

objetivo cortar los lazos que implicaban<br />

una sujeción indebi<strong>da</strong> respecto del Poder<br />

Ejecutivo.<br />

En América Latina, en términos<br />

generales se puede afirmar que durante<br />

la mayor parte del siglo XX se dio una<br />

situación de dependencia del Poder<br />

Judicial.<br />

Las notas peculiares del sistema<br />

político vigente, llevaron a autores como<br />

Jacques Lambert a hablar de “régimen de<br />

preponderancia presidencialista”. Por su<br />

parte, Maurice Duverger sostuvo que en<br />

América Latina existía una “hipertrofia de<br />

los poderes del presidente”. 2<br />

El sistema presidencial, cuya base<br />

inicial era el modelo norteamericano, fue<br />

reforza<strong>do</strong> de manera tal que dio lugar<br />

a un Poder Ejecutivo extrema<strong>da</strong>mente<br />

fuerte. La fuerza extr<strong>ao</strong>rdinaria de que<br />

estaba investi<strong>do</strong> el Ejecutivo se <strong>da</strong>ba<br />

en detrimento del Poder Legislativo,<br />

pero más aún en menoscabo del órgano<br />

jurisdiccional.<br />

La lucha por la independencia del<br />

Poder Judicial empieza en muchos<br />

países de Latinoamérica sólo en la<br />

segun<strong>da</strong> mitad del siglo XX. El “régimen<br />

de preponderancia presidencialista”<br />

se extiende en algunos casos incluso<br />

hasta la déca<strong>da</strong> de los ochentas. Luego<br />

comienzan a delinearse regímenes de<br />

un presidencialismo modera<strong>do</strong>, con una<br />

creciente independencia del Poder Judicial.<br />

La independencia institucional supone,<br />

por una parte, la independencia política,<br />

es decir, la autonomía del Poder Judicial;<br />

y por la otra, la independencia económica,<br />

esto es, la autarquía del Poder Judicial.<br />

Evidentemente aquella sería una ilusión,<br />

sería meramente retórica, si no existiera<br />

la segun<strong>da</strong>. Ambas constituyen aspectos<br />

imprescindibles de la independencia<br />

institucional.<br />

Independencia funcional<br />

Por otra parte tenemos la independencia<br />

funcional. Nos referimos aquí al órgano-<br />

persona, al magistra<strong>do</strong>. Aludimos a la<br />

situación del magistra<strong>do</strong> en particular,<br />

en cuanto a que no pue<strong>da</strong> ser objeto de<br />

presiones en mo<strong>do</strong> alguno en el ejercicio<br />

de sus funciones jurisdiccionales, ya sea<br />

por fuerzas provenientes de fuera del Poder<br />

Judicial, se trate del Poder Ejecutivo, del<br />

Poder Legislativo, de otros órganos de<br />

gobierno, de grupos de presión; ya sea<br />

que las presiones que se ejerzan sobre el<br />

magistra<strong>do</strong> provengan del interior del<br />

mismo órgano judicial, en particular, de<br />

una Corte Suprema o Tribunal Supremo de<br />

Justicia.<br />

Mecanismos constitucionales<br />

para la independencia del Poder<br />

Judicial<br />

La simple consagración del principio de<br />

independencia del Poder Judicial, no es<br />

suficiente. Para que ella sea real y efectiva<br />

es necesario que la Constitución establezca,<br />

como de hecho lo hace, los mecanismos<br />

apropia<strong>do</strong>s para tal efecto.<br />

2 J. Lambert, América Latina, Barcelona-España, Ediciones Ariel, 1978, p. 55; y M. Duverger, Instituciones políticas y Derecho Constitucional,<br />

Barcelona-España, Ediciones Ariel, 1970, p. 213.<br />

La simple<br />

consagración<br />

del principio de<br />

independencia<br />

del Poder<br />

Judicial, no es<br />

suficiente.


Sien<strong>do</strong> la independencia del Poder<br />

Judicial de carácter institucional (política<br />

y económica) y funcional, se han previsto<br />

los medios idóneos para preservarla según<br />

se trate de la independencia del órgano<br />

judicial frente a otros órganos de gobierno,<br />

o de la independencia del magistra<strong>do</strong> en el<br />

ejercicio de su función jurisdiccional. A ello<br />

nos referiremos a continuación.<br />

Mecanismos para la<br />

Independencia política del<br />

Poder Judicial<br />

El principio de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional<br />

En primer lugar tenemos el principio<br />

de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional. El Poder Judicial<br />

tiene la pretensión de monopolizar la<br />

función jurisdiccional. Esto significa que,<br />

en principio, dicha función sólo puede ser<br />

ejerci<strong>da</strong> por órganos judiciales. Visto desde<br />

otra perspectiva, supone no admitir que<br />

ningún órgano extraño al Poder Judicial<br />

pue<strong>da</strong> tener atribuciones para resolver<br />

cuestiones litigiosas.<br />

Pero lo importante es ver los casos que<br />

constituyen excepciones a este principio<br />

y hasta qué punto estas excepciones<br />

significan un desmedro para el Poder<br />

Judicial.<br />

a) Entre las excepciones, podemos<br />

mencionar la jurisdicción administrativa.<br />

Sabemos que existen instancias de<br />

resolución de conflictos en sede<br />

administrativa, es decir, a cargo de órganos<br />

dependientes del Poder Ejecutivo, que<br />

pueden <strong>da</strong>r solución a litigios que se<br />

3 Marcos Riera Hunter, op. cit., p. 24.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

presenten entre particulares y el Esta<strong>do</strong>.<br />

El funcionamiento de estos órganos puede<br />

servir para descargar a los tribunales<br />

evitan<strong>do</strong> que un número importante de<br />

casos litigiosos, al alcanzar solución en<br />

sede administrativa, llegue a instancias<br />

judiciales.<br />

La <strong>do</strong>ctrina admite esta excepción<br />

al principio de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional,<br />

siempre que esté asegura<strong>da</strong> la posibili<strong>da</strong>d<br />

de ocurrir con posteriori<strong>da</strong>d ante órganos<br />

de carácter jurisdiccional, por ejemplo, un<br />

tribunal contencioso- administrativo que se<br />

encuentre dentro del Poder Judicial.<br />

b) Los tribunales constitucionales<br />

constituyen otra excepción, al ser ellos los<br />

órganos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de la facultad de ejercer<br />

el control de constitucionali<strong>da</strong>d y no el<br />

máximo órgano del Poder Judicial.<br />

Sobre el tema se ha afirma<strong>do</strong> lo<br />

siguiente:<br />

Los Tribunales Constitucionales<br />

son el producto de la <strong>do</strong>ctrina que<br />

desestima el control jurisdiccional de la<br />

constitucionali<strong>da</strong>d por entender que tal<br />

función es esencialmente política y, por<br />

ende, rebasa la competencia propia del<br />

Poder Judicial considera<strong>do</strong> de naturaleza<br />

eminentemente jurídica. 3<br />

En relación con este tema se puede<br />

hablar de <strong>do</strong>s tradiciones. Por una parte<br />

está la tradición europea basa<strong>da</strong> en los<br />

tribunales constitucionales, crea<strong>do</strong>s a partir<br />

de las ideas de Kelsen, y en que el control<br />

de constitucionali<strong>da</strong>d que<strong>da</strong> a cargo de un<br />

órgano ubica<strong>do</strong> fuera del Poder Judicial,<br />

53


54<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

como órgano extrapoderes.<br />

Por otra parte existe una tradición<br />

americana, en el senti<strong>do</strong> de esta<strong>do</strong>unidense<br />

y también de to<strong>do</strong>s los países de América,<br />

en que el control de constitucionali<strong>da</strong>d está<br />

a cargo del Poder Judicial y, en particular,<br />

de su máximo órgano. Así tenemos el<br />

caso de los Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, México, la<br />

Argentina, el Uruguay, etc.<br />

Mención aparte merecen algunos casos<br />

en que el control de constitucionali<strong>da</strong>d no<br />

sólo está a cargo del máximo órgano del<br />

Poder Judicial, sino que el pronunciamiento<br />

del mismo produce efectos generales, es<br />

decir, erga omnes. Dichos casos son los<br />

siguientes:<br />

El Salva<strong>do</strong>r. Dentro del sistema<br />

constitucional salva<strong>do</strong>reño, la Sala de lo<br />

Constitucional de la Corte Suprema de<br />

Justicia tiene facultad para declarar la<br />

inconstitucionali<strong>da</strong>d de actos normativos,<br />

con efectos erga omnes. Los preceptos<br />

constitucionales pertinentes son los<br />

siguientes:<br />

Art. 174: La Corte Suprema de Justicia<br />

tendrá una Sala de lo Constitucional, a la<br />

cual corresponderá conocer y resolver las<br />

deman<strong>da</strong>s de inconstitucionali<strong>da</strong>d de las<br />

leyes, decretos y reglamentos ...<br />

La Sala de lo Constitucional estará<br />

integra<strong>da</strong> por cinco Magistra<strong>do</strong>s designa<strong>do</strong>s<br />

por la Asamblea Legislativa ...<br />

Art. 183: La Corte Suprema de Justicia por<br />

medio de la Sala de lo Constitucional será el<br />

único tribunal competente para declarar la<br />

inconstitucionali<strong>da</strong>d de las leyes, decretos y<br />

reglamentos, en su forma y conteni<strong>do</strong>, de un<br />

4 Debe verse igualmente el Art. 336, incisos 1, 2, 3 y 4, de la Constitución venezolana.<br />

mo<strong>do</strong> general y obligatorio, y podrá hacerlo a<br />

petición de cualquier ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>no.<br />

En Panamá, la declaración de<br />

inconstitucionali<strong>da</strong>d de actos normativos,<br />

con efectos erga omnes, corresponde a la<br />

Corte Suprema de Justicia en pleno (Cf.<br />

Art. 203 de la Constitución panameña).<br />

En Venezuela, de acuer<strong>do</strong> con<br />

la Constitución de 1999, la Sala<br />

Constitucional del Tribunal Supremo de<br />

Justicia tiene la atribución de declarar<br />

la nuli<strong>da</strong>d de leyes y otros instrumentos<br />

normativos. Esto equivale a una declaración<br />

de inconstitucionali<strong>da</strong>d con efectos<br />

generales.<br />

El Art. 334 dispone lo siguiente: ...<br />

Corresponde exclusivamente a la Sala Cons-<br />

titucional del Tribunal Supremo de Justicia<br />

como jurisdicción constitucional, declarar<br />

la nuli<strong>da</strong>d de las leyes y demás actos de los<br />

órganos que ejercen el Poder Público dicta<strong>do</strong>s<br />

en ejecución directa e inmediata de la Cons-<br />

titución o que tengan rango de ley. 4<br />

En el Paraguay, la Sala Constitucional<br />

de la Corte Suprema de Justicia ejerce ese<br />

control, con efectos inter partes, y se está<br />

abrien<strong>do</strong> paso la jurisprudencia de que la<br />

Corte en pleno puede ejercer la facultad de<br />

declarar la inconstitucionali<strong>da</strong>d de leyes<br />

con efectos erga omnes.<br />

Como se ve, existe una tradición<br />

americana de conferir al máximo órgano<br />

judicial el control de constitucionali<strong>da</strong>d.<br />

Sin embargo, en América Latina se ha<br />

a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> también la figura del Tribunal<br />

Existe una<br />

tradición<br />

americana<br />

de conferir<br />

al máximo<br />

órgano judicial<br />

el control de<br />

costitucionali<strong>da</strong>d.


Constitucional. Así tenemos la Corte<br />

de Constitucionali<strong>da</strong>d de Guatemala, la<br />

Corte Constitucional de Colombia y los<br />

Tribunales Constitucionales de Ecua<strong>do</strong>r,<br />

Perú, Bolivia y Chile.<br />

A continuación transcribimos las<br />

principales disposiciones constitucionales<br />

que regulan el órgano en los países<br />

menciona<strong>do</strong>s.<br />

Guatemala<br />

Art. 268: La Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d<br />

es un tribunal permanente de jurisdicción<br />

privativa, cuya función esencial es la defensa<br />

del orden constitucional; actúa como tribunal<br />

colegia<strong>do</strong> con independencia de los demás<br />

organismos del Esta<strong>do</strong> y ejerce funciones<br />

específicas que le asigna la Constitución y la<br />

ley de la materia ...<br />

Art. 269: La Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d<br />

se integra con cinco magistra<strong>do</strong>s titulares,<br />

ca<strong>da</strong> uno de los cuales tendrá su respectivo<br />

suplente. Cuan<strong>do</strong> conozca de asuntos de<br />

inconstitucionali<strong>da</strong>d en contra de la Corte<br />

Suprema de Justicia, el Congreso de la<br />

República, el Presidente o el Vicepresidente<br />

de la República, el número de sus integrantes<br />

se elevará a siete, escogién<strong>do</strong>se los otros <strong>do</strong>s<br />

magistra<strong>do</strong>s por sorteo de entre los suplentes.<br />

Los magistra<strong>do</strong>s durarán en sus funciones<br />

cinco años y serán designa<strong>do</strong>s en la siguiente<br />

forma:<br />

Un magistra<strong>do</strong> por el pleno de la Corte<br />

Suprema de Justicia;<br />

Un magistra<strong>do</strong> por el pleno del Congreso de<br />

la República;<br />

Un magistra<strong>do</strong> por el Presidente de la<br />

República en Consejo de Ministros;<br />

Un magistra<strong>do</strong> por el Consejo Superior<br />

Universitario de la Universi<strong>da</strong>d de San<br />

Carlos de Guatemala; y<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Un magistra<strong>do</strong> por la Asamblea del Colegio<br />

de Aboga<strong>do</strong>s.<br />

Simultáneamente con la designación del<br />

titular, se hará la del respectivo suplente,<br />

ante el Congreso de la República ...<br />

Art. 272: La Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d<br />

tiene las siguientes funciones:<br />

Conocer en única instancia de las<br />

impugnaciones interpuestas contra leyes<br />

o disposiciones de carácter general,<br />

objeta<strong>da</strong>s parcial o totalmente de<br />

inconstitucionali<strong>da</strong>d...<br />

Colombia<br />

Art. 233: Los Magistra<strong>do</strong>s de la Corte<br />

Constitucional ... serán elegi<strong>do</strong>s para<br />

un perio<strong>do</strong> de ocho años, no podrán ser<br />

reelegi<strong>do</strong>s y permanecerán en el ejercicio de<br />

sus cargos mientras observen buena conducta,<br />

tengan rendimiento satisfactorio y no hayan<br />

llega<strong>do</strong> a e<strong>da</strong>d de retiro forzoso.<br />

Art. 239: La Corte Constitucional tendrá el<br />

número impar de miembros que determine la<br />

ley. En su integración se atenderá el criterio<br />

de designación de magistra<strong>do</strong>s pertenecientes<br />

a diversas especiali<strong>da</strong>des del derecho.<br />

Los magistra<strong>do</strong>s de la Corte Constitucional<br />

serán elegi<strong>do</strong>s por el Sena<strong>do</strong> de la República<br />

para perío<strong>do</strong>s individuales de ocho años, de<br />

sen<strong>da</strong>s ternas que le presenten el Presidente de<br />

la República, la Corte Suprema de Justicia y el<br />

Consejo de Esta<strong>do</strong>.<br />

Los magistra<strong>do</strong>s de la Corte Constitucional<br />

no podrán ser reelegi<strong>do</strong>s.<br />

Ecua<strong>do</strong>r<br />

Art. 275: El Tribunal Constitucional,<br />

con jurisdicción nacional, tendrá su sede<br />

en Quito. Lo integrarán nueve vocales ...<br />

55


56<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

Desempeñarán sus funciones durante cuatro<br />

años y podrán ser reelegi<strong>do</strong>s ...<br />

Serán designa<strong>do</strong>s por el Congreso<br />

Nacional por mayoría de sus integrantes, de<br />

la siguiente manera:<br />

Dos, de ternas envia<strong>da</strong>s por el Presidente de<br />

la República. Dos, de ternas envia<strong>da</strong>s por la<br />

Corte Suprema de Justicia, de fuera de su<br />

seno. Dos, elegi<strong>do</strong>s por el Congreso Nacional,<br />

que no ostenten la digni<strong>da</strong>d de legisla<strong>do</strong>res.<br />

Uno, de la terna envia<strong>da</strong> por los alcaldes y<br />

los prefectos provinciales. Uno, de la terna<br />

envia<strong>da</strong> por las centrales de trabaja<strong>do</strong>res y<br />

las organizaciones indígenas y campesinas de<br />

carácter nacional, legalmente reconoci<strong>da</strong>s.<br />

Uno, de la terna envia<strong>da</strong> por las Cámaras de<br />

la Producción legalmente reconoci<strong>da</strong>s ...<br />

Perú<br />

Art. 201: “El Tribunal Constitucional es<br />

el órgano de control de la Constitución. Es<br />

autónomo e independiente. Se compone de<br />

siete miembros elegi<strong>do</strong>s por cinco años ... No<br />

hay reelección inmediata. Los miembros del<br />

Tribunal Constitucional son elegi<strong>do</strong>s por el<br />

Congreso de la República ...”<br />

Bolivia<br />

Art. 116. I. El Poder Judicial se ejerce por<br />

la Corte Suprema de Justicia de la Nación,<br />

el Tribunal Constitucional, las Cortes<br />

Superiores de Distrito y demás tribunales y<br />

juzga<strong>do</strong>s que las leyes establecen...<br />

IV. El control de constitucionali<strong>da</strong>d se ejerce<br />

por el Tribunal Constitucional.<br />

Art. 119. I. El Tribunal Constitucional<br />

es independiente y está someti<strong>do</strong> sólo a la<br />

Constitución ...<br />

II. Está integra<strong>do</strong> por cinco magistra<strong>do</strong>s que<br />

conforman una sola sala y son designa<strong>do</strong>s por<br />

el Congreso Nacional por <strong>do</strong>s tercios de votos<br />

de los miembros presentes ...<br />

V. Desempeñan sus funciones por un perio<strong>do</strong><br />

personal de diez años improrrogables y<br />

pueden ser reelectos pasa<strong>do</strong> un tiempo igual<br />

al que hubiesen ejerci<strong>do</strong> su man<strong>da</strong>to.<br />

Lo que nos planteamos en este punto<br />

es si resulta conveniente romper la<br />

tradición americana de conferir el control<br />

de constitucionali<strong>da</strong>d al máximo órgano<br />

del Poder Judicial, para conferírselo a un<br />

órgano extrapoderes, a un órgano que está<br />

fuera del Poder Judicial. Ello implica privar<br />

a la Corte Suprema o al Tribunal Supremo<br />

de una atribución muy importante, de<br />

una atribución que define en forma más<br />

categórica el carácter político de la función<br />

que ejercen los órganos jurisdiccionales.<br />

Particularmente por medio del control de<br />

constitucionali<strong>da</strong>d se ejerce ese tercio del<br />

poder político que corresponde al Poder<br />

Judicial. Constituye ésta, la forma en que<br />

más claramente el Poder Judicial contribuye<br />

al funcionamiento del “sistema de frenos y<br />

contrapesos” de que hablaba Montesquieu.<br />

El recíproco control, en lo que corresponde a<br />

este poder, se ejerce fun<strong>da</strong>mentalmente por<br />

medio del control de constitucionali<strong>da</strong>d.<br />

c) Los tribunales militares constituyen<br />

otra excepción al principio de uni<strong>da</strong>d<br />

jurisdiccional. Las constituciones <strong>da</strong>n<br />

diferentes soluciones al problema de los<br />

tribunales militares.<br />

En algunos casos se ha limita<strong>do</strong><br />

el funcionamiento de los tribunales<br />

militares a épocas de guerra, es decir, se<br />

circunscribe temporalmente la activi<strong>da</strong>d<br />

de los mismos a un perío<strong>do</strong> bien defini<strong>do</strong>,<br />

En algunos<br />

casos se ha<br />

limita<strong>do</strong> el<br />

funcionamiento<br />

de los<br />

tribunales<br />

militares a<br />

épocas de<br />

guerra.


cuya característica esencial debe ser el<br />

esta<strong>do</strong> de beligerancia internacional.<br />

Así, la Constitución de Weimar (1919)<br />

disponía: La jurisdicción militar que<strong>da</strong><br />

suprimi<strong>da</strong>, salvo en época de guerra y a<br />

bor<strong>do</strong> de buques de guerra (Art. 106). La<br />

Constitución austriaca de 1920 establecía:<br />

Que<strong>da</strong> suprimi<strong>da</strong> la jurisdicción militar<br />

fuera de la época de guerra (Art. 84). La<br />

Constitución uruguaya (1966) dice: la<br />

jurisdicción militar que<strong>da</strong> limita<strong>da</strong> ...<br />

al caso de esta<strong>do</strong> de guerra (Art. 253, 1ª<br />

parte).<br />

Otras constituciones agregan la<br />

limitación del ámbito de competencia de<br />

los tribunales militares en cuanto al tipo<br />

de delitos (o hechos punibles) que pueden<br />

ser juzga<strong>do</strong>s por los mismos. En este<br />

senti<strong>do</strong> se ha estableci<strong>do</strong> que la justicia<br />

militar debe circunscribirse a los delitos<br />

(o hechos punibles) de carácter militar,<br />

entendi<strong>do</strong>s como aquellos que sólo pueden<br />

ser cometi<strong>do</strong>s por militares. Como se ve, los<br />

tribunales militares son concebi<strong>do</strong>s como<br />

un fuero real exclusivamente y no como<br />

un fuero personal. Así, la Constitución<br />

uruguaya establece:<br />

La jurisdicción militar que<strong>da</strong> limita<strong>da</strong> a<br />

los delitos militares ... Los delitos comunes<br />

cometi<strong>do</strong>s por militares en tiempo de<br />

paz, cualquiera que sea el lugar <strong>do</strong>nde se<br />

cometan, estarán someti<strong>do</strong>s a la Justicia<br />

ordinaria (Art. 253).<br />

Por su parte, la Constitución<br />

venezolana (1999) prescribe:<br />

... La comisión de delitos comunes,<br />

violaciones de derechos humanos y<br />

crímenes de lesa humani<strong>da</strong>d, serán<br />

juzga<strong>do</strong>s por los tribunales ordinarios. La<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

competencia de los tribunales militares se<br />

limita a delitos de naturaleza militar...<br />

(Art. 261).<br />

Algunas constituciones han avanza<strong>do</strong><br />

incluso más y han integra<strong>do</strong> a tribunales<br />

militares al Poder Judicial como un fuero<br />

más, al igual que el civil, comercial, laboral,<br />

penal o contencioso-administrativo. La<br />

Constitución brasileña (1988) prescribe:<br />

Son órganos del Poder Judicial ... los<br />

Tribunales y Jueces Militares (Art. 92, VI).<br />

Por su parte, la Constitución venezolana<br />

(1999) dice: La jurisdicción penal militar<br />

es parte integrante del Poder Judicial<br />

... (Art. 261). Esta solución conlleva la<br />

supresión de la excepción al principio<br />

de uni<strong>da</strong>d jurisdiccional que constituye<br />

el funcionamiento por separa<strong>do</strong> de los<br />

tribunales militares.<br />

El precepto de la Constitución<br />

paraguaya que se refiere al tema es el<br />

siguiente:<br />

Art. 174 Cn.: Los tribunales militares solo<br />

juzgarán delitos y faltas de carácter militar,<br />

califica<strong>do</strong>s como tales por la ley, y cometi<strong>do</strong>s<br />

por militares en servicio activo. Sus fallos<br />

podrán ser recurri<strong>do</strong>s ante la justicia ordinaria.<br />

Cuan<strong>do</strong> se trate de un acto previsto y pena<strong>do</strong>,<br />

tanto por la ley penal común como por la ley<br />

penal militar, no será considera<strong>do</strong> como delito<br />

militar, salvo que hubiese si<strong>do</strong> cometi<strong>do</strong> por<br />

un militar en servicio activo y en ejercicio de<br />

funciones castrenses. En caso de du<strong>da</strong> de si el<br />

delito es común o militar, se lo considerará<br />

como delito común. Sólo en caso de conflicto<br />

arma<strong>do</strong> internacional, y en la forma dispuesta<br />

por la ley, estos tribunales podrán tener<br />

jurisdicción sobre persona civiles y militares<br />

retira<strong>do</strong>s.<br />

57


58<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

Del texto precedente se desprende que<br />

no existe limitación temporal alguna en<br />

cuanto al funcionamiento de los tribunales<br />

militares. Por otra parte, si bien en el primer<br />

párrafo del artículo se define un fuero de<br />

carácter real, en el siguiente párrafo se<br />

incluyen disposiciones que lo convierten en<br />

ciertos casos en un fuero personal.<br />

La justicia militar está organiza<strong>da</strong> en<br />

forma separa<strong>da</strong> de la justicia ordinaria.<br />

La vinculación de aquella a ésta se <strong>da</strong><br />

exclusivamente por la recurribili<strong>da</strong>d de los<br />

fallos dicta<strong>do</strong>s por los tribunales militares,<br />

ante la justicia ordinaria. Al respecto, se<br />

puede afirmar que se ha a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> una<br />

medi<strong>da</strong> intermedia que importa cierta<br />

sujeción y que puede considerarse orienta<strong>da</strong><br />

en dirección a la incorporación de los<br />

tribunales militares al Poder Judicial, pero<br />

que indu<strong>da</strong>blemente resulta insuficiente.<br />

d) Otra excepción al principio de<br />

uni<strong>da</strong>d jurisdiccional la constituyen el<br />

arbitraje, la mediación, la conciliación<br />

y otras formas de solución alternativa<br />

de conflictos. En varios países ya<br />

tienen consagración constitucional y<br />

evidentemente sirven para evitar que las<br />

causas se multipliquen en los tribunales.<br />

Creemos que, siempre que quede expedita<br />

la vía de acceder a la justicia ordinaria, su<br />

existencia debe ser admiti<strong>da</strong>.<br />

La Constitución paraguaya de<br />

1992, luego de sentar como principio<br />

la exclusivi<strong>da</strong>d del Poder Judicial para<br />

“conocer y decidir en actos de carácter<br />

contencioso”, admite la excepción del<br />

arbitraje.<br />

Al respecto, el Art. 248 Cn. prescribe:<br />

...To<strong>do</strong> ello sin perjuicio de las decisiones<br />

arbitrales en el ámbito del derecho priva<strong>do</strong>,<br />

con las mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des que la ley determine<br />

para asegurar el derecho de defensa y las<br />

soluciones equitativas ...<br />

La Constitución venezolana dice:<br />

... La ley promoverá el arbitraje, la<br />

conciliación, la mediación y cualesquiera<br />

otros medios alternativos para la solución de<br />

conflictos (Art. 258).<br />

Por su parte, la Constitución<br />

ecuatoriana establece: ...Se reconocerán<br />

el arbitraje, la mediación y otros<br />

procedimientos alternativos para la<br />

resolución de conflictos, con sujeción a la<br />

ley... (Art. 191).<br />

e) Se encuentran también el indulto,<br />

la conmutación y la amnistía. Por estos<br />

medios un órgano no judicial (ejecutivo<br />

o legislativo) puede modificar decisiones<br />

firmes a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong>s en sede judicial o<br />

determinar el finiquito de procesos en curso<br />

o la imposibili<strong>da</strong>d de su promoción.<br />

Estas figuras que abren la posibili<strong>da</strong>d<br />

de una revisión discrecional de decisiones<br />

judiciales definitivas por órganos políticos,<br />

constituyen un resabio del absolutismo.<br />

Formaban parte de lo que se conoce como<br />

“gracia del príncipe”. Dentro de un Esta<strong>do</strong><br />

de derecho no pueden tener cabi<strong>da</strong>.<br />

f) Entre las excepciones al principio de<br />

uni<strong>da</strong>d jurisdiccional, en los últimos años,<br />

algunas constituciones han agrega<strong>do</strong> algo<br />

nuevo: la jurisdicción indígena. Insertamos<br />

a continuación los artículos pertinentes de<br />

las constituciones latinoamericanas que la<br />

establecen.<br />

Colombia, Art. 246: Las autori<strong>da</strong>des de los<br />

pueblos indígenas podrán ejercer funciones<br />

jurisdiccionales dentro de su ámbito


Para facilitar la<br />

vinculación del<br />

Poder Judicial<br />

con los otros<br />

poderes en<br />

condiciones de<br />

igual<strong>da</strong>d, se<br />

hace necesario<br />

reconocer a<br />

un solo órgano<br />

como cabeza de<br />

dicho poder.<br />

territorial, de conformi<strong>da</strong>d con sus propias<br />

normas y procedimientos, siempre que no<br />

sean contrarios a la Constitución y leyes de la<br />

República. La ley establecerá las formas de<br />

coordinación de esta jurisdicción especial con<br />

el sistema judicial nacional.<br />

Ecua<strong>do</strong>r, Art. 191, último pfo.: ... Las<br />

autori<strong>da</strong>des de los pueblos indígenas<br />

ejercerán funciones de justicia, aplican<strong>do</strong><br />

normas y procedimientos propios para<br />

la solución de conflictos internos de<br />

conformi<strong>da</strong>d con sus costumbres o derecho<br />

consuetudinario, siempre que no sean<br />

contrarios a la Constitución y las leyes. La<br />

ley hará compatibles aquellas funciones con<br />

las del sistema judicial nacional.<br />

Perú, Art. 149: Las autori<strong>da</strong>des de las<br />

Comuni<strong>da</strong>des Campesinas y Nativas, con<br />

el apoyo de las Ron<strong>da</strong>s Campesinas, pueden<br />

ejercer las funciones jurisdiccionales dentro<br />

de su ámbito territorial de conformi<strong>da</strong>d con<br />

el derecho consuetudinario, siempre que<br />

no violen los derechos fun<strong>da</strong>mentales de<br />

la persona. La ley establece las formas de<br />

coordinación de dicha jurisdicción especial<br />

con los Juzga<strong>do</strong>s de Paz y con las demás<br />

instancias del Poder Judicial.<br />

Venezuela, Art. 260: Las autori<strong>da</strong>des<br />

legítimas de los pueblos indígenas podrán<br />

aplicar en su hábitat instancias de justicia<br />

con base en sus tradiciones ancestrales y<br />

que sólo afecten a sus integrantes, según sus<br />

propias normas y procedimientos, siempre<br />

que no sean contrarios a esta Constitución, a<br />

la ley y al orden público. La ley determinará<br />

la forma de coordinación de esta jurisdicción<br />

especial con el sistema judicial nacional.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Se trata de países en los cuales existe<br />

una población indígena importante, de una<br />

tradición de largos años. El reconocimiento<br />

de una jurisdicción indígena constituye, sin<br />

du<strong>da</strong>, una excepción al principio de uni<strong>da</strong>d<br />

jurisdiccional.<br />

B. Órgano representativo y supremo<br />

del Poder Judicial<br />

Como otro mecanismo de la<br />

independencia del Poder Judicial, se hace<br />

necesario el reconocimiento de un órgano<br />

jurisdiccional supremo. El Poder Judicial es<br />

un órgano complejo en el cual existen varias<br />

instancias: Corte Suprema, tribunales<br />

de apelación, juzga<strong>do</strong>s de primera<br />

instancia. Para facilitar la vinculación del<br />

Poder Judicial con los otros poderes en<br />

condiciones de igual<strong>da</strong>d, se hace necesario<br />

reconocer a un solo órgano como cabeza de<br />

dicho poder.<br />

Esto es particularmente importante a<br />

fin de evitar problemas, como podría ser<br />

el de una bicefalía real o aparente, que<br />

coloque al órgano judicial en una posición<br />

de desventaja en su relacionamiento con el<br />

Poder Ejecutivo o con el Poder Legislativo.<br />

Por otra parte, la vinculación del<br />

órgano judicial supremo debe analizarse en<br />

relación con el Tribunal Constitucional, si<br />

existiere. Por lo general, el mismo es crea<strong>do</strong><br />

como un órgano extrapoderes en cuyo<br />

caso deberá considerarse especialmente<br />

el alcance de su facultad de control de<br />

constitucionali<strong>da</strong>d en cuanto pue<strong>da</strong><br />

interferir con las atribuciones del máximo<br />

órgano judicial. Por ejemplo, en Guatemala<br />

la Corte de Constitucionali<strong>da</strong>d puede<br />

conocer “de asuntos de inconstitucionali<strong>da</strong>d<br />

en contra de la Corte Suprema de Justicia”<br />

59


60<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

(Art. 269). Menos común es que el Tribunal<br />

Constitucional sea crea<strong>do</strong> como integrante<br />

del Poder Judicial. Tal es el caso de Bolivia<br />

(Arts. 116, I y IV, 119, 120 y 121). En estas<br />

condiciones, más bien podría presentarse<br />

el problema de la definición del órgano<br />

supremo del Poder Judicial.<br />

Además, debe analizarse la vinculación<br />

de la Corte Suprema o el Tribunal Supremo<br />

con el Consejo de la Magistratura o de<br />

la Judicatura. En las páginas siguientes<br />

que<strong>da</strong>rán en claro las circunstancias en<br />

que puede <strong>da</strong>rse ese relacionamiento y los<br />

posibles conflictos que pueden derivar del<br />

mismo.<br />

C. La carrera judicial<br />

Otro de los presupuestos de la<br />

independencia institucional del Poder<br />

Judicial está <strong>da</strong><strong>do</strong> por la existencia de una<br />

carrera judicial. Al respecto, sólo haremos<br />

algunas reflexiones acerca de la influencia<br />

que el Consejo de la Magistratura o de la<br />

Judicatura puede ejercer en relación con la<br />

carrera judicial.<br />

Fun<strong>da</strong>mentalmente hay que analizar<br />

<strong>do</strong>s puntos: por una parte, la composición<br />

del Consejo, y, por la otra, las funciones<br />

que se le otorgan. De la combinación de<br />

estos <strong>do</strong>s elementos, es decir del mo<strong>do</strong> en<br />

que esté compuesto y de las funciones más<br />

o menos amplias o restringi<strong>da</strong>s que tenga,<br />

dependerá que el poder del Consejo sea<br />

mayor o menor.<br />

En cuanto a su composición, se puede<br />

hablar de una “composición judicialista”,<br />

cuan<strong>do</strong> sus integrantes provienen del<br />

propio órgano judicial, lo cual determina<br />

una vinculación directa con éste y supone<br />

un mayor entendimiento con la Corte<br />

Suprema o el Tribunal Supremo, o, si<br />

se quiere, una mayor posibili<strong>da</strong>d de<br />

influencia sobre el Consejo. Se alude a<br />

una “composición mixta” cuan<strong>do</strong> sus<br />

integrantes provienen no sólo del órgano<br />

judicial. En la composición mixta puede<br />

<strong>da</strong>rse un “pre<strong>do</strong>minio judicialista” si la<br />

mayor parte de sus integrantes provienen<br />

del Poder Judicial, una “minoría judicial”,<br />

cuan<strong>do</strong> son los menos los que provienen<br />

de dicho poder, o un relativo equilibrio<br />

entre diversos sectores. Lo que apuntamos<br />

en cuanto a entendimiento con el Consejo<br />

o a posibili<strong>da</strong>des de influir sobre él,<br />

indu<strong>da</strong>blemente varía según cual sea la<br />

forma de composición mixta de que se<br />

trate. En suma, se puede presumir que<br />

cuanto menor sea el ingrediente judicialista<br />

en la composición del Consejo de la<br />

Magistratura o de la Judicatura, menor<br />

será la posibili<strong>da</strong>d de que las funciones<br />

que le corresponden sean ejerci<strong>da</strong>s en<br />

coordinación o en consulta con el órgano<br />

máximo del Poder Judicial.<br />

En cuanto a las funciones del Consejo,<br />

se puede hablar fun<strong>da</strong>mentalmente de <strong>do</strong>s<br />

categorías: las referi<strong>da</strong>s a los magistra<strong>do</strong>s<br />

y las referi<strong>da</strong>s a la administración del<br />

Poder Judicial. Entre las primeras se señala<br />

que el Consejo actúa como órgano de<br />

selección de magistra<strong>do</strong>s, a veces también<br />

de nombramiento de magistra<strong>do</strong>s, y como<br />

órgano disciplinario del Poder Judicial.<br />

En lo referente al segun<strong>do</strong> aspecto,<br />

el Consejo tiene a su cargo la elaboración<br />

del presupuesto del Poder Judicial y la<br />

posterior ejecución del mismo. En algunos<br />

casos se encarga también de algunas<br />

cuestiones relaciona<strong>da</strong>s con la organización<br />

del ejercicio de la función jurisdiccional.<br />

Lo que<br />

apuntamos<br />

en cuanto a<br />

entendimiento<br />

con el Consejo o<br />

a posibili<strong>da</strong>des<br />

de influir<br />

sobre él,<br />

indu<strong>da</strong>blemente<br />

varía según cual<br />

sea la forma de<br />

composición<br />

mixta de que se<br />

trate.


En la Argentina, el Consejo de la<br />

Magistratura tiene una composición en<br />

que hay una amplia participación de los<br />

otros poderes y de sectores de la población<br />

distintos del Poder Judicial. Además,<br />

sus atribuciones son muy importantes.<br />

Se trata de un Consejo fuerte debi<strong>do</strong> a<br />

su composición, en la que casi no hay<br />

intervención del órgano judicial, y a sus<br />

atribuciones, que permiten que este órgano<br />

ejerza importante influencia en múltiples<br />

aspectos del funcionamiento del Poder<br />

Judicial. Transcribimos a continuación la<br />

disposición constitucional pertinente.<br />

Art. 114: El Consejo de la Magistratura<br />

... tendrá a su cargo la selección de los<br />

magistra<strong>do</strong>s y la administración del Poder<br />

Judicial.<br />

El Consejo será integra<strong>do</strong> periódicamente<br />

de mo<strong>do</strong> que se procure el equilibrio entre<br />

la representación de los órganos políticos<br />

resultantes de la elección popular, de los<br />

jueces de to<strong>da</strong>s las instancias y de los<br />

aboga<strong>do</strong>s de la matrícula federal. Será<br />

integra<strong>do</strong>, asimismo, por otras personas del<br />

ámbito académico y científico, en el número y<br />

la forma que indique la ley.<br />

Serán sus atribuciones:<br />

1.Seleccionar mediante concursos públicos los<br />

postulantes a las magistraturas inferiores.<br />

2.Emitir propuestas en ternas vinculantes,<br />

para el nombramiento de los magistra<strong>do</strong>s de<br />

los tribunales inferiores.<br />

3. Administrar los recursos y ejecutar<br />

el presupuesto que la ley asigne a la<br />

administración de justicia.<br />

4.Ejercer facultades disciplinarias sobre<br />

magistra<strong>do</strong>s.<br />

5.Decidir la apertura del procedimiento de<br />

remoción de magistra<strong>do</strong>s, en su caso ordenar<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

la suspensión, y formular la acusación<br />

correspondiente.<br />

6.Dictar los reglamentos relaciona<strong>do</strong>s con<br />

la organización judicial y to<strong>do</strong>s aquellos<br />

que sean necesarios para asegurar la<br />

independencia de los jueces y la eficaz<br />

prestación de los servicios de justicia.<br />

En Colombia se puede apreciar una<br />

escasa intervención de origen judicial en<br />

la composición del Consejo Superior de<br />

la Judicatura. En cambio, las atribuciones<br />

del mismo, tanto las que se refieren a<br />

magistra<strong>do</strong>s judiciales, como las vincula<strong>da</strong>s<br />

con la administración del órgano judicial,<br />

son de gran trascendencia. Las principales<br />

disposiciones constitucionales que versan<br />

sobre el tema son las siguientes:<br />

Art. 231: Los Magistra<strong>do</strong>s de la Corte<br />

Suprema de Justicia y del Consejo de<br />

Esta<strong>do</strong> serán nombra<strong>do</strong>s por la respectiva<br />

corporación, de listas envia<strong>da</strong>s por el Consejo<br />

Superior de la Judicatura.<br />

Art. 254: El Consejo Superior de la<br />

Judicatura se divide en <strong>do</strong>s salas:<br />

1ª. La sala administrativa, integra<strong>da</strong> por<br />

seis magistra<strong>do</strong>s elegi<strong>do</strong>s para un perío<strong>do</strong> de<br />

ocho años, así: <strong>do</strong>s por la Corte Suprema de<br />

Justicia, uno por la Corte Constitucional y<br />

tres por el Consejo de Esta<strong>do</strong>.<br />

2ª. La sala jurisdiccional disciplinaria,<br />

integra<strong>da</strong> por siete magistra<strong>do</strong>s elegi<strong>do</strong>s para<br />

un perío<strong>do</strong> de ocho años, por el Congreso<br />

Nacional en ternas envia<strong>da</strong>s por el gobierno ...<br />

Art. 256: Corresponden al Consejo Superior<br />

de la Judicatura ... de acuer<strong>do</strong> a la ley, las<br />

siguientes atribuciones:<br />

1ª Administrar la carrera judicial.<br />

2ª Elaborar las listas de candi<strong>da</strong>tos para<br />

la designación de funcionarios judiciales y<br />

61


62<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

enviarlas a la enti<strong>da</strong>d que deba hacerla ...<br />

3ª Examinar la conducta y sancionar las<br />

faltas de los funcionarios de la rama judicial,<br />

así como las de los aboga<strong>do</strong>s en el ejercicio de<br />

su profesión ...<br />

4ª Llevar el control de rendimiento de las<br />

corporaciones y despachos judiciales.<br />

5ª Elaborar el proyecto de presupuesto de<br />

la rama judicial que deberá ser remiti<strong>do</strong> al<br />

gobierno, y ejecutarlo de conformi<strong>da</strong>d con la<br />

aprobación que haga el congreso.<br />

6ª Dirimir los conflictos de competencia que<br />

ocurran entre las distintas jurisdicciones ...<br />

Art. 257: Con sujeción a la ley, el Consejo<br />

Superior de la Judicatura cumplirá las<br />

siguientes funciones:<br />

1ª Fijar la división del territorio para efectos<br />

judiciales y ubicar y redistribuir los despachos<br />

judiciales.<br />

2ª Crear, suprimir, fusionar y trasla<strong>da</strong>r<br />

cargos en la administración de justicia ...<br />

3ª Dictar los reglamentos necesarios para el<br />

eficaz funcionamiento de la administración<br />

de justicia, los relaciona<strong>do</strong>s con la<br />

organización y funciones internas asigna<strong>da</strong>s<br />

a los distintos cargos y la regulación de los<br />

trámites judiciales y administrativos que se<br />

adelanten en los despachos judiciales, en los<br />

aspectos no previstos por el legisla<strong>do</strong>r.<br />

4ª Proponer proyectos de ley relativos a la<br />

administración de justicia y a los códigos<br />

sustantivos y procedimentales ...<br />

En el Perú existe una escasa<br />

participación de origen judicial en la<br />

composición del Consejo Nacional de la<br />

Magistratura. Sin embargo, las facultades<br />

de este órgano en cuanto a la selección,<br />

el nombramiento, la ratificación y la<br />

destitución de jueces y fiscales, incluso<br />

de la Corte Suprema, son de suma<br />

importancia. Los artículos constitucionales<br />

pertinentes son los siguientes:<br />

Art. 150, 1er. pfo.: El Consejo Nacional de<br />

la Magistratura se encarga de la selección y<br />

el nombramiento de los jueces y fiscales, salvo<br />

cuan<strong>do</strong> éstos provengan de elección popular.<br />

Art. 154: Son funciones del Consejo<br />

Nacional de la Magistratura:<br />

1. Nombrar, previo concurso público de<br />

méritos y evaluación personal, a los jueces y<br />

fiscales de to<strong>do</strong>s los niveles...<br />

2. Ratificar a los jueces y fiscales de to<strong>do</strong>s los<br />

niveles ca<strong>da</strong> siete años. Los no ratifica<strong>do</strong>s<br />

no pueden reingresar al Poder Judicial ni al<br />

Ministerio Público...<br />

3. Aplicar la sanción de destitución a los<br />

Vocales de la Corte Suprema y Fiscales<br />

Supremos y, a solicitud de la Corte Suprema<br />

o de la Junta de Fiscales Supremos,<br />

respectivamente, a los jueces y fiscales de<br />

to<strong>da</strong>s las instancias. La resolución final,<br />

motiva<strong>da</strong> y con previa audiencia del<br />

interesa<strong>do</strong>, es inimpugnable...<br />

Art. 155: Son miembros del Consejo<br />

Nacional de la Magistratura, conforme a la<br />

ley de la materia:<br />

Uno elegi<strong>do</strong> por la Corte Suprema ...<br />

Uno elegi<strong>do</strong> ... por la Junta de Fiscales<br />

Supremos.<br />

Uno elegi<strong>do</strong> por los miembros de los Colegios<br />

de Aboga<strong>do</strong>s del país ...<br />

Dos elegi<strong>do</strong>s ... por los miembros de los demás<br />

Colegios Profesionales del país ...<br />

Uno elegi<strong>do</strong> ... por los rectores de las<br />

universi<strong>da</strong>des nacionales.<br />

Uno elegi<strong>do</strong> ... por los rectores de las<br />

universi<strong>da</strong>des particulares.<br />

El número de miembros del Consejo<br />

Nacional de la Magistratura puede ser


amplia<strong>do</strong> por éste a nueve, con <strong>do</strong>s miembros<br />

adicionales elegi<strong>do</strong>s ... por el mismo<br />

Consejo, entre sen<strong>da</strong>s listas propuestas por<br />

las instituciones representativas del sector<br />

laboral y del empresarial ...<br />

En Bolivia, en cuanto a la composición<br />

del Consejo de la Judicatura, se puede<br />

observar que, si bien éste es presidi<strong>do</strong> por el<br />

presidente de la Corte Suprema de Justicia,<br />

los cuatro Consejeros que lo integran son<br />

designa<strong>do</strong>s por el Congreso Nacional. Sus<br />

atribuciones son de mucha importancia<br />

tanto en cuanto a lo que se refiere a su<br />

participación en la integración del órgano<br />

judicial, como en cuanto a la elaboración<br />

y ejecución del presupuesto del Poder<br />

Judicial.<br />

Las disposiciones constitucionales<br />

referentes al tema son las siguientes:<br />

Art. 116. ... V. El Consejo de la Judicatura<br />

es el órgano administrativo y disciplinario<br />

del Poder Judicial ...<br />

... VIII. El Poder Judicial tiene autonomía<br />

económica y administrativa. El Presupuesto<br />

General de la Nación asignará una parti<strong>da</strong><br />

anual centraliza<strong>da</strong> en el Tesoro Judicial, que<br />

depende del Consejo de la Judicatura ...<br />

Art. 122. I. El Consejo de la Judicatura, es<br />

el órgano administrativo y disciplinario del<br />

Poder Judicial ...<br />

II. El Consejo es presidi<strong>do</strong> por el Presidente<br />

de la Corte Suprema de Justicia y está<br />

integra<strong>do</strong> por cuatro miembros denomina<strong>do</strong>s<br />

Consejeros de la Judicatura, con título de<br />

aboga<strong>do</strong> en provisión nacional y con diez<br />

años de ejercicio idóneo de la profesión o la<br />

cátedra universitaria.<br />

III. Los consejeros son designa<strong>do</strong>s por el<br />

Congreso Nacional por el voto de <strong>do</strong>s tercios<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

de sus miembros presentes. Desempeñan<br />

sus funciones por un perio<strong>do</strong> de diez años<br />

no pudien<strong>do</strong> ser reelegi<strong>do</strong>s sino pasa<strong>do</strong> un<br />

tiempo igual al que hubiesen ejerci<strong>do</strong> su<br />

man<strong>da</strong>to.<br />

Art. 123: I. Son atribuciones del Consejo de<br />

la Judicatura:<br />

1ª Proponer al Congreso nóminas para la<br />

designación de los Ministros de la Corte<br />

Suprema de Justicia; y a esta última para<br />

la designación de los Vocales de las Cortes<br />

Superiores de Distrito;<br />

2ª Proponer nóminas a las Cortes Superiores<br />

de Distrito para la designación de jueces ...<br />

3ª Administrar el Escalafón Judicial,<br />

y ejercer el poder disciplinario sobre los<br />

vocales, jueces y funcionarios judiciales, de<br />

acuer<strong>do</strong> a la ley;<br />

4ª Elaborar el Presupuesto Anual del Poder<br />

Judicial ... Ejecutar su presupuesto conforme<br />

a ley y bajo el control fiscal ...<br />

En México, el Consejo de la Judicatura<br />

Federal está compuesto por una mayoría<br />

de origen judicial (el presidente de la<br />

Suprema Corte de Justicia y tres consejeros<br />

designa<strong>do</strong>s por el pleno de la Corte,<br />

es decir, cuatro sobre un total de siete<br />

miembros). Esta mayoría de 4 a 3 <strong>da</strong> la<br />

posibili<strong>da</strong>d de que el control de ese órgano<br />

quede en manos de la Suprema Corte.<br />

El Art. 100 dispone cuanto sigue:<br />

El Consejo de la Judicatura Federal será un<br />

órgano del Poder Judicial de la federación<br />

con independencia técnica, de gestión y para<br />

emitir sus resoluciones.<br />

El Consejo se integrará por siete miembros<br />

de los cuales, uno será el presidente de la<br />

Suprema Corte de Justicia, quien también lo<br />

será del Consejo; tres consejeros designa<strong>do</strong>s<br />

63


64<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

por el pleno de la corte, por mayoría de<br />

cuan<strong>do</strong> menos ocho votos, de entre los<br />

magistra<strong>do</strong>s de circuito y jueces de distrito;<br />

<strong>do</strong>s consejeros designa<strong>do</strong>s por el sena<strong>do</strong>, y uno<br />

por el presidente de la república...<br />

... La Suprema Corte de Justicia elaborará<br />

su propio presupuesto y el Consejo lo<br />

hará para el resto del poder judicial de la<br />

federación ...<br />

En El Salva<strong>do</strong>r el Consejo Nacional de<br />

la Judicatura tiene atribuciones limita<strong>da</strong>s,<br />

como en el Paraguay, y en su integración<br />

sólo interviene el órgano legislativo.<br />

Al respecto, el Art. 187 establece:<br />

El Consejo Nacional de la Judicatura es<br />

una institución independiente, encarga<strong>da</strong><br />

de proponer candi<strong>da</strong>tos para los cargos<br />

de Magistra<strong>do</strong>s de la Corte Suprema de<br />

Justicia, Magistra<strong>do</strong>s de las Cámaras de<br />

Segun<strong>da</strong> Instancia, Jueces de Primera<br />

Instancia y Jueces de Paz.<br />

Será responsabili<strong>da</strong>d del Consejo Nacional<br />

de la Judicatura, la organización<br />

y funcionamiento de la Escuela de<br />

Capacitación Judicial, cuyo objeto es el de<br />

asegurar el mejoramiento en la formación<br />

profesional de los jueces y demás funcionarios<br />

judiciales.<br />

Los miembros del Consejo Nacional de la<br />

Judicatura serán elegi<strong>do</strong>s y destitui<strong>do</strong>s por la<br />

Asamblea Legislativa con el voto califica<strong>do</strong><br />

de las <strong>do</strong>s terceras partes de los Diputa<strong>do</strong>s<br />

electos ...<br />

En el Ecua<strong>do</strong>r, el tema está legisla<strong>do</strong> en<br />

el Art. 206, 1er. pfo., que dice así:<br />

5 Cf. Arts. 251, 262, 264, 269, 270 y 275 de la Constitución paraguaya de 1992.<br />

El Consejo Nacional de la Judicatura será<br />

el órgano de gobierno, administrativo y<br />

disciplinario de la Función Judicial. La<br />

ley determinará su integración, la forma de<br />

designación de sus miembros, su estructura y<br />

funciones.<br />

En el Paraguay tenemos un Consejo<br />

de la Magistratura débil, si se tienen en<br />

cuenta sus atribuciones en comparación<br />

con las que se confieren a este órgano<br />

en otros regímenes constitucionales<br />

como los que acabamos de mencionar.<br />

Solamente es un órgano de selección de<br />

magistra<strong>do</strong>s, su función se limita a la<br />

elaboración de ternas para elevarlas al<br />

órgano encarga<strong>do</strong> de la designación. En<br />

su composición hay una minoría extrema<br />

de origen judicial: solo un ministro de<br />

la Corte Suprema de Justicia, sobre ocho<br />

integrantes. 5<br />

En definitiva, el problema que se<br />

plantea es el de la conveniencia o no de<br />

otorgar al Consejo de la Magistratura<br />

o de la Judicatura, atribuciones<br />

importantes como las de nombrar a los<br />

magistra<strong>do</strong>s, decidir su promoción a<br />

instancias superiores, decidir la apertura<br />

del procedimiento de remoción de<br />

magistra<strong>do</strong>s, ordenar su suspensión y<br />

formular la acusación correspondiente,<br />

actuar como órgano disciplinario del<br />

Poder Judicial, ejercer la administración<br />

del mismo, en particular, en cuanto a<br />

la elaboración de su presupuesto y a su<br />

ejecución, etc.<br />

¿Es conveniente crear un Consejo que


Transferir estas<br />

facultades al<br />

Consejo de la<br />

Magistratura<br />

o de la<br />

Judicatura,<br />

significa<br />

restarle<br />

atribuciones al<br />

órgano máximo<br />

del Poder<br />

Judicial.<br />

tenga tales atribuciones y, en especial,<br />

cuan<strong>do</strong> su funcionamiento sea autónomo<br />

en relación con la Corte Suprema de<br />

Justicia?<br />

También en cuanto a este tema<br />

debemos hacer referencia a <strong>do</strong>s<br />

perspectivas diferentes. Por una parte,<br />

tenemos la perspectiva europea, en<br />

la cual el Poder Judicial aparecía,<br />

en algunos aspectos, en relación de<br />

dependencia respecto del órgano<br />

ejecutivo, por medio del Ministerio<br />

de Justicia. Éste intervenía en cuanto<br />

a la provisión de fon<strong>do</strong>s, en cuanto<br />

a la proposición de candi<strong>da</strong>tos<br />

para la magistratura, etc. En estas<br />

circunstancias, trasla<strong>da</strong>r dichas<br />

funciones de manos del órgano ejecutivo<br />

a un Consejo de la Magistratura o de la<br />

Judicatura, concebi<strong>do</strong> como un órgano<br />

extrapoderes, constituía un avance.<br />

Pero desde la perspectiva americana,<br />

la cuestión se torna diferente. En efecto,<br />

atribuciones tales como la de intervenir<br />

en el nombramiento de magistra<strong>do</strong>s de<br />

las instancias inferiores, la de llevar a<br />

cabo el enjuiciamiento de los mismos,<br />

la de actuar como órgano disciplinario<br />

del Poder Judicial y la de ejercer la<br />

administración de éste, correspondían<br />

a la Corte Suprema de Justicia. En<br />

estas circunstancias, transferir estas<br />

facultades al Consejo de la Magistratura<br />

o de la Judicatura, significa restarle<br />

atribuciones al órgano máximo del<br />

Poder Judicial, con el consiguiente<br />

debilitamiento que ello lleva implícito.<br />

6 Marcos Riera Hunter, op. cit., p. 28.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Desde el punto de vista de la<br />

independencia institucional del Poder<br />

Judicial, esto significa un retroceso tanto<br />

mayor cuanto más importantes sean las<br />

atribuciones conferi<strong>da</strong>s al órgano crea<strong>do</strong><br />

y la autonomía que se le reconoce.<br />

D. La Policía Judicial<br />

Acerca de este tema, M. Riera Hunter 6<br />

expresa cuanto sigue:<br />

.. las funciones policiales tienen una <strong>do</strong>ble<br />

naturaleza: por una parte, se encuentran las<br />

funciones de prevención de los delitos y la<br />

seguri<strong>da</strong>d de las personas y sus bienes, las que<br />

se hallan a cargo de la denomina<strong>da</strong> Policía<br />

Preventiva o de Seguri<strong>da</strong>d, que normalmente<br />

depende del Poder Ejecutivo o Administra<strong>do</strong>r;<br />

por otra parte, se hallan las funciones de<br />

investigación de los delitos, de detención<br />

de los delincuentes, y de aportación de las<br />

pruebas y demás elementos de convicción,<br />

función que debe corresponder a un organismo<br />

especializa<strong>do</strong> denomina<strong>do</strong> Policía Judicial,<br />

dependiente de la Corte Suprema de Justicia,<br />

y al servicio de los jueces en general y de los<br />

jueces en lo penal, en particular ...<br />

La Constitución paraguaya de<br />

1992 ha incorpora<strong>do</strong> la disposición que<br />

transcribimos a continuación.<br />

Art. 272: La ley podrá crear una Policía<br />

Judicial, dependiente del Poder Judicial,<br />

a fin de colaborar directamente con el<br />

Ministerio Público.<br />

Sin embargo, hasta el presente, la<br />

Policía Judicial no ha si<strong>do</strong> crea<strong>da</strong>.<br />

65


66<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

Mecanismos para la<br />

independencia económica del<br />

Poder Judicial<br />

La independencia política no alcanza una<br />

plena efectivi<strong>da</strong>d si no va acompaña<strong>da</strong> de<br />

una independencia económica. En caso<br />

contrario, la independencia se vuelve<br />

meramente retórica, aparece como algo<br />

ilusorio. De manera que es indispensable<br />

que exista independencia económica.<br />

La independencia económica del Poder<br />

Judicial sólo puede ser logra<strong>da</strong> si, a nivel<br />

constitucional, se establece una asignación<br />

presupuestaria mínima para el Poder<br />

Judicial, es decir, se fija un porcentaje de<br />

los recursos previstos en el presupuesto<br />

general que, como mínimo, debe ser<br />

destina<strong>do</strong> a dicho poder; se establece que<br />

el proyecto de presupuesto judicial debe<br />

ser elabora<strong>do</strong> por el órgano supremo del<br />

Poder Judicial; se protege el presupuesto<br />

elabora<strong>do</strong> en cuanto a las modificaciones<br />

que pue<strong>da</strong> introducir el órgano ejecutivo;<br />

se garantiza la disponibili<strong>da</strong>d de fon<strong>do</strong>s o<br />

parti<strong>da</strong>s en el momento oportuno y en la<br />

canti<strong>da</strong>d necesaria, y se determina que la<br />

ejecución del presupuesto judicial debe ser<br />

realiza<strong>da</strong> por la Corte Suprema de Justicia,<br />

con facultad de reprogramación.<br />

Algunas de las ideas que acabamos<br />

de mencionar, han si<strong>do</strong> plasma<strong>da</strong>s como<br />

normas de máximo rango. Así tenemos las<br />

siguientes constituciones:<br />

El Salva<strong>do</strong>r, Art. 172:. ... El Órgano<br />

Judicial dispondrá anualmente de una<br />

asignación no inferior al seis por ciento de<br />

los ingresos corrientes del presupuesto del<br />

Esta<strong>do</strong>.<br />

Art. 182. Son atribuciones de la Corte<br />

Suprema de Justicia:<br />

... 13ª. Elaborar el proyecto de presupuesto<br />

de los suel<strong>do</strong>s y gastos de la administración<br />

de justicia y remitirlo al Órgano Ejecutivo<br />

para su inclusión sin modificaciones en el<br />

proyecto del Presupuesto General del Esta<strong>do</strong>.<br />

Los ajustes presupuestarios que la Asamblea<br />

Legislativa considere necesario hacer a dicho<br />

proyecto, se harán en consulta con la Corte<br />

Suprema de Justicia..<br />

Guatemala, Art. 213: Es atribución de<br />

la Corte Suprema de Justicia formular el<br />

presupuesto del Ramo; para el efecto, se le<br />

asigna una canti<strong>da</strong>d no menor del <strong>do</strong>s por<br />

ciento del Presupuesto de Ingresos Ordinarios<br />

del Esta<strong>do</strong>, que deberá entregarse a la<br />

Tesorería del Organismo Judicial ca<strong>da</strong> mes<br />

en forma proporcional y anticipa<strong>da</strong> por el<br />

órgano correspondiente ...<br />

Paraguay, Art. 249: El Poder Judicial<br />

goza de autonomía presupuestaria. En<br />

el Presupuesto General de la Nación se le<br />

asignará una canti<strong>da</strong>d no inferior al tres por<br />

ciento del presupuesto de la Administración<br />

Central.<br />

El presupuesto del Poder Judicial será<br />

aproba<strong>do</strong> por el Congreso, y la Contraloría<br />

General de la República verificará to<strong>do</strong>s sus<br />

gastos e inversiones.<br />

En páginas precedentes hemos visto que<br />

en varios ordenamientos constitucionales,<br />

la facultad de elaborar el presupuesto del<br />

Poder Judicial y la de ejecutarlo una vez<br />

aproba<strong>do</strong> por el órgano legislativo, están<br />

conferi<strong>da</strong>s al Consejo de la Magistratura o<br />

Judicatura. Tal circunstancia, según cual<br />

sea la conformación del cita<strong>do</strong> consejo y<br />

La<br />

independencia<br />

política no<br />

alcanza<br />

una plena<br />

efectivi<strong>da</strong>d<br />

si no va<br />

acompaña<strong>da</strong><br />

de una<br />

independencia<br />

económica.


La situación de<br />

la magistratura<br />

en América<br />

Latina en<br />

cuanto a la<br />

inamovili<strong>da</strong>d<br />

es bastante<br />

satisfactoria.<br />

su gra<strong>do</strong> de autonomía respecto del órgano<br />

máximo del Poder Judicial, determina una<br />

considerable limitación de las atribuciones<br />

de éste y, consiguientemente, una severa<br />

restricción en cuanto a la independencia<br />

económica del menciona<strong>do</strong> poder. 7<br />

Mecanismos para la<br />

independencia funcional de los<br />

jueces<br />

La independencia funcional se refiere<br />

a la persona del magistra<strong>do</strong>, es decir,<br />

al órgano-persona. Para garantizarla<br />

se han crea<strong>do</strong> mecanismos que buscan<br />

proteger al magistra<strong>do</strong> de las influencias<br />

o presiones que pudieran ejercerse sobre<br />

él. A continuación nos referimos a dichos<br />

mecanismos.<br />

A. La inamovili<strong>da</strong>d permanente<br />

La inamovili<strong>da</strong>d debe <strong>da</strong>rse en cuanto<br />

al cargo, la sede y el gra<strong>do</strong>. El magistra<strong>do</strong><br />

no puede ser separa<strong>do</strong> de la función<br />

jurisdiccional, sino por las causales<br />

previstas y por el procedimiento estableci<strong>do</strong><br />

constitucional o legalmente, para la<br />

remoción de magistra<strong>do</strong>s.<br />

La inamovili<strong>da</strong>d en cuanto a la sede<br />

implica que, sin consentimiento previo,<br />

el magistra<strong>do</strong> no puede ser trasla<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />

una circuscripción judicial a otra, de una<br />

locali<strong>da</strong>d a otra, de una jurisdicción a otra,<br />

de un turno a otro.<br />

La inamovili<strong>da</strong>d en cuanto al gra<strong>do</strong>,<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

significa que no puede <strong>da</strong>rse un ascenso, sin<br />

su consentimiento. 8<br />

En lo que se refiere a la duración<br />

de la inamovili<strong>da</strong>d, podemos hablar de<br />

inamovili<strong>da</strong>d temporal e inamovili<strong>da</strong>d<br />

permanente.<br />

La inamovili<strong>da</strong>d temporal, que sólo<br />

asegura al magistra<strong>do</strong> la permanencia en<br />

el cargo durante un perio<strong>do</strong> de tiempo<br />

determina<strong>do</strong>, indu<strong>da</strong>blemente no es<br />

suficiente para garantizar la independencia<br />

funcional de aquel. Por eso se debe tender<br />

a la inamovili<strong>da</strong>d permanente según<br />

la cual el magistra<strong>do</strong> se mantiene en el<br />

cargo mientras dure su buena conducta e<br />

i<strong>do</strong>nei<strong>da</strong>d.<br />

La inamovili<strong>da</strong>d permanente presenta,<br />

por lo menos, <strong>do</strong>s variantes: que la<br />

inamovili<strong>da</strong>d permanente se dé luego de un<br />

perio<strong>do</strong> de prueba o de un perio<strong>do</strong> inicial<br />

en que sólo hay inamovili<strong>da</strong>d temporal; y<br />

que la inamovili<strong>da</strong>d permanente se dé ab<br />

initio, es decir, desde la misma designación<br />

del magistra<strong>do</strong>.<br />

Si hacemos una observación de la<br />

situación de la magistratura en América<br />

Latina en cuanto a la inamovili<strong>da</strong>d,<br />

podemos afirmar que, en líneas generales,<br />

es bastante satisfactoria.<br />

Debemos analizar, en primer lugar,<br />

la situación de los magistra<strong>do</strong>s de las<br />

instancias inferiores.<br />

a) El caso de Guatemala, <strong>do</strong>nde sólo<br />

existe inamovili<strong>da</strong>d temporal, constituye<br />

una excepción.<br />

7 En el senti<strong>do</strong> indica<strong>do</strong> pueden mencionarse las constituciones de Colombia (Art. 256, inc. 5), Argentina (Art. 114, inc. 3), Bolivia (Art. 123, inc. 4).<br />

En México, la elaboración del proyecto de presupuesto del Poder Judicial, con excepción de la Suprema Corte de Justicia, corresponde al Consejo de la<br />

Judicatura Federal (Art. 100).<br />

8 Al respecto, la Constitución paraguaya establece lo siguiente: Los magistra<strong>do</strong>s son inamovibles en cuanto al cargo, a la sede o al gra<strong>do</strong>, durante el<br />

término para el cual fueron nombra<strong>do</strong>s. No pueden ser trasla<strong>da</strong><strong>do</strong>s ni ascendi<strong>do</strong>s sin su consentimiento previo y expreso ... (Art. 252)<br />

67


68<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

El Art. 208 de la Constitución<br />

guatemalteca establece:<br />

Los magistra<strong>do</strong>s, cualquiera que sea<br />

su categoría, y los jueces de primera<br />

instancia, durarán en sus funciones cinco<br />

años, pudien<strong>do</strong> ser reelectos los primeros<br />

y nombra<strong>do</strong>s nuevamente los segun<strong>do</strong>s.<br />

Durante ese perío<strong>do</strong> no podrán ser removi<strong>do</strong>s<br />

ni suspendi<strong>do</strong>s, sino en los casos y con las<br />

formali<strong>da</strong>des que disponga la ley.<br />

b) Las constituciones del Brasil y el<br />

Uruguay establecen un perio<strong>do</strong> de prueba<br />

o interinato que precede a la inamovili<strong>da</strong>d<br />

permanente y durante el cual la remoción<br />

puede <strong>da</strong>rse en cualquier momento.<br />

Además, en el Brasil la inamovili<strong>da</strong>d<br />

permanente puede cesar por motivos de<br />

interés público.<br />

Veamos las disposiciones<br />

constitucionales que se refieren al tema:<br />

Brasil. Art. 95: Los jueces gozan de las<br />

siguientes garantías:<br />

I. carácter vitalicio, que, en el primer gra<strong>do</strong>,<br />

sólo será adquiri<strong>do</strong> después de <strong>do</strong>s años de<br />

ejercicio, dependien<strong>do</strong> la pérdi<strong>da</strong> del cargo en<br />

ese perío<strong>do</strong> de decisión del tribunal al que el<br />

juez estuviera vincula<strong>do</strong> y, en los demás casos,<br />

de sentencia judicial firme;<br />

II. inamovili<strong>da</strong>d, salvo por motivo de interés<br />

público, en la forma del artículo 93, VIII ... (el<br />

acto de remoción, excedencia y jubilación del<br />

magistra<strong>do</strong> por interés público, dependerá de la<br />

decisión por voto de <strong>do</strong>s tercios, del respectivo<br />

tribunal, asegurán<strong>do</strong>se amplia defensa).<br />

Uruguay. Art. 239: A la Suprema Corte de<br />

Justicia corresponde:<br />

...5º: Nombrar a los Jueces Letra<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s<br />

los gra<strong>do</strong>s y denominaciones, necesitán<strong>do</strong>se,<br />

en ca<strong>da</strong> caso, la mayoría absoluta del total<br />

de componentes de la Suprema Corte.<br />

Estos nombramientos tendrán carácter<br />

de definitivos desde el momento en que<br />

se produzcan, cuan<strong>do</strong> recaigan sobre<br />

ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos que ya pertenecían, con<br />

antigüe<strong>da</strong>d de <strong>do</strong>s años, a la Judicatura, al<br />

Ministerio Público y Fiscal o a la Justicia de<br />

Paz, en destinos que deban ser desempeña<strong>do</strong>s<br />

por aboga<strong>do</strong>s.<br />

Si los mismos funcionarios tuviesen menor<br />

antigüe<strong>da</strong>d en sus respectivos cargos serán<br />

considera<strong>do</strong>s con carácter de Jueces Letra<strong>do</strong>s<br />

interinos, por un perío<strong>do</strong> de <strong>do</strong>s años, a<br />

contar desde la fecha de nombramiento, y<br />

por el mismo tiempo tendrán ese carácter<br />

los ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos que recién ingresen a la<br />

Magistratura.<br />

Durante el perío<strong>do</strong> de interinato, la Suprema<br />

Corte podrá remover en cualquier momento<br />

al Juez Letra<strong>do</strong> interino, por mayoría<br />

absoluta del total de sus miembros. Venci<strong>do</strong><br />

el término del interinato, el nombramiento se<br />

considerará confirma<strong>do</strong> de pleno derecho ...<br />

c) En México, la inamovili<strong>da</strong>d<br />

permanente está precedi<strong>da</strong> de un perio<strong>do</strong><br />

de inamovili<strong>da</strong>d temporal. En el Paraguay<br />

existen <strong>do</strong>s perio<strong>do</strong>s de cinco años de<br />

inamovili<strong>da</strong>d temporal y luego se adquiere<br />

la inamovili<strong>da</strong>d permanente.<br />

El Art. 97 de la Constitución mexicana<br />

prescribe:<br />

Los magistra<strong>do</strong>s de circuito y los jueces de<br />

distrito ... Durarán seis años en el ejercicio de<br />

su encargo, al término de los cuales, si fueran<br />

ratifica<strong>do</strong>s o promovi<strong>do</strong>s a cargos superiores,<br />

solo podrán ser priva<strong>do</strong>s de sus puestos en los<br />

casos y conforme a los procedimientos que<br />

establezca la ley.


El Art. 252 de la Constitución<br />

paraguaya reza así:<br />

Los magistra<strong>do</strong>s ... Son designa<strong>do</strong>s por<br />

perío<strong>do</strong>s de cinco años, a contar de su<br />

nombramiento.<br />

Los magistra<strong>do</strong>s que hubiesen si<strong>do</strong><br />

confirma<strong>do</strong>s por <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s siguientes al<br />

de su elección, adquieren la inamovili<strong>da</strong>d en<br />

el cargo hasta el límite de e<strong>da</strong>d estableci<strong>do</strong><br />

para los miembros de la Corte Suprema de<br />

Justicia.<br />

d) En otros países la inamovili<strong>da</strong>d<br />

permanente se <strong>da</strong> ab initio. Así ocurre en la<br />

Argentina y en Venezuela.<br />

El Art. 110 de la Constitución<br />

argentina dice:<br />

Los jueces de la Corte Suprema y de<br />

los tribunales inferiores de la Nación<br />

conservarán sus empleos mientras dure su<br />

buena conducta ...<br />

El Art. 255 de la Constitución<br />

venezolana dispone:<br />

... Los jueces o juezas sólo podrán ser<br />

removi<strong>do</strong>s o suspendi<strong>do</strong>s de sus cargos<br />

mediante los procedimientos expresamente<br />

previstos en la ley ...<br />

En nuestra opinión, to<strong>do</strong>s estos<br />

sistemas, salvo el de Guatemala, son<br />

aceptables pues, en definitiva, consagran<br />

la inamovili<strong>da</strong>d permanente de los<br />

magistra<strong>do</strong>s.<br />

El problema se presenta en América<br />

Latina en cuanto a la situación de los<br />

integrantes de los órganos máximos<br />

del Poder Judicial. En este aspecto la<br />

legislación varía desde la inamovili<strong>da</strong>d<br />

temporal -con prohibición absoluta de<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

reelección o con posibili<strong>da</strong>d de reelección<br />

restringi<strong>da</strong>, en el senti<strong>do</strong> de que debe pasar<br />

cierto perio<strong>do</strong> de tiempo para que sea<br />

posible la reelección-, hasta la inamovili<strong>da</strong>d<br />

permanente ab initio.<br />

a) Dentro de la primera variante<br />

se inscriben los siguientes países:<br />

Colombia, en que el perio<strong>do</strong> es de ocho<br />

años, sin posibili<strong>da</strong>d de reelección;<br />

Venezuela, con un perio<strong>do</strong> de <strong>do</strong>ce<br />

años, sin posibili<strong>da</strong>d de reelección;<br />

Bolivia, con un perío<strong>do</strong> de diez años y<br />

posibili<strong>da</strong>d de reelección restringi<strong>da</strong>;<br />

Uruguay, en la misma situación, y<br />

Guatemala, con un perio<strong>do</strong> de cinco años<br />

y posibili<strong>da</strong>d de reelección.<br />

A continuación transcribimos los textos<br />

constitucionales pertinentes:<br />

Colombia. Art. 233: Los Magistra<strong>do</strong>s ...<br />

de la Corte Suprema de Justicia ... serán<br />

elegi<strong>do</strong>s para un perio<strong>do</strong> de ocho años, no<br />

podrán ser reelegi<strong>do</strong>s y permanecerán en<br />

el ejercicio de sus cargos mientras observen<br />

buena conducta, tengan rendimiento<br />

satisfactorio y no hayan llega<strong>do</strong> a e<strong>da</strong>d de<br />

retiro forzoso.<br />

Venezuela. Art. 264: Los magistra<strong>do</strong>s<br />

o magistra<strong>da</strong>s del Tribunal Supremo de<br />

Justicia serán elegi<strong>do</strong>s por un único perío<strong>do</strong><br />

de <strong>do</strong>ce años ...<br />

Bolivia. Art. 117. I. La Corte Suprema de<br />

Justicia es el máximo tribunal de justicia<br />

ordinaria, contenciosa y contencioso-<br />

administrativa de la República ....<br />

IV. Los Ministros ... Desempeñan sus<br />

funciones por un perio<strong>do</strong> personal e<br />

improrrogable de diez años, computables<br />

desde el día de su posesión y no pueden ser<br />

69


70<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

reelegi<strong>do</strong>s sino pasa<strong>do</strong> un tiempo igual al que<br />

hubieran ejerci<strong>do</strong> su man<strong>da</strong>to.<br />

Uruguay. Art. 237: Los miembros de la<br />

Suprema Corte de Justicia durarán diez<br />

años en sus cargos sin perjuicio de lo que<br />

dispone el artículo 250 [to<strong>do</strong> miembro del<br />

Poder Judicial cesará en el cargo al cumplir<br />

setenta años de e<strong>da</strong>d]y no podrán ser<br />

reelectos sin que medien cinco años entre su<br />

cese y la reelección.<br />

Guatemala. Art. 215: Los magistra<strong>do</strong>s de la<br />

Corte Suprema de Justicia serán electos por<br />

el congreso de la República para un perío<strong>do</strong><br />

de cinco años ...<br />

b) En el otro extremo, están las<br />

Constituciones que consagran la<br />

inamovili<strong>da</strong>d permanente de los miembros<br />

del máximo órgano judicial ab initio. Tal<br />

es el caso de la Argentina, el Ecua<strong>do</strong>r y el<br />

Paraguay.<br />

Las disposiciones constitucionales<br />

pertinentes son las siguientes:<br />

Argentina, Art. 110: Los jueces de la Corte<br />

Suprema ... de la Nación conservarán sus<br />

empleos mientras dure su buena conducta ...<br />

Ecua<strong>do</strong>r, Art. 202: Los magistra<strong>do</strong>s de la<br />

Corte Suprema de Justicia no estarán sujetos<br />

a perío<strong>do</strong> fijo en relación con la duración de<br />

sus cargos. Cesarán en sus funciones por las<br />

causales determina<strong>da</strong>s en la Constitución y<br />

la ley ...<br />

Paraguay, Art. 261: Los ministros de la Corte<br />

Suprema de Justicia sólo podrán ser removi<strong>do</strong>s<br />

por juicio político. Cesarán en el cargo<br />

cumpli<strong>da</strong> la e<strong>da</strong>d de setenta y cinco años.<br />

c) Entre las <strong>do</strong>s situaciones que<br />

acabamos de describir y que podemos<br />

llamar extremas, el caso de México se<br />

presenta como una solución intermedia de<br />

características muy interesantes.<br />

La disposición constitucional mexicana,<br />

en senti<strong>do</strong> estricto, debería ser inclui<strong>da</strong><br />

en la primera variante, es decir, se trataría<br />

de un caso de inamovili<strong>da</strong>d temporal, con<br />

prohibición absoluta de reelección. Pero<br />

<strong>do</strong>s características: el tiempo relativamente<br />

largo que dura el perío<strong>do</strong> de los ministros<br />

de la Suprema Corte y la previsión<br />

constitucional de que al término del mismo<br />

tienen derecho a un haber de retiro, lo<br />

convierten en un sistema singular.<br />

El Art. 94 de la Constitución de México<br />

reza así:<br />

... Los ministros de la Suprema Corte de<br />

Justicia durarán en su encargo quince<br />

años, sólo podrán ser removi<strong>do</strong>s del mismo<br />

en los términos del Título Cuarto de esta<br />

Constitución y, al vencimiento de su perio<strong>do</strong>,<br />

tendrán derecho a un haber por retiro.<br />

Ninguna persona que haya si<strong>do</strong> Ministro<br />

podrá ser nombra<strong>da</strong> para un nuevo perio<strong>do</strong>,<br />

salvo que hubiera ejerci<strong>do</strong> el cargo con el<br />

carácter de provisional o interino<br />

A nuestro criterio se trata de una<br />

disposición que establece una solución<br />

aceptable en cuanto a la inamovili<strong>da</strong>d de<br />

los integrantes del máximo órgano judicial.<br />

Así lo será particularmente en países que<br />

hayan alcanza<strong>do</strong> cierto gra<strong>do</strong> de estabili<strong>da</strong>d<br />

e institucionali<strong>da</strong>d en el funcionamiento<br />

de sus órganos de gobierno, pues en ellos el<br />

acceso a la más alta magistratura judicial,<br />

como consecuencia de la vigencia efectiva<br />

de la carrera judicial, estará precedi<strong>da</strong> del


Las<br />

inmuni<strong>da</strong>des<br />

judiciales<br />

encuentran su<br />

razón de ser en<br />

la necesi<strong>da</strong>d<br />

de proteger al<br />

magistra<strong>do</strong> de<br />

to<strong>do</strong> tipo de<br />

ataque contra su<br />

persona, contra<br />

sus familiares<br />

o contra sus<br />

bienes.<br />

ejercicio de la función jurisdiccional en<br />

instancias inferiores. Si tenemos en cuenta<br />

esto, el espacio de tiempo previsto no puede<br />

ser considera<strong>do</strong> corto. Incluso tampoco<br />

lo es para quienes pudieran acceder<br />

directamente al cargo.<br />

El haber por retiro, previsto<br />

constitucionalmente, al proporcionarle al<br />

magistra<strong>do</strong> la seguri<strong>da</strong>d necesaria en el<br />

perio<strong>do</strong> posterior al ejercicio del cargo,<br />

crea las condiciones necesarias para una<br />

actuación independiente durante el tiempo<br />

que integre la Suprema Corte de Justicia.<br />

B. La irreductibili<strong>da</strong>d de las<br />

remuneraciones<br />

Los Magistra<strong>do</strong>s Judiciales, sujetos<br />

normalmente a un régimen de<br />

incompatibili<strong>da</strong>des que les impide el ejercicio<br />

de activi<strong>da</strong>des lucrativas al margen de la<br />

función judicial, son acree<strong>do</strong>res de una<br />

remuneración decorosa que les permita<br />

un desenvolvimiento personal y familiar<br />

digno. Tales remuneraciones, además,<br />

deben ser protegi<strong>da</strong>s de disminuciones que<br />

podrían afectar su nivel de vi<strong>da</strong> y, con ello,<br />

menoscabar su independencia funcional. 9<br />

Se hace necesario, pues, consagrar<br />

la garantía de la irreductibili<strong>da</strong>d de<br />

las remuneraciones de los magistra<strong>do</strong>s<br />

judiciales.<br />

Tal garantía tiene rango constitucional en<br />

la Argentina. En efecto, el Art. 110 dispone:<br />

Los jueces de la Corte Suprema y de<br />

los tribunales inferiores de la Nación ...<br />

recibirán por sus servicios una compensación<br />

9 Marcos Riera Hunter, op. cit., p. 30.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

que determinará la ley, y que no podrá ser<br />

disminui<strong>da</strong> en manera alguna, mientras<br />

permaneciesen en sus funciones.<br />

La afirmación de que dicha<br />

compensación “no podrá ser disminui<strong>da</strong> en<br />

manera alguna”, ha permiti<strong>do</strong> interpretar la<br />

disposición en el senti<strong>do</strong> de que ella excluye<br />

también la posibili<strong>da</strong>d de que dichas<br />

remuneraciones sean grava<strong>da</strong>s con tributos.<br />

La Constitución brasileña también<br />

consagra la garantía de la “irreductibili<strong>da</strong>d<br />

de los salarios” (Art. 95, III). Sin<br />

embargo, en forma expresa se establece<br />

que, en cuanto a la remuneración de los<br />

magistra<strong>do</strong>s, se debe observar la disposición<br />

constitucional que prohibe hacer cualquier<br />

distinción entre los contribuyentes por<br />

razón de la función ejerci<strong>da</strong> por ellos<br />

(Art. 150, II), así como la que consagra<br />

la facultad de establecer impuestos sobre<br />

renta y ganancias de cualquier naturaleza<br />

(Art. 153, III).<br />

C. Las inmuni<strong>da</strong>des judiciales<br />

Las inmuni<strong>da</strong>des judiciales encuentran<br />

su razón de ser en la necesi<strong>da</strong>d de proteger<br />

al magistra<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> tipo de ataque contra<br />

su persona, contra sus familiares o contra<br />

sus bienes. La <strong>do</strong>ctrina y la legislación<br />

reconocen las siguientes prerrogativas<br />

o privilegios: inmuni<strong>da</strong>d de opinión,<br />

inmuni<strong>da</strong>d de detención o arresto, e<br />

inmuni<strong>da</strong>d de proceso.<br />

En virtud de la inmuni<strong>da</strong>d de opinión,<br />

los magistra<strong>do</strong>s judiciales no pueden<br />

ser someti<strong>do</strong>s a proceso penal por las<br />

71


72<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

opiniones que vertieren en el ejercicio de<br />

sus funciones. En otras palabras, que<strong>da</strong><br />

ve<strong>da</strong><strong>da</strong> la posibili<strong>da</strong>d de instaurar contra<br />

ellos una querella por injuria, difamación<br />

o calumnia, cuan<strong>do</strong> las opiniones sean<br />

emiti<strong>da</strong>s en las circunstancias señala<strong>da</strong>s.<br />

La cita<strong>da</strong> inmuni<strong>da</strong>d debe ser interpreta<strong>da</strong><br />

en forma amplia y absoluta, y la protección<br />

es definitiva, perpetua, vitalicia y no cesa<br />

por el hecho de que el magistra<strong>do</strong> deje de<br />

serlo. 10<br />

Acerca de la inmuni<strong>da</strong>d de opinión, M.<br />

Riera Hunter opina lo siguiente:<br />

La argumentación, nota esencial e inexcusable<br />

de las sentencias judiciales, impone a<br />

los órganos jurisdiccionales la necesi<strong>da</strong>d<br />

insoslayable de emitir una serie de juicios,<br />

afirmaciones, opiniones, estimaciones,<br />

valoraciones y criterios diversos respecto<br />

de situaciones de hechos y de derecho que<br />

están destina<strong>do</strong>s a servir de fun<strong>da</strong>mento<br />

a las sentencias judiciales ... Tal función<br />

juzga<strong>do</strong>ra obliga, como se dijo, al Magistra<strong>do</strong><br />

a formular una serie de dichos, afirmaciones<br />

y conceptos que pueden eventualmente<br />

afectar a las personas involucra<strong>da</strong>s directa o<br />

indirectamente en la causa, y es por ello por<br />

lo que a fin de prevenir y evitar las reacciones<br />

negativas, como represalias, presiones o<br />

molestias que pudieran perturbar la función<br />

jurisdiccional, las legislaciones constitucionales<br />

modernas consagran expresamente la<br />

inmuni<strong>da</strong>d de opinión del Magistra<strong>do</strong><br />

Judicial de la misma manera y con el mismo<br />

fun<strong>da</strong>mento y alcance con que se la consagra<br />

en beneficio de los legisla<strong>do</strong>res ...<br />

... no es extraño que en una resolución judicial<br />

se afirme que una de las partes (o ambas)<br />

han actua<strong>do</strong> con <strong>do</strong>lo y mala fe; que se han<br />

enriqueci<strong>do</strong> ilícitamente; que han incurri<strong>do</strong><br />

en hechos supuestamente delictuosos, o que<br />

llevan una vi<strong>da</strong> personal desarregla<strong>da</strong>, con<br />

inclinación a la bebi<strong>da</strong>, las drogas, u otros<br />

vicios de morali<strong>da</strong>d, etc. Tales afirmaciones,<br />

aunque se refieran al honor y a la fama<br />

de las personas no pueden constituir delito<br />

de difamación y calumnia por cuanto que<br />

el órgano jurisdiccional está obliga<strong>do</strong> a<br />

formular muchas veces tales opiniones como<br />

fun<strong>da</strong>mento de sus decisiones ...<br />

... el lenguaje utiliza<strong>do</strong> por el Juez en los fallos<br />

es discrecional de ca<strong>da</strong> órgano en particular,<br />

y su conteni<strong>do</strong> depende en último gra<strong>do</strong> de<br />

la discreción, serie<strong>da</strong>d, circunspección y<br />

prudencia que son presupuestos necesarios de<br />

la función judicial ... 11<br />

Ultimamente se ha intenta<strong>do</strong><br />

sostener que la protección que brin<strong>da</strong> la<br />

inmuni<strong>da</strong>d de opinión a los magistra<strong>do</strong>s<br />

judiciales, debe entenderse como referi<strong>da</strong><br />

sólo al ámbito penal, en los términos<br />

que acabamos de señalar. Esto significa<br />

que de las opiniones de los juzga<strong>do</strong>res<br />

en el ejercicio de sus funciones, podría<br />

derivar responsabili<strong>da</strong>d en el ámbito<br />

civil. Entonces, si bien está descarta<strong>da</strong><br />

to<strong>da</strong> acción penal, cabría, sin embargo, la<br />

posibili<strong>da</strong>d de iniciar una deman<strong>da</strong> por<br />

indemnización de <strong>da</strong>ños y perjuicios.<br />

A nuestro criterio, la inmuni<strong>da</strong>d de<br />

opinión debe ser interpreta<strong>da</strong> en el senti<strong>do</strong><br />

10 La inmuni<strong>da</strong>d de opinión de los magistra<strong>do</strong>s judiciales está consagra<strong>da</strong> en la Constitución paraguaya en los siguientes términos: Ningún magistra<strong>do</strong><br />

judicial podrá ser acusa<strong>do</strong> o interroga<strong>do</strong> judicialmente por las opiniones emiti<strong>da</strong>s en el ejercicio de sus funciones (Art. 255, 1a. parte).<br />

11 M. Riera Hunter, op. cit., pp. 231-233.


amplio de que las opiniones emiti<strong>da</strong>s<br />

por los magistra<strong>do</strong>s en sus resoluciones<br />

(providencias, autos interlocutorios<br />

o sentencias definitivas), durante el<br />

transcurso de una audiencia o juicio oral,<br />

etc., no <strong>da</strong>rán lugar a ningún tipo de<br />

responsabili<strong>da</strong>d siempre que se trate del<br />

ejercicio regular de sus funciones.<br />

Es decir, la responsabili<strong>da</strong>d sólo podrá<br />

surgir cuan<strong>do</strong> exista ejercicio irregular.<br />

Como expresa Gui<strong>do</strong> Santiago Tawil:<br />

“su responsabili<strong>da</strong>d ... se limitará ... a los<br />

<strong>da</strong>ños que pudiera haber causa<strong>do</strong> como<br />

consecuencia de su obrar irregular”. 12<br />

El ejercicio irregular de funciones es<br />

requisito indispensable para que pue<strong>da</strong><br />

existir responsabili<strong>da</strong>d. Tal extremo debe<br />

ser declara<strong>do</strong> por el órgano competente para<br />

hacerlo según la Constitución y la ley, y por<br />

el procedimiento estableci<strong>do</strong> de igual mo<strong>do</strong>.<br />

Sólo así puede que<strong>da</strong>r determina<strong>do</strong> el<br />

ejercicio irregular de funciones de parte de<br />

magistra<strong>do</strong>s judiciales, lo cual hace nacer<br />

la responsabili<strong>da</strong>d civil de los mismos. Si<br />

este paso no estuviere cumpli<strong>do</strong>, ninguna<br />

deman<strong>da</strong> que pretendiere hacer efectiva la<br />

responsabili<strong>da</strong>d civil del magistra<strong>do</strong> por<br />

dicha causal, puede prosperar.<br />

En cuanto a la inmuni<strong>da</strong>d de arresto o<br />

detención, la regla general es que ningún<br />

magistra<strong>do</strong> judicial puede ser deteni<strong>do</strong> o<br />

arresta<strong>do</strong>. La excepción suele ser la flagrancia<br />

en la comisión de delitos o crímenes. 13<br />

La inmuni<strong>da</strong>d de proceso protege al<br />

magistra<strong>do</strong> contra la posibili<strong>da</strong>d de ser<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

someti<strong>do</strong> a proceso penal directamente.<br />

Implica la existencia de un procedimiento<br />

previo mediante el cual se le priva de esta<br />

inmuni<strong>da</strong>d y se autoriza su sometimiento<br />

a la justicia penal ordinaria. Dicho<br />

procedimiento puede ser un juicio político<br />

u otro específico legisla<strong>do</strong> al efecto.<br />

En relación con la inmuni<strong>da</strong>d de<br />

proceso o antejuicio, la Constitución<br />

guatemalteca contiene el Art. 206 que dice:<br />

Los magistra<strong>do</strong>s y jueces gozarán del<br />

derecho de antejuicio en la forma que<br />

lo determine la ley. El Congreso de<br />

la República tiene competencia para<br />

declarar si ha lugar o no a formación de<br />

causa contra el Presidente del Organismo<br />

Judicial y los magistra<strong>do</strong>s de la Corte<br />

Suprema de Justicia.<br />

Corresponde a esta última la competencia<br />

en relación a los otros magistra<strong>do</strong>s y jueces.<br />

En el Paraguay, los ministros de la<br />

Corte Suprema de Justicia sólo pueden<br />

ser someti<strong>do</strong>s a proceso penal, después<br />

de haber si<strong>do</strong> destitui<strong>do</strong>s del cargo como<br />

consecuencia de un juicio político en que<br />

hubieren si<strong>do</strong> halla<strong>do</strong>s culpables de la<br />

comisión de delitos o crímenes (Art. 225<br />

Cn.). Los magistra<strong>do</strong>s de las instancias<br />

inferiores, sólo pueden ser someti<strong>do</strong>s<br />

a proceso penal, cuan<strong>do</strong> la acusación<br />

contra los mismos fuere la comisión de<br />

delitos o crímenes, después que el Jura<strong>do</strong><br />

de Enjuiciamiento de Magistra<strong>do</strong>s lo<br />

autorice.<br />

12 G. S. Tawil, La responsabili<strong>da</strong>d del Esta<strong>do</strong> y de los magistra<strong>do</strong>s y funcionarios judiciales por el mal funcionamiento de la administración de justicia,<br />

Bs. As., Ed. Depalma, 1989, p. 142.<br />

13 La inmuni<strong>da</strong>d de arresto o detención de los magistra<strong>do</strong>s judiciales está consagra<strong>da</strong> en la Constitución paraguaya en los siguientes términos: No podrá<br />

ser deteni<strong>do</strong> o arresta<strong>do</strong> sino en caso de flagrante delito que merezca pena corporal. Si así ocurriese la autori<strong>da</strong>d interviniente debe ponerlo bajo custodia en<br />

su residencia, comunicar de inmediato el hecho a la Corte Suprema de Justicia, y remitir los antecedentes al juez competente (Art. 255, 2ª parte).<br />

73


74<br />

INDEPENDENCIA DEL PODER JUDICIAL<br />

D. Las incompatibili<strong>da</strong>des<br />

judiciales<br />

Las incompatibili<strong>da</strong>des judiciales<br />

constituyen una garantía judicial por<br />

medio de la cual se pretende lograr, por<br />

una parte, la imparciali<strong>da</strong>d del magistra<strong>do</strong>,<br />

y por la otra, la contracción a la función<br />

jurisdiccional evitan<strong>do</strong> que la realización<br />

otras activi<strong>da</strong>des lucrativas o no, en forma<br />

paralela, pue<strong>da</strong> <strong>da</strong>r lugar a la dispersión.<br />

En este senti<strong>do</strong>, por lo general, se<br />

establece que los magistra<strong>do</strong>s no pueden<br />

participar en activi<strong>da</strong>des políticas<br />

y parti<strong>da</strong>rias, ejercer activi<strong>da</strong>des<br />

profesionales, comerciales o industriales, o<br />

empleos públicos o priva<strong>do</strong>s. La excepción<br />

más comúnmente admiti<strong>da</strong>, es el ejercicio<br />

de la cátedra a tiempo parcial.<br />

Al respecto, la Constitución<br />

paraguaya prescribe lo siguiente:<br />

Art. 254: Los magistra<strong>do</strong>s no pueden ejercer,<br />

mientras duren en sus funciones, otro cargo<br />

público o priva<strong>do</strong>, remunera<strong>do</strong> o no, salvo<br />

la <strong>do</strong>cencia o la investigación científica, a<br />

tiempo parcial. Tampoco pueden ejercer el<br />

comercio, la industria o activi<strong>da</strong>d profesional<br />

o política alguna, ni desempeñar cargos en<br />

organismos oficiales o priva<strong>do</strong>s, parti<strong>do</strong>s,<br />

asociaciones o movimientos políticos.<br />

Hemos aludi<strong>do</strong> a diversos aspectos<br />

de la independencia del Poder Judicial<br />

con la intención de reflexionar acerca de<br />

algunas figuras o instituciones nove<strong>do</strong>sas<br />

y, fun<strong>da</strong>mentalmente, para advertir<br />

de los peligros que algunas de estas<br />

innovaciones pueden significar para dicha<br />

independencia, la cual, sin du<strong>da</strong> alguna,<br />

es imprescindible para la existencia de un<br />

Esta<strong>do</strong> de Derecho.<br />

Luis Lezcano Claude é ex-ministro <strong>da</strong><br />

Suprema Corte <strong>do</strong> Paraguai.


Bibliografía<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Duverger, Instituciones políticas y Derecho Constitucional, Barcelona-España, Ediciones<br />

Ariel, 1970.<br />

Lambert, J., América Latina, Barcelona-España, Ediciones Ariel, 1978.<br />

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Paraguaya S.A., mayo del 2000.<br />

Lezcano Claude, Luis, Inmuni<strong>da</strong>des de los magistra<strong>do</strong>s judiciales, en Veritas, Revista de la<br />

Asociación de Magistra<strong>do</strong>s Judiciales del Paraguay, Asunción, Año 3 - Nº 3, julio de 2001.<br />

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discusión, en Revista Jurídica del Centro de Estudiantes de Derecho de la Universi<strong>da</strong>d Católica<br />

“Nuestra Señora de la Asunción”, Asunción, CEPUC, t. I, 2001.<br />

Ramírez, Manuel, El Jura<strong>do</strong> de Enjuiciamiento de Magistra<strong>do</strong>s, en Comentario de la<br />

Constitución, Homenaje al Décimo Aniversario, Asunción, Corte Suprema de Justicia, t. II,<br />

2002.<br />

Riera Hunter, Marcos, La independencia del Poder Judicial. Derecho paraguayo y<br />

compara<strong>do</strong>, Asunción, La Ley Paraguaya S.A., 1991.<br />

Riera Hunter, Marcos, Principio de inamovili<strong>da</strong>d judicial, en Comentario de la<br />

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Constituciones<br />

Constitución argentina de 1994.<br />

Constitución boliviana de 1967.<br />

Constitución brasileña de 1988.<br />

Constitución colombiana de 1991.<br />

Constitución costarricense de 1949.<br />

Constitución ecuatoriana de 1998.<br />

Constitución salva<strong>do</strong>reña de 1983.<br />

Constitución guatemalteca de 1985.<br />

Constitución mexicana de 1917.<br />

Constitución panameña de 1972.<br />

Constitución paraguaya de 1992.<br />

Constitución peruana de 1993.<br />

Constitución uruguaya de 1966.<br />

Constitución venezolana de 1999.<br />

75


Onde as ações<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

organiza<strong>do</strong><br />

não forem<br />

equilibra<strong>da</strong>s,<br />

harmônicas e<br />

independentes<br />

entre si,<br />

inexistirá<br />

o Esta<strong>do</strong><br />

Democrático de<br />

Direito.<br />

A<br />

Justiça<br />

na América Latina<br />

A Justiça na América Latina e os objetivos <strong>da</strong> Flam<br />

“La Federación Latinoamericana de<br />

Magistra<strong>do</strong>s declara su finali<strong>da</strong>d de<br />

contribuir al fortalecimiento del Esta<strong>do</strong><br />

Democrático de Derecho mediante el<br />

ejercicio de la función jurisdiccional<br />

orienta<strong>da</strong> entre otros valores, por la jus-<br />

ticia, las libertades personales, la igual-<br />

<strong>da</strong>d, el pluralismo y la soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>d.”<br />

(Artículo 2º, del Estatuto de la Flam)<br />

Da simples leitura <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento que<br />

rege a Flam verifica-se claramente tra-<br />

tar-se de enti<strong>da</strong>de que tem uma única<br />

finali<strong>da</strong>de, qual seja contribuir para o<br />

fortalecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático<br />

de Direito. É pouco? Definitivamente,<br />

não! No meu entender, é tu<strong>do</strong>.<br />

Veja-se que as constituições de<br />

to<strong>do</strong>s os países estabelecem como ob-<br />

jetivos fun<strong>da</strong>mentais a construção de<br />

uma socie<strong>da</strong>de livre, justa e solidária,<br />

a busca <strong>da</strong> redução <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des<br />

Guinther Spode<br />

sociais e a promoção <strong>do</strong> bem-estar <strong>do</strong><br />

povo sem qualquer forma de discrimi-<br />

nação. Por óbvio que estes objetivos<br />

somente podem ser alcança<strong>do</strong>s num<br />

Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito. Ou<br />

seja, a vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de somente se<br />

desenvolve de forma justa e equilibra-<br />

<strong>da</strong>, propician<strong>do</strong> como resulta<strong>do</strong> a feli-<br />

ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s pessoas livres, se o Esta<strong>do</strong><br />

nacional for democrático.<br />

Os Esta<strong>do</strong>s, as nações se organi-<br />

zam, dividin<strong>do</strong> a ação estatal em três<br />

grandes áreas (o Executivo, o Legisla-<br />

tivo e o Judiciário), sempre na busca<br />

<strong>da</strong> realização <strong>do</strong>s seus objetivos fun<strong>da</strong>-<br />

mentais.<br />

Onde as ações <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> organiza-<br />

<strong>do</strong> não forem equilibra<strong>da</strong>s, harmônicas<br />

e independentes entre si, inexistirá o<br />

Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito. Se as<br />

ações fun<strong>da</strong>mentais de um país estive-<br />

rem sob o coman<strong>do</strong> de apenas uma <strong>da</strong>s<br />

77


78<br />

A JUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA E OS OBJETIVOS DA FLAM<br />

áreas, esta não só criará e aprovará as<br />

regras de convivência (as leis), quanto<br />

as executará e, como conseqüência ló-<br />

gica, sempre entenderá (julgará) que<br />

agiu de mo<strong>do</strong> correto.<br />

Quan<strong>do</strong> estas regras (as leis) vio-<br />

larem os direitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>do</strong><br />

ci<strong>da</strong>dão (os direitos humanos, por<br />

exemplo), ou quan<strong>do</strong> estas regras fo-<br />

rem descara<strong>da</strong>mente descumpri<strong>da</strong>s<br />

por quem estaria encarrega<strong>do</strong> de cum-<br />

pri-las, quem garantirá os direitos<br />

viola<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão, <strong>da</strong>s empresas e<br />

<strong>do</strong> próprio ente estatal de hierarquia<br />

inferior?<br />

O Judiciário tem a função de pro-<br />

mover a paz social, restabelecen<strong>do</strong> a<br />

ordem e até mesmo punin<strong>do</strong> os infra-<br />

tores, não interessan<strong>do</strong> a que cama<strong>da</strong><br />

social pertençam. E é exatamente por<br />

isto que os órgãos <strong>do</strong> Judiciário, os tri-<br />

bunais e os magistra<strong>do</strong>s devem gozar<br />

de prerrogativas para o exercício de<br />

sua missão, sob pena de somente po-<br />

derem exercê-la em relação <strong>ao</strong>s pobres<br />

e às pessoas que não tenham qualquer<br />

influência político-social. As prerro-<br />

gativas, as garantias <strong>da</strong> magistratura,<br />

não se constituem em privilégio pes-<br />

soal <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, mas direito <strong>do</strong><br />

ci<strong>da</strong>dão. O ci<strong>da</strong>dão que eventualmente<br />

tenha um direito viola<strong>do</strong> somente terá<br />

proclama<strong>da</strong> a justiça a seu favor se<br />

houver juízes e tribunais independen-<br />

tes, isentos <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de inter-<br />

ferências e pressões indevi<strong>da</strong>s de quem<br />

quer que seja.<br />

Juízes e tribunais, real e efetiva-<br />

mente independentes, somente exis-<br />

tem nos países em que vigora o Esta<strong>do</strong><br />

Democrático de Direito. A finali<strong>da</strong>de<br />

a que se propõe a Flam continua, por-<br />

tanto, atual.<br />

Houve época, <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> bem re-<br />

cente para alguns de nossos países,<br />

em que os tribunais chegaram a ser<br />

dissolvi<strong>do</strong>s ou seus membros substi-<br />

tuí<strong>do</strong>s através de ato administrativo<br />

<strong>do</strong>s dita<strong>do</strong>res de plantão. Magistra<strong>do</strong>s<br />

foram afasta<strong>do</strong>s sem qualquer possibi-<br />

li<strong>da</strong>de de defesa. Os chama<strong>do</strong>s remé-<br />

dios heróicos e as medi<strong>da</strong>s judiciais<br />

protetivas de direitos individuais e<br />

coletivos foram pura e simplesmente<br />

suspensos. Uma vez excluí<strong>da</strong>s estas<br />

medi<strong>da</strong>s protetivas <strong>do</strong> rol coloca<strong>do</strong> à<br />

disposição <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos, ficaram estes<br />

à mercê <strong>da</strong> vontade discricionária (e<br />

não raras vezes violenta) <strong>do</strong>s gover-<br />

nantes de então.<br />

Este processo revolucionário e<br />

contra-revolucionário aconteceu por<br />

conta de diferenças ideológicas (o<br />

mun<strong>do</strong> estava dividi<strong>do</strong> entre esquer<strong>da</strong><br />

e direita) e foi fomenta<strong>do</strong>, incita<strong>do</strong> e<br />

patrocina<strong>do</strong> pelas grandes potências<br />

que interferiram grosseiramente na so-<br />

berania <strong>do</strong>s países latino-americanos,<br />

ora irregularmente apoian<strong>do</strong> governos<br />

para que se mantivessem, mesmo já<br />

expira<strong>do</strong> o man<strong>da</strong>to, ora apoian<strong>do</strong> a<br />

derruba<strong>da</strong> de outros.<br />

Com o término <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> “guer-<br />

ra fria”, tivemos um breve perío<strong>do</strong> de<br />

sossego (leia-se: ficamos sem inter-<br />

ferências mais diretas). Durante este<br />

lapso de tempo nos apressamos to<strong>do</strong>s<br />

em democratizar nossos países, ele-<br />

As<br />

prerrogativas,<br />

as garantias <strong>da</strong><br />

magistratura,<br />

não se<br />

constituem<br />

em privilégio<br />

pessoal <strong>do</strong><br />

magistra<strong>do</strong>,<br />

mas direito <strong>do</strong><br />

ci<strong>da</strong>dão.


gen<strong>do</strong> democraticamente assembléias<br />

nacionais para redigir e aprovar novas<br />

constituições e realizar eleições gerais.<br />

Quase to<strong>do</strong>s os países tiveram êxito<br />

nesta tarefa, até porque o pessoal lá<br />

de fora não interferiu, pois já estava<br />

mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a tática para mais adiante<br />

voltar a nos atacar.<br />

Atualmente a ação destas po-<br />

tências externas já não mais ocorre<br />

(como antes) através <strong>da</strong> ação formal<br />

<strong>do</strong>s governos em relação <strong>ao</strong>s nossos,<br />

mas de maneira indireta, seja pela<br />

atuação de grandes conglomera<strong>do</strong>s<br />

econômicos, seja pela pressão de or-<br />

ganismos internacionais, como o FMI,<br />

o Banco Mundial e outros. O sórdi<strong>do</strong><br />

mecanismo que passou a ser utiliza<strong>do</strong><br />

é basicamente o seguinte: criou-se a<br />

falsa idéia de que nossos países não<br />

têm capaci<strong>da</strong>de de poupança interna<br />

e, portanto, somente podem crescer<br />

(ou até mesmo se manter) mediante a<br />

aju<strong>da</strong> <strong>do</strong> capital externo. E, para ob-<br />

ter capital externo, a constituição e as<br />

leis devem estar adequa<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> modelo<br />

defini<strong>do</strong> por estes organismos inter-<br />

nacionais, pois a eles o que interessa<br />

é a garantia de que os valores aqui<br />

investi<strong>do</strong>s tenham retorno premia<strong>do</strong><br />

por lucros fantásticos.<br />

Para nossa mais completa tristeza<br />

e desgraça, infelizmente nossos diri-<br />

gentes (aí incluí<strong>da</strong>, em alguns casos,<br />

a própria cúpula <strong>do</strong> Judiciário) não<br />

se têm apercebi<strong>do</strong> destas sórdi<strong>da</strong>s<br />

manobras, cain<strong>do</strong> em ver<strong>da</strong>deiras<br />

armadilhas que acabam se trans-<br />

forman<strong>do</strong> em projetos de reforma<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

constitucional, vendi<strong>do</strong>s como a pa-<br />

nacéia para nos colocar em dia com<br />

a moderni<strong>da</strong>de (exigência <strong>da</strong> globa-<br />

lização), resolven<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a gama <strong>do</strong>s<br />

mais intrinca<strong>do</strong>s e graves problemas.<br />

Afirmo que nossos dirigentes caem<br />

nessa armadilha porque, <strong>ao</strong> invés de<br />

procurarem diagnosticar os proble-<br />

mas e <strong>da</strong>r <strong>ao</strong>s mesmos a solução que<br />

ca<strong>da</strong> país reclama, ingenuamente<br />

aceitam e aplicam to<strong>do</strong> o receituário<br />

que vem pronto lá de fora. Nas mais<br />

<strong>da</strong>s vezes estas receitas não servem<br />

para a nossa reali<strong>da</strong>de. Noutras<br />

tantas, já vêm com propósitos bem<br />

defini<strong>do</strong>s e que na<strong>da</strong> têm a ver com<br />

os nossos interesses, que são a busca<br />

incessante de melhores condições de<br />

vi<strong>da</strong> para a população local.<br />

O exemplo mais gritante <strong>da</strong> tática<br />

atualmente a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> está devi<strong>da</strong>mente<br />

comprova<strong>da</strong> pelo <strong>do</strong>cumento emiti<strong>do</strong><br />

pelo Banco Mundial, sob o título O<br />

setor judiciário na América Latina e<br />

no Caribe - elementos para reforma.<br />

Refiro-me <strong>ao</strong> Documento Técnico 319,<br />

<strong>da</strong> menciona<strong>da</strong> agência financeira in-<br />

ternacional, cuja primeira edição <strong>da</strong>ta<br />

de 1996, que foi produzi<strong>do</strong> nos EUA,<br />

com suporte técnico de Malcolm D.<br />

Rowat e Sri-Ram Aiyer, e com pesqui-<br />

sa de Manning Cabrol e Bryant Garth,<br />

sugerin<strong>do</strong> a necessi<strong>da</strong>de de profun<strong>da</strong>s<br />

reformas nos Poderes Judiciários <strong>da</strong><br />

América Latina e <strong>do</strong> Caribe. A propos-<br />

ta é de reforma geral, com superficiais<br />

a<strong>da</strong>ptações às peculiari<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong><br />

país, mas sempre com o mesmo objeti-<br />

vo e a mesma lógica, qual seja quebrar<br />

79


80<br />

A JUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA E OS OBJETIVOS DA FLAM<br />

a natureza monopolista <strong>do</strong> Judiciário,<br />

oferecer melhor garantia <strong>ao</strong> direito de<br />

proprie<strong>da</strong>de e propiciar o desenvolvi-<br />

mento econômico e <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>,<br />

fragilizan<strong>do</strong> a expressão institucional<br />

<strong>do</strong> Poder Judiciário e tornan<strong>do</strong>-o me-<br />

nos operante nas garantias de direitos<br />

e liber<strong>da</strong>des, desde que estejam em<br />

jogo as necessi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> capital, sobre-<br />

tu<strong>do</strong> o internacional.<br />

Do conjunto de propostas <strong>do</strong> Banco<br />

Mundial, nenhuma ataca efetivamen-<br />

te as causas <strong>do</strong> mau funcionamento<br />

<strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong>s nossos países, entre as<br />

quais se encontram o excesso legisla-<br />

tivo, a violação reitera<strong>da</strong> <strong>da</strong> Consti-<br />

tuição e <strong>da</strong>s normas legais pelo Poder<br />

Público, a falta de recursos orçamentá-<br />

rios para serem inverti<strong>do</strong>s na melhoria<br />

material e <strong>do</strong> pessoal, com remunera-<br />

ção digna e atualiza<strong>da</strong>, a falta de inde-<br />

pendência funcional, administrativa e<br />

financeira <strong>do</strong> Judiciário, agrava<strong>da</strong> pela<br />

instabili<strong>da</strong>de gera<strong>da</strong> pelo mo<strong>do</strong> de<br />

recrutamento e a incerteza <strong>da</strong> confir-<br />

mação <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s que, em alguns<br />

países, fica a critério discricionário<br />

<strong>da</strong>s cúpulas, assim como a formação<br />

<strong>da</strong>s Cortes Superiores, ausente às ve-<br />

zes até mesmo a prerrogativa <strong>da</strong> ina-<br />

movibili<strong>da</strong>de.<br />

A maior evidência de que o modelo<br />

proposto vem sen<strong>do</strong> quase que imposto<br />

<strong>ao</strong>s países latino-americanos (e <strong>do</strong>cil-<br />

mente “aceito”) é que to<strong>do</strong>s os projetos<br />

de reforma <strong>do</strong> Judiciário, nos mais<br />

diferentes países, são praticamente<br />

idênticos, ten<strong>do</strong> inicia<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s na<br />

mesma época e sem que tenha havi<strong>do</strong><br />

qualquer debate interno pelo menos<br />

com os órgãos <strong>do</strong> Judiciário e os opera-<br />

<strong>do</strong>res <strong>do</strong> direito, antes <strong>do</strong>s indigita<strong>do</strong>s<br />

projetos serem encaminha<strong>do</strong>s pelos<br />

Executivos para as Casas Legislativas.<br />

Soa até como pia<strong>da</strong> o fato: to<strong>do</strong>s os pa-<br />

íses, de norte a sul <strong>da</strong> América Latina,<br />

teriam ti<strong>do</strong> <strong>ao</strong> mesmo tempo a idéia de<br />

reformar a sua justiça e, o que é mais<br />

surpreendente, to<strong>do</strong>s teriam chega<strong>do</strong><br />

<strong>ao</strong> mesmo tempo às mesmas conclu-<br />

sões, pois as propostas de solução são<br />

idênticas.<br />

Diante disto, resta mais <strong>do</strong> que<br />

evidente a necessi<strong>da</strong>de de revitalizar e<br />

prestigiar <strong>da</strong> forma mais entusiástica<br />

possível os organismos regionais <strong>da</strong><br />

América Latina e <strong>do</strong> Caribe, sob pena<br />

de jamais se alcançar o pleno Esta<strong>do</strong><br />

Democrático de Direito naqueles paí-<br />

ses em que o processo de democratiza-<br />

ção ain<strong>da</strong> está em curso ou, naqueles<br />

em que as instituições nacionais já se<br />

consoli<strong>da</strong>ram, venha a ocorrer um pe-<br />

rigoso processo de per<strong>da</strong> <strong>da</strong> soberania<br />

gera<strong>do</strong> pela submissão <strong>ao</strong>s interesses<br />

<strong>do</strong> capital transnacional.<br />

Neste contexto se insere decisi-<br />

vamente a Flam, cujos objetivos se<br />

voltam fun<strong>da</strong>mentalmente <strong>ao</strong> forta-<br />

lecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático de<br />

Direito, procuran<strong>do</strong> a independência<br />

permanente, real e efetiva <strong>do</strong> Poder<br />

Judiciário, em to<strong>do</strong>s os seus aspectos,<br />

como condição essencial <strong>da</strong> função<br />

jurisdicional, que deve estar volta<strong>da</strong>,<br />

como to<strong>da</strong> a ação <strong>do</strong>s poderes públi-<br />

cos, para a promoção <strong>do</strong> bem-estar <strong>do</strong><br />

povo.


O exercício <strong>da</strong> jurisdição na busca<br />

de uma socie<strong>da</strong>de livre, justa e so-<br />

lidária, reduzin<strong>do</strong> as desigual<strong>da</strong>des<br />

sociais, promoven<strong>do</strong> o bem comum <strong>do</strong>s<br />

ci<strong>da</strong>dãos, sem qualquer discriminação,<br />

são os objetivos que devem nos unir<br />

em torno <strong>da</strong> Flam.<br />

Para esta luta, pacífica, mas deci-<br />

siva e permanente, a atual Diretiva <strong>da</strong><br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Flam está uni<strong>da</strong> e convocan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os<br />

seus colegas magistra<strong>do</strong>s <strong>da</strong> América e<br />

<strong>do</strong> Caribe.<br />

Guinther Spode é desembarga<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong><br />

Sul, secretário-geral <strong>da</strong> <strong>AMB</strong> e 1º vice-<br />

presidente <strong>da</strong> Flam.<br />

81


Racismo<br />

& Durban<br />

A Conferência de Durban contra o Racismo e a<br />

responsabili<strong>da</strong>de de to<strong>do</strong>s<br />

“Yo soy yo y mi circunstancia y si<br />

no la salvo a ella no me salvo yo.”<br />

Ortega y Gasset 1<br />

Quan<strong>do</strong> os delega<strong>do</strong>s e observa<strong>do</strong>res à<br />

Terceira Conferência contra o Racismo<br />

organiza<strong>da</strong> pelas Nações Uni<strong>da</strong>s deixaram<br />

o recinto em Durban, ain<strong>da</strong> ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s<br />

com as dificul<strong>da</strong>des <strong>do</strong> evento, não podiam<br />

imaginar o que se iria passar pouco tempo<br />

depois. Sabiam que somente à custa de<br />

acomo<strong>da</strong>ções e manobras de procedimento<br />

haviam consegui<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>ção “consensual”<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos finais. Isso já era, ou de-<br />

veria ser, razão mais <strong>do</strong> que suficiente para<br />

temperar otimismos. De qualquer forma,<br />

para eles os resulta<strong>do</strong>s tinham ti<strong>do</strong>, sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, aspectos positivos.<br />

O que os participantes <strong>do</strong> encontro na<br />

África <strong>do</strong> Sul não podiam prever é que, ape-<br />

nas três dias depois, quan<strong>do</strong> muitos ain<strong>da</strong><br />

se encontravam em trânsito de retorno, os<br />

maiores atenta<strong>do</strong>s terroristas <strong>da</strong> História<br />

iriam tornar as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Conferência<br />

irrisórias e seus <strong>do</strong>cumentos finais, como<br />

que soterra<strong>do</strong>s nas ruínas <strong>do</strong> World Trade<br />

J. A. Lindgren Alves<br />

Center. Jamais poderiam imaginar que, com<br />

sua enormi<strong>da</strong>de catastrófica, os golpes de<br />

11 de setembro de 2001 nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />

além de realçarem a aparente irrelevância<br />

de desavenças diplomático-discursivas,<br />

iriam propiciar a restauração no mun<strong>do</strong> de<br />

um “esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> natureza” hobbesiano, ame-<br />

dronta<strong>do</strong>r em múltiplos senti<strong>do</strong>s. Esclareça-<br />

se, to<strong>da</strong>via, desde logo, que, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />

que se poderia supor, não se pretende neste<br />

artigo analisar o terrorismo, nem o combate<br />

contra ele. O escopo <strong>do</strong> texto é outro.<br />

É compreensível que os ataques arrasa-<br />

<strong>do</strong>res, <strong>ao</strong> deixarem to<strong>do</strong> o planeta em esta<strong>do</strong><br />

inicialmente catatônico, tenham sufoca<strong>do</strong><br />

possíveis entusiasmos com os avanços <strong>da</strong><br />

recém-encerra<strong>da</strong> Conferência - menores <strong>do</strong><br />

que se desejava, mas ain<strong>da</strong> assim positivos<br />

em muitas áreas específicas. Por se relacio-<br />

narem, de alguma maneira irracional, com<br />

problemas observa<strong>do</strong>s na negociação <strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>cumentos, não era sequer descabi<strong>da</strong>, num<br />

1 Apud Fernan<strong>do</strong> Guimarães Reis, “O Brasil e a América Latina”, in Gelson Fonseca Jr e Sergio Henrique Nabuco de Castro (org.), Temas de política<br />

externa brasileira II, volume 2, Brasília e São Paulo, Funag/IPRI e Paz e Terra, 1994, pág. 14.<br />

83


84<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

átimo irrefleti<strong>do</strong>, uma associação de idéias<br />

entre os aviões-bombas suici<strong>da</strong>s e certas<br />

posturas manti<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> longo <strong>da</strong>s discussões.<br />

Que, depois <strong>do</strong> Onze de Setembro, tenha-se<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong>, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e to<strong>do</strong>s os demais<br />

países, priori<strong>da</strong>de a medi<strong>da</strong>s antiterroristas<br />

era também natural. O que não fez senti<strong>do</strong><br />

nunca e não faz senti<strong>do</strong> agora, mais de um<br />

ano depois, é encarar a conferência de 2001<br />

contra o racismo como um fato despicien<strong>do</strong>,<br />

a exemplo <strong>da</strong>s anteriores, destina<strong>do</strong> <strong>ao</strong> os-<br />

tracismo por motivos que lhe são próprios.<br />

As críticas a esse primeiro grande en-<br />

contro <strong>do</strong> século são acerbas e freqüentes.<br />

Algumas, ideológicas, simplesmente refle-<br />

tem políticas longamente assumi<strong>da</strong>s, que<br />

na<strong>da</strong> parece capaz de alterar. Outras decor-<br />

rem de irrealismo ingênuo, tendente a des-<br />

considerar a complexi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> evento, ou de<br />

um simplismo que o separa <strong>da</strong>s circunstân-<br />

cias de sua realização. As primeiras críticas,<br />

por sua natureza fatalmente reducionista,<br />

não procuram, nem aceitariam, qualquer<br />

tipo de resposta. As segun<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong> bem<br />

intenciona<strong>da</strong>s, talvez possam ser respondi-<br />

<strong>da</strong>s com um pouco de reflexão. Afinal, pou-<br />

cos acontecimentos recentes permanecem<br />

tão mal compreendi<strong>do</strong>s quanto esse concla-<br />

ve mundial.<br />

Parodian<strong>do</strong> a imagem de Zuenir Ven-<br />

tura para o ano de 1968 2 , a Conferência<br />

de Durban contra o Racismo, em 2001, foi<br />

uma “conferência que não terminou”. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, ten<strong>do</strong> em conta que to<strong>da</strong> reunião<br />

sobre assunto <strong>da</strong> esfera social estabelece<br />

parâmetros para esforços de longa duração -<br />

2 1968: o ano que não terminou - a aventura de uma geração, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988.<br />

e aqui estamos mais para a longue durée de<br />

Braudel <strong>do</strong> que para o longo prazo de retor-<br />

no de alguns investimentos econômicos -, é<br />

possível dizer, sem erro, que nenhuma con-<br />

ferência desse tipo efetivamente acaba. É,<br />

aliás, por isso que as conferências prevêem<br />

outros encontros, destina<strong>do</strong>s a avaliar sua<br />

implementação. Contu<strong>do</strong>, diferentemente<br />

<strong>da</strong>s congêneres <strong>do</strong> final <strong>do</strong> Século XX, sobre<br />

o meio ambiente, os direitos humanos em<br />

geral, a população e os direitos <strong>da</strong> mulher,<br />

a primeira conferência <strong>do</strong> Século XXI,<br />

inaugura<strong>da</strong> em 31 de agosto, quase não teve<br />

nem mesmo uma sessão de encerramento.<br />

Marca<strong>da</strong> para terminar na tarde de 7 de<br />

setembro, seu desfecho protela<strong>do</strong> ocorreu<br />

depois <strong>do</strong> tempo previsto para sua duração,<br />

na tarde <strong>do</strong> dia 8. E, para ter seus resulta-<br />

<strong>do</strong>s confirma<strong>do</strong>s pela Assembléia Geral <strong>da</strong><br />

ONU - ain<strong>da</strong> assim sem consenso, com <strong>do</strong>is<br />

votos contrários e duas abstenções 3 - foi<br />

preciso que a sessão ordinária de 2001 re-<br />

convocasse a assembléia em perío<strong>do</strong> extra-<br />

regulamentar, no início de 2002. Seus efei-<br />

tos permanecem, como é sempre natural,<br />

dependentes <strong>da</strong> vontade <strong>do</strong>s responsáveis<br />

políticos e “usuários” sociais.<br />

Ten<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> autor destas linhas,<br />

em 1994, quan<strong>do</strong> membro <strong>do</strong> principal ór-<br />

gão subsidiário <strong>da</strong> Comissão <strong>do</strong>s Direitos<br />

Humanos <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, a idéia <strong>da</strong><br />

convocação de uma conferência mundial<br />

contra o racismo contemporâneo para cul-<br />

minar o ciclo de conferências sobre temas<br />

globais <strong>ao</strong> terminar a Guerra Fria, estudio-<br />

sos e militantes <strong>do</strong> assunto têm-lhe pergun-<br />

3 Votaram contra, previsivelmente, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Israel, que se haviam retira<strong>do</strong> <strong>da</strong> conferência; abstiveram-se, surpreendentemente, a Austrália e<br />

o Canadá.<br />

Parodian<strong>do</strong><br />

a imagem de<br />

Zuenir Ventura,<br />

a Conferência<br />

de Durban<br />

contra o<br />

Racismo, em<br />

2001, foi uma<br />

“conferência<br />

que não<br />

terminou”.


ta<strong>do</strong> se os problemas apresenta<strong>do</strong>s haviam<br />

si<strong>do</strong> previstos desde o início. A resposta é,<br />

certamente, não. Algumas <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des<br />

já eram, então, obviamente, intuí<strong>da</strong>s, mas<br />

não com a intensi<strong>da</strong>de revela<strong>da</strong>. Outras se<br />

acrescentaram com o tempo ou em função<br />

de modificações <strong>da</strong> idéia original.<br />

As origens <strong>da</strong> conferência<br />

Quan<strong>do</strong> a proposta foi lança<strong>da</strong> na então<br />

denomina<strong>da</strong> Subcomissão para a Prevenção<br />

<strong>da</strong> Discriminação e Proteção <strong>da</strong>s Minorias 4<br />

- que tinha, portanto, até no nome a obri-<br />

gação prioritária de combater as discrimi-<br />

nações - e foi, literalmente, subscrita pela<br />

unanimi<strong>da</strong>de menos um <strong>do</strong>s 26 integrantes<br />

desse órgão 5 , sen<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> por consenso<br />

real (não, como se diz na ONU, simples-<br />

mente “sem voto”), o mun<strong>do</strong> vivia momento<br />

distinto.<br />

As conferências <strong>do</strong> Rio de Janeiro, de<br />

1992, sobre o meio ambiente, e de Viena,<br />

de 1993, sobre direitos humanos, embora<br />

também difíceis, haviam acaba<strong>do</strong> de trans-<br />

correr satisfatoriamente. Pareciam, assim,<br />

reconfirmar uma nova fase de confiança<br />

na diplomacia parlamentar, recém-egressa<br />

<strong>da</strong> chama<strong>da</strong> “crise <strong>do</strong> multilateralismo”,<br />

muito fala<strong>da</strong> nos anos 80, enquanto perdu-<br />

rava a Guerra Fria. Esse vigor renova<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />

Nações Uni<strong>da</strong>s como foro imprescindível<br />

à busca de soluções para problemas que<br />

4 Hoje Subcomissão para a Promoção e Proteção <strong>do</strong>s Direitos Humanos.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

se demonstravam planetários, em 1994 já<br />

lhes havia permiti<strong>do</strong> a definição de um cro-<br />

nograma de encontros sobre os chama<strong>do</strong>s<br />

“temas globais” que se estendia até 1996,<br />

com a conferência de Istambul sobre assen-<br />

tamentos humanos, a Habitat-II, passan<strong>do</strong><br />

em 1994 pelo Cairo, com o tema <strong>da</strong> popu-<br />

lação, e em 1995 por Copenhague, com o<br />

desenvolvimento social, e ain<strong>da</strong> por Beijing,<br />

com a situação <strong>da</strong> mulher 6 . Era, portanto,<br />

natural que a ONU procurasse um caminho<br />

novo também para enfrentar a persistência<br />

<strong>do</strong> racismo, que já havia justifica<strong>do</strong> duas<br />

“Déca<strong>da</strong>s” internacionais de planos, proje-<br />

tos e programas, sob a égide <strong>da</strong> Assembléia<br />

Geral, assim como duas conferências. E<br />

uma Terceira Déca<strong>da</strong> de Combate <strong>ao</strong> Ra-<br />

cismo e à Discriminação Racial, lança<strong>da</strong><br />

pela Resolução 48/91, de 20 de dezembro de<br />

1993, estava então inician<strong>do</strong>.<br />

Foi no contexto <strong>da</strong> Primeira Déca<strong>da</strong><br />

que haviam ocorri<strong>do</strong> as duas conferências<br />

precedentes, em 1978 e 1983 7 , de pequena<br />

repercussão inclusive porque realiza<strong>da</strong>s em<br />

sede <strong>da</strong> própria ONU, em Genebra (o que<br />

lhes <strong>da</strong>va um aspecto de reunião rotineira,<br />

incapaz de atrair as atenções <strong>do</strong>s media).<br />

Na ver<strong>da</strong>de, porém, o racismo e a discrimi-<br />

nação racial, juridicamente proscritos, nun-<br />

ca haviam si<strong>do</strong> seriamente abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s em<br />

sua incidência planetária. Qualquer reunião<br />

internacional sobre a matéria era deturpa<strong>da</strong><br />

pela existência <strong>do</strong> apartheid sul-africano,<br />

5 Apenas o perito egípcio Ahmed Khalifa deixou de co-patrociná-la (ou seja, de se incluir na lista de co-autores), sem explicação inteligível, mas<br />

evidentemente a apoiou sem hesitações.<br />

6 Para um exame <strong>da</strong>s grandes conferências <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 90 v. José Augusto Lindgren Alves, Relações internacionais e temas sociais - A déca<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

conferências, Brasília, Funag e IBRI, 2001.<br />

7 A Conferência de 1978 havia si<strong>do</strong> prevista no programa de ação <strong>da</strong> Primeira Déca<strong>da</strong> de Combate <strong>ao</strong> Racismo e à Discriminação Racial, inicia<strong>da</strong> em<br />

1973, conforme a Resolução 3057 (XXVIII), a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> pela Assembléia Geral <strong>da</strong> ONU em 2 de novembro de 1972. A Segun<strong>da</strong> Conferência, de 1983,<br />

foi convoca<strong>da</strong> pela Resolução 35/33, de 14.11.80, com o objetivo de avaliar as ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Primeira Déca<strong>da</strong>.<br />

85


86<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

absesso de fixação de atenções pelo mal que<br />

trazia em si e como ameaça à paz e à segu-<br />

rança, agrava<strong>da</strong> pelo contexto de confron-<br />

tação bipolar. A isso se somava desde então<br />

a sempre explosiva questão <strong>do</strong> Oriente Mé-<br />

dio, trazi<strong>da</strong> às discussões <strong>do</strong> tema com uma<br />

“legitimi<strong>da</strong>de” irrefutável porque decorren-<br />

te <strong>da</strong> equiparação <strong>do</strong> sionismo <strong>ao</strong> racismo<br />

em inúmeros <strong>do</strong>cumentos vigentes 8 .<br />

Em 1994, o fim <strong>do</strong> regime aparteísta, co-<br />

roa<strong>do</strong> com a posse de Nelson Mandela como<br />

presidente <strong>da</strong> República <strong>da</strong> África <strong>do</strong> Sul, esco-<br />

lhi<strong>do</strong> em eleições livres de que pela primeira vez<br />

participara to<strong>do</strong> o povo <strong>do</strong> país, abria o caminho<br />

para uma visão mais níti<strong>da</strong> <strong>do</strong> racismo como o<br />

fenômeno generaliza<strong>do</strong> que é. E a equiparação<br />

internacional <strong>do</strong> sionismo <strong>ao</strong> racismo fora, por<br />

sua vez, aboli<strong>da</strong> por resolução <strong>da</strong> Assembléia<br />

Geral <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s desde 1991 9 .<br />

Enquanto esses fatos pareciam demons-<br />

trar a viabili<strong>da</strong>de de uma conferência mundial<br />

imbuí<strong>da</strong> de novo espírito, outros elementos,<br />

velhos e recentes, fortaleciam a necessi<strong>da</strong>de de<br />

sua realização. Após a eliminação, com auxílio<br />

<strong>da</strong>s sanções <strong>da</strong> ONU, <strong>do</strong> sistema constitucional<br />

aberrante que erigira a segregação em essência<br />

<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> mais poderoso <strong>da</strong> África subsaárica,<br />

numa época em que a igual<strong>da</strong>de formal entre<br />

as raças já fora estabeleci<strong>da</strong> por lei em qua-<br />

se to<strong>do</strong>s os países, era preciso que o mun<strong>do</strong><br />

“globaliza<strong>do</strong>” atentasse para as manifestações<br />

estruturais <strong>do</strong> racismo contemporâneo. Vigo-<br />

rosamente denuncia<strong>do</strong> no Brasil pelo movi-<br />

mento negro e por membros <strong>da</strong> Academia, tão<br />

dissemina<strong>do</strong> no “Ocidente” que autores norte-<br />

americanos hoje falam <strong>da</strong> “brasilianização <strong>da</strong><br />

América” 10 , o racismo insidioso, consciente ou<br />

inconsciente, que mantém grandes contingen-<br />

tes populacionais em situação de inferiori<strong>da</strong>de<br />

social é, quiçá, mais difícil de combater <strong>do</strong> que<br />

as manifestações ostensivas de inferiorização<br />

racial, na medi<strong>da</strong> em que se dissimulam debai-<br />

xo de direitos civis distorci<strong>do</strong>s.<br />

A esses fatos capazes de fun<strong>da</strong>mentar de<br />

per si uma nova conferência, a ser sedia<strong>da</strong> na<br />

África <strong>do</strong> Sul pós-apartheid pelo valor simbó-<br />

lico <strong>da</strong> localização (assim se pensou desde o<br />

primeiro momento), acresciam novos surtos<br />

violentos de discriminação, xenofobia e outras<br />

formas contemporâneas correlatas de intole-<br />

rância 11 que se vinham multiplican<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

afora. Elas se consubstanciavam inter alia em<br />

agressões a imigrantes na Europa; no ressurgi-<br />

mento de <strong>do</strong>utrinas “supremacistas” brancas<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, inspira<strong>do</strong>ras de “milícias”<br />

arma<strong>da</strong>s; nas matanças intertribais <strong>da</strong> África,<br />

paroxísticas no caso de Ruan<strong>da</strong>; no recrudes-<br />

cimento de conflitos etno-religiosos asiáticos,<br />

8 Origina<strong>da</strong> <strong>da</strong> Cúpula <strong>do</strong> Movimento <strong>do</strong>s Não-Alinha<strong>do</strong>s de Argel, em 1973, essa formulação <strong>do</strong> sionismo como uma forma de racismo foi repeti<strong>da</strong> em<br />

resoluções e outros <strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> ONU por quase 20 anos, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> incluí<strong>da</strong> até mesmo no programa a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> na Conferência de Copenhague sobre a<br />

Mulher de 1980 (v. Richard L. Jackson, The Non-Aligned, the U.N. and the Superpowers, Nova York, Praeger, 1983, págs. 172, 175-77).<br />

9 Pela Resolução 46/86, de 16.12.91, que simplesmente decidiu “revogar a determinação conti<strong>da</strong> na Resolução 3379 (XXX), de 10.11.75.<br />

10 Para um exame <strong>do</strong> assunto, com citação de autores, v. J. A. Lindgren Alves, “No peito e na raça - A americanização <strong>do</strong> Brasil e a brasilianização <strong>da</strong><br />

América”, Impulso - Revista de Ciências Sociais e Humanas, vol. 12, nº 27, Piracicaba, Unimep, 2000, págs. 91-106, e Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e Justiça, Ano 5, nº<br />

11, Rio de Janeiro, Associação de Magistra<strong>do</strong>s Brasileiros, 2º semestre de 2001, págs. 110-128.<br />

11 A referência a “outras formas contemporâneas correlatas de intolerância” (other related contemporary forms of intolerance) foi usa<strong>da</strong> por mim no título<br />

original <strong>da</strong> Conferência para cobrir determina<strong>do</strong>s tipos de intolerância e discriminação muito em voga naquela época, persistentes até hoje, que não se<br />

enquadravam claramente na definição legal <strong>da</strong> discriminação racial. Pensava eu sobretu<strong>do</strong> nos conflitos <strong>da</strong> Bósnia-Herzagovina, onde, além de se<br />

tratar <strong>da</strong> mesma raça, <strong>da</strong> mesma língua e, está claro, <strong>da</strong> mesma “etnia” eslava, a “nacionali<strong>da</strong>de” bósnia havia si<strong>do</strong> inventa<strong>da</strong> a partir de uma religião<br />

que sequer era pratica<strong>da</strong> por to<strong>do</strong>s os “muçulmanos” dessa ex-República Socialista Iugoslava pluricultural (no perío<strong>do</strong> de Tito, a “nacionali<strong>da</strong>de”<br />

muçulmana foi inventa<strong>da</strong>, mas convivia de forma pacífica e com relações de amizade e parentesco com as comuni<strong>da</strong>des orto<strong>do</strong>xa-sérvia e católica-croata<br />

<strong>da</strong> mesma região).<br />

Em 1994, o<br />

fim <strong>do</strong> regime<br />

aparteísta abria<br />

o caminho<br />

para uma visão<br />

mais níti<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

racismo como<br />

o fenômeno<br />

generaliza<strong>do</strong><br />

que é.


com mortes e profanações de templos; na vio-<br />

lência e van<strong>da</strong>lismo de skinheads e grupos ne-<br />

onazistas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Atlântico (até mes-<br />

mo no Brasil, que é capaz de copiar to<strong>do</strong>s os<br />

piores modismos <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Primeiro Mun-<br />

<strong>do</strong>) 12 ; no agravamento <strong>do</strong> micronacionalismo<br />

fascistóide traduzi<strong>do</strong> em “limpezas étnicas” e<br />

guerras civis cruentas. Ain<strong>da</strong> mais ominoso,<br />

tu<strong>do</strong> isso era acompanha<strong>do</strong> pelo fortalecimento<br />

eleitoral, nas democracias modelares, de parti-<br />

<strong>do</strong>s populistas de extrema direita, para os quais<br />

o “orgulho nacional” <strong>do</strong> “homem médio <strong>do</strong><br />

povo”, associa<strong>do</strong> <strong>ao</strong> racismo, à xenofobia e <strong>ao</strong><br />

anti-semitismo eram elementos demagógicos<br />

de plataformas programáticas.<br />

Vivíamos, pois, num perío<strong>do</strong> em que, de<br />

um la<strong>do</strong>, o multilateralismo era visto positiva-<br />

mente como instrumento de melhora <strong>da</strong> situ-<br />

ação planetária (e o próprio fim <strong>do</strong> apartheid<br />

era evidência de que o trabalho multilateral,<br />

no longo prazo, <strong>da</strong>va frutos). Mas vivíamos<br />

também, de outro, numa reali<strong>da</strong>de em que,<br />

contrarian<strong>do</strong> as imagens <strong>do</strong> “fim <strong>da</strong> História”<br />

e <strong>da</strong> democracia como novo “horizonte intrans-<br />

ponível” <strong>da</strong> política, a bipolari<strong>da</strong>de estratégica<br />

havia cedi<strong>do</strong> lugar a uma infini<strong>da</strong>de de tensões<br />

e embates bélicos, provoca<strong>do</strong>s por discrimina-<br />

ções quase to<strong>da</strong>s enquadra<strong>da</strong>s na definição <strong>do</strong><br />

Artigo 1º <strong>da</strong> Convenção Internacional sobre a<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Eliminação de To<strong>da</strong>s as Formas de Discrimi-<br />

nação Racial, de 1965:<br />

“... qualquer distinção, exclusão, restrição ou<br />

preferência basea<strong>da</strong> em raça, cor, descendência<br />

ou origem nacional ou étnica que tem por obje-<br />

tivo ou efeito anular ou prejudicar o reconheci-<br />

mento, gozo ou exercício, em igual<strong>da</strong>de de con-<br />

dições, <strong>do</strong>s direitos humanos e liber<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>-<br />

mentais nos <strong>do</strong>mínios político, econômico, social,<br />

cultural ou qualquer outro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pública.”<br />

A percepção <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de uma<br />

conferência para tratar desses problemas<br />

era níti<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s olhos de to<strong>do</strong>s os membros <strong>da</strong><br />

Subcomissão, que exercem seus man<strong>da</strong>tos<br />

nesse órgão <strong>da</strong> ONU a título pessoal, atuan-<br />

<strong>do</strong>, em princípio, segun<strong>do</strong> as próprias con-<br />

vicções. Dela emergiu, portanto, a Resolu-<br />

ção 1994/2, denomina<strong>da</strong> “Uma conferência<br />

mundial contra o racismo, a discriminação<br />

racial ou étnica, a xenofobia e outras formas<br />

contemporâneas correlatas de intolerância”<br />

(é importante notar que o título <strong>da</strong> resolu-<br />

ção - assim como <strong>da</strong> conferência proposta<br />

- referia-se expressamente às formas con-<br />

temporâneas <strong>da</strong>s manifestações desse fenô-<br />

meno), a se realizar em 1997, na seqüência<br />

de grandes encontros já realiza<strong>do</strong>s ou pro-<br />

grama<strong>do</strong>s desde o fim <strong>da</strong> Guerra Fria 13 .<br />

12 V. inter alia Tulio Kahn, c.Daniela Amen<strong>do</strong>la Pinheiro, “A evolução <strong>do</strong> neonazismo no Brasil”, in Núcleo de Estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Violência e Comissão Teotônio<br />

Vilela, Os direitos humanos no Brasil, São Paulo, USP, 1993, págs. 56-63.<br />

13 A Resolução 1994/2, cujo texto (original em inglês) tive a honra de redigir para consideração pela Subcomissão e foi aprova<strong>do</strong> em 12.08.94, refletia, em<br />

linguagem sucinta, quase to<strong>do</strong>s os fatos e tendências aqui menciona<strong>do</strong>s. Isso pode ser visto no preâmbulo, <strong>ao</strong> recor<strong>da</strong>r tanto as conferências de 1978 e 1983<br />

sobre o racismo (segun<strong>do</strong> parágrafo), como os bons resulta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Conferência de Viena de 1993 sobre os direitos humanos e a atenção por ela dedica<strong>da</strong> <strong>ao</strong><br />

racismo (terceiro parágrafo); <strong>ao</strong> notar que “milhões de seres humanos continuam a ser vítimas de formas varia<strong>da</strong>s de racismo e discriminação racial e étnica”<br />

(quarto parágrafo); <strong>ao</strong> levar em conta “a seqüência de conferências mundiais programa<strong>da</strong>s pelas Nações Uni<strong>da</strong>s para se realizarem antes <strong>do</strong> ano 2000” (sexto<br />

e último parágrafo preambular), para recomen<strong>da</strong>r, no único parágrafo dispositivo, à Comissão <strong>do</strong>s Direitos Humanos que sugerisse, por intermédio <strong>do</strong> Ecosoc,<br />

à Assembléia Geral a “possibili<strong>da</strong>de de convocação de uma conferência mundial contra o racismo, a discriminação racial e étnica, a xenofobia e outras formas<br />

contemporâneas correlatas de intolerância, a se realizar em 1997” (a indicação de 1997 visava a aproveitar o élan <strong>da</strong>s conferências já programa<strong>da</strong>s, anuais<br />

desde a Rio-92 até a Habitat-II, de Istambul, em 1996; a menção nominal à discriminação étnica, já subentendi<strong>da</strong> na definição <strong>do</strong> Artigo 1º <strong>da</strong> Convenção<br />

de 1965, era motiva<strong>da</strong> pelas várias limpezas étnicas em curso, denuncia<strong>da</strong>s então sobretu<strong>do</strong> na ex-Iugoslávia; a inclusão <strong>da</strong> xenofobia no título era uma<br />

maneira de garantir que o evento trataria de um <strong>do</strong>s fenômenos que mais se vinham agravan<strong>do</strong> em decorrência <strong>da</strong> globalização econômica).<br />

87


88<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

A necessi<strong>da</strong>de e as possibili<strong>da</strong>des<br />

promissoras de um evento sobre o racismo<br />

e a xenofobia contemporâneos também<br />

pareceram claras à Comissão <strong>do</strong>s Direitos<br />

Humanos <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, de caráter go-<br />

vernamental, que en<strong>do</strong>ssou a proposta dessa<br />

Conferência na primeira sessão subseqüen-<br />

te à <strong>da</strong> Subcomissão, em 1995, assim como,<br />

no mesmo ano, <strong>ao</strong> Conselho Econômico e<br />

Social (Ecosoc), que aprovou e encaminhou<br />

a proposta à Assembléia Geral. Neste úl-<br />

timo foro, ver<strong>da</strong>deira instância decisória<br />

para empreendimentos dessa magnitude,<br />

a reação foi diferente. Países ocidentais<br />

manifestaram, já em 1995, dúvi<strong>da</strong>s sobre<br />

a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> idéia. Afinal, uma con-<br />

ferência sobre esse tema, por mais global<br />

que se comprovasse, iria tratar de assuntos<br />

para eles particularmente incômo<strong>do</strong>s. Sem<br />

mencionar que, nas circunstâncias <strong>da</strong> glo-<br />

balização atual, a exclusão social é efeito<br />

colateral espera<strong>do</strong>, a iniqüi<strong>da</strong>de racial era<br />

uma seara em que, <strong>ao</strong> contrário <strong>da</strong>s demais<br />

(meio ambiente, direitos humanos, cresci-<br />

mento populacional e situação <strong>da</strong> mulher),<br />

não lhes seria viável situar alhures o locus<br />

preferencial <strong>do</strong>s problemas 14 . Nem atribuir<br />

a outrem suas causas mais profun<strong>da</strong>s.<br />

A Assembléia Geral somente aprovou<br />

a idéia <strong>da</strong> Conferência na sessão regular de<br />

1997, dentro <strong>da</strong> Resolução 52/111, sobre a<br />

“Terceira Déca<strong>da</strong> de Combate <strong>ao</strong> Racismo e<br />

à Discriminação Racial”. Pelo art. 28 dessa<br />

longa resolução programática finalmen-<br />

te decidiu-se convocar uma “conferência<br />

mundial sobre o racismo e a discriminação<br />

racial, a xenofobia e intolerância correlata”<br />

(note-se que a menção às outras formas<br />

contemporâneas correlatas de intolerância<br />

havia si<strong>do</strong> substituí<strong>da</strong> pela expressão ino-<br />

va<strong>do</strong>ra “intolerância correlata”, de senti<strong>do</strong><br />

impreciso, diferente <strong>do</strong> que eu imagina-<br />

ra). 15 Entre seus objetivos, além <strong>da</strong>queles<br />

mais habituais (examinar os progressos<br />

alcança<strong>do</strong>s e obstáculos enfrenta<strong>do</strong>s para<br />

a superação <strong>do</strong>s problemas; aumentar o<br />

nível de conscientização para eles; formular<br />

recomen<strong>da</strong>ções, etc) incluía-se o de rever<br />

(to review) os “fatores políticos, históricos,<br />

econômicos, sociais, culturais e de outra<br />

ordem conducentes <strong>ao</strong> racismo, à discrimi-<br />

nação racial, à xenofobia e à intolerância<br />

correlata”, seguin<strong>do</strong>-se o de “formular re-<br />

comen<strong>da</strong>ções concretas de medi<strong>da</strong>s eficazes<br />

(action-oriented) nacionais, regionais e in-<br />

ternacionais” para combater os problemas.<br />

Estavam aí as sementes de algumas <strong>da</strong>s<br />

divergências mais difíceis. Ao modificar no<br />

título a fórmula original “... e outras formas<br />

contemporâneas correlatas de intolerância”<br />

para “intolerância correlata” a Assembléia<br />

expandia, talvez até com razão, o escopo <strong>da</strong><br />

conferência para áreas indefini<strong>da</strong>s (algumas<br />

<strong>da</strong>s quais, por mais pertinentes que fossem,<br />

não teriam si<strong>do</strong> aceitas sequer na Subcomis-<br />

são). Ao incluir nos objetivos a revisão <strong>do</strong>s<br />

fatores históricos <strong>do</strong> racismo, a Resolução<br />

52/111 abria o caminho para acusações que<br />

poderiam, em princípio, remontar até a<br />

Antigüi<strong>da</strong>de distante e para cobranças atu-<br />

14 Sobre essa tendência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong>, na fase imediata <strong>ao</strong> fim <strong>da</strong> Guerra Fria, de atribuir to<strong>da</strong>s as mazelas <strong>do</strong> planeta <strong>ao</strong>s pobres, v. inter alia<br />

meu já cita<strong>do</strong> Relações internacionais e temas sociais - A déca<strong>da</strong> <strong>da</strong>s conferências, págs. 59-61.<br />

15 V. supra nota 8. As duas primeiras conferências chamavam-se simplesmente “Conferência Mundial de Combate <strong>ao</strong> Racismo e à Discriminação Racial”<br />

e “Segun<strong>da</strong> Conferência Mundial ... (idem)”.


ais - as famosas “reparações” - entendi<strong>da</strong>s<br />

de maneiras divergentes entre seus próprios<br />

defensores. Além disso a resolução decidia,<br />

no art. 29, que a conferência seria convoca-<br />

<strong>da</strong> “não depois <strong>do</strong> ano de 2001”.<br />

Contempla<strong>da</strong> pela Subcomissão como<br />

um evento dedica<strong>do</strong> <strong>ao</strong>s problemas <strong>do</strong> pre-<br />

sente, her<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou não <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, volta<strong>do</strong><br />

para o futuro, a Conferência era encara<strong>da</strong>,<br />

na origem, como chave de ouro oportuna<br />

para a série final de encontros <strong>do</strong> Século<br />

XX. Tal como aprova<strong>da</strong> pela Assembléia<br />

Geral, abrangen<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s as discriminações<br />

existentes, com cobranças (até em dinheiro)<br />

pelos males <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, ela se tornava am-<br />

biciosa demais.<br />

Complexa mas não-irrealista nas<br />

circunstâncias de 1994, a Conferência<br />

contra o Racismo se afigurava onírica,<br />

mais <strong>do</strong> que ingênua, na situação som-<br />

bria, justifica<strong>da</strong>mente pessimista (ain<strong>da</strong><br />

antes <strong>do</strong> Onze de Setembro), <strong>do</strong> início no<br />

Século XXI.<br />

As principais dificul<strong>da</strong>des<br />

Para quem observa superficialmente os<br />

desentendimentos havi<strong>do</strong>s na Conferência<br />

de Durban pode parecer, à primeira vista,<br />

que os problemas tenham decorri<strong>do</strong>, de um<br />

la<strong>do</strong>, <strong>da</strong> insistência <strong>do</strong>s países árabes na<br />

reequiparação - não-explícita, mas eviden-<br />

temente implícita - <strong>do</strong> sionismo <strong>ao</strong> racismo,<br />

já rejeita<strong>da</strong> pela ONU desde 1991, com a<br />

conseqüente defecção <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />

e de Israel. De outro la<strong>do</strong>, as dificul<strong>da</strong>des<br />

estariam na rejeição ocidental à idéia de<br />

reparações pela prática <strong>da</strong> escravidão. Tais<br />

visões são ver<strong>da</strong>deiras, mas não suficiente-<br />

mente abrangentes.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Apega<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> longo perío<strong>do</strong> em que a<br />

luta anticolonialista <strong>do</strong> Movimento Não-<br />

Alinha<strong>do</strong> encampava com grande vigor a<br />

causa palestina e se refletia facilmente em<br />

<strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> ONU com a reiteração de<br />

que o sionismo era uma forma de racismo,<br />

os árabes foram realmente demasia<strong>do</strong> vi-<br />

rulentos contra os judeus nas propostas de<br />

parágrafos que abor<strong>da</strong>vam o conflito <strong>do</strong><br />

Oriente Médio (não se poden<strong>do</strong>, porém,<br />

negligenciar o fato de que o novo governo<br />

conserva<strong>do</strong>r israelense tomava iniciati-<br />

vas considera<strong>da</strong>s provocatórias, como o<br />

reinício <strong>do</strong> estabelecimento de “colônias”<br />

em território palestino). A linguagem por<br />

eles postula<strong>da</strong> para alguns parágrafos <strong>do</strong>s<br />

anteprojetos referia-se, por exemplo, <strong>ao</strong>s<br />

sofrimentos causa<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s palestinos como<br />

um novo holocausto. Caso aceita, tal for-<br />

mulação soaria mais radical <strong>do</strong> que a qua-<br />

lificação <strong>do</strong> sionismo como uma forma de<br />

racismo, pois equipararia o Esta<strong>do</strong> de Israel<br />

à Alemanha de Hitler. Ao se apropriar de<br />

um <strong>do</strong>s mais <strong>do</strong>lorosos momentos <strong>da</strong> His-<br />

tória <strong>do</strong> Século XX, a fórmula <strong>do</strong> “novo<br />

holocausto”, ou, como aparecia em certas<br />

propostas, a referência a “holocaustos” no<br />

plural, banalizaria o extermínio metódico<br />

<strong>do</strong>s judeus nos campos nazistas como um<br />

fenômeno não-excepcional. Contu<strong>do</strong>, a<br />

rejeição peremptória a tais formulações já<br />

havia si<strong>do</strong> externa<strong>da</strong> por grande número de<br />

delegações (inclusive a <strong>do</strong> Brasil) no Comi-<br />

tê Preparatório, ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> demonstra<strong>do</strong><br />

que elas não seriam aceitas nos <strong>do</strong>cumentos<br />

<strong>da</strong> Conferência.<br />

Quanto <strong>ao</strong> aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong>s negociações<br />

por Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Israel em Durban, ela<br />

não chegou a constituir novi<strong>da</strong>de. A reti-<br />

ra<strong>da</strong> de Washington, sob a administração<br />

89


90<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

de George W. Bush, de trata<strong>do</strong>s, encontros<br />

e concertações internacionais já se tornara<br />

corriqueira. Exemplos haviam si<strong>do</strong> registra-<br />

<strong>do</strong>s com relação <strong>ao</strong> Protocolo de Kyoto, <strong>ao</strong><br />

Tribunal Penal Internacional, à conferência<br />

internacional para o controle de armas leves<br />

e <strong>ao</strong>s esforços para o estabelecimento de um<br />

regime de inspeções eficaz para a Conven-<br />

ção sobre Armas Biológicas (sem falar nos<br />

acor<strong>do</strong>s ABM com Moscou). Nem por isso<br />

esses esforços e construções jurídicas ou<br />

quase jurídicas multilaterais passaram a ser<br />

despreza<strong>da</strong>s. No que diz respeito a reuniões<br />

mundiais específicas contra o racismo, pior<br />

já ocorrera em 1978, quan<strong>do</strong>, por motivos<br />

assemelha<strong>do</strong>s, as delegações ocidentais se<br />

ausentaram em bloco, esvazian<strong>do</strong> as ne-<br />

gociações <strong>da</strong> primeira conferência. E na<br />

segun<strong>da</strong> conferência, em 1983, os Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s, Israel e a África <strong>do</strong> Sul também se<br />

retiraram, sen<strong>do</strong> a Declaração final a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong><br />

por votação, de 101 contra 12 16 (o que signi-<br />

fica que para esses 12 opositores, a Declara-<br />

ção de 1983 nunca foi reconheci<strong>da</strong>).<br />

A diferença fun<strong>da</strong>mental em Durban,<br />

para a qual não atentaram os governos de<br />

Washington e Tel-Aviv, estava no fato de<br />

que, em 2001, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong> que se ve-<br />

rificara quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> primeira e <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

conferências contra o racismo, a aliança<br />

aguerri<strong>da</strong> <strong>do</strong> Movimento Não-Alinha<strong>do</strong> se<br />

desvanecera. Não mais contan<strong>do</strong> com apoio<br />

<strong>do</strong> extinto bloco socialista, desde 1991 os<br />

próprios Não-Alinha<strong>do</strong>s haviam si<strong>do</strong> for-<br />

ça<strong>do</strong>s a aceitar a revogação <strong>da</strong> resolução<br />

inicial, de 1975, e, conseqüentemente, de<br />

to<strong>do</strong>s os outros textos que estabeleciam ser<br />

o sionismo uma forma de racismo. Para o<br />

êxito <strong>da</strong> Conferência, as mais altas auto-<br />

ri<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, <strong>do</strong> secretário-<br />

geral, Kofi Annan, à alta comissária para os<br />

Direitos Humanos, Mary Robinson, cientes<br />

<strong>da</strong> obstinação <strong>do</strong>s árabes, recor<strong>da</strong>vam de<br />

público, com insistência, achar-se essa ques-<br />

tão definitivamente ultrapassa<strong>da</strong>, não fa-<br />

zen<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> reabri-la. Não seria, portanto,<br />

muito difícil, se para isso houvesse vontade,<br />

superar, em negociações construtivas, a<br />

veemência <strong>da</strong>queles que, instiga<strong>do</strong>s ou não<br />

pelas novas atitudes de Israel, persistiam<br />

em querer transformar uma grave questão<br />

político-nacionalista de fun<strong>do</strong> religioso<br />

num problema de direitos humanos 17 .<br />

A questão <strong>da</strong>s reparações pela escravi-<br />

dão, a que se associava a idéia de um pedi<strong>do</strong><br />

de perdão pelo colonialismo, foi, sem dúvi-<br />

<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s mais complexas, inclusive por não<br />

se tratar de reivindicação unívoca. Dentro<br />

<strong>do</strong>s movimentos negros <strong>do</strong> continente ame-<br />

ricano como um to<strong>do</strong>, as propostas já varia-<br />

vam desde a de a<strong>do</strong>ção de políticas públicas<br />

eficazes, na linha <strong>da</strong>s quotas ou preferên-<br />

cias estabeleci<strong>da</strong>s nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na<br />

seqüência <strong>do</strong> movimento pelos direitos civis<br />

<strong>do</strong>s anos 50-60, a postulações de indeniza-<br />

ções em dinheiro, a serem pagas, em bloco<br />

ou individualmente, <strong>ao</strong>s descendentes vivos<br />

<strong>do</strong>s escravos (essa idéia nunca chegou a ser<br />

claramente explicita<strong>da</strong>, não se ten<strong>do</strong> sabi<strong>do</strong><br />

nunca quem pagaria o quê, como e a quem).<br />

16 Extraio estes <strong>da</strong><strong>do</strong>s factuais - não a interpretação - de Michael Banton, “Lessons from the 2001 World Conference Against Racism”, Journal of Ethnic<br />

and Migration Studies Vol. 28, nº 2, abril de 2002.<br />

17 Não quero com a presente crítica negar as violações de direitos humanos pelas forças de Israel, violações condena<strong>da</strong>s pela ONU e pelo Governo<br />

brasileiro. O que soa inaceitável é a incriminação genérica de um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conflito, com argumentação errônea (ou relativização de horrores genoci<strong>da</strong>s<br />

contra inocentes).<br />

A retira<strong>da</strong> de<br />

Washington,<br />

sob a<br />

administração<br />

de George<br />

W. Bush, de<br />

trata<strong>do</strong>s,<br />

encontros e<br />

concertações<br />

internacionais<br />

já se tornara<br />

corriqueira.


Envolvia, em senti<strong>do</strong> inteiramente distinto,<br />

a reivindicação de compensações interesta-<br />

tais, cobra<strong>da</strong> pelo Grupo de Esta<strong>do</strong>s Afri-<br />

canos, na forma de <strong>do</strong>ações financeiras, de<br />

esquecimento <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> ou de assistência<br />

aumenta<strong>da</strong>. Tal postulação, de senti<strong>do</strong> Sul-<br />

Norte, pela insistência com que se apresen-<br />

tava, demonstrava não apenas uma diferen-<br />

ça de enfoque entre os africanos <strong>da</strong> África<br />

e seus parentes <strong>da</strong> diáspora, como também<br />

uma diferença essencial na maneira de<br />

interpretar a natureza <strong>da</strong> conferência: para<br />

o Grupo Africano ela deixava de ser um<br />

encontro sobre direitos humanos para cons-<br />

tituir um foro eminentemente econômico.<br />

A to<strong>da</strong>s essas cobranças o Grupo Oci-<br />

dental se opunha, como era, obviamente,<br />

espera<strong>do</strong>. O que não era espera<strong>do</strong> foi o nível<br />

de rigidez e obstrução por ele manifesta<strong>do</strong><br />

nos parágrafos mais simples. Ao contrário<br />

<strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong> em 1993, na Conferência de<br />

Viena, quan<strong>do</strong>, em geral, aju<strong>da</strong>vam a for-<br />

mular linguagem conducente <strong>ao</strong> consenso,<br />

em Durban, países ocidentais freqüente-<br />

mente assumiam posições “bizantinas”,<br />

com propostas de alterações ridículas para<br />

os textos mais anódinos, como se quisessem<br />

deixar clara sua antipatia pela conferência.<br />

Para as questões difíceis, uma de suas tá-<br />

ticas consistia em espalhar boatos de uma<br />

possível retira<strong>da</strong> coletiva, deixan<strong>do</strong> para<br />

“o dia seguinte” a decisão sobre a matéria.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Mas essa tática, como ficou desde ce<strong>do</strong><br />

comprova<strong>do</strong>, longe de obter concessões,<br />

sempre tendia, <strong>ao</strong> contrário, a aumentar a<br />

vociferação <strong>do</strong>s demais. Nessas condições,<br />

tanto quanto as posturas árabes, excessi-<br />

vas, mas monotemáticas, ou a insistência<br />

africana em reparações pela escravidão e<br />

pedi<strong>do</strong> de perdão formal pelo colonialismo,<br />

a inflexibili<strong>da</strong>de e a provocação constante<br />

de Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ocidente produzia a impres-<br />

são desalenta<strong>do</strong>ra de que to<strong>do</strong> o trabalho de<br />

Durban seria uma experiência vã 18 .<br />

Para se ter uma idéia minimamente<br />

aproxima<strong>da</strong> <strong>da</strong> massa de dificul<strong>da</strong>des envol-<br />

vi<strong>da</strong>s na conferência, convém que se tome<br />

em consideração to<strong>do</strong>s os “temas” por ela<br />

trata<strong>do</strong>s, pois to<strong>do</strong>s eles continham fontes<br />

de controvérsias, às vezes surpreendentes<br />

(os “temas” foram aprova<strong>do</strong>s, com colchetes<br />

indicativos de falta de consenso em torno <strong>da</strong><br />

palavra “compensatórias” desde a primeira<br />

sessão <strong>do</strong> Comitê Preparatório, em Gene-<br />

bra, em maio de 2000, até o final <strong>da</strong> terceira<br />

e extr<strong>ao</strong>rdinária sessão, de 30 de julho a<br />

10 de agosto, também em Genebra, 20 dias<br />

antes <strong>do</strong> início <strong>da</strong> própria Conferência 19 ,<br />

assim encaminha<strong>do</strong>s a Durban e finalmente<br />

lá en<strong>do</strong>ssa<strong>do</strong>s). Os “temas” eram:<br />

Fontes, causas, formas e manifestações con-<br />

temporâneas de racismo, discriminação ra-<br />

cial, xenofobia e intolerância correlata;<br />

Vítimas de racismo, discriminação racial,<br />

18 Para não cometer uma injustiça flagrante, não posso deixar de assinalar o extr<strong>ao</strong>rdinário trabalho <strong>da</strong> Bélgica, na quali<strong>da</strong>de de coordena<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> União<br />

Européia, cuja paciência (irritante para os de fora), logrou manter os 15 uni<strong>do</strong>s e presentes até o final <strong>do</strong> evento. Foi também a Bélgica, na pessoa <strong>do</strong><br />

professor Marc Bossuyt, membro <strong>do</strong> Cerd (e co-patrocina<strong>do</strong>r <strong>da</strong> proposta original <strong>da</strong> Conferência na Subcomissão), quem presidiu com proficiência e<br />

dedicação o Grupo de Trabalho negocia<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Declaração.<br />

19 A terceira sessão <strong>do</strong> Comitê Preparatório (em Genebra de 30 de julho a 10 de agosto), não prevista nas resoluções sobre a Conferência, foi decidi<strong>da</strong><br />

exatamente em função <strong>da</strong> massa de discordâncias que as duas sessões anteriores não haviam consegui<strong>do</strong> aplainar (a segun<strong>da</strong> sessão ocorreu de 21 de maio<br />

a 1º de junho de 2001). Mas isso não chegava a ser novi<strong>da</strong>de, nem a significar dificul<strong>da</strong>des intransponíveis, na medi<strong>da</strong> em que a Conferência de Viena de<br />

1993 teve algo de assemelha<strong>do</strong>, senão pior, no processo preparatório (v. José Augusto Lindgren Alves, Relações internacionais e temas sociais - A déca<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s conferências, pág. 92)<br />

91


92<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

xenofobia e intolerância correlata;<br />

Medi<strong>da</strong>s de prevenção, educação e proteção<br />

volta<strong>da</strong>s para a erradicação <strong>do</strong> racismo,<br />

<strong>da</strong> discriminação racial, <strong>da</strong> xenofobia e <strong>da</strong><br />

intolerância correlata nos níveis nacional,<br />

regional e internacional;<br />

Provisão de remédios efetivos, recursos, cor-<br />

reção, assim como medi<strong>da</strong>s [compensatórias]<br />

e de outra ordem nos níveis nacional, regio-<br />

nal e internacional;<br />

Estratégias para alcançar a igual<strong>da</strong>de plena<br />

e efetiva, inclusive por meio <strong>da</strong> cooperação<br />

internacional e <strong>do</strong> fortalecimento <strong>da</strong>s Nações<br />

Uni<strong>da</strong>s e outros mecanismos internacionais para<br />

o combate <strong>ao</strong> racismo, à discriminação racial, à<br />

xenofobia e à intolerância correlata, assim como<br />

o acompanhamento de sua implementação. 20<br />

Até mesmo os <strong>do</strong>is primeiros “temas”,<br />

aparentemente inocentes, concernentes à<br />

definição <strong>da</strong>s fontes e causas <strong>do</strong> racismo,<br />

assim como a relação de suas vítimas, foram<br />

submeti<strong>do</strong>s a tantas e tamanhas controvérsias<br />

que, para se tentar saná-las, foram agrupa<strong>do</strong>s<br />

num <strong>do</strong>s três grandes conjuntos de “questões<br />

difíceis”, ain<strong>da</strong> nas discussões <strong>do</strong> Comitê<br />

Preparatório, sen<strong>do</strong> atribuí<strong>da</strong> <strong>ao</strong> México a<br />

função de “facilita<strong>do</strong>r” para buscar o consen-<br />

so. Os problemas que se apresentavam eram<br />

vários. A Índia não aceitava que se incluíssem<br />

os párias ou <strong>da</strong>lits entre as vítimas (enquanto<br />

<strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora <strong>da</strong>s salas de reunião párias<br />

procedentes <strong>do</strong> subcontinente indiano e sim-<br />

patizantes vários de outras nacionali<strong>da</strong>des<br />

faziam manifestações e vigílias para que a<br />

situação <strong>do</strong>s “intocáveis” não fosse deixa<strong>da</strong><br />

de la<strong>do</strong>), com a alegação de que as castas não<br />

decorrem de raça. As mulheres, estimula<strong>da</strong>s<br />

por suas conquistas nas Conferências <strong>do</strong> Cai-<br />

ro, em 1994, e de Beijing, em 1995, insistiam,<br />

pela voz de muitas delegações, na inclusão <strong>do</strong><br />

gênero como fonte de discriminações agrava-<br />

<strong>da</strong>s. Utilizan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> expressão “intolerância<br />

correlata”, os países ocidentais lato sensu,<br />

nesse caso lidera<strong>do</strong>s pelo Brasil, traziam <strong>ao</strong><br />

proscênio o problema <strong>da</strong> discriminação por<br />

orientação sexual, sofri<strong>da</strong> pelos homossexuais,<br />

universal mas ain<strong>da</strong> tabu em diversos meios<br />

e socie<strong>da</strong>des, não-reconheci<strong>da</strong> sequer como<br />

discriminação porque legalmente crimina-<br />

liza<strong>da</strong> em muitos países, por preconceito ou<br />

motivação religiosa.<br />

Somente na véspera <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta prevista de<br />

encerramento <strong>da</strong> conferência, a exausta de-<br />

legação mexicana logrou anunciar o acor<strong>do</strong><br />

- absur<strong>da</strong>mente tautológico - a que se conse-<br />

guira chegar sobre o tema <strong>da</strong>s “vítimas”, as-<br />

sim como a formulação - minimalista, repro-<br />

duzin<strong>do</strong> ipsis litteris o Artigo 1º <strong>da</strong> Conven-<br />

ção sobre a Eliminação de To<strong>da</strong>s as Formas<br />

de Discriminação Racial, 1965 - <strong>da</strong>s “causas<br />

(ou fontes)” de discriminações primárias,<br />

acrescentan<strong>do</strong>-se como fontes adicionais para<br />

as discriminações múltiplas ou agrava<strong>da</strong>s a<br />

expressão acomo<strong>da</strong>tícia “por outros motivos<br />

correlatos”, segui<strong>da</strong> de termos incontroversos,<br />

extraí<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Declaração Universal <strong>do</strong>s Di-<br />

reitos Humanos, a título exemplificativo. Tal<br />

acor<strong>do</strong> se lê nos arts. 1 e 2 <strong>da</strong> Declaração de<br />

Durban 21 , que rezam:<br />

20 Documento <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s A/CONF.189/1/Rev.1, de 02.10.2001. A palavra “compensatória” foi manti<strong>da</strong> entre colchetes, indicativos <strong>da</strong> falta de<br />

consenso, até a a<strong>do</strong>ção <strong>da</strong> Agen<strong>da</strong> pela Conferência, no dia 31.08.2001.<br />

21 A Declaração e o Programa de Ação de Durban constam <strong>do</strong> Relatório <strong>da</strong> Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a<br />

Xenofobia e Intolerância Correlata, <strong>do</strong>cumento <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s A/CONF.189/12. As citações aqui feitas foram traduzi<strong>da</strong>s por mim <strong>do</strong>s textos em<br />

inglês e em espanhol.<br />

A Índia não<br />

aceitava que<br />

se incluíssem<br />

os párias ou<br />

<strong>da</strong>lits entre as<br />

vítimas.


“1. Declaramos que, para efeitos <strong>da</strong> presente<br />

Declaração e Programa de Ação, as vítimas<br />

<strong>do</strong> racismo, discriminação racial, xenofobia e<br />

formas correlatas de intolerância são os indi-<br />

víduos ou grupos de indivíduos que sejam ou<br />

tenham si<strong>do</strong> afeta<strong>do</strong>s negativamente por esses<br />

flagelos, submeti<strong>do</strong>s a eles ou seu alvo.<br />

2. Reconhecemos que o racismo, a discri-<br />

minação racial, a xenofobia e as formas<br />

correlatas de intolerância são produzi<strong>da</strong>s por<br />

motivos de raça, cor, descendência, origem<br />

nacional ou étnica, e que as vítimas podem<br />

sofrer formas múltiplas ou agrava<strong>da</strong>s de<br />

discriminação por outros motivos correlatos,<br />

como o sexo, o idioma, a religião, opiniões<br />

políticas ou de outra ín<strong>do</strong>le, origem social,<br />

situação econômica, nascimento ou outra<br />

condição.” 22<br />

Sem pretender esgotar, nem de longe, a<br />

descrição <strong>da</strong>s controvérsias e circunstâncias<br />

que quase levaram à inexistência de <strong>do</strong>cu-<br />

mentos finais em Durban, pode-se assina-<br />

lar, por exemplo, sobre os temas <strong>da</strong>s “medi-<br />

<strong>da</strong>s de prevenção, educação e proteção para<br />

erradicar o racismo” e <strong>da</strong>s “estratégias para<br />

se alcançar a igual<strong>da</strong>de plena”, que a ex-<br />

pressão corrente ação afirmativa foi bani<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> conferência, por mais que os movimen-<br />

tos negros - inclusive o brasileiro - e outros<br />

grupos organiza<strong>do</strong>s presentes <strong>ao</strong> evento a<br />

defendessem. E foi bani<strong>da</strong> exatamente pelo<br />

país que a inventou, na linguagem e na prá-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

tica: os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Isso porque, como<br />

é sabi<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> nos tempos <strong>do</strong> democrata<br />

liberal Bill Clinton, alguns esta<strong>do</strong>s norte-<br />

americanos, começan<strong>do</strong> pela Califórnia, já<br />

a haviam legalmente aboli<strong>do</strong>. No governo<br />

republicano, tal tendência deveria logica-<br />

mente intensificar-se. Daí a objeção <strong>do</strong>s<br />

delega<strong>do</strong>s norte-americanos sempre que ela<br />

aparecia. E de na<strong>da</strong> adiantou, para a lingua-<br />

gem <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos, a retira<strong>da</strong> <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s. Seus alia<strong>do</strong>s mais fiéis presentes<br />

velaram zelosamente para que essa expres-<br />

são, hoje universalmente consagra<strong>da</strong>, não<br />

reaparecesse em qualquer parágrafo.<br />

Outro fato que merece ser lembra<strong>do</strong>,<br />

pela ironia de que se reveste, foi a quanti<strong>da</strong>-<br />

de de vezes que, em meio a negociações em-<br />

perra<strong>da</strong>s sobre os assuntos mais delica<strong>do</strong>s,<br />

certas delegações européias fizeram questão<br />

de afirmar sua não-aceitação <strong>da</strong> noção de<br />

raça. Como se Ernest Renan, Le Bon, La-<br />

pouge, Gumplowicz, Franz Gall, John Hunt<br />

e nosso velho conheci<strong>do</strong> Gobineau, sem<br />

falar de Spencer e Galton, ou, mais tenebro-<br />

samente, <strong>do</strong> nacional-socialismo alemão,<br />

não tivessem si<strong>do</strong> europeus, inspira<strong>do</strong>res de<br />

políticas conseqüentes! 23 Por mais meritó-<br />

ria que fosse a recusa dessa noção, ela, em<br />

geral, funcionava como mero complica<strong>do</strong>r<br />

adicional de discussões já acirra<strong>da</strong>s. Além<br />

disso, é preciso ter em mente que, se eleva-<br />

<strong>da</strong> a extremos, essa rejeição fora de contexto<br />

poderia ad absurdum esvaziar a rationale <strong>da</strong><br />

22 Note-se que sequer o termo “gênero” (de conotação sociológica, <strong>ao</strong> contrário de “sexo”, meramente biológico), postula<strong>do</strong> pelo movimento de mulheres<br />

e previamente usa<strong>do</strong> nos <strong>do</strong>cumentos de Beijing, foi aceito. Para esclarecer quaisquer dúvi<strong>da</strong>s, nas poucas vezes em que a palavra aparece, como no 33º<br />

parágrafo preambular (que reitera a conveniência de se aplicar uma perspectiva de gênero para evitar discriminações contra a mulher), uma nota de ro<strong>da</strong>pé<br />

explicita referir-se o termo “a ambos os sexos, varão e mulher, no contexto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de”, não comportan<strong>do</strong> qualquer outro significa<strong>do</strong>.<br />

23 Para uma descrição <strong>do</strong> racismo científico e sua evolução para o “novo racismo” atual, v. Michel Wiewiorka, Le racisme, une introduction, Paris,<br />

La Decouverte, 1998. Sobre o “novo racismo europeu”, v. o mesmo Michel Wiewiorka et al., Racisme et xénophobie en Europe - une comparaison<br />

internationale, Paris, La Découverte, 1994.<br />

93


94<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

conferência, <strong>da</strong> Convenção sobre a Elimina-<br />

ção de To<strong>da</strong>s as Formas de Discriminação<br />

Racial e <strong>do</strong>s demais instrumentos de com-<br />

bate <strong>ao</strong> racismo. Por uma questão de lógica,<br />

a inexistência de raças poderia representar<br />

inexistência de racismo, justifican<strong>do</strong> uma<br />

inação, que ninguém ousaria, na conferên-<br />

cia, suscitar como posição.<br />

To<strong>do</strong>s de boa fé sabemos que “raça” é<br />

sobretu<strong>do</strong> uma construção social, negativa<br />

ou positiva conforme o objetivo que se lhe<br />

queira <strong>da</strong>r. Pode ou não envolver traços<br />

físicos, cor de pele, língua, religião ou cos-<br />

tumes “racializa<strong>do</strong>s”. Com senti<strong>do</strong> roman-<br />

ticamente comunitário, a idéia de “raça”<br />

fun<strong>da</strong>mentou a formação <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s na-<br />

cionais europeus (particularmente a Alema-<br />

nha unifica<strong>da</strong> no Século XIX, mas a Data<br />

Nacional de Portugal, que celebra Camões<br />

e sua poesia, chama-se também “Dia <strong>da</strong><br />

Raça”), assim como serviu de base à expan-<br />

são colonialista, justifican<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minação<br />

“civiliza<strong>do</strong>ra” de populações “inferiores”.<br />

Nesse mesmo senti<strong>do</strong> identitário, agora com<br />

os sinais troca<strong>do</strong>s, a raça tem si<strong>do</strong> atual-<br />

mente usa<strong>da</strong> pela esquer<strong>da</strong> como amálgama<br />

de auto-afirmação para quem antes era, ou<br />

ain<strong>da</strong> permanece, deprecia<strong>do</strong> pelos demais.<br />

E <strong>ao</strong> mesmo tempo serve <strong>ao</strong> diferencialismo<br />

racista <strong>da</strong> direita, que rejeita os imigrantes,<br />

os estrangeiros, os diferentes, porque “cul-<br />

turalmente inassimiláveis”.<br />

O problema não está na existência ou<br />

não de raças, mas no senti<strong>do</strong> que se dá <strong>ao</strong><br />

termo. Se atribuirmos caracteres inerentes,<br />

naturais e inescapáveis, às diferenças físi-<br />

cas, psíquicas, lingüísticas ou etno-religio-<br />

sas de qualquer população, estaremos sen<strong>do</strong><br />

racistas, quase sempre para o mal. Como<br />

explicita Wierwiorka, o racismo hoje em<br />

voga é muito mais cultural e diferencialista<br />

<strong>do</strong> que científico e instrumental, como ocor-<br />

reu no passa<strong>do</strong>. Seja com base “científica”,<br />

universalista mas inferiorizante, ou “cultu-<br />

ral” diferencialista e excludente, a ver<strong>da</strong>de<br />

nua e crua é que o racismo existe, segrega,<br />

discrimina e mata. Fenômeno socioeconô-<br />

mico e político, ele faz estragos terríveis em<br />

primeiro lugar às vítimas e sua coletivi<strong>da</strong>de.<br />

Fá-lo também à socie<strong>da</strong>de como um to<strong>do</strong>,<br />

onde os inocentes, acomo<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou não, são<br />

igualmente alvo <strong>do</strong> ódio retribuí<strong>do</strong>.<br />

Posturas ridículas no contexto <strong>da</strong>s ne-<br />

gociações à parte, é bom que a conferência<br />

tenha afirma<strong>do</strong>, no art. 7 <strong>da</strong> Declaração:<br />

“7. (...) To<strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina de superiori<strong>da</strong>de<br />

racial é cientificamente falsa, moralmente<br />

condenável, socialmente injusta e perigosa,<br />

deven<strong>do</strong> ser rechaça<strong>da</strong> juntamente com as<br />

teorias que procuram determinar a existência<br />

de raças humanas separa<strong>da</strong>s”.<br />

Também parece positivo o fato de que<br />

a União Européia, em adição a esse artigo,<br />

tenha feito questão de assinalar, no encer-<br />

ramento <strong>do</strong> encontro, pela voz <strong>da</strong> delegação<br />

<strong>da</strong> Bélgica, então presidente <strong>do</strong>s “quinze”,<br />

que to<strong>do</strong>s os seus Esta<strong>do</strong>s-membros:<br />

“... rechaçam firmemente qualquer <strong>do</strong>utrina<br />

que proclame a superiori<strong>da</strong>de racial, junta-<br />

mente com as teorias que tentam determinar a<br />

existência de raças humanas distintas (...). Isto<br />

não implica negação <strong>do</strong> conceito de raça como<br />

motivo de discriminação, nem negação <strong>da</strong>s ma-<br />

nifestações de racismo e discriminação racial,<br />

segun<strong>do</strong> defini<strong>da</strong>s pelo Artigo 1º <strong>da</strong> Convenção<br />

(de 1965), que ain<strong>da</strong> existem em to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.”<br />

À luz <strong>da</strong>s atitudes coletivas de repúdio,<br />

a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s pouco antes pela União Européia,<br />

O racismo<br />

hoje em voga<br />

é muito mais<br />

cultural e<br />

diferencialista<br />

<strong>do</strong> que<br />

científico e<br />

instrumental.


diante <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>ao</strong> poder de parti<strong>do</strong> semi-<br />

nazista em um de seus Esta<strong>do</strong>s-membros, e<br />

<strong>do</strong> crescimento <strong>da</strong> populari<strong>da</strong>de de “fren-<br />

tes”, “ligas” ou parti<strong>do</strong>s ultranacionalistas<br />

- micronacionalistas em alguns casos - com<br />

programas basea<strong>do</strong>s na fustigação de imi-<br />

grantes provenientes de regiões mais pobres,<br />

tal declaração <strong>do</strong>s quinze, logo segui<strong>da</strong> pela<br />

Suíça, mais <strong>do</strong> que uma explicação genéri-<br />

ca, soava como uma autocrítica ou, quiçá,<br />

auto-advertência. Pois neste início de século,<br />

em tendência confirma<strong>da</strong> eleitoralmente na<br />

Europa <strong>ao</strong> longo de 2002, assim como des-<br />

de antes em países <strong>da</strong> Ásia, a atribuição de<br />

culpa <strong>ao</strong>s estrangeiros pelas mazelas vivi<strong>da</strong>s<br />

tornou-se ver<strong>da</strong>deira constante.<br />

A busca de soluções<br />

Sublinhan<strong>do</strong> mais uma vez que as divergên-<br />

cias acima menciona<strong>da</strong>s foram importantes,<br />

mas nem de longe as únicas, cabe agora<br />

<strong>da</strong>r uma idéia <strong>do</strong>s processos pelos quais se<br />

“solucionaram” as principais dificul<strong>da</strong>des,<br />

a saber: o grupo de parágrafos relaciona<strong>do</strong>s<br />

com o conflito árabe-israelense e o <strong>do</strong>s ati-<br />

nentes às chama<strong>da</strong>s “questões históricas”,<br />

em que se incluía a idéia de reparações atu-<br />

ais. Para ambos, a exemplo <strong>do</strong> que se passa-<br />

va com o já descrito problema <strong>da</strong>s “fontes<br />

e vítimas” com coordenação <strong>do</strong> México,<br />

haviam si<strong>do</strong> designa<strong>do</strong>s na última sessão <strong>do</strong><br />

Comitê Preparatório <strong>do</strong>is “coordena<strong>do</strong>res”:<br />

a África <strong>do</strong> Sul (na quali<strong>da</strong>de de país anfi-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

trião) para o Oriente Médio e o Brasil para<br />

os “temas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”. Na<strong>da</strong> foi possível<br />

adiantar, até porque os Esta<strong>do</strong>s direta-<br />

mente interessa<strong>do</strong>s não queriam reunir-se.<br />

Em Durban, a presidenta <strong>da</strong> Conferência,<br />

Nkosazana Dlamini Zuma, ministra <strong>da</strong>s<br />

Relações Exteriores <strong>da</strong> África <strong>do</strong> Sul, deci-<br />

diu reconstituir os três grupos informais de<br />

trabalho, manten<strong>do</strong> como coordena<strong>do</strong>res o<br />

México para o primeiro conjunto; o Brasil<br />

(na figura <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r Gilberto Sabóia,<br />

chefe alterno <strong>da</strong> delegação brasileira) 24 ,<br />

como coordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s “questões históri-<br />

cas”, assisti<strong>do</strong> pelo Quênia; a Noruega, em<br />

função <strong>do</strong>s “acor<strong>do</strong>s de Oslo”, para os pará-<br />

grafos relativos <strong>ao</strong> Oriente Médio, auxilia<strong>da</strong><br />

pela Namíbia.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que, em contraste com<br />

os <strong>do</strong>is primeiros grupos, aquele corres-<br />

pondente <strong>ao</strong> Oriente Médio não mostrava<br />

nenhuma evolução positiva com o passar<br />

<strong>do</strong>s dias, a chanceler sul-africana arrogou<br />

a si mesma essa tarefa de coordenação apa-<br />

rentemente impossível, estabelecen<strong>do</strong> como<br />

auxiliares cinco representantes <strong>do</strong>s diferen-<br />

tes grupos regionais. Tanto o México, como<br />

o Brasil e a chanceler sul-africana, após<br />

ouvirem as diferentes - e múltiplas - posi-<br />

ções conflitantes sobre os diferentes pará-<br />

grafos, tomaram o mesmo tipo de iniciativa:<br />

a partir <strong>da</strong>s intervenções ouvi<strong>da</strong>s - muitas<br />

vezes até o amanhecer -, escreveram novos<br />

conjuntos de parágrafos para os assuntos<br />

respectivos, os quais deveriam substituir, na<br />

24 O chefe titular <strong>da</strong> delegação <strong>do</strong> Brasil foi o então-ministro <strong>da</strong> Justiça José Gregori, que proferiu a alocução oficial em plenário. O embaixa<strong>do</strong>r Sabóia<br />

exercia, na época, as funções de secretário de Esta<strong>do</strong> para os Direitos Humanos. Abrigan<strong>do</strong> grande número de autori<strong>da</strong>des e representantes <strong>do</strong>s três Poderes<br />

em níveis diversos <strong>da</strong> Federação, assim como integrantes de movimentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil, a delegação <strong>do</strong> Brasil em Durban foi uma <strong>da</strong>s mais numerosas.<br />

A ela se associavam mais de 200 militantes, que compareceram <strong>ao</strong> fórum de ONGs, <strong>ao</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Centro de Conferências, e mantinham com a delegação<br />

oficial interação constante, notavelmente cooperativa. É de notar, também, que a Relatoria Geral <strong>da</strong> Conferência coube, por eleição, a uma brasileira,<br />

muito atuante na socie<strong>da</strong>de civil: Edna Roland.<br />

95


96<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

Declaração e Programa de Ação de Durban,<br />

tu<strong>do</strong> o que se referisse às questões em pau-<br />

ta, apagan<strong>do</strong>-se, pois, aquilo que constava,<br />

sem acor<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s anteprojetos recebi<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

Comitê Preparatório 25 .<br />

Com exceção <strong>do</strong>s assuntos coordena<strong>do</strong>s<br />

pelo México, cuja re<strong>da</strong>ção final minimalista<br />

foi apresenta<strong>da</strong> <strong>ao</strong> Comitê de Re<strong>da</strong>ção pou-<br />

co antes <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta marca<strong>da</strong> para o encerra-<br />

mento <strong>da</strong> conferência, os novos parágrafos<br />

sobre o Oriente Médio e sobre os assuntos<br />

históricos foram apresenta<strong>do</strong>s pelos respec-<br />

tivos coordena<strong>do</strong>res, já no dia 8, diretamen-<br />

te <strong>ao</strong> Comitê Plenário, que os acolheu. Mas<br />

aí se iniciou um novo processo que quase<br />

põe tu<strong>do</strong> a perder.<br />

Insatisfeitos com o tom mais modera<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s parágrafos sobre o Oriente Médio, os<br />

países integrantes <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong> Con-<br />

ferência Islâmica, pela voz <strong>da</strong> delegação<br />

<strong>da</strong> Síria, retomaram alguns <strong>do</strong>s parágrafos<br />

mais controverti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anteprojetos, supe-<br />

ra<strong>do</strong>s pelos novos textos recém-aprova<strong>do</strong>s,<br />

supostamente consensuais, e os reapresen-<br />

taram à consideração <strong>do</strong> Comitê. Diante <strong>da</strong><br />

surpresa generaliza<strong>da</strong>, muita movimentação<br />

na mesa, consultas formula<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> consultor<br />

jurídico <strong>da</strong> ONU, e após uma nova suspen-<br />

são <strong>do</strong>s trabalhos de duas horas (quan<strong>do</strong> a<br />

conferência deveria ter termina<strong>do</strong> na vés-<br />

pera!), o Brasil, em ação corajosa, visan<strong>do</strong><br />

salvar a conferência, formulou, com base<br />

no regulamento vigente, moção de não-<br />

consideração desses textos reapresenta<strong>do</strong>s.<br />

25 Documentos A/CONF.189/4 e A/CONF.189/5.<br />

Nova confusão se armou, na medi<strong>da</strong> em que<br />

delega<strong>do</strong>s ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s não notaram ou não<br />

entenderam que, também de acor<strong>do</strong> com o<br />

regulamento, a moção brasileira, para ser<br />

váli<strong>da</strong>, precisaria ser secun<strong>da</strong><strong>da</strong> de público<br />

por pelo menos <strong>do</strong>is outros países, enquanto<br />

a Síria e a Argélia a ela logo se opuseram.<br />

Isola<strong>do</strong> (pela incompetência alheia), o<br />

Brasil viu-se força<strong>do</strong> a retirar a proposta.<br />

Quan<strong>do</strong> finalmente entendi<strong>da</strong> a oportuni-<br />

<strong>da</strong>de desperdiça<strong>da</strong>, a Bélgica, em nome <strong>do</strong>s<br />

15 membros <strong>da</strong> União Européia, retomou<br />

a iniciativa brasileira, reapresentan<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />

Comitê Principal a moção de não-consi-<br />

deração. A moção foi, então, submeti<strong>da</strong> a<br />

votação, sen<strong>do</strong> aprova<strong>da</strong> por 51 a favor, 37<br />

contra e 11 abstenções. Passou, assim, por<br />

voto a moção de não-consideração desses<br />

parágrafos controverti<strong>do</strong>s (portanto, defi-<br />

nitivamente anula<strong>do</strong>s), mas não foi objeto<br />

de escrutínio o conjunto alternativo. Isso<br />

permitiu <strong>ao</strong> Comitê Principal e, poste-<br />

riormente, <strong>ao</strong> Plenário, a<strong>do</strong>tar sem voto a<br />

Declaração e o Programa de Ação, tornan<strong>do</strong><br />

os resulta<strong>do</strong>s de Durban ipso facto mais<br />

positivos <strong>do</strong> que os <strong>da</strong>s duas conferências<br />

anteriores sobre o racismo 26 .<br />

Embora não caiba aqui repetir integral-<br />

mente os textos afinal aprova<strong>do</strong>s para essas<br />

questões candentes, vale a pena recor<strong>da</strong>r,<br />

porque auto-explicativos à luz <strong>do</strong> que já foi<br />

antes assinala<strong>do</strong>, alguns desse novos pará-<br />

grafos a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s sem voto (to<strong>do</strong>s os quais<br />

foram inseri<strong>do</strong>s, após outros contratempos<br />

26 Não posso deixar de assinalar, até por impulso patriótico, que foi duas vezes graças <strong>ao</strong> Brasil, e pela mesma pessoa, o embaixa<strong>do</strong>r Gilberto Sabóia,<br />

que a Conferência de Durban teve êxito: <strong>ao</strong> coordenar as discussões e, conseqüentemente, a re<strong>da</strong>ção <strong>do</strong>s parágrafos alternativos importantíssimos sobre<br />

as chama<strong>da</strong>s questões <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, assim como pela “ousadia” de formular sozinho a moção procedimental de não-consideração para os parágrafos<br />

inaceitáveis concernentes <strong>ao</strong> Oriente Médio. E é sempre bom recor<strong>da</strong>r que também o Brasil, na mesma pessoa <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r Gilberto Sabóia, já havia<br />

si<strong>do</strong> responsável em 1993 pela re<strong>da</strong>ção consensual <strong>da</strong> Declaração e Programa de Ação de Viena, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos.


entre o fim <strong>da</strong> Conferência e a Assembléia<br />

Geral, na Declaração de Durban):<br />

A propósito <strong>do</strong> conflito árabe-israelense:<br />

“58. Recor<strong>da</strong>mos que o Holocausto não deve<br />

ser nunca esqueci<strong>do</strong>.<br />

61. Reconhecemos com profun<strong>da</strong> preocupa-<br />

ção o aumento <strong>do</strong> anti-semitismo e <strong>da</strong> isla-<br />

mofobia em diversas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, assim<br />

como o aparecimento de movimentos raciais<br />

e violentos basea<strong>do</strong>s no racismo e em idéias<br />

discriminatórias contra as comuni<strong>da</strong>des ju-<br />

dia, muçulmana e árabe.<br />

63. Preocupam-nos os padecimentos <strong>do</strong> povo<br />

palestino submeti<strong>do</strong> à ocupação estrangeira.<br />

Reconhecemos o direito inalienável <strong>do</strong> povo<br />

palestino à autodeterminação e <strong>ao</strong> estabele-<br />

cimento de um Esta<strong>do</strong> independente e reco-<br />

nhecemos o direito à segurança de to<strong>do</strong>s os<br />

Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> região, inclusive Israel. Fazemos<br />

um chamamento a to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s para que<br />

apóiem o processo de paz e o levem a uma<br />

pronta conclusão.<br />

64. Apelamos por uma paz justa, abrangente<br />

e dura<strong>do</strong>ura na região, em que to<strong>do</strong>s os povos<br />

coexistam e desfrutem de igual<strong>da</strong>de, justiça e<br />

os direitos humanos internacionalmente reco-<br />

nheci<strong>do</strong>s, assim como de segurança.<br />

65. Reconhecemos o direito <strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s<br />

de regressarem voluntariamente a seus lares<br />

e proprie<strong>da</strong>des em condições de digni<strong>da</strong>de e<br />

segurança, e instamos a to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s que<br />

facilitem esse retorno.”<br />

Sobre as “questões históricas”:<br />

“13. Reconhecemos que a escravidão e o<br />

tráfico de escravos, em particular o tráfico<br />

transatlântico, foram tragédias atrozes na<br />

história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, não apenas por sua<br />

abominável barbárie, mas também por sua<br />

magnitude, seu caráter organiza<strong>do</strong> e, espe-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

cialmente, sua negação <strong>da</strong> essência <strong>da</strong>s víti-<br />

mas. Reconhecemos ain<strong>da</strong> que a escravidão e<br />

o tráfico de escravos, especialmente o tráfico<br />

transatlântico, são, e sempre deveriam ter<br />

si<strong>do</strong>, um crime contra a humani<strong>da</strong>de e se<br />

encontram entre as maiores fontes e mani-<br />

festações de racismo, discriminação racial,<br />

xenofobia e intolerância correlata, e que os<br />

africanos e afrodescendentes, os asiáticos e<br />

descendentes de asiáticos, assim como os po-<br />

vos indígenas, foram vítimas de tais práticas<br />

e continuam a sê-lo de suas conseqüências.<br />

14. Reconhecemos que o colonialismo levou<br />

<strong>ao</strong> racismo, à discriminação racial, à xeno-<br />

fobia e a formas correlatas de intolerância, e<br />

que os africanos e afrodescendentes, os asiá-<br />

ticos e descendentes de asiáticos, assim como<br />

os povos indígenas, foram vítimas <strong>do</strong> colonia-<br />

lismo e continuam a sê-lo de suas conseqüên-<br />

cias. Reconhecemos os sofrimentos causa<strong>do</strong>s<br />

pelo colonialismo e afirmamos que, onde e<br />

quan<strong>do</strong> quer que ele tenha ocorri<strong>do</strong>, deve ser<br />

condena<strong>do</strong> e impedi<strong>do</strong> de ocorrer novamente.<br />

Ademais lamentamos que os efeitos e a persis-<br />

tência dessas estruturas e práticas sejam <strong>do</strong>s<br />

fatores que contribuem para as desigual<strong>da</strong>des<br />

sociais e econômicas dura<strong>do</strong>uras em muitas<br />

partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de hoje.<br />

100. Reconhecemos e lamentamos profun<strong>da</strong>-<br />

mente os sofrimentos e males indizíveis infligi-<br />

<strong>do</strong>s a milhões de homens, mulheres e crianças<br />

como resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> escravidão, <strong>do</strong> tráfico de<br />

escravos, <strong>do</strong> tráfico transatlântico de escravos,<br />

<strong>do</strong> apartheid e de tragédias passa<strong>da</strong>s. Nota-<br />

mos também que alguns Esta<strong>do</strong>s têm toma<strong>do</strong><br />

a iniciativa de pedir perdão e de pagar indeni-<br />

zação, conforme apropria<strong>do</strong>, para as graves e<br />

maciças violações cometi<strong>da</strong>s.<br />

101. Com vistas a <strong>da</strong>r por encerra<strong>do</strong>s esses<br />

capítulos sombrios <strong>da</strong> história e como uma um<br />

97


98<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

meio de reconciliação e cicatrização de feri-<br />

<strong>da</strong>s, convi<strong>da</strong>mos a comuni<strong>da</strong>de internacional<br />

e seus membros a honrar a memória <strong>da</strong>s víti-<br />

mas dessas tragédias. Ademais notamos que<br />

alguns têm toma<strong>do</strong> a iniciativa de lamentar<br />

ou de expressar remorso ou de pedir perdão,<br />

e instamos a to<strong>do</strong>s que ain<strong>da</strong> não tenham<br />

contribuí<strong>do</strong> para restaurar a digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

vítimas que procurem meios apropria<strong>do</strong>s de o<br />

fazer. Nesse senti<strong>do</strong>, expressamos nossa apre-<br />

ciação pelos países que já o fizeram.”<br />

Embora os artigos acima reproduzi<strong>do</strong>s<br />

de maneira não seqüencial já formem lista<br />

compri<strong>da</strong>, o total de textos redigi<strong>do</strong>s pelos<br />

coordena<strong>do</strong>res e inseri<strong>do</strong>s na Declaração<br />

de Durban em substituição àqueles <strong>do</strong>s<br />

anteprojetos para os quais não havia pos-<br />

sibili<strong>da</strong>de de consenso é mais longo. Tais<br />

como finalmente a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s, os novos textos<br />

não agra<strong>da</strong>ram inteiramente a nenhuma <strong>da</strong>s<br />

posições maximalistas. Mas isso é diploma-<br />

cia, na melhor acepção <strong>do</strong> termo: a busca de<br />

um mínimo denomina<strong>do</strong>r comum que não<br />

permitirá a ninguém apresentar-se como<br />

vence<strong>do</strong>r absoluto, nem ser aponta<strong>do</strong> como<br />

totalmente derrota<strong>do</strong>. Assim sen<strong>do</strong>, como é<br />

normal em qualquer evento <strong>do</strong> gênero, di-<br />

versas delegações, na sessão de encerramen-<br />

to, fizeram questão de assinalar reservas ou<br />

explicações interpretativas.<br />

Com relação <strong>ao</strong>s parágrafos sobre o<br />

Oriente Médio, alguns ocidentais registra-<br />

ram reservas <strong>ao</strong> texto que constitui atual-<br />

mente o parágrafo 65, supra-reproduzi<strong>do</strong>,<br />

pois consideravam que o direito de regresso<br />

<strong>do</strong>s refugia<strong>do</strong>s por ele consigna<strong>do</strong> consti-<br />

tuiria um complica<strong>do</strong>r adicional <strong>ao</strong>s (hoje<br />

totalmente esqueci<strong>do</strong>s) “acor<strong>do</strong>s de Oslo”,<br />

justifican<strong>do</strong>, em última instância, rejeição<br />

à existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel. Mas é fato<br />

também que, no contexto, ele pode ser li<strong>do</strong><br />

como o simples direito de regresso a suas<br />

casas <strong>do</strong>s palestinos expeli<strong>do</strong>s em função de<br />

“assentamentos” israelenses em territórios<br />

ocupa<strong>do</strong>s por guerras (é importante recor-<br />

<strong>da</strong>r que a autorização para o reinício <strong>do</strong><br />

estabelecimento de tais “colônias” foi <strong>da</strong>s<br />

primeiras atitudes a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s pelo Governo<br />

de Ariel Sharon). Os árabes, por sua vez,<br />

juntamente com outras delegações de países<br />

muçulmanos, declararam, em linhas gerais,<br />

que os parágrafos a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s sobre o Oriente<br />

Médio não refletiam corretamente a gravi-<br />

<strong>da</strong>de <strong>da</strong> situação (e o futuro próximo iria<br />

comprovar que não estavam erra<strong>do</strong>s, no que<br />

concerne tanto <strong>ao</strong>s palestinos como à popu-<br />

lação israelense). A propósito <strong>da</strong>s “questões<br />

históricas”, resolvi<strong>da</strong>s de maneira notavel-<br />

mente construtiva, verifica-se, por exemplo,<br />

que as “reparações” ou “pedi<strong>do</strong>s de perdão”<br />

pela escravidão e o colonialismo não são<br />

exigi<strong>do</strong>s, porque não o poderiam ser. Mas<br />

elogiam-se os países que tenham toma<strong>do</strong><br />

essas iniciativas e faz-se chamamento àque-<br />

les que não o fizeram para que encontrem<br />

maneiras adequa<strong>da</strong>s de “restabelecer a dig-<br />

ni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s vítimas”. Tampouco foi aceita<br />

a qualificação <strong>da</strong> escravidão passa<strong>da</strong> como<br />

um “crime contra a humani<strong>da</strong>de”, como era<br />

desejo <strong>do</strong>s africanos, porque ela poderia,<br />

segun<strong>do</strong> consta, servir de base a cobranças<br />

judiciais. De qualquer forma, historicamen-<br />

te a escravidão era prática corrente e triste-<br />

mente legal, não existin<strong>do</strong> no Direito essa<br />

tipologia de crime (só estabeleci<strong>da</strong>, após<br />

a II Guerra Mundial, pelos Tribunais de<br />

Nuremberg e de Tóquio). Daí a fórmula <strong>do</strong><br />

parágrafo 13 declarar a escravidão e o tráfi-<br />

co de escravos como um crime contra a hu-<br />

Diversas<br />

delegações,<br />

na sessão de<br />

encerramento,<br />

fizeram<br />

questão de<br />

assinalar<br />

reservas ou<br />

explicações<br />

interpretativas.


mani<strong>da</strong>de (subentende-se que o são quan<strong>do</strong><br />

pratica<strong>do</strong>s atualmente), acrescentan<strong>do</strong> que<br />

sempre o deveriam ter si<strong>do</strong>. Muitas delega-<br />

ções africanas e caribenhas expressaram em<br />

declarações finais apoio <strong>ao</strong>s textos acor<strong>da</strong>-<br />

<strong>do</strong>s, mas sublinharam mais uma vez suas<br />

opiniões originais. E a respeito <strong>da</strong> questão<br />

<strong>da</strong>s fontes e vítimas, defini<strong>da</strong>s de forma<br />

tautológica e minimalista, até mesmo o<br />

Brasil, em sua declaração final, considerou<br />

os resulta<strong>do</strong>s aquém <strong>do</strong> deseja<strong>do</strong>, por não<br />

explicitarem o gênero, as deficiências e a<br />

orientação sexual entre os motivos de dis-<br />

criminação múltipla ou agrava<strong>da</strong> 27 .<br />

Os pontos mais positivos<br />

Para os negocia<strong>do</strong>res em Durban, exaustos<br />

e confundi<strong>do</strong>s, os pontos mais positivos<br />

pareceriam ser exatamente aqueles mais<br />

polêmicos, para os quais afinal se conse-<br />

guira acor<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que extraí<strong>do</strong> a forceps.<br />

Pelo menos porque esse difícil acor<strong>do</strong> lhes<br />

parecia haver “salva<strong>do</strong>” a Conferência <strong>do</strong><br />

mesmo destino de ostracismo que tiveram<br />

os <strong>do</strong>is encontros precedentes sobre o ra-<br />

cismo, nas déca<strong>da</strong>s de 70 e 80. E até certo<br />

ponto teriam razão.<br />

Se é inadequa<strong>do</strong> falar de “acor<strong>do</strong>” para<br />

os parágrafos sobre o conflito árabe-isra-<br />

elense, que, conforme já visto, somente<br />

prevaleceram por manobra procedimental,<br />

o mesmo não se pode dizer <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s<br />

“temas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”. Sem dúvi<strong>da</strong> menos<br />

incisivos e menos propícios à abertura de<br />

processos indenizatórios <strong>do</strong> que desejavam<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

países e movimentos sociais, eles são, ain<strong>da</strong><br />

assim, o que de mais avança<strong>do</strong> existe na<br />

esfera internacional como condenação semi-<br />

jurídica <strong>ao</strong> colonialismo, à escravidão e <strong>ao</strong><br />

tráfico de escravos, incrimina<strong>do</strong>s, inclusive,<br />

como origem de muitos <strong>do</strong>s sofrimentos<br />

presentes, de índios e afrodescendentes.<br />

Os índios - aliás, os poucos povos<br />

indígenas que encaram o direito de auto-<br />

determinação como caminho para a inde-<br />

pendência - podem ter-se senti<strong>do</strong> frustra<strong>do</strong>s<br />

pelas ressalvas feitas na declaração de que<br />

o reconhecimento <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong>s povos<br />

indígenas era feito conforme os princípios<br />

de soberania e integri<strong>da</strong>de territorial <strong>do</strong>s<br />

Esta<strong>do</strong>s, sem repercussões sobre negocia-<br />

ções em curso e sobre direitos reconheci<strong>do</strong>s<br />

em normas jurídicas internacionais (arts.<br />

23 e 24). Mas a expressão “povos indígenas”<br />

viu-se sacramenta<strong>da</strong> como tal, ten<strong>do</strong>-se tor-<br />

na<strong>do</strong> inclusive um <strong>do</strong>s subtítulos na parte<br />

<strong>do</strong> Programa de Ação concernente às víti-<br />

mas <strong>do</strong> racismo e <strong>da</strong> discriminação racial.<br />

Nele diversas medi<strong>da</strong>s são propostas <strong>ao</strong>s<br />

Esta<strong>do</strong>s para o reconhecimento <strong>do</strong>s direitos<br />

<strong>do</strong>s indígenas, a começar pelo respeito a sua<br />

cultura e sua participação em to<strong>da</strong>s as de-<br />

cisões que os envolvam (parágrafos 15 a 23<br />

<strong>do</strong> programa - o recorte de gênero é, aliás,<br />

assinala<strong>do</strong> nesses parágrafos como causa<br />

freqüente de atos de discriminação múltipla<br />

ou agrava<strong>da</strong>: contra as mulheres e meninas<br />

índias).<br />

Se os avanços obti<strong>do</strong>s para os povos<br />

indígenas soam relativamente pouco inova-<br />

<strong>do</strong>res, na medi<strong>da</strong> em que eles têm si<strong>do</strong> obje-<br />

27 To<strong>da</strong>s as declarações e manifestações de reservas se acham reproduzi<strong>da</strong>s no relatório <strong>da</strong> Conferência à Assembléia Geral - o já cita<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento<br />

A/CONF.189/12.<br />

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100<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

to de atenções <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s há muitos<br />

anos, o reconhecimento <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des<br />

que enfrentam os africanos e seus descen-<br />

dentes na diáspora, assim como a grande<br />

quanti<strong>da</strong>de de artigos e recomen<strong>da</strong>ções<br />

para corrigir as dispari<strong>da</strong>des de que são<br />

vítimas nas socie<strong>da</strong>des atuais constituem<br />

uma importante novi<strong>da</strong>de. A eles se dedica<br />

o primeiro subtítulo <strong>do</strong> capítulo <strong>da</strong>s vítimas<br />

no Programa de Ação, com inúmeras reco-<br />

men<strong>da</strong>ções <strong>ao</strong>s Esta<strong>do</strong>s (parágrafos 4 a 14<br />

<strong>do</strong> Programa), as quais, ademais de visarem<br />

a sua proteção judicial, <strong>ao</strong> reconhecimento<br />

de sua cultura e à supressão <strong>da</strong>s discrimi-<br />

nações contra suas tradições e religiões,<br />

propõem uma série de iniciativas nas áreas<br />

de educação e participação na vi<strong>da</strong> pública,<br />

que, sem se utilizar <strong>da</strong> expressão ação afir-<br />

mativa, claramente correspondem <strong>ao</strong> que<br />

ela significa. Na mesma linha, a própria<br />

declaração já assinala, no capítulo <strong>da</strong>s “víti-<br />

mas” em geral, a necessi<strong>da</strong>de de a<strong>do</strong>ção de<br />

“medi<strong>da</strong>s afirmativas ou medi<strong>da</strong>s especiais”<br />

para promover a plena integração dessas<br />

pessoas e grupos discrimina<strong>do</strong>s na socie<strong>da</strong>-<br />

de, ilustran<strong>do</strong> a recomen<strong>da</strong>ção com a pro-<br />

posta de “... medi<strong>da</strong>s especiais para lograr<br />

representação apropria<strong>da</strong> nas instituições<br />

de ensino, na moradia, nos parti<strong>do</strong>s polí-<br />

ticos, nos parlamentos e no emprego, em<br />

particular em órgãos judiciais e policiais,<br />

no exército e outros serviços civis, o que, em<br />

alguns casos pode exigir reformas eleitorais,<br />

reformas agrárias e campanhas em prol <strong>da</strong><br />

participação eqüitativa” (art. 108).”<br />

Em paralelo às atenções prioritárias<br />

acor<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s africanos e afrodescenden-<br />

tes, <strong>ao</strong>s asiáticos e seus descendentes no<br />

exterior, <strong>ao</strong>s povos e indivíduos indígenas,<br />

a Declaração de Durban foi o primeiro <strong>do</strong>-<br />

cumento <strong>do</strong> gênero a reconhecer “com pro-<br />

fun<strong>da</strong> preocupação as atuais manifestações<br />

de racismo” e violência contra os romanis/<br />

gitanos/sinti ou nômades (travellers) - to-<br />

<strong>da</strong>s elas autodenominações de diferentes<br />

comuni<strong>da</strong>des antes agrupa<strong>da</strong>s sob o nome<br />

genérico, hoje considera<strong>do</strong> pejorativo, de<br />

“ciganos” - e a conseqüente necessi<strong>da</strong>de de<br />

se elaborarem políticas e mecanismos que<br />

os protejam. Por motivos aponta<strong>do</strong>s ante-<br />

riormente, não foi possível à Conferência<br />

de Durban tratar <strong>do</strong> problema <strong>da</strong>s castas e<br />

<strong>da</strong>s discriminações impostas <strong>ao</strong>s párias ou<br />

<strong>da</strong>lits intocáveis, de acor<strong>do</strong> com tradições<br />

religiosas ou não. É, por outro la<strong>do</strong>, in-<br />

contestável que Durban, de conformi<strong>da</strong>de<br />

com as intenções originais que embasaram<br />

a proposta <strong>da</strong> conferência desde 1994, deu<br />

atenção adequa<strong>da</strong> à xenofobia como um <strong>do</strong>s<br />

mais graves problemas <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de mun-<br />

dial. Em seu art. 16, a declaração diz:<br />

“16. Reconhecemos que a xenofobia contra os<br />

não-nacionais, em particular os migrantes, os<br />

refugia<strong>do</strong>s e os solicitantes de asilo, constitui<br />

uma <strong>da</strong>s principais fontes <strong>do</strong> racismo contem-<br />

porâneo, e que as violações de direitos huma-<br />

nos cometi<strong>da</strong>s contra membros desses grupos<br />

ocorrem largamente no contexto de práticas<br />

discriminatórias, xenófobas e racistas.”<br />

Conseqüentemente, as recomen<strong>da</strong>ções<br />

de medi<strong>da</strong>s feitas <strong>ao</strong>s Esta<strong>do</strong>s, no Programa<br />

de Ação, para combater discriminações<br />

simples ou agrava<strong>da</strong>s contra trabalha<strong>do</strong>res<br />

migrantes, refugia<strong>do</strong>s e outros estrangeiros<br />

que se encontrem legal ou ilegalmente na<br />

respectiva jurisdição é pormenoriza<strong>da</strong>, es-<br />

tenden<strong>do</strong>-se por muitos parágrafos.<br />

Outros assuntos atuais que também<br />

estiveram na base <strong>da</strong>s motivações originais


<strong>da</strong> proposta <strong>da</strong> Conferência na Subcomissão<br />

contêm-se nos seguintes parágrafos trans-<br />

critos a título exemplificativo:<br />

“27. Expressamos nossa preocupação com o<br />

fato de que, além de o racismo vir ganhan<strong>do</strong><br />

terreno, formas e manifestações contemporâ-<br />

neas de racismo e xenofobia estão tentan<strong>do</strong><br />

voltar a adquirir reconhecimento político,<br />

moral e até legal de muitas maneiras, in-<br />

clusive por intermédio <strong>da</strong>s plataformas de<br />

algumas organizações e parti<strong>do</strong>s políticos,<br />

e <strong>da</strong> disseminação por meio de tecnologias<br />

modernas de idéias basea<strong>da</strong>s no conceito de<br />

superiori<strong>da</strong>de racial.<br />

83. Ressaltamos o papel chave que os líderes<br />

e parti<strong>do</strong>s políticos podem e devem desem-<br />

penhar na luta contra o racismo, a discri-<br />

minação racial, a xenofobia e a intolerância<br />

correlata, e encorajamos os parti<strong>do</strong>s políticos<br />

a tomarem medi<strong>da</strong>s concretas para promover<br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, tolerância e respeito.<br />

84. Condenamos a persistência e o reapare-<br />

cimento <strong>do</strong> neonazismo, <strong>do</strong> neofascismo e <strong>da</strong>s<br />

ideologias violentas basea<strong>da</strong>s em preconceitos<br />

raciais ou nacionais, e declaramos que esses<br />

fenômenos não se podem justificar em qual-<br />

quer caso, nem em qualquer circunstância.”<br />

Não cabe aqui uma análise aprofun<strong>da</strong>-<br />

<strong>da</strong> de como a globalização econômica sem<br />

orientação social ou contrapesos para seus<br />

“efeitos colaterais”, tem si<strong>do</strong> responsável<br />

pelo ressurgimento de fun<strong>da</strong>mentalismos<br />

religiosos, étnicos, raciais e nacionais. A<br />

literatura sobre a matéria é convincente e<br />

abun<strong>da</strong>nte. De qualquer forma, ain<strong>da</strong> que<br />

alguém queira negar essa responsabili<strong>da</strong>de,<br />

até porque, realmente, ninguém soube ain-<br />

<strong>da</strong> indicar maneiras de corrigi-la sem re-<br />

gressar a fórmulas ultrapassa<strong>da</strong>s, ninguém<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

tampouco poderá negar que a globalização<br />

é o pano de fun<strong>do</strong> em que emergem to<strong>do</strong>s<br />

esses “casos” e “circunstâncias”, aludi<strong>do</strong>s<br />

no art. 84. É importante que a Conferência<br />

de Durban não tenha evadi<strong>do</strong> a questão,<br />

caso contrário somente abor<strong>da</strong>ria sintomas.<br />

Fê-lo, aliás, bem no início, em seu longo art.<br />

11, onde diz, entre outras frases:<br />

“... Embora a globalização ofereça grandes<br />

oportuni<strong>da</strong>des, no presente seus benefícios se<br />

distribuem de forma muito desigual, como<br />

também o são seus custos. (...) Esses efeitos<br />

(<strong>da</strong> globalização) podem agravar inter alia a<br />

pobreza, o subdesenvolvimento, a margina-<br />

lização, a exclusão social, a homogeneização<br />

cultural e as desigual<strong>da</strong>des econômicas que<br />

podem ocorrer na base de linhas raciais,<br />

dentro <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e entre eles, com conseqü-<br />

ências negativas. (...) Somente desenvolven<strong>do</strong><br />

esforços amplos e sustenta<strong>do</strong>s para criar um<br />

futuro comum, fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong> em nossa co-<br />

mum humani<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong> sua diversi<strong>da</strong>de,<br />

poder-se-á produzir uma globalização plena-<br />

mente includente e eqüitativa.”<br />

Com o mesmo tipo de preocupação es-<br />

trutural volta<strong>da</strong> para a reali<strong>da</strong>de presente, o<br />

art. 18 ressalta que:<br />

“... a pobreza, o subdesenvolvimento, a<br />

marginalização, a exclusão social e as dis-<br />

pari<strong>da</strong>des econômicas estão estreitamente<br />

vincula<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> racismo, à discriminação<br />

racial, à xenofobia e à intolerância correlata<br />

e contribuem para a persistência de atitudes<br />

e práticas racistas que, por sua vez, geram<br />

mais pobreza”.<br />

Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> geral para o específico,<br />

o art. 74 <strong>da</strong> declaração trata <strong>do</strong> trabalho<br />

infantil, muito fala<strong>do</strong> atualmente e quase<br />

sempre condena<strong>do</strong>, pela ótica <strong>do</strong>s direitos<br />

101


102<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

humanos, com um simplismo contrapro-<br />

ducente - como se tal trabalho decorresse<br />

apenas <strong>da</strong> ambição explora<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s pais, ou<br />

<strong>do</strong>s respectivos governos. Contrarian<strong>do</strong> essa<br />

linha, o texto em questão se mostra, com<br />

linguagem comedi<strong>da</strong>, bastante arguto:<br />

“74. Reconhecemos que o trabalho infantil<br />

está relaciona<strong>do</strong> com a pobreza, a falta de<br />

desenvolvimento e condições socioeconômicas<br />

correlatas e que, em alguns casos, poderia<br />

perpetuar a pobreza e a discriminação racial<br />

por privar de maneira desproporcional as<br />

crianças <strong>do</strong>s grupos afeta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />

de adquirir as aptidões humanas necessárias<br />

a uma vi<strong>da</strong> produtiva e para beneficiar-se <strong>do</strong><br />

crescimento econômico.”<br />

É pouco, sem dúvi<strong>da</strong>, e cheio de pre-<br />

cauções sem senti<strong>do</strong> para mentes que<br />

conhecem de perto o problema, às vezes<br />

na própria pele. Mas é o máximo que já se<br />

disse sobre um fenômeno crescente, cujas<br />

raízes profun<strong>da</strong>s violam muito de frente<br />

o cre<strong>do</strong> neoliberal vigente na globalização<br />

sem controles.<br />

Avaliação e conclusão<br />

Em artigo publica<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> antes <strong>do</strong> en-<br />

cerramento <strong>da</strong> conferência, o jornalista<br />

Bob Herbert, como que para justificar a<br />

saí<strong>da</strong> antecipa<strong>da</strong> <strong>da</strong> delegação oficial nor-<br />

te-americana, dizia, no New York Times,<br />

que o encontro de Durban estava fa<strong>da</strong><strong>do</strong> à<br />

irrelevância desde sua concepção, porque os<br />

problemas <strong>da</strong> intolerância étnica, religiosa e<br />

de gênero são “grandes e complexos demais<br />

28 Bob Herbert, “Doomed to Irrelevance”, The New York Times, 06.09.2001.<br />

para serem trata<strong>do</strong>s por uma Conferência<br />

<strong>da</strong> ONU”. Não fosse o autor geralmente<br />

perspicaz e construtivo na análise <strong>do</strong>s pro-<br />

blemas raciais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, e se lhe<br />

deveria perguntar: Se não a ONU, quem?<br />

Mas a complementação <strong>do</strong> mesmo artigo<br />

explicitava um pouco mais as razões de sua<br />

descrença: os organiza<strong>do</strong>res podem ter ti<strong>do</strong><br />

os motivos mais eleva<strong>do</strong>s, mas “não se pode<br />

lançar uma luta global contra o racismo a<br />

partir de uma base de má-fé e hipocrisia”. 28<br />

Os críticos à Conferência de Durban<br />

são muitos, de natureza e níveis varia<strong>do</strong>s.<br />

Mas não é factível apontar um único país ou<br />

grupo de países como responsável exclusivo<br />

pelas provocações e falhas ocorri<strong>da</strong>s. Nem<br />

faz senti<strong>do</strong> observar somente as limitações e<br />

insucessos <strong>do</strong> evento, sem registrar os pon-<br />

tos positivos que ele também comportou.<br />

Na esfera <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, conforme aqui<br />

explica<strong>do</strong>, os governos que se opunham à<br />

reunião pouco fizeram para que ela se con-<br />

cretizasse. Quan<strong>do</strong> a conferência foi, afinal,<br />

aprova<strong>da</strong> pela Assembléia Geral <strong>da</strong> ONU,<br />

tornan<strong>do</strong>-se, em princípio, irreversível, tam-<br />

pouco se decidiram a encará-la de maneira<br />

construtiva. De outro la<strong>do</strong>, os que a favore-<br />

ciam porque tinham reivindicações a fazer,<br />

ou porque pretendiam insistir em posições<br />

políticas, por sua vez, também não faziam<br />

esforços para garantir seu sucesso. Manti-<br />

veram, <strong>ao</strong> contrário, até o último momento<br />

uma rigidez absoluta, inimiga <strong>do</strong> consenso,<br />

basea<strong>da</strong> na crença de que eram - ou, pelo me-<br />

nos, tinham si<strong>do</strong> - a ver<strong>da</strong>deira parte ofen-<br />

di<strong>da</strong>. Os ofensores, por sua vez, recusavam<br />

as acusações, já que a ofensa, nos tempos em<br />

Não é factível<br />

apontar um<br />

único país<br />

ou grupo de<br />

países como<br />

responsável<br />

exclusivo pelas<br />

provocações<br />

e falhas<br />

ocorri<strong>da</strong>s.


que a praticaram, não era criminosa. For-<br />

mava-se assim um círculo vicioso que quase<br />

tecia um nó górdio 29 . Foram as delegações<br />

com postura equilibra<strong>da</strong>s, como aquelas que<br />

funcionaram como “coordena<strong>do</strong>ras” para as<br />

questões difíceis, que conseguiram evitar o<br />

aperto completo <strong>do</strong> nó, ou o uso <strong>da</strong> espa<strong>da</strong><br />

para desfazer o embaraço - o que acarretaria,<br />

em qualquer <strong>do</strong>s casos, o fim de qualquer<br />

esperança de se salvar o evento.<br />

É curioso notar como, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong><br />

que se observou no Brasil, onde os preparati-<br />

vos foram intensos, envolven<strong>do</strong> entusiastica-<br />

mente o Governo e a socie<strong>da</strong>de civil (inclusi-<br />

ve numa Conferência Nacional que adiantou<br />

pontos importantes depois refleti<strong>do</strong>s nos<br />

<strong>do</strong>cumentos de Durban e a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s pelo<br />

governo), no país que historicamente mais<br />

inspirou em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> movimentos pe-<br />

los “direitos civis”, muitas ONGs influentes,<br />

a parte mais li<strong>da</strong> <strong>da</strong> imprensa e até setores<br />

<strong>da</strong> academia dedica<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s estu<strong>do</strong>s sociais<br />

(com, evidentemente, honrosas e expressivas<br />

exceções), pareciam quase não <strong>da</strong>r atenção<br />

<strong>ao</strong> evento. Quinze dias antes de seu início,<br />

em seminário sobre o “Racismo nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s e no Brasil” realiza<strong>do</strong> na Universi-<br />

<strong>da</strong>de de Sacramento, Califórnia, com co-pa-<br />

trocínio <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Bahia, os afro-<br />

norte-americanos presentes, <strong>ao</strong> contrário <strong>do</strong>s<br />

brasileiros, não pareciam sequer saber que<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

um encontro mundial contra a discrimina-<br />

ção racial estava prestes a iniciar-se, sob o<br />

patrocínio <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, na terra de<br />

Nelson Mandela 30 . Ain<strong>da</strong> assim, ademais <strong>do</strong>s<br />

2.300 delega<strong>do</strong>s oficiais de 163 países, sen<strong>do</strong><br />

16 chefes de Esta<strong>do</strong> ou de Governo, 58 mi-<br />

nistros de Relações Exteriores e 44 ministros<br />

de outras pastas, quase 4.000 representantes<br />

de organizações não-governamentais e 1.100<br />

jornalistas foram registra<strong>do</strong>s pela ONU em<br />

Durban. Sem falar <strong>do</strong>s eventos paralelos<br />

havi<strong>do</strong>s antes e durante a Conferência, rela-<br />

ciona<strong>do</strong>s no Relatório à Assembléia Geral 31<br />

(somente o Fórum de ONGs contou com<br />

8.000 participantes, em representação de<br />

3.000 organizações não-governamentais de<br />

to<strong>do</strong>s os continentes), parece legítimo dizer<br />

que um encontro de tais proporções pode ter<br />

si<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, menos irrelevante. A mobilização<br />

que causou é per se uma forma de conscien-<br />

tização, quan<strong>do</strong> por mais não seja, pelo efeito<br />

demonstração.<br />

De to<strong>da</strong>s as críticas conheci<strong>da</strong>s à Confe-<br />

rência de Durban, a que mais surpreendeu<br />

o autor destas linhas veio de Michael Ban-<br />

ton, professor de sociologia em Bristol e ex-<br />

membro <strong>do</strong> Comitê para a Eliminação <strong>da</strong><br />

Discriminação Racial ou Cerd (treaty body<br />

que monitora a implementação <strong>da</strong> Conven-<br />

ção Internacional sobre a Eliminação de To-<br />

<strong>da</strong>s as Formas de Discriminação Racial) 32 ,<br />

29 Infelizmente o nó se apertou ain<strong>da</strong> mais depois <strong>da</strong> Conferência, pelo maximalismo extrema<strong>do</strong> de uns e pela inflexibili<strong>da</strong>de de outros, na seqüência que teve<br />

o tema na Comissão <strong>do</strong>s Direitos Humanos <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, na sessão de 2002 (os ocidentais votaram em bloco contra a resolução sobre o assunto).<br />

30 Notei isso, estarreci<strong>do</strong>, porque, então na quali<strong>da</strong>de de cônsul-geral <strong>do</strong> Brasil em S. Francisco, fui convi<strong>da</strong><strong>do</strong> a participar <strong>do</strong> seminário e aceitei. Por seus<br />

organiza<strong>do</strong>res e outros militantes negros norte-americanos soube posteriormente que o “movimento negro” <strong>do</strong> país se encontrava cindi<strong>do</strong> a propósito <strong>da</strong>s<br />

“reparações” e, por isso e talvez outras razões, não tinha interesse consistente numa conferência que tornaria evidente suas cisões internas. Talvez por esse<br />

motivo o governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s tenha ti<strong>do</strong> a possibili<strong>da</strong>de de retirar-se de Durban sem repercussões críticas maiores na imprensa e na opinião pública<br />

<strong>do</strong>méstica. Os militantes norte-americanos que lá permaneceram declararam a homólogos brasileiros, membros de nossa delegação, que se sentiam bem<br />

representa<strong>do</strong>s pela atuação <strong>do</strong> Brasil - o que não deixa de ser outro aspecto, neste caso bastante positivo, <strong>da</strong> “brasilianização <strong>da</strong> América” (v. supra nota 9).<br />

31 V nota 20 supra.<br />

32 Para uma breve visão <strong>do</strong> que é o Cerd e <strong>do</strong> trabalho que realiza, v. José Augusto Lindgren Alves, “Racismo e direitos humanos: a 60ª sessão <strong>do</strong> Cerd”,<br />

Carta Internacional, ano X, nº 111, S. Paulo, USP/FUNAG, maio de 2002, pág.19.<br />

103


104<br />

A CONFERÊNCIA DE DURBAN CONTRA O<br />

RACISMO E A RESPONSABILIDADE DE TODOS<br />

precisamente porque ele, com a experiência<br />

que tem e a respeitabili<strong>da</strong>de de que goza,<br />

não tinha o direito de ser tão ingênuo, nem<br />

tão negativista. Diz Michael Banton que,<br />

“se a primeira conferência mundial foi um<br />

desastre, a terceira foi uma calami<strong>da</strong>de que<br />

feriu a reputação <strong>da</strong> ONU e as atitudes em<br />

favor <strong>da</strong> cooperação internacional” 33 . Além<br />

de repetir algumas <strong>da</strong>s objeções mais óbvias<br />

veicula<strong>da</strong>s por países ocidentais às posturas<br />

árabes sobre o Oriente Médio - as quais,<br />

como já visto, não foram incorpora<strong>da</strong>s <strong>ao</strong>s<br />

<strong>do</strong>cumentos com sua virulência original<br />

-, grande parte de suas repreensões dizem<br />

respeito <strong>ao</strong> fato de “a conferência” não ter<br />

opta<strong>do</strong> por cobrar <strong>do</strong>s países o cumprimen-<br />

to <strong>da</strong>s obrigações que assumem <strong>ao</strong> aderirem<br />

à Convenção sobre a Eliminação de To<strong>da</strong>s<br />

as Formas de Discriminação Racial, e <strong>ao</strong><br />

fato de “a conferência” não ter <strong>da</strong><strong>do</strong> maior<br />

valor à atuação <strong>do</strong> Cerd, inclusive no que<br />

diz respeito à questão <strong>da</strong>s reparações - como<br />

se a conferência fosse uma enti<strong>da</strong>de autôno-<br />

ma, capaz de tomar decisões independentes<br />

<strong>da</strong> vontade de seus participantes 34 . Pior<br />

ain<strong>da</strong>, Banton não quer reconhecer o óbvio<br />

de que “calami<strong>da</strong>de” não foi a conferência<br />

em si, mas “a circunstância” em que ela se<br />

realizou.<br />

A ver<strong>da</strong>de é que Durban foi a melhor<br />

conferência que se poderia realizar sobre<br />

temas tão abrangentes, em condições tão<br />

adversas, numa situação internacional que,<br />

como se não bastasse a <strong>do</strong>xa econômica<br />

neoliberal (para falar com Bourdieu) avessa<br />

33 Michael Banton, op. cit., pág. 360.<br />

a preocupações sociais, já se mostrava ca<strong>da</strong><br />

dia menos favorável <strong>ao</strong> multilateralismo e à<br />

diplomacia parlamentar. O simples fato de<br />

ela ter ti<strong>do</strong> seus <strong>do</strong>cumentos finais a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />

sem voto (a votação havi<strong>da</strong>, é sempre bom<br />

relembrar, foi para rejeitar a reapresenta-<br />

ção extemporânea de propostas supera<strong>da</strong>s)<br />

representa, como já dito, um progresso com<br />

relação às conferências de 1978 e 1983. Mui-<br />

to mais <strong>do</strong> que isso, porém, os <strong>do</strong>cumentos<br />

de Durban trazem novos conceitos e com-<br />

promissos importantes, particularmente<br />

para o combate <strong>ao</strong> racismo estrutural. Estes<br />

podem ser utiliza<strong>do</strong>s como guias à atua-<br />

ção <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, internamente e em ações<br />

internacionais, ou como instrumento semi-<br />

jurídico para cobranças <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des <strong>ao</strong><br />

governos.<br />

Nenhuma conferência resolve por ela<br />

mesma os problemas que se dispõe abor<strong>da</strong>r.<br />

O máximo que pode fazer é sugerir cami-<br />

nhos para que possamos “salvar nossa cir-<br />

cunstância”. Como ensina Ortega y Gasset,<br />

se não salvamos a ela, não salvamos a nós<br />

mesmos.<br />

Conforme terá fica<strong>do</strong> aqui abun<strong>da</strong>nte-<br />

mente demonstra<strong>do</strong>, as responsabili<strong>da</strong>des<br />

pelos problemas verifica<strong>do</strong>s em Durban<br />

são de diversos atores. A responsabili<strong>da</strong>de<br />

pela implementação <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s reco-<br />

men<strong>da</strong>ções - como aquelas concernentes a<br />

“medi<strong>da</strong>s afirmativas” que começaram a<br />

ser aplica<strong>da</strong>s no Brasil depois dessa confe-<br />

rência - dependerá, por sua vez, como é o<br />

caso de qualquer <strong>do</strong>cumento emergente de<br />

34 Além disso, o Cerd é objeto específico de <strong>do</strong>is importantes parágrafos <strong>do</strong> Programa de Ação, os de números 177 e 178, destina<strong>do</strong>s a fortalecer o Comitê,<br />

além de o ser indiretamente na infini<strong>da</strong>de de outras recomen<strong>da</strong>ções e artigos que, desde o Preâmbulo <strong>da</strong> Declaração, assinalam a importância <strong>da</strong> adesão<br />

de to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s à Convenção de 1965 e de sua plena implementação.


encontro multilateral, <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de com que<br />

ca<strong>da</strong> Esta<strong>do</strong> encara as decisões coletivas de<br />

que tenha participa<strong>do</strong> (e, com exceção de<br />

Israel e <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s foram<br />

partícipes). Dependerá também <strong>da</strong> capaci-<br />

<strong>da</strong>de de utilização desses <strong>do</strong>cumentos pela<br />

socie<strong>da</strong>de civil. Dependerá finalmente, em<br />

última e mais definitiva instância, de uma<br />

conscientização generaliza<strong>da</strong> - hoje em dia<br />

praticamente impossível - de que, como diz<br />

a Declaração de Durban em artigo supraci-<br />

ta<strong>do</strong>, somente com a criação de um futuro<br />

de condições mais equânimes, “basea<strong>do</strong> em<br />

nossa comum humani<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong> sua di-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

versi<strong>da</strong>de”, a globalização poderá ter efeitos<br />

antidiscriminatórios.<br />

José Augusto Lindgren Alves é diplomata,<br />

atualmente embaixa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil em Só-<br />

fia, Bulgária, e membro <strong>do</strong> Comitê para a<br />

Eliminação <strong>da</strong> Discriminação Racial, em<br />

Genebra.<br />

Foi membro <strong>da</strong> Subcomissão <strong>da</strong>s Nações<br />

Uni<strong>da</strong>s para a Prevenção <strong>da</strong> Discriminação<br />

e Proteção de Minorias (1994-97) e delega<strong>do</strong><br />

à Conferência de Durban de 2001.<br />

105


Perfeccionismo<br />

Quan<strong>do</strong> somos in<strong>da</strong>ga<strong>do</strong>s acerca <strong>da</strong><br />

vali<strong>da</strong>de de nossas crenças, costumamos<br />

responder apelan<strong>do</strong> para princípios que<br />

conferem legitimi<strong>da</strong>de às mesmas. Se<br />

acreditamos que, <strong>ao</strong> nível <strong>do</strong> mar, a água<br />

ferve a 100 graus centígra<strong>do</strong>s, é porque<br />

já realizamos inúmeras vezes um tal<br />

experimento e até hoje observamos uma<br />

regulari<strong>da</strong>de entre o aquecimento <strong>da</strong> água<br />

e seu processo de ebulição. Ao afirmarmos<br />

que 2 mais 2 é igual a 4 ou que a soma<br />

<strong>do</strong>s 4 ângulos de um quadra<strong>do</strong> equivale<br />

a 360 graus, estamos expressan<strong>do</strong> um<br />

conhecimento que se baseia em convenções<br />

ou princípios matemáticos. Enquanto certos<br />

fenômenos puderem ser observa<strong>do</strong>s e/ou<br />

tais convenções ou princípios estiverem<br />

valen<strong>do</strong>, teremos uma base segura para<br />

resgatar a pretensão de vali<strong>da</strong>de de tais<br />

crenças.<br />

Há contu<strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>s que não<br />

expressam nossa crença acerca <strong>da</strong>s leis<br />

que regem o mun<strong>do</strong> sensível, mas sim a<br />

crença na vali<strong>da</strong>de de um determina<strong>do</strong><br />

e Respeito<br />

Perfeccionismo e o Princípio <strong>do</strong> Respeito Universal<br />

Maria Clara Dias<br />

mo<strong>do</strong> de agir, que parece ser até certo ponto<br />

independente de constatações empíricas.<br />

Se chover, haverá um aumento <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de<br />

relativa <strong>do</strong> ar. A chuva poderá também<br />

favorecer a plantação, mas quer chova,<br />

quer faça sol, i.e. independentemente <strong>do</strong><br />

que quer que ocorra no mun<strong>do</strong> empírico,<br />

acredito que não deva infringir <strong>do</strong>r<br />

inutilmente a outros seres humanos,<br />

acredito que deva manter minhas<br />

promessas e que não deva dispor <strong>do</strong> que<br />

não me pertence. Mas de onde provêm tais<br />

crenças? Haverá um fato distinto no mun<strong>do</strong><br />

no qual esteja basea<strong>do</strong> minha compreensão<br />

<strong>do</strong> que devo fazer? Haverá no fun<strong>do</strong> de ca<strong>da</strong><br />

um de nós algum sentimento que determine<br />

nosso mo<strong>do</strong> de agir? Se não formos capazes<br />

de determinar as regras que orientam a<br />

nossa conduta, jamais poderemos supor<br />

que um tal âmbito <strong>do</strong> nosso discurso<br />

possua qualquer fun<strong>da</strong>mento. Apenas<br />

poderíamos descrever nossas ações, assim<br />

como descrevemos fenômenos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

natural, mas não poderíamos supor que<br />

107


108<br />

PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />

algo prescreva uma determina<strong>da</strong> conduta,<br />

ou seja, poderíamos apenas constatar que<br />

agimos de tal e tal mo<strong>do</strong>, porém não que<br />

devamos agir de uma forma determina<strong>da</strong>.<br />

Esta distinção entre o mo<strong>do</strong> como as<br />

coisas são e o mo<strong>do</strong> como devem ser pode ser<br />

filosoficamente redescrita através <strong>da</strong> distinção<br />

entre enuncia<strong>do</strong>s assertivos e enuncia<strong>do</strong>s<br />

normativos. Os primeiros pertencem <strong>ao</strong><br />

âmbito <strong>do</strong> nosso discurso que concerne à<br />

ver<strong>da</strong>de. Os segun<strong>do</strong>s pertencem <strong>ao</strong> chama<strong>do</strong><br />

discurso moral. Neste último, nossos<br />

enuncia<strong>do</strong>s adquirem um caráter prescritivo,<br />

que por sua vez deve também poder ser<br />

fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong>. Parece legítimo que possamos<br />

in<strong>da</strong>gar em que consiste um tal dever ou,<br />

em outras palavras, por que devemos agir de<br />

acor<strong>do</strong> com determina<strong>do</strong>s princípios.<br />

Na história <strong>da</strong> filosofia encontramos<br />

um extenso repertório de respostas a esta<br />

questão. “Porque faz parte de nossa natu-<br />

reza”. “Mas, de que natureza?”, pergunta-<br />

ríamos. Da nossa natureza enquanto filhos<br />

de Deus; enquanto seres que desfrutam<br />

<strong>do</strong> sentimento de compaixão para com os<br />

demais ou enquanto seres livres, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />

de razão. No primeiro caso destacamos a<br />

crença em uma enti<strong>da</strong>de transcendente<br />

como fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de: devemos<br />

aceitar tal e tal man<strong>da</strong>mento, porque o<br />

mesmo reflete a vontade divina. Este seria<br />

o procedimento <strong>da</strong> moral tradicional, ou<br />

seja, <strong>da</strong> moral que tem seu fun<strong>da</strong>mento na<br />

autori<strong>da</strong>de. No segun<strong>do</strong> caso seria neces-<br />

sário provar que de fato possuímos uma tal<br />

natureza. Bem, ain<strong>da</strong> que possamos mostrar<br />

que um determina<strong>do</strong> grupo de indivíduos<br />

apresenta o sentimento de compaixão, isto<br />

não seria uma prova de que to<strong>do</strong> e qualquer<br />

indivíduo de fato o possua. Sentimentos po-<br />

dem ser apenas constata<strong>do</strong>s e não exigi<strong>do</strong>s.<br />

Se a morali<strong>da</strong>de devesse repousar na posse<br />

de algum tipo de sentimento, então devería-<br />

mos destituir-lhe o caráter prescritivo.<br />

Resta, assim, a terceira alternativa.<br />

Fun<strong>da</strong>mentar o caráter prescritivo <strong>da</strong> mora-<br />

li<strong>da</strong>de no conceito de ser racional não deixa<br />

de ser até hoje a mais engenhosa tentativa<br />

de fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> moral. Tal perspectiva<br />

foi desenvolvi<strong>da</strong> por Kant e retoma<strong>da</strong> mais<br />

tarde por Habermas e Apel. Kant procurou<br />

demostrar a existência de um princípio<br />

racional de determinação <strong>da</strong> vontade, em<br />

outras palavras, procurou provar o caráter<br />

necessário <strong>da</strong> submissão <strong>da</strong>s regras de de-<br />

terminação <strong>da</strong> conduta de indivíduos racio-<br />

nais <strong>ao</strong> princípio de universalização. Haber-<br />

mas e Apel procuram justificar a aceitação<br />

desse mesmo princípio como condição de<br />

possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa participação em to<strong>do</strong><br />

e qualquer discurso de fun<strong>da</strong>mentação ra-<br />

cional. Nesta exposição preten<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>nar<br />

tal perspectiva sem, contu<strong>do</strong>, apresentar os<br />

argumentos que justifiquem a sua recusa,<br />

posto que tal tarefa nos distanciaria dema-<br />

sia<strong>da</strong>mente <strong>do</strong>s objetivos aqui propostos.<br />

Ora, mas se to<strong>da</strong>s as alternativas até<br />

então forneci<strong>da</strong>s de justificação <strong>do</strong> caráter<br />

prescritivo <strong>do</strong> discurso moral foram de<br />

algum mo<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong>s, não teremos<br />

que aban<strong>do</strong>nar também uma tal pretensão?<br />

Minha resposta é negativa, mas para escla-<br />

recê-la devo antes distinguir duas questões:<br />

(1) a primeira diz respeito à tentativa de<br />

fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de; (2) a segun-<br />

<strong>da</strong> diz respeito especificamente à justifi-<br />

cação <strong>do</strong> caráter prescritivo <strong>do</strong>s juízos mo-<br />

rais. Preten<strong>do</strong> mostrar que o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong><br />

primeira questão não implica no aban<strong>do</strong>no<br />

<strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, ou seja, que podemos aban<strong>do</strong>-


Aceitar ou não<br />

uma concepção<br />

moral é<br />

em última<br />

instância uma<br />

decisão de<br />

ca<strong>da</strong> indivíduo.<br />

nar a tentativa de provar a necessi<strong>da</strong>de de<br />

agirmos de acor<strong>do</strong> com princípios morais,<br />

sem contu<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>nar a pretensão de jus-<br />

tificar o caráter prescritivo de enuncia<strong>do</strong>s<br />

morais. Com isso, preten<strong>do</strong> defender uma<br />

perspectiva decisionista com relação à cha-<br />

ma<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> moral e, <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo, mostrar que a a<strong>do</strong>ção de uma tal<br />

perspectiva não elimina a possibili<strong>da</strong>de de<br />

justificarmos o caráter prescritivo de nossos<br />

juízos morais, assim como também a a<strong>do</strong>ção<br />

de uma concepção de bem frente a perspec-<br />

tivas morais concorrentes.<br />

Aban<strong>do</strong>nar a primeira questão significa<br />

admitir que não podemos fornecer, através<br />

de argumentos filosóficos, elementos que<br />

I<br />

conduzam necessariamente <strong>ao</strong> agir de acor-<br />

<strong>do</strong> com princípios morais, ou seja, à acei-<br />

tação <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de. Aceitar ou não uma<br />

concepção moral é em última instância uma<br />

decisão de ca<strong>da</strong> indivíduo. Não há, portan-<br />

to, nos limites <strong>do</strong> discurso filosófico, na<strong>da</strong><br />

que os obrigue a tal.<br />

Nós aceitamos os princípios <strong>da</strong> comu-<br />

ni<strong>da</strong>de moral quan<strong>do</strong> elegemos fazer parte<br />

desta comuni<strong>da</strong>de. Resta, portanto, nos per-<br />

guntarmos se queremos nos compreender<br />

enquanto integrantes de uma comuni<strong>da</strong>de<br />

moral. Tal questão é aqui compreendi<strong>da</strong><br />

como parte <strong>da</strong> questão que concerne à cons-<br />

tituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de qualitativa de ca<strong>da</strong><br />

indivíduo, isto é, a pergunta pelo “o que” e<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

“quem” queremos ser. 1 O indivíduo elege<br />

para seu futuro aquilo que considera fun<strong>da</strong>-<br />

mental para sua vi<strong>da</strong> e para sua identi<strong>da</strong>de.<br />

Ele vivencia sua vi<strong>da</strong> enquanto plena ou<br />

feliz, quan<strong>do</strong> atinge uma identi<strong>da</strong>de plena.<br />

Se não elegemos para nossa identi<strong>da</strong>de<br />

qualitativa a identificação com os princípios<br />

de uma comuni<strong>da</strong>de moral, eliminamos<br />

qualquer possível referência a sentimentos<br />

morais, tais como culpa, ressentimento e in-<br />

dignação. Tais sentimentos são uma reação<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de ou <strong>do</strong> próprio indivíduo à<br />

infração de um princípio moral com o qual<br />

ambos estejam identifica<strong>do</strong>s. Se elegemos<br />

fazer parte <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de moral, então<br />

nos comprometemos a fazer de seus prin-<br />

cípios nossos próprios princípios, o que em<br />

outras palavras significa aceitar o caráter<br />

prescritivo <strong>do</strong>s mesmos. Com isto suponho<br />

poder responder à segun<strong>da</strong> questão acima<br />

menciona<strong>da</strong>, qual seja, a questão acerca<br />

<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> caráter prescritivo <strong>do</strong>s<br />

juízos morais: agimos de acor<strong>do</strong> com princí-<br />

pios morais quan<strong>do</strong> elegemos fazer parte <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de moral.<br />

Mas seria a identi<strong>da</strong>de moral de um<br />

indivíduo essencial para uma identi<strong>da</strong>de ou<br />

uma vi<strong>da</strong> plena? Até o presente momento<br />

procurei apenas apontar algumas conseqü-<br />

ências <strong>da</strong> aceitação ou recusa de um princí-<br />

pio moral qualquer. Não seria possível, nos<br />

limites <strong>da</strong> filosofia, também dizer algo acer-<br />

ca <strong>da</strong> relação entre a escolha pela morali<strong>da</strong>-<br />

de e o nosso conceito <strong>do</strong> que seja uma vi<strong>da</strong><br />

plena? Preten<strong>do</strong> mostrar que sim, ou seja,<br />

1 A questão <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de qualitativa <strong>do</strong> indivíduo é abor<strong>da</strong><strong>da</strong> por Tugendhat em seu artigo “Identi<strong>da</strong>d: Personal, nacional y universal”<br />

(cita<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> manuscrito). Acerca <strong>da</strong> relação entre a constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de qualitativa e a questão <strong>da</strong> constituição de uma identi<strong>da</strong>de moral a<br />

partir <strong>da</strong> concepção de Tugendhat, ver: Dias, M. C.: Die sozialen Grundrechte: Eine philosophische Untersuchung der Frage nach den Menschenrechten,<br />

Konstanz 1993.<br />

109


110<br />

PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />

preten<strong>do</strong> defender a relação entre (i) a a<strong>do</strong>-<br />

ção de uma perspectiva moral e (ii) a reali-<br />

zação de uma concepção de bem, a tentativa<br />

de agir de mo<strong>do</strong> a tornar a nossa vi<strong>da</strong> digna<br />

de ser vivi<strong>da</strong>, ou ain<strong>da</strong>, a busca de uma vi<strong>da</strong><br />

plena. Com isso, preten<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> apontar<br />

para uma nova forma de justificação <strong>do</strong><br />

princípio que, segun<strong>do</strong> penso, melhor ex-<br />

pressa a nossa deman<strong>da</strong> pela morali<strong>da</strong>de, a<br />

saber: o imperativo categórico kantiano.<br />

Antes de prosseguir, gostaria de analisar<br />

duas possíveis dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s teses até aqui<br />

defendi<strong>da</strong>s. A primeira diz respeito a nossa<br />

própria pretensão a estarmos justifican<strong>do</strong><br />

algo. Ao afirmar poder justificar desta ma-<br />

neira a a<strong>do</strong>ção de um princípio moral não<br />

estaríamos alteran<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />

tradicionalmente se consagrou com sen<strong>do</strong><br />

“fun<strong>da</strong>mentar” ou “justificar” algo? É pos-<br />

sível que sim. Devo então esclarecer o que<br />

devemos compreender por “justificar” no<br />

senti<strong>do</strong> aqui emprega<strong>do</strong>. No plano <strong>da</strong> jus-<br />

tificação estarei elegen<strong>do</strong> uma perspectiva<br />

coerentista, ou seja, aquela segun<strong>do</strong> a qual a<br />

justificação de uma crença não repousa em<br />

sua auto-evidência, nem em sua relação com<br />

outras crenças supostamente auto-evidentes,<br />

mas em sua correlação com uma rede de<br />

crenças na qual se acredite. Quanto mais<br />

abrangente for a rede, ou seja, quanto mais<br />

luz puder lançar sobre o nosso universo de<br />

crenças, mais coerente será, conseqüente-<br />

mente, mais justifica<strong>da</strong>. Será, portanto, com<br />

base em tal perspectiva que proponho que as<br />

teses aqui defendi<strong>da</strong>s sejam avalia<strong>da</strong>s.<br />

Uma vez que estamos sempre reven<strong>do</strong><br />

nosso sistema de crenças à luz de novas<br />

informações, a decisão acerca <strong>do</strong> que seja<br />

normativamente correto, toma<strong>da</strong> com base<br />

em uma perspectiva coerentista, jamais po-<br />

derá reclamar um caráter definitivo. Assim,<br />

a vali<strong>da</strong>de de um princípio moral deverá ser<br />

sempre avalia<strong>da</strong> a partir de sua correlação<br />

com uma série de outros elementos consti-<br />

tutivos <strong>da</strong>s nossas relações sociais e, mais<br />

especificamente, com as crenças que imple-<br />

mentam a nossa deman<strong>da</strong> pela morali<strong>da</strong>de.<br />

A segun<strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de surge frente a<br />

tentativa de conciliar a defesa <strong>do</strong> princípio<br />

moral kantiano com a pergunta pelo tipo de<br />

vi<strong>da</strong> que desejamos viver. Não estaríamos,<br />

assim, concilian<strong>do</strong> duas perspectivas morais<br />

antagônicas: uma perspectiva deontológica e<br />

uma perspectiva teleológica, respectivamente?<br />

Estarei elegen<strong>do</strong> uma perspectiva teleológica<br />

e, com base nesta perspectiva, justifican<strong>do</strong>, de<br />

forma não-fun<strong>da</strong>mentacionista, o princípio<br />

moral kantiano. Há, portanto, claramente<br />

uma proposta de conciliar <strong>do</strong>is elementos<br />

considera<strong>do</strong>s pela tradição inconciliáveis, mas<br />

que, caso minha exposição seja bem sucedi<strong>da</strong>,<br />

terei mostra<strong>do</strong> não serem antagônicos.<br />

Para tal, preten<strong>do</strong>, em primeiro lugar,<br />

mostrar que a própria a<strong>do</strong>ção de um princípio<br />

de imparciali<strong>da</strong>de supõe uma concepção de<br />

bem. Em segui<strong>da</strong>, terei que mostrar que é pos-<br />

sível responder a pergunta pelo que conside-<br />

ramos uma boa vi<strong>da</strong> de forma não-subjetivista<br />

e não-<strong>do</strong>gmática, em outras palavras, terei<br />

que distinguir o que estarei defenden<strong>do</strong> como<br />

sen<strong>do</strong> uma “perspectiva perfeccionista” e um<br />

subjetivismo moral. Para concluir, deverei<br />

apontar entre as diversas formas de perfeccio-<br />

nismo aquela cuja fonte de valor, ou seja, cuja<br />

concepção de bem, mais se adeque às nossas<br />

intuições morais, que, segun<strong>do</strong> defen<strong>do</strong>, pa-<br />

recem poder ser resgata<strong>da</strong>s pelo imperativo<br />

kantiano. Este último ponto será aqui apenas<br />

sugeri<strong>do</strong>, quero dizer, será apresenta<strong>do</strong> sob<br />

forma ain<strong>da</strong> programática.<br />

A vali<strong>da</strong>de de<br />

um princípio<br />

moral deverá<br />

ser sempre<br />

avalia<strong>da</strong> a<br />

partir de sua<br />

correlação<br />

com uma série<br />

de outros<br />

elementos<br />

constitutivos<br />

<strong>da</strong>s nossas<br />

relações<br />

sociais.


II<br />

Passemos então a nossa próxima tarefa.<br />

Preten<strong>do</strong> agora analisar a relação entre a<br />

a<strong>do</strong>ção de uma perspectiva moral e a ques-<br />

tão acerca <strong>do</strong> tipo de vi<strong>da</strong> que desejamos vi-<br />

ver ou que supomos digna de ser vivi<strong>da</strong>, em<br />

outras palavras, a questão acerca <strong>da</strong> “boa<br />

vi<strong>da</strong>” ou <strong>do</strong> que chamei “vi<strong>da</strong> plena”. Pre-<br />

ten<strong>do</strong> mostrar que a a<strong>do</strong>ção de um princípio<br />

de imparciali<strong>da</strong>de já pressupõe uma escolha<br />

por um tipo de vi<strong>da</strong> específico, e, neste sen-<br />

ti<strong>do</strong>, já contém um juízo de valor acerca de<br />

como devemos viver. Para tal, tomarei como<br />

modelo o princípio <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de defen-<br />

di<strong>do</strong> por autores como Rawls, Dworkin e<br />

Larmore entre outros.<br />

Por neutralismo político enten<strong>do</strong> o<br />

princípio segun<strong>do</strong> o qual o Esta<strong>do</strong> deve<br />

permanecer neutro, isento, com relação a<br />

qualquer questão relativa à boa vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />

indivíduos. Não deve, assim, direta ou indi-<br />

retamente, sancionar ou promover qualquer<br />

concepção de bem. A defesa <strong>do</strong> neutralismo<br />

baseia-se ou bem no valor <strong>da</strong> autonomia in-<br />

dividual, ou bem numa atitude prudencial<br />

frente <strong>ao</strong> poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, ou bem ain<strong>da</strong><br />

num ceticismo diante <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de<br />

defendermos uma concepção específica de<br />

bem. A primeira alternativa já suporia uma<br />

escolha, ou seja, já nos comprometeria com<br />

a visão de que a vi<strong>da</strong> autônoma é um tipo de<br />

vi<strong>da</strong> mais valora<strong>do</strong> <strong>do</strong> que uma vi<strong>da</strong> em que<br />

a autonomia não possa ser exerci<strong>da</strong>.<br />

Quem defende o neutralismo sob esta<br />

2 George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

base não pode, portanto, recusar pelo menos<br />

um tipo de perfeccionismo, qual seja, aquele<br />

que reconhece a autonomia como um bem. A<br />

terceira alternativa, ou seja, o ceticismo com<br />

relação a possibili<strong>da</strong>de de justificarmos uma<br />

concepção de bem, não é capaz de justificar<br />

sequer a a<strong>do</strong>ção de um princípio de neu-<br />

trali<strong>da</strong>de. Já a segun<strong>da</strong> alternativa pode ser<br />

descrita como um ceticismo diante <strong>do</strong> pró-<br />

prio poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. A busca de medi<strong>da</strong>s<br />

preventivas, no entanto, supõe que haja algo<br />

que devemos preservar a qualquer custo. Não<br />

seria este “algo” mais uma vez a autonomia<br />

individual? Com isso preten<strong>do</strong> resgatar a<br />

tese de que a a<strong>do</strong>ção de qualquer princípio<br />

de determinação <strong>do</strong> agir, quer atue sobre<br />

Esta<strong>do</strong>, quer sobre os indivíduos, supõe uma<br />

concepção de boa vi<strong>da</strong>, ou vi<strong>da</strong> valora<strong>da</strong>.<br />

III<br />

Com base na análise proposta por Sher 2 , pre-<br />

ten<strong>do</strong> agora distinguir (i) perfeccionismo e<br />

comunitarismo 3 e (ii) perfeccionismo e subjeti-<br />

vismo 4 , antecipan<strong>do</strong>, assim, as principais carac-<br />

terísticas de uma perspectiva perfeccionista.<br />

Perfeccionismo e comunitarismo são<br />

perspectivas morais volta<strong>da</strong>s para uma con-<br />

cepção de bem ou de boa vi<strong>da</strong>. A peculiari-<br />

<strong>da</strong>de <strong>da</strong> perspectiva comunitarista consiste<br />

em sustentar a tese de que a identi<strong>da</strong>de de<br />

um indivíduo e, por conseguinte, sua pró-<br />

pria concepção de bem, está determina<strong>da</strong><br />

pela cultura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de a qual pertence.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, a concepção <strong>do</strong> que seja a<br />

3 Acerca <strong>da</strong> perspectiva comunitarista, ver: “Atomism” de Charles Taylor (em: Philosophy and the Human Sciences: Philosophical Papers 2, Cambridge<br />

University Press, Cambridge, 1985) e Liberalism and the Limits of Justice de Michael J. Sandel (Cambridge University Press, Cambridge, 1982)<br />

4 Acerca <strong>do</strong> que estou consideran<strong>do</strong> aqui como uma perspectiva subjetivista, ver: Methods of Ethics de Henry Sidgwick (Macmillan, Londres, 1922) e A<br />

Theory of the Good and the Right de Richard Brandt (Oxford University Press, Oxford, 1979)<br />

111


112<br />

PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />

boa vi<strong>da</strong> não dependeria <strong>do</strong> que o sujeito<br />

deseja, escolhe ou compreende, mas <strong>da</strong><br />

cultura e <strong>da</strong>s tradições a partir <strong>da</strong>s quais<br />

seus desejos, escolhas e compreensões são<br />

mol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. A comuni<strong>da</strong>de cultural, e não o<br />

indivíduo, deveria ser então reconheci<strong>da</strong><br />

como a uni<strong>da</strong>de mínima <strong>da</strong> moral.<br />

Nosso primeiro passo consiste, portan-<br />

to, na análise <strong>do</strong>s principais argumentos co-<br />

munitaristas em favor de sua tese principal,<br />

pois se seus argumentos forem contunden-<br />

tes, então deveremos reduzir a perspectiva<br />

perfeccionista à comunitarista.<br />

A argumentação comunitarista visa, de<br />

uma maneira geral, apontar para a determi-<br />

nação <strong>do</strong> sujeito pela comuni<strong>da</strong>de. Para tal,<br />

são apresenta<strong>do</strong>s três tipos de argumentos:<br />

argumento causal, argumento conceitual<br />

e argumento ontológico. 5 De acor<strong>do</strong> com o<br />

primeiro, a socie<strong>da</strong>de causa as preferências<br />

e opções de ca<strong>da</strong> indivíduo, determinan<strong>do</strong>,<br />

assim, as oportuni<strong>da</strong>des e alternativas entre<br />

as quais poderão escolher. A conseqüência<br />

seria uma eliminação de qualquer possível<br />

linha divisória entre indivíduo e socie<strong>da</strong>de.<br />

O segun<strong>do</strong> argumento afirma ser conceitu-<br />

almente impossível tornar compreensível as<br />

escolhas e objetivos de um indivíduo sem re-<br />

curso <strong>ao</strong> contexto cultural e histórico no qual<br />

esta inseri<strong>do</strong>. A socie<strong>da</strong>de penetra intima-<br />

mente no conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong>s atitudes, habili<strong>da</strong>des<br />

e opções de ca<strong>da</strong> pessoa, por mais autônoma<br />

que esta possa parecer. O argumento onto-<br />

lógico recusa a própria idéia de indivíduo<br />

como uma enti<strong>da</strong>de ontológica isola<strong>da</strong>. Entre<br />

a socie<strong>da</strong>de e aqueles que a constituem não<br />

haveria distinção ontológica possível.<br />

5 Ver George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p. 159.<br />

Como réplica <strong>ao</strong> primeiro argumento,<br />

podemos dizer que, ain<strong>da</strong> que possamos<br />

reconhecer uma relação causal entre socie-<br />

<strong>da</strong>de e indivíduo, esta relação não elimina<br />

a diferença entre ambos, não impedin<strong>do</strong>,<br />

portanto, que indivíduos pertencentes a<br />

uma mesma socie<strong>da</strong>de venham a desenvol-<br />

ver concepções de bem distintas. Quanto <strong>ao</strong><br />

segun<strong>do</strong> argumento, cabe-nos analisar os<br />

possíveis vínculos conceituais entre a cul-<br />

tura de um indivíduo e o conteú<strong>do</strong> de suas<br />

escolhas. Ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de cultural pode<br />

propiciar a seus integrantes categorias lin-<br />

guísticas e conceituais; pode gerar conven-<br />

ções não linguísticas; reconhecer habili<strong>da</strong>-<br />

des específicas para práticas gera<strong>da</strong>s em seu<br />

interior (como, por exemplo, a capaci<strong>da</strong>de<br />

de concentração necessária <strong>ao</strong> bom exer-<br />

cício de lutas marciais) e pode ain<strong>da</strong> gerar<br />

um sistema de crenças que torna significati-<br />

vas muitas de suas ações. Na<strong>da</strong> disso impli-<br />

ca, no entanto, que a comuni<strong>da</strong>de cultural<br />

determine o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fins eleitos por<br />

ca<strong>da</strong> indivíduo. Ela pode, quan<strong>do</strong> muito,<br />

incitar certos desejos ou suprir as condições<br />

para que os mesmos possam ser expressos,<br />

mas não pode eliminar o aspecto decisivo <strong>da</strong><br />

escolha individual. A completa eliminação<br />

<strong>do</strong> papel <strong>do</strong> agente no processo deliberativo<br />

nos conduz <strong>ao</strong> terceiro argumento, ou seja,<br />

a total per<strong>da</strong> de independência <strong>do</strong> conceito<br />

de indivíduo. Contu<strong>do</strong>, o fato de que as<br />

escolhas e atitudes de um indivíduo estejam<br />

impregna<strong>da</strong>s com significa<strong>do</strong>s extraí<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de cultural, não implica qualquer<br />

conseqüência sobre seu estatuto ontológico.<br />

O conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong>s escolhas, o ato de escolha, e<br />

A comuni<strong>da</strong>de<br />

cultural, e não<br />

o indivíduo,<br />

deveria<br />

ser então<br />

reconheci<strong>da</strong><br />

como a uni<strong>da</strong>de<br />

mínima <strong>da</strong><br />

moral.


o agente são elementos distintos e não é evi-<br />

dente que possamos suprimir tal distinção,<br />

senão fornecen<strong>do</strong> uma redescrição <strong>da</strong>quele<br />

que possa vir a ocupar o papel de agente.<br />

Se estivermos certos em recusar a tese<br />

comunitarista e, por conseguinte, em recusar<br />

que nossa in<strong>da</strong>gação acerca <strong>do</strong> que devemos<br />

compreender como uma boa vi<strong>da</strong>, possa ser<br />

reduzi<strong>da</strong> a uma mera investigação <strong>do</strong>s valo-<br />

res na nossa cultura, então teremos que nos<br />

confrontar com um outro modelo de investi-<br />

gação, a saber: a perspectiva subjetivista.<br />

Assumirei aqui a premissa subjetivista<br />

segun<strong>do</strong> a qual os elementos relevantes para<br />

o reconhecimento <strong>do</strong> que seja uma boa vi<strong>da</strong><br />

estão relaciona<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> sujeito, ou seja, à estru-<br />

tura psicológica <strong>da</strong>quele que desempenha o<br />

papel de agente. Contu<strong>do</strong>, preten<strong>do</strong> mostrar<br />

que a aceitação de tal premissa não nos com-<br />

promete com os demais ônus de uma pers-<br />

pectiva subjetivista. Para tal, irei analisar os<br />

principais atrativos <strong>do</strong> subjetivismo, criticar<br />

a possibili<strong>da</strong>de de resgatá-los dentro de uma<br />

perspectiva meramente subjetivista e adian-<br />

tar como podemos fazer jus <strong>ao</strong>s mesmos den-<br />

tro <strong>da</strong> perspectiva perfeccionista.<br />

O principal atrativo <strong>da</strong> perspectiva sub-<br />

jetivista parece consistir em (i) estabelecer<br />

uma relação direta entre valor e motivação e<br />

em (ii) fornecer uma explicação <strong>do</strong> como as<br />

coisas se tornam valora<strong>da</strong>s. De acor<strong>do</strong> com<br />

essa perspectiva podemos dizer que algo é<br />

valora<strong>do</strong> se: (1) promove ou satisfaz os dese-<br />

jos <strong>do</strong> indivíduo; (2) se promove ou satisfaz<br />

os desejos <strong>do</strong> indivíduo bem informa<strong>do</strong>; (3)<br />

se promove ou satisfaz os desejos de outras<br />

pessoas bem informa<strong>da</strong>s. Em qualquer <strong>da</strong>s<br />

três interpretações, nossos desejos ou esco-<br />

lhas conferem valor <strong>ao</strong>s objetos.<br />

Ain<strong>da</strong> que aceitemos uma relação entre<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

valor e motivação, a explicação subjetivista<br />

parece conter algumas lacunas. A primeira<br />

consiste em não ser capaz de determinar<br />

precisamente de que forma o esta<strong>do</strong> moti-<br />

va<strong>do</strong> se relaciona à motivação. Poderíamos<br />

sempre supor que a ver<strong>da</strong>deira fonte de mo-<br />

tivação de um esta<strong>do</strong> não seja aquela apon-<br />

ta<strong>da</strong> na explicação. Na tentativa de fornecer<br />

uma comprovação empírica de tal relação,<br />

os subjetivistas são obriga<strong>do</strong>s a considerar<br />

apenas motivações ou desejos atuais ou<br />

presentes. Com isso, sua explicação se torna<br />

incapaz de esclarecer escolhas passa<strong>da</strong>s e de<br />

lançar algum esclarecimento sobre futuras<br />

escolhas. A conseqüência é uma explicação<br />

incapaz de <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> noção de sujeito,<br />

como aquele capaz de eleger algo para sua<br />

identi<strong>da</strong>de qualitativa como resposta a sua<br />

própria história pessoal. Mas ain<strong>da</strong> que<br />

pudéssemos trabalhar com um conceito de<br />

sujeito tão simplifica<strong>do</strong> como o que se ade-<br />

qua <strong>ao</strong> modelo proposto, ou seja, como o de<br />

mero porta<strong>do</strong>r de esta<strong>do</strong>s motiva<strong>do</strong>s presen-<br />

tes, teríamos que abdicar <strong>da</strong> pretensão de<br />

passar <strong>da</strong> explicação <strong>da</strong> motivação em um<br />

indivíduo determina<strong>do</strong> para a explicação <strong>da</strong><br />

motivação <strong>do</strong>s demais indivíduos.<br />

Para preencher tais lacunas explicati-<br />

vas, torna-se necessário introduzir a noção<br />

de um desejo impessoal, capaz de superar<br />

(i) a barreira <strong>da</strong>s motivações atuais -- per-<br />

mitin<strong>do</strong> li<strong>da</strong>r com uma visão bem mais<br />

complexa <strong>da</strong> psicologia humana ou <strong>da</strong> for-<br />

mação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de individual -- e (ii) os<br />

limites <strong>do</strong> próprio indivíduo -- permitin<strong>do</strong><br />

estender a explicação <strong>ao</strong>s demais indivídu-<br />

os. Este passo é assumi<strong>do</strong> pela perspectiva<br />

perfeccionista, o que faz com que muitas<br />

vezes recaia sobre a mesma o rótulo de me-<br />

tafísica. Caberá então mostrar que também<br />

113


114<br />

PERFECCIONISMO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO UNIVERSAL<br />

os subjetivistas se veêm constragi<strong>do</strong>s a pos-<br />

tular a um tal desejo e o fazem <strong>ao</strong> supor, por<br />

exemplo, que to<strong>do</strong>s desejamos, durante to<strong>da</strong><br />

a nossa existência, ter nossos desejos satis-<br />

feitos. Resta-nos, contu<strong>do</strong>, o ônus de mos-<br />

trar que é possível justificar a aceitação de<br />

um desejo impessoal, universal, sem recurso<br />

a pressupostos metafísicos.<br />

Ao postular um desejo impessoal, o<br />

perfeccionismo propõe um esclarecimento<br />

(i) <strong>da</strong> relação entre valor e motivação e (ii)<br />

<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como as coisas se tornam valora-<br />

<strong>da</strong>s. O desejo impessoal promove valor e as<br />

coisas valora<strong>da</strong>s são em si mesmas origem<br />

<strong>da</strong> motivação. Com isso, o perfeccionismo<br />

irá fun<strong>da</strong>mentar o valor de certas ativi<strong>da</strong>des<br />

e excelências em certos “desejos”, fins ou<br />

metas comuns a espécie humana. Em um<br />

segun<strong>do</strong> nível, no entanto, a impossibili<strong>da</strong>-<br />

de de comprovar uma relação interna entre<br />

as coisas boas e o impulso para perseguí-las<br />

fará com que a relação entre ambos seja<br />

assumi<strong>da</strong> como contingente.<br />

IV<br />

Para concluir, preten<strong>do</strong> contrapor algumas<br />

formas possíveis de perfeccionismo, de<br />

mo<strong>do</strong> a destacar a mais plausível, ou seja,<br />

a mais abrangente e que melhor acomode<br />

nossas intuições morais.<br />

Como perfeccionista estarei consideran-<br />

<strong>do</strong> aquelas perspectivas morais que visem<br />

responder a in<strong>da</strong>gação acerca <strong>do</strong> que seja<br />

uma boa vi<strong>da</strong>, reconhecen<strong>do</strong>, como ponto<br />

6 Ver George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p.<br />

de parti<strong>da</strong>, que pelo menos algumas ativi-<br />

<strong>da</strong>des, capaci<strong>da</strong>des ou formas de relação<br />

humanas possuem um valor não instrumen-<br />

tal por razões que independem <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s<br />

mentais atuais ou potenciais <strong>do</strong> agente. 6 Ao<br />

contrário <strong>do</strong>s subjetivistas que reconhecem<br />

o indivíduo como fonte última de valor, ou<br />

seja, que acreditam que algo seja valora<strong>do</strong><br />

apenas porque os indivíduos o elegem, per-<br />

feccionistas irão defender que os indivíduos<br />

elegem certas coisas porque as reconhecem<br />

como independentemente valora<strong>da</strong>s, ou<br />

seja, como possuin<strong>do</strong> um valor não-instru-<br />

mental. Perfeccionistas alocam, portanto,<br />

a fonte de certos valores fora <strong>da</strong> subjetivi-<br />

<strong>da</strong>de, o que em outras palavras significa,<br />

sustentar a objetivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s mesmos. A<br />

fonte de tais valores será então busca<strong>da</strong> em<br />

certos fatos sobre a socie<strong>da</strong>de ou em certas<br />

capaci<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>mentais que pertencentes<br />

a to<strong>do</strong>s os seres humanos.<br />

Para alguns autores certas proprie<strong>da</strong>des<br />

seriam intrinsecamente 7 valora<strong>da</strong>s. Uma<br />

proprie<strong>da</strong>de deste tipo seria, por exemplo, tal<br />

como sugere Thomas Hurka 8 , a de ser parte<br />

essencial <strong>da</strong> natureza humana ou, como su-<br />

gere Nozick 9 , a de possuir um certo grau de<br />

uni<strong>da</strong>de orgânica. A dificul<strong>da</strong>de, no primeiro<br />

caso, estaria em sermos capazes de determinar<br />

o que é, em si mesmo, ou seja, de mo<strong>do</strong> não<br />

teleológico, essencial à natureza humana. No<br />

segun<strong>do</strong> caso, estaria em justificar por que a<br />

posse de um certo grau de uni<strong>da</strong>de orgânica<br />

deve ser considera<strong>do</strong> em si mesmo um valor,<br />

ou seja, um valor intrínseco. Se a eleição desta<br />

7 “Intrínseco” significa: (1) que está dentro de uma coisa ou que lhe é próprio; (2) que está liga<strong>do</strong> a uma pesssoa ou coisa, inerente, peculiar. Por estar<br />

queren<strong>do</strong> promover uma distinção entre um valor intrínseco e um valor inerente, privilegiarei a primeira acepção <strong>do</strong> termo.<br />

8 Thomas Hurka, Perfectionism, Oxford University Press, Oxford, 1993.<br />

9 Robert Nozick, Philosophical Explanations, Harvard University Press, 1981.


Ao a<strong>do</strong>tar uma<br />

perspectiva<br />

teleológica,<br />

passamos a<br />

reconhecer<br />

que certos<br />

elementos são<br />

inerentemente<br />

valora<strong>do</strong>s,<br />

ou seja,<br />

possuem valor<br />

por estarem<br />

relaciona<strong>do</strong>s a<br />

certos fins.<br />

proprie<strong>da</strong>de entre outras depender de uma<br />

escolha, então teremos aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a própria<br />

noção de valor intrínseco e com ela uma pers-<br />

pectiva não-teleológica.<br />

Ao a<strong>do</strong>tar uma perspectiva teleológica,<br />

passamos a reconhecer que certos elemen-<br />

tos são inerentemente valora<strong>do</strong>s, ou seja,<br />

possuem valor por estarem relaciona<strong>do</strong>s<br />

a certos fins. Caberá então investigar que<br />

tipo de fins objetivos, já que aban<strong>do</strong>namos<br />

uma perspectiva subjetivista, se relacio-<br />

nam às coisas que supomos valora<strong>da</strong>s.<br />

Podemos mencionar aqui <strong>do</strong>is candi<strong>da</strong>tos:<br />

fins que são essenciais à espécie humana<br />

(Aristóteles) e fins <strong>do</strong> processo evolutivo<br />

(Herbert Spencer). Mais uma vez, caberia,<br />

no primeiro caso, provar que certos fins<br />

são essenciais à natureza humana, o que<br />

sem uma teoria acerca <strong>da</strong> própria natureza<br />

humana não parece possível. No segun<strong>do</strong><br />

caso, a eleição de um fim que não seja<br />

objeto de deliberação por parte <strong>do</strong> sujeito,<br />

ou seja, que o agente não possa reconhecer<br />

como seu, faz com que o mesmo não possa<br />

ser reconheci<strong>do</strong> como relaciona<strong>do</strong> à per-<br />

gunta pela boa vi<strong>da</strong>, entendi<strong>da</strong> como uma<br />

in<strong>da</strong>gação acerca <strong>do</strong> tipo de vi<strong>da</strong> que ele-<br />

gemos ou queremos viver. Neste senti<strong>do</strong>,<br />

o fim relevante para nós deverá (i) estar<br />

relaciona<strong>do</strong> <strong>ao</strong> sujeito e, <strong>ao</strong> mesmo tempo,<br />

(ii) manter para com o mesmo a distância<br />

necessária para exercer o papel de instân-<br />

cia crítica <strong>do</strong> nossa própria vi<strong>da</strong>.<br />

Consideremos agora o argumento pro-<br />

posto por Sher segun<strong>do</strong> o qual o que torna<br />

alguma ativi<strong>da</strong>de ou proprie<strong>da</strong>de valora<strong>da</strong><br />

está relaciona<strong>do</strong> <strong>ao</strong> fato desta promover<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

o bom exercício de capaci<strong>da</strong>des humanas<br />

fun<strong>da</strong>mentais. Uma capaci<strong>da</strong>de seria dita<br />

fun<strong>da</strong>mental quan<strong>do</strong> pudéssemos reconhe-<br />

cer que: (i) pelo menos virtualmente to<strong>do</strong>s<br />

os seres humanos a possuem e (ii) seu pos-<br />

sui<strong>do</strong>r não pode, ou pode apenas com muita<br />

dificul<strong>da</strong>de, evitar seu exercício. O bom<br />

exercício de tais capaci<strong>da</strong>des é considera<strong>do</strong><br />

como aquele que realiza seus fins. 10<br />

Minha proposta seria então, com base<br />

neste argumento, apontar: (i) a reflexão<br />

prática, ou seja, a reflexão acerca <strong>do</strong> agir,<br />

como uma capaci<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental e (ii) o<br />

pertencimento a uma comuni<strong>da</strong>de perante<br />

a qual tal capaci<strong>da</strong>de é respeita<strong>da</strong> como um<br />

componente essencial para que possamos<br />

viver uma vi<strong>da</strong> plena ou, em outras pala-<br />

vras, uma vi<strong>da</strong> que suponhamos digna de<br />

ser vivi<strong>da</strong>. Através destes <strong>do</strong>is elementos,<br />

resgatamos o imperativo categórico kantia-<br />

no como o princípio <strong>do</strong> respeito universal.<br />

O reconhecimento universal <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />

de refletir acerca <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como devemos<br />

agir e o compromisso com a implementação<br />

ou com o bom desempenho de uma tal ca-<br />

paci<strong>da</strong>de seria, assim, justifica<strong>do</strong> um prin-<br />

cípio moral mínimo. Princípio este segun<strong>do</strong><br />

o qual nos dispomos a agir, <strong>ao</strong> elegermos<br />

fazer parte de uma comuni<strong>da</strong>de na qual<br />

sejamos respeita<strong>do</strong>s enquanto seres capazes<br />

de refletir sobre suas próprias ações.<br />

Maria Clara Dias é psicóloga e <strong>do</strong>utora em<br />

Filosofia, professora <strong>do</strong> Departamento de<br />

Filosofia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong> Rio de<br />

Janeiro.<br />

10 Ver George Sher, Beyond Neutrality, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p.202.<br />

115


Eugène<br />

Delacroix,<br />

“A Liber<strong>da</strong>de<br />

guia o Povo”<br />

(detalhe)<br />

Pintura a óleo<br />

sobre tela,<br />

1831<br />

A<br />

<strong>Evolução</strong><br />

O objetivo deste singelo estu<strong>do</strong> é, apre-<br />

cian<strong>do</strong> o desenvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no de-<br />

correr <strong>da</strong> história <strong>do</strong>s grupamentos huma-<br />

nos sobre a terra, desde o Esta<strong>do</strong> Teocrático,<br />

<strong>da</strong>s primeiras civilizações <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Antiga<br />

até os nossos dias, em que o neoliberalismo,<br />

em diferentes graus, mostra-se vitorioso em<br />

praticamente to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, analisan<strong>do</strong> sua<br />

similitude, inclusive quanto à denomina-<br />

ção, com o Esta<strong>do</strong> Liberal <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século<br />

passa<strong>do</strong>, Esta<strong>do</strong> Gen<strong>da</strong>rme, que apenas po-<br />

liciava a ordem pública, sem interferir nas<br />

relações entre as pessoas, e, que foi causa<br />

<strong>do</strong> surgimento de Comunismo, fascismo e<br />

nazismo, apreciar as características de ca<strong>da</strong><br />

qual, de forma a procurar levantar a dis-<br />

cussão sobre o aperfeiçoamento de nossas<br />

instituições jurídicas.<br />

Tal discussão se mostra salutar, outros-<br />

sim, quan<strong>do</strong> observamos que, no decorrer<br />

<strong>da</strong> história <strong>do</strong> homem, há <strong>do</strong>is institutos<br />

básicos que, geralmente antagônicos, vêm<br />

* Monografia concorrente <strong>ao</strong> Prêmio Amapi 98/99, Concurso público de Monografias Jurídicas.<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

A <strong>Evolução</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: <strong>da</strong> <strong>Teocracia</strong> <strong>ao</strong> <strong>Neoliberalismo</strong> *<br />

José Vi<strong>da</strong>l de Freitas Filho<br />

obten<strong>do</strong> maior ou menor atenção <strong>da</strong>s dife-<br />

rentes formas de Esta<strong>do</strong>, desde o início <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> social <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, quais sejam o<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e o <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de.<br />

O primeiro, volta<strong>do</strong> à defesa <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>-<br />

de individual, procura retirar to<strong>da</strong>s as peias<br />

que interfiram nas relações entre as pessoas,<br />

permitin<strong>do</strong>-lhes resolver seus negócios sem<br />

interferência <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de pública, contu<strong>do</strong>,<br />

em contraparti<strong>da</strong>, autorizan<strong>do</strong> a suprema-<br />

cia <strong>do</strong>s fortes sobre os fracos.<br />

Em senti<strong>do</strong> contrário, a igual<strong>da</strong>de visa<br />

equiparar to<strong>da</strong>s as pessoas, sem quais-<br />

quer distinções, não permitin<strong>do</strong> que haja<br />

preponderância de alguns sobre outros,<br />

acarretan<strong>do</strong>, to<strong>da</strong>via, o estrangulamento <strong>da</strong><br />

liber<strong>da</strong>de individual, afogan<strong>do</strong> o indivíduo<br />

no meio <strong>do</strong> grupo e desestimulan<strong>do</strong> a ini-<br />

ciativa individual.<br />

Assim, a preponderância de um e <strong>do</strong><br />

outro pode ser vista no transcurso <strong>do</strong>s tem-<br />

pos e o equilíbrio entre ambos nem sempre<br />

117


118<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

sequer almeja<strong>do</strong>, quanto mais atingi<strong>do</strong>.<br />

A observação <strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s tempos, como veremos<br />

a seguir, com suas quali<strong>da</strong>des e defeitos,<br />

contu<strong>do</strong>, servirá para buscarmos a solução<br />

para uma questão: A sucessão de espécies<br />

de esta<strong>do</strong> significou um aperfeiçoamento <strong>do</strong><br />

mesmo? Será o Esta<strong>do</strong> Neoliberal melhor<br />

que seus antecessores?<br />

É evidente, to<strong>da</strong>via, que para que se dis-<br />

cuta essa questão é necessário que primeiro<br />

se estabeleça sob qual critério um Esta<strong>do</strong><br />

pode ser melhor ou pior que os outros.<br />

Assim, o presente estu<strong>do</strong> pretende bus-<br />

car uma resposta levan<strong>do</strong> em conta a obser-<br />

vância a esses princípios, especialmente, no<br />

que diz respeito <strong>ao</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, no tocante<br />

à maior ou menor influência <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong><br />

população na escolha <strong>do</strong>s governantes e no<br />

controle <strong>do</strong> poder estatal, e, quanto <strong>ao</strong> <strong>da</strong><br />

igual<strong>da</strong>de, na busca <strong>da</strong> redução <strong>da</strong>s desi-<br />

gual<strong>da</strong>des jurídica e econômica.<br />

A questão <strong>do</strong> poder<br />

Antes, porém, de ingressar no exame <strong>da</strong><br />

evolução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, considero recomendável<br />

apreciar a problemática <strong>do</strong> poder, ou seja, a<br />

necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem, inexplicável, como<br />

bem dito por Celso Ribeiro Bastos [1988:32],<br />

em virtude <strong>do</strong> reduzi<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> caminha-<br />

<strong>da</strong> humana sobre a terra, de fazer com que os<br />

outros se submetam a sua vontade.<br />

Ora, se essa vontade existe em ca<strong>da</strong><br />

pessoa e se apresenta até nos pequenos gru-<br />

pamentos sociais, inclusive na família, em<br />

muito maior grau e repercussão se observa<br />

quan<strong>do</strong> os grupos sociais se tornam maiores.<br />

Assim, a questão <strong>do</strong> controle <strong>do</strong> poder<br />

estatal sempre se mostrou presente na his-<br />

tória <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de e, quan<strong>do</strong> não houve<br />

qualquer controle, como nas ocasiões em que<br />

o poder estatal decorria <strong>da</strong> determinação<br />

divina, ou, quan<strong>do</strong> esse poder era exerci<strong>do</strong><br />

em nome <strong>da</strong> maior classe social, havia uma<br />

ditadura, com os direitos individuais sufoca-<br />

<strong>do</strong>s e exploração <strong>da</strong> maioria governa<strong>da</strong>.<br />

Ocorre, contu<strong>do</strong>, que as teses anarquis-<br />

tas e comunistas relativas à extinção <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> carecem de viabili<strong>da</strong>de prática, <strong>da</strong><br />

mesma forma em que são destituí<strong>da</strong>s de<br />

referência histórica, uma vez que um órgão<br />

dirigente sempre existiu na história <strong>da</strong>s<br />

civilizações, como também até nos menores<br />

grupamentos, sob pena de sua dissolução,<br />

uma vez que não é possível, na prática, que<br />

to<strong>do</strong>s os membros de uma comuni<strong>da</strong>de,<br />

ain<strong>da</strong> mais se esta é constituí<strong>da</strong> de muitas<br />

pessoas, possam, <strong>ao</strong> mesmo tempo e direta-<br />

mente, gerir a coisa pública, sen<strong>do</strong> necessá-<br />

rio que alguns recebam a incumbência de<br />

exercer tal mister.<br />

O problema que surge, to<strong>da</strong>via, é que,<br />

como o ser humano tem essa tendência a<br />

procurar adquirir poder e, quanto mais<br />

tem, mais busca obter, consoante se pode<br />

exaustivamente contemplar na história <strong>da</strong>s<br />

civilizações, faz-se necessário desenvolver<br />

fórmulas de controlar esse poder, o que nem<br />

sempre ocorreu, muito pelo contrário.<br />

Conceito de Esta<strong>do</strong><br />

Discuti<strong>da</strong> a questão <strong>do</strong> poder, cabe, ago-<br />

ra, definir o que seja Esta<strong>do</strong>, saben<strong>do</strong>-se<br />

que sua noção atual, significan<strong>do</strong> situação<br />

permanente de convivência e liga<strong>da</strong> à so-<br />

cie<strong>da</strong>de política, somente surgiu a partir <strong>do</strong><br />

século XVI, introduzi<strong>da</strong> por Maquiavel na<br />

literatura científica e, à vista disso, há juris-<br />

A sucessão<br />

de espécies<br />

de esta<strong>do</strong><br />

significou um<br />

aperfeiçoamento<br />

<strong>do</strong> mesmo?<br />

Será o Esta<strong>do</strong><br />

Neoliberal<br />

melhor que seus<br />

antecessores?


tas que não admitem a existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

antes <strong>do</strong> século XVII, consoante afirma<strong>do</strong><br />

por Dalmo de Abreu Dallari [1995:43].<br />

O mesmo e festeja<strong>do</strong> professor, contu<strong>do</strong>,<br />

posicionan<strong>do</strong>-se em entendimento contrá-<br />

rio, revela a existência de duas orientações<br />

fun<strong>da</strong>mentais, uma <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ênfase a um<br />

elemento concreto liga<strong>do</strong> à noção de força<br />

e a outra realçan<strong>do</strong> a natureza jurídica <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> como ponto de parti<strong>da</strong> a<br />

noção de ordem.<br />

Para os adeptos <strong>da</strong> primeira corrente, o<br />

Esta<strong>do</strong> pode ser defini<strong>do</strong> como: “força ma-<br />

terial irresistível, limita<strong>da</strong> e regula<strong>da</strong> pelo<br />

direito”, segun<strong>do</strong> Duguit; ou “uma institu-<br />

cionalização <strong>do</strong> poder”, conforme Burdeau;<br />

ou, finalmente, “o monopólio <strong>do</strong> poder”,<br />

consoante Gurvitch.<br />

Já para os segui<strong>do</strong>res <strong>da</strong> última orienta-<br />

ção, o Esta<strong>do</strong> seria: “um povo fixa<strong>do</strong> em um<br />

território e organiza<strong>do</strong> em um poder supre-<br />

mo originário de império, para atuar com<br />

noção unitária ou seus próprios fins coleti-<br />

vos”, segun<strong>do</strong> Ranelleti; ou “a uni<strong>da</strong>de de<br />

um sistema jurídico que tem em si mesmo o<br />

próprio centro autônomo e que é possui<strong>do</strong>r<br />

<strong>da</strong> suprema quali<strong>da</strong>de de pessoa”, consoan-<br />

te Del Vecchio, ou “corporação territorial<br />

<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de um poder de man<strong>do</strong> originário”,<br />

conforme Jellinek; ou, para Hans Kelsen,<br />

“é a ordem coativa normativa <strong>da</strong> conduta<br />

humana”.<br />

Finalmente, em nosso país, cumpre<br />

recor<strong>da</strong>r as noções de Clóvis Bevilacqua:<br />

“agrupamento humano, estabeleci<strong>do</strong> em<br />

determina<strong>do</strong> território e submeti<strong>do</strong> a um<br />

poder soberano que lhe dá uni<strong>da</strong>de orgâni-<br />

ca”, de Queiroz Lima, “nação politicamente<br />

organiza<strong>da</strong>”; de Dalmo Dallari, que repudia<br />

o conceito retro, afirman<strong>do</strong> não ter rigor<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

científico, toman<strong>do</strong> como forma o que pre-<br />

tendia fosse o fim, e define Esta<strong>do</strong> como<br />

“a ordem jurídica soberana que tem por<br />

fim o bem comum de um povo situa<strong>do</strong> em<br />

determina<strong>do</strong> território”; de Celso Ribeiro<br />

Bastos, “organização política sob a qual vive<br />

o homem moderno (...) resultante de um<br />

povo viven<strong>do</strong> sobre um território delimita-<br />

<strong>do</strong> e governa<strong>do</strong> por leis que se fun<strong>da</strong>m num<br />

poder não sobrepuja<strong>do</strong> por nenhum outro<br />

externamente e supremo internamente”;<br />

encerran<strong>do</strong> com Sahid Maluf, que o con-<br />

ceituou como sen<strong>do</strong> “o órgão executor <strong>da</strong><br />

soberania nacional”.<br />

To<strong>do</strong>s esses conceitos, à exceção <strong>do</strong> de<br />

Queiroz Lima, têm em comum a referência<br />

expressa a noções de população, território<br />

e governo, ou seja, grupamento humano,<br />

espaço físico defini<strong>do</strong> e, consoante Sahid<br />

Maluf [1978:43], <strong>do</strong> ponto de vista positi-<br />

vo, “o conjunto <strong>da</strong>s funções necessárias à<br />

manutenção <strong>da</strong> ordem jurídica e <strong>da</strong> admi-<br />

nistração pública”, que seriam, para alguns<br />

juristas, os pressupostos ou requisitos para<br />

a existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e, para outros, de<br />

elementos integra<strong>do</strong>res <strong>da</strong> sua existência.<br />

Defenden<strong>do</strong> esta última corrente, Celso Ri-<br />

beiro Bastos [1988:119] afirma que, no futu-<br />

ro, é possível que um grupamento humano<br />

viva no espaço sideral e, assim, constituir<br />

um Esta<strong>do</strong> sem território.<br />

Ocorre, porém, e com a devi<strong>da</strong> vênia,<br />

que pode estar ocorren<strong>do</strong> aí uma confusão<br />

entre território lato sensu e espaço geo-<br />

gráfico. Na ver<strong>da</strong>de, mesmo em um futuro<br />

distante, é praticamente impossível sequer<br />

imaginar o ser humano viven<strong>do</strong> no éter. Ao<br />

contrário, moran<strong>do</strong> em outro planeta ou<br />

mesmo em órbita, o homem terá que estar<br />

em uma superfície defini<strong>da</strong>, natural, ou<br />

119


120<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

artificial, como uma estação espacial, que,<br />

aí, estará sen<strong>do</strong> um território em seu senti-<br />

<strong>do</strong> amplo.<br />

Por conseguinte, a menos que seja uma<br />

ficção, por algum motivo, como, exemplifi-<br />

can<strong>do</strong>, os ditos governos no exílio, um Esta-<br />

<strong>do</strong> somente estará efetivamente constituí<strong>do</strong><br />

se estiver compreendi<strong>do</strong> desses três ele-<br />

mentos: população, território e governo, e,<br />

assim, parece que o conceito mais adequa<strong>do</strong><br />

é o de Clóvis Bevilacqua, muito semelhante<br />

<strong>ao</strong> de Dalmo Dallari, por apresentarem am-<br />

bos os elementos constitutivos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

distinguin<strong>do</strong>-se por deixar de la<strong>do</strong> o fim <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, constante <strong>da</strong> noção de Dallari, que é<br />

variável no tempo e no espaço e fun<strong>da</strong>men-<br />

tal, naquela forma, exclusivamente para as<br />

nações democráticas.<br />

A origem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

Concluin<strong>do</strong> esta fase e antes de ingressar no<br />

âmago <strong>do</strong> presente estu<strong>do</strong>, faz mister que<br />

seja examina<strong>da</strong>, muito embora de maneira<br />

perfunctória, a problemática relativa à ori-<br />

gem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

Ora, conforme já visto, existe uma<br />

corrente de juristas renoma<strong>do</strong>s, entre os<br />

quais Karl Schmidt, Balla<strong>do</strong>re Pallieri e<br />

Ataliba Nogueira, que entendem o Esta<strong>do</strong><br />

somente como socie<strong>da</strong>de política <strong>do</strong>ta<strong>da</strong><br />

de características bem defini<strong>da</strong>s e, assim,<br />

consideram que o Esta<strong>do</strong> somente surgiu<br />

no Século XVII.<br />

Segun<strong>do</strong> outra corrente respeitável,<br />

integra<strong>da</strong>, entre outros, por Eduard Meyer e<br />

Wilhelm Koppers, o Esta<strong>do</strong>, como a própria<br />

socie<strong>da</strong>de, sempre existiu, pois desde que o<br />

homem vive sobre a terra acha-se integra<strong>do</strong><br />

em uma organização social, <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de poder<br />

e com autori<strong>da</strong>de para determinar o com-<br />

portamento de to<strong>do</strong> o grupo social.<br />

Uma última corrente, entretanto, acre-<br />

dita que a socie<strong>da</strong>de humana existiu sem o<br />

Esta<strong>do</strong> durante algum tempo. Mais tarde,<br />

para atender as necessi<strong>da</strong>des ou conveni-<br />

ências de to<strong>do</strong> o grupo social ou apenas de<br />

alguns, é que o Esta<strong>do</strong> teria si<strong>do</strong> consti-<br />

tuí<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> que, conforme as teorias <strong>do</strong>s<br />

membros dessa corrente, o Esta<strong>do</strong>, assim,<br />

teria origem familiar, em ato de força, patri-<br />

monial ou contratual.<br />

Segun<strong>do</strong> a primeira teoria, sustenta<strong>da</strong><br />

por Aristóteles, Maine, Filmer e Bachofen,<br />

o Esta<strong>do</strong> deriva de um núcleo familiar, cuja<br />

autori<strong>da</strong>de suprema pertenceria <strong>ao</strong> ascen-<br />

dente varão mais velho, o patriarca, sen<strong>do</strong>,<br />

por conseguinte, uma ampliação <strong>da</strong> família<br />

patriarcal e apresentan<strong>do</strong> como exemplos a<br />

origem, segun<strong>do</strong> a tradição, de Roma, fun-<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> por Rômulo, o qual, juntamente com<br />

seu irmão Remo, a quem posteriormente<br />

matou, foi cria<strong>do</strong> por uma loba e, outros-<br />

sim, a história bíblica sobre a criação de<br />

Israel, fruto <strong>da</strong> descendência <strong>do</strong> patriarca<br />

Abraão; ou, derivação de um núcleo fami-<br />

liar presidi<strong>do</strong> pela mãe, a matriarca, por<br />

razão exclusivamente fisiológica, uma vez<br />

que é quem carrega o feto até o nascimento,<br />

“mater semper certa est”; teoria bem expli-<br />

ca<strong>da</strong> por Bachofe, cita<strong>do</strong> por Engels [1977:<br />

7], com a seguinte tese: primitivamente, os<br />

seres humanos viveram em promiscui<strong>da</strong>de<br />

sexual; estas relações excluíam to<strong>da</strong> possi-<br />

bili<strong>da</strong>de de se estabelecer, com certeza, a<br />

paterni<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s filhos havi<strong>do</strong>s, pelo que a<br />

filiação apenas podia ser conta<strong>da</strong> por linha<br />

feminina, segun<strong>do</strong> o direito materno, e isso<br />

se deu em to<strong>do</strong>s os povos antigos; em conse-<br />

qüência desse fato, as mulheres, como mães,


na forma de únicos progenitores conheci<strong>do</strong>s<br />

<strong>da</strong> jovem geração, gozavam de grande apre-<br />

ço e respeito, chegan<strong>do</strong> <strong>ao</strong> <strong>do</strong>mínio femini-<br />

no absoluto.<br />

Já a teoria patrimonial, que tem raízes<br />

na filosofia de Platão, que afirmou que o<br />

Esta<strong>do</strong> se originou <strong>da</strong> união <strong>da</strong>s profissões<br />

econômicas, e, de Cícero, que explicava o<br />

Esta<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> uma organização des-<br />

tina<strong>da</strong> a proteger a proprie<strong>da</strong>de e regula-<br />

mentar as relações de ordem patrimonial,<br />

desenvolveu-se com Haller, que disse que a<br />

posse <strong>da</strong> terra gerou o poder público e deu<br />

origem à organização estatal.<br />

Também seguin<strong>do</strong> tal teoria, já não<br />

mais consideran<strong>do</strong> que o Esta<strong>do</strong> é fruto <strong>da</strong><br />

posse ou proprie<strong>da</strong>de, mas que se originou<br />

de motivos econômicos, surgiram, em se-<br />

gui<strong>da</strong>, Marx e Engels, haven<strong>do</strong> este último<br />

afirma<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> tratar <strong>da</strong> Gens Grega [1977:<br />

119 - 120], o seguinte:<br />

“Faltava apenas uma coisa: uma instituição<br />

que não só assegurasse as novas riquezas in-<br />

dividuais contra as tradições comunistas <strong>da</strong><br />

constituição gentílica; que não só consagrasse<br />

a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, antes tão pouco esti-<br />

ma<strong>da</strong>, e fizesse dessa consagração santifica-<br />

<strong>do</strong>ra o objetivo mais eleva<strong>do</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />

humana, mas também imprimisse o selo geral<br />

<strong>do</strong> reconhecimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de às novas<br />

formas de aquisição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, que se<br />

desenvolviam umas sobre as outras - a acu-<br />

mulação, portanto, ca<strong>da</strong> vez mais acelera<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s riquezas: uma instituição que, em uma<br />

palavra, não só perpetuasse a nascente divi-<br />

são <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em classes, mas também o<br />

direito de a classe possui<strong>do</strong>ra explorar a não<br />

possui<strong>do</strong>ra e o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> primeira sobre a<br />

segun<strong>da</strong>. E essa instituição nasceu. Inventou-<br />

se o Esta<strong>do</strong>.”<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Dessa forma, basean<strong>do</strong>-se na origem<br />

econômica <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, Marx e Engels desen-<br />

volveram sua tese de que o Esta<strong>do</strong> foi cria<strong>do</strong><br />

exclusivamente para servir a burguesia, de<br />

mo<strong>do</strong> a proteger o seu controle sobre a pro-<br />

prie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>do</strong>s meios de produção, em<br />

detrimento <strong>da</strong> classe proletária e, por conse-<br />

guinte, como houve época em que não existiu,<br />

o Esta<strong>do</strong> podia ser extinto futuramente.<br />

Segun<strong>do</strong> a teoria <strong>da</strong> força, o Esta<strong>do</strong> foi<br />

resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de de um grupo so-<br />

cial sobre os outros, que permitiu <strong>ao</strong> primeiro<br />

submeter os mais fracos.<br />

Entre os adeptos dessa teoria merecem re-<br />

alce Bodin, o qual afirmou que “o que dá ori-<br />

gem <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> é a violência <strong>do</strong>s mais fortes”.<br />

Semelhantemente, Gumplowicz e<br />

Oppenheimer, <strong>da</strong> escola sociológica alemã,<br />

tiveram o mesmo entendimento, haven<strong>do</strong><br />

o primeiro menciona<strong>do</strong> que, após um gru-<br />

pamento de pessoas haver venci<strong>do</strong> outro<br />

grupo, obrigou este a cultivar a terra em seu<br />

proveito e, em segui<strong>da</strong>, armou o poder para<br />

manter a defesa de suas conquistas. Já o<br />

segun<strong>do</strong> afirmou:<br />

“O Esta<strong>do</strong> é inteiramente, quanto a sua<br />

origem, e quase inteiramente quanto a sua<br />

natureza, durante os primeiros tempos <strong>da</strong> sua<br />

existência, uma organização social imposta<br />

por um grupo vence<strong>do</strong>r a um grupo venci<strong>do</strong>,<br />

destina<strong>da</strong> a manter esse <strong>do</strong>mínio internamen-<br />

te e a proteger-se contra ataques exteriores.”<br />

Por fim, diversos estudiosos, durante o<br />

perío<strong>do</strong> histórico <strong>da</strong> Reforma Protestante,<br />

desenvolveram teorias <strong>da</strong>n<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong><br />

uma formação contratual, dizen<strong>do</strong> que as<br />

comuni<strong>da</strong>des primitivas, através de um<br />

acor<strong>do</strong> entre seus membros, utilitário e<br />

consciente, deram origem <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

121


122<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

Entre tais estudiosos, merecem menção,<br />

entre vários, os seguintes:<br />

Hugo Grotius, o precursor <strong>do</strong> raciona-<br />

lismo, que considerava que o Esta<strong>do</strong> é cons-<br />

tituí<strong>do</strong> com base em um pacto, o qual efe-<br />

tivamente teria si<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong> em uma<br />

época <strong>da</strong> história e para ca<strong>da</strong> constituição<br />

política existente.<br />

Kant, que alegou que os homens, <strong>ao</strong><br />

passarem <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de natureza para o de<br />

associação, submeteram-se a uma limitação<br />

externa, livre e publicamente acor<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />

surgin<strong>do</strong>, portanto, a autori<strong>da</strong>de civil, o<br />

Esta<strong>do</strong>.<br />

Thomaz Hobbes, o teórico <strong>do</strong> absolu-<br />

tismo, com seu Esta<strong>do</strong> Onipotente, em sua<br />

obra Leviatã, que afirmou que o homem,<br />

antes <strong>do</strong> surgimento <strong>da</strong> organização polí-<br />

tica, no esta<strong>do</strong> de natureza, não vivia em<br />

harmonia com seus semelhantes, pelo con-<br />

trário, era uma situação repleta de violên-<br />

cia, em que ca<strong>da</strong> um atacava o outro na luta<br />

por seus interesses, “homo homini lupus”,<br />

ou seja, o homem sen<strong>do</strong> um lobo para os<br />

outros homens, e, constatan<strong>do</strong> que a vi<strong>da</strong><br />

social não podia continuar dessa maneira,<br />

to<strong>da</strong>s as pessoas haveriam cedi<strong>do</strong> os seus<br />

direitos a um homem ou a uma assembléia<br />

de homens, que personifica a coletivi<strong>da</strong>de e<br />

que assume o encargo de conter a situação<br />

de conflito permanente.<br />

Spinoza, segun<strong>do</strong> o qual o Esta<strong>do</strong> foi<br />

cria<strong>do</strong> como produto de um pacto entre os<br />

homens, contu<strong>do</strong>, a fim de que este lhes<br />

assegure a paz e a justiça.<br />

Locke, para quem o Esta<strong>do</strong> é fruto de<br />

um contrato entre os homens, que, entre-<br />

tanto, delegou-lhe apenas os poderes de re-<br />

gulamentação <strong>da</strong>s relações externas na vi<strong>da</strong><br />

social, manten<strong>do</strong> seus direitos fun<strong>da</strong>mentais.<br />

Finalmente, o ápice <strong>da</strong> teoria contratua-<br />

lista se deu com Russeau, que sustentou que<br />

o esta<strong>do</strong> de natureza <strong>do</strong> homem era de feli-<br />

ci<strong>da</strong>de perfeita, sen<strong>do</strong> sadio, ágil e robusto,<br />

encontran<strong>do</strong>, com facili<strong>da</strong>de o pouco que<br />

precisava, que se constituía exclusivamente<br />

de alimentos, mulher e repouso, temen<strong>do</strong><br />

apenas a <strong>do</strong>r e a fome. Porém, mais tarde<br />

o homem adquiriu duas virtudes que al-<br />

teraram seu esta<strong>do</strong> primitivo: a facul<strong>da</strong>de<br />

de aquiescer ou resistir e a facul<strong>da</strong>de de<br />

aperfeiçoar-se, que principiaram a criar a<br />

desigual<strong>da</strong>de entre as pessoas, desigual<strong>da</strong>de<br />

que aumentou com o surgimento <strong>da</strong> meta-<br />

lurgia e <strong>da</strong> agricultura, fazen<strong>do</strong> com que os<br />

que adquiriram maiores posses passassem<br />

a <strong>do</strong>minar e submeter os mais pobres, o<br />

que acarretou miséria, intrigas, conflitos e<br />

paixões, tornan<strong>do</strong> os homens avaros, licen-<br />

ciosos e perversos. Nesse momento, os indi-<br />

víduos, para o retorno à paz social, trataram<br />

de reunir suas forças, arman<strong>do</strong> um poder<br />

supremo que a to<strong>do</strong>s defenderia, através<br />

de um contrato que tinha duas proposições<br />

essenciais: ca<strong>da</strong> um põe em comum sua<br />

pessoa e to<strong>do</strong> o seu poder sob a suprema<br />

direção <strong>da</strong> vontade geral; e ca<strong>da</strong> um, obe-<br />

decen<strong>do</strong> a essa vontade geral, não obedece<br />

senão a si mesmo.<br />

Vistas, ain<strong>da</strong> que de forma perfunc-<br />

tória, to<strong>da</strong>s essas teorias, mostra-se difícil<br />

chegar a uma conclusão, especialmente em<br />

virtude de não se haver alcança<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong>, a<br />

descoberta de algum convincente vestígio<br />

arqueológico, e, por isso mesmo, talvez es-<br />

teja correto o entendimento de que, desde<br />

que alcançou a capaci<strong>da</strong>de de raciocinar, o<br />

homem sempre esteve pertencen<strong>do</strong> a um<br />

grupo social, que, mesmo de forma simples,<br />

governava-se a si mesmo.


O Egito era uma<br />

nação salutar,<br />

em que a vi<strong>da</strong><br />

era regi<strong>da</strong> pelo<br />

rio Nilo, cujas<br />

enchentes<br />

fertilizavam<br />

a terra e na<br />

qual to<strong>do</strong>s, <strong>da</strong><br />

nobreza <strong>ao</strong>s<br />

mais pobres,<br />

passavam a vi<strong>da</strong><br />

preocupa<strong>do</strong>s<br />

com a morte.<br />

A evolução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

Afinal, supera<strong>da</strong>s as noções preliminares<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, cumpre passar à análise <strong>do</strong> de-<br />

senvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na história <strong>da</strong>s<br />

civilizações humanas, desde o seu início<br />

conheci<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a noção jurídica estava<br />

mistura<strong>da</strong> principalmente com a religião<br />

e os governantes eram filhos ou escolhi<strong>do</strong>s<br />

pelos deuses, até a situação <strong>do</strong> momento<br />

presente.<br />

Para sistematizar esse exame, convém<br />

que se siga uma ordem de desenvolvimento,<br />

com base no desenrolar histórico, como a<br />

que segue:<br />

1. Esta<strong>do</strong>s teocráticos<br />

1.1 Egito<br />

O estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> civilização Egípcia, na ver-<br />

<strong>da</strong>de, é uma fascinante descoberta de uma<br />

riquíssima e interessante civilização que,<br />

hoje, apesar de muito analisa<strong>da</strong> e <strong>da</strong> imensa<br />

quanti<strong>da</strong>de de relíquias e registros encon-<br />

tra<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong> inúmeros mistérios,<br />

como, por exemplo, as técnicas de mumifi-<br />

cação e construção <strong>da</strong>s pirâmides.<br />

Pelo que se tem descoberto, os primei-<br />

ros grupos humanos começaram a residir<br />

às margens <strong>do</strong> rio Nilo por volta <strong>do</strong> ano<br />

4.000 antes de Cristo, forman<strong>do</strong> pequenas<br />

comuni<strong>da</strong>des agrícolas rudimentares de-<br />

nomina<strong>da</strong>s nomos, os quais, cerca de 500<br />

anos depois, foram reuni<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is rei-<br />

nos: o Alto e o Baixo Egito, os quais foram<br />

uni<strong>do</strong>s por volta de 3.200 a. C. por Menés,<br />

chefe <strong>do</strong> reino <strong>do</strong> Alto Egito, que foi o pri-<br />

meiro faraó.<br />

Em segui<strong>da</strong>, uni<strong>do</strong>, o Egito se desen-<br />

volveu, começan<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> denomina<strong>do</strong><br />

pelos historia<strong>do</strong>res de dinástico, no qual<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

nasceram, cresceram e foram destruí<strong>do</strong>s<br />

três impérios, conheci<strong>do</strong>s como antigo,<br />

médio e novo, épocas de construções e con-<br />

quistas, acréscimos territoriais e derrotas,<br />

de famosos faraós, como Queóps, Quéfren<br />

e Miquerinos, que edificaram as famosas<br />

pirâmides que têm seus nomes; Amósis I,<br />

que expulsou os invasores hicsos, e Ramsés<br />

II, quan<strong>do</strong> o Egito alcançou o auge de seu<br />

poderio militar.<br />

O esplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Egito, afinal, chegou a<br />

seu término no ano 525 a. C. quan<strong>do</strong>, em<br />

virtude <strong>da</strong>s lutas internas e <strong>do</strong> surgimento<br />

de poderosos inimigos, os persas, coman<strong>da</strong>-<br />

<strong>do</strong>s pelo rei Cambises, foi definitivamente<br />

conquista<strong>do</strong>.<br />

O Egito era uma nação salutar, em que<br />

a vi<strong>da</strong> era regi<strong>da</strong> pelo rio Nilo, cujas en-<br />

chentes fertilizavam a terra e na qual to<strong>do</strong>s,<br />

<strong>da</strong> nobreza <strong>ao</strong>s mais pobres, passavam a<br />

vi<strong>da</strong> preocupa<strong>do</strong>s com a morte.<br />

Em sua religião, os egípcios acredi-<br />

tavam que havia uma vi<strong>da</strong> pós a morte, a<br />

qual era eterna e na qual a existência seria<br />

melhor ou pior dependen<strong>do</strong> de suas condi-<br />

ções de preservar seus corpos e bens mais<br />

valiosos, mesmo que as pessoas precisassem<br />

passar a vi<strong>da</strong> trabalhan<strong>do</strong> para tal fim. Por<br />

esse motivo é que foram construí<strong>da</strong>s as pi-<br />

râmides, que na<strong>da</strong> mais eram que túmulos<br />

onde eram guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s os corpos <strong>do</strong>s mortos<br />

e os bens que lhes eram mais caros.<br />

Os deuses principais eram o casal Osiris<br />

e Isis, seu filho Horus, Set, o deus <strong>do</strong> mal,<br />

Amon-Rá e, durante pouco tempo, Aton, o<br />

círculo <strong>do</strong> Sol, cujo culto foi estabeleci<strong>do</strong>,<br />

com primazia sobre os outros, pelo faraó<br />

Amenófis IV.<br />

Em sua organização política, o Egito<br />

era um esta<strong>do</strong> totalitário, com to<strong>do</strong> o povo<br />

123


124<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

sujeito à vontade suprema <strong>do</strong> faraó, pro-<br />

prietário <strong>da</strong>s terras e com poder de vi<strong>da</strong> e de<br />

morte sobre to<strong>do</strong>s, com autori<strong>da</strong>de recebi<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>s deuses, de quem era descendente.<br />

Socialmente, o Esta<strong>do</strong> Egípcio era di-<br />

vidi<strong>do</strong> em o faraó e sua família, os nobres,<br />

os sacer<strong>do</strong>tes, o povo e os escravos, fruto<br />

<strong>da</strong>s conquistas e que não tinham qualquer<br />

direito, sen<strong>do</strong> que o faraó governava com a<br />

colaboração <strong>da</strong> nobreza e trabalho burocrá-<br />

tico <strong>do</strong>s escribas.<br />

O território egípcio, com base na região<br />

em volta <strong>do</strong> rio Nilo, tinha a sua extensão<br />

variável de acor<strong>do</strong> com as vitórias e derrotas<br />

militares.<br />

Semelhantemente, o povo egípcio era<br />

aumenta<strong>do</strong> e diminuí<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> com o<br />

resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong>s guerras <strong>da</strong>s quais participava.<br />

1.2. Civilizações mesopotâmicas<br />

Em ver<strong>da</strong>de, não existiu um Esta<strong>do</strong><br />

Mesopotâmico, mas, com o nome de Civili-<br />

zações Mesopotâmicas, diversos povos que<br />

habitaram, na i<strong>da</strong>de antiga, a área compre-<br />

endi<strong>da</strong> entre os rios Tigre e Eufrates, na<br />

região onde hoje se situa o Iraque, povos<br />

distintos, contu<strong>do</strong>, que tiveram muitos pon-<br />

tos em comum. Tais civilizações podem ser<br />

dividi<strong>da</strong>s nas seguintes:<br />

Sumérios: provenientes <strong>do</strong> planalto<br />

<strong>do</strong> hoje Irã, os povos sumérios se fixaram<br />

na Caldéia, sul <strong>da</strong> mesopotâmia, por volta<br />

de 3.500 a. C., onde fun<strong>da</strong>ram diversas<br />

ci<strong>da</strong>des-esta<strong>do</strong>s, entre as quais as mais im-<br />

portantes foram Ur, Uruk, Nipur e Lagash,<br />

sen<strong>do</strong> que ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de-esta<strong>do</strong> era governa<strong>da</strong><br />

por reis absolutos denomina<strong>do</strong>s patesi, que<br />

viviam em constante guerra entre si pela<br />

supremacia regional.<br />

Acadianos: povos que, por volta de<br />

2.300 a. C., sob o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> rei Sargão I,<br />

conquistaram to<strong>da</strong> a região <strong>do</strong> sul <strong>da</strong> Meso-<br />

potâmia.<br />

Primeiro Império Babilônio: por volta<br />

de 2.000 a. C., depois de séculos de lutas<br />

entre os povos que habitavam aquela re-<br />

gião, os habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Babilônia<br />

alcancaram a hegemonia e <strong>do</strong>minaram to<strong>da</strong><br />

a Mesopotâmia, além de regiões próximas.<br />

Dentre seus reis merece destaque Hamu-<br />

rabi, o qual elaborou o famoso código que<br />

tem seu nome, o qual compilava centenas<br />

de leis, algumas provenientes <strong>do</strong> direito <strong>do</strong>s<br />

sumérios e entre as quais merece destaque a<br />

Lei de Talião, que estabelecia que as penas<br />

deviam ser exatamente iguais <strong>ao</strong>s delitos<br />

cometi<strong>do</strong>s.<br />

Império Assírio: em cerca de 1.300 a.<br />

C., os assírios, que há séculos habitavam o<br />

norte <strong>da</strong> Mesopotâmia, começaram o seu<br />

perío<strong>do</strong> de conquistas, chegan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minar<br />

to<strong>da</strong> a região e reinos próximos. Sua princi-<br />

pal característica era ser um povo guerreiro<br />

e extremamente cruel, que atemorizava os<br />

inimigos pelo costume de cortar as orelhas<br />

e narizes e vazar os olhos <strong>do</strong>s adversários<br />

venci<strong>do</strong>s. Sua primeira capital foi Assur,<br />

seguin<strong>do</strong>-se Nínive e seus reis mais impor-<br />

tantes foram Sargão II, Tiglatfalasar, Sena-<br />

queribe e Assurbanipal.<br />

Segun<strong>do</strong> Império Babilônico: depois de<br />

700 anos de <strong>do</strong>mínio assírio, que alcançou<br />

o reino de Israel e se acha registra<strong>do</strong> na<br />

Bíblia, esse império foi derrota<strong>do</strong> pelos cal-<br />

deus, coman<strong>da</strong><strong>do</strong>s por Nabopolassar, o qual<br />

deu início <strong>ao</strong> Segun<strong>do</strong> Império Babilônico,<br />

retornan<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de de Babilônia a ser a<br />

capital <strong>da</strong> Mesopotâmia, hegemonia, porém<br />

de curta duração, eis que esse império so-<br />

mente durou até 539 a . C., quan<strong>do</strong> foi con-


To<strong>do</strong>s esses<br />

reinos<br />

mesopotâmicos<br />

tinham em<br />

comum uma<br />

socie<strong>da</strong>de<br />

estratifica<strong>da</strong>,<br />

sen<strong>do</strong> a base<br />

forma<strong>da</strong> pelos<br />

escravos,<br />

prisioneiros de<br />

guerra.<br />

quista<strong>do</strong> pelos persas lidera<strong>do</strong>s por Ciro.<br />

To<strong>do</strong>s esses reinos mesopotâmicos<br />

tinham em comum uma socie<strong>da</strong>de estratifi-<br />

ca<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> a base forma<strong>da</strong> pelos escravos,<br />

prisioneiros de guerra, fican<strong>do</strong> um pouco<br />

mais acima os camponeses, em segui<strong>da</strong> os<br />

artesãos, comerciantes, militares e funcio-<br />

nários públicos. O topo era ocupa<strong>do</strong> pela<br />

aristocracia, composta <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes e fa-<br />

miliares <strong>do</strong> rei.<br />

Politicamente, os reinos de tal região<br />

eram monarquias absolutas, com o rei man-<br />

ten<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o poder, absoluto, em suas mãos<br />

e as pessoas <strong>do</strong> povo não ten<strong>do</strong> qualquer<br />

direito frente <strong>ao</strong>s governantes, nem, con-<br />

soante no Egito, qualquer possibili<strong>da</strong>de de<br />

interferir nas funções de governo.<br />

O território base era a região entre os<br />

rios Tigre e Eufrates, porém, sen<strong>do</strong> povos<br />

guerreiros, essa base era amplia<strong>da</strong> ou redu-<br />

zi<strong>da</strong> dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> de suas guer-<br />

ras costumeiras, o mesmo ocorren<strong>do</strong> quanto<br />

a sua população.<br />

1.3. Israel<br />

Segun<strong>do</strong> a Bíblia, maior fonte de infor-<br />

mações sobre essa nação, o povo hebreu era<br />

constituí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s descendentes de Abraão e<br />

tinha o nome de seu neto Jacó, modifica<strong>do</strong><br />

por Deus para Israel, filho de Isaque. Tais<br />

descendentes, em número de 70 pessoas,<br />

não conta<strong>da</strong>s as mulheres, teriam se des-<br />

loca<strong>do</strong> para o Egito, em virtude de uma<br />

grande fome e ali teriam se multiplica<strong>do</strong><br />

até que, em razão desse número eleva<strong>do</strong>,<br />

foram leva<strong>do</strong>s à escravidão, que perdurou<br />

por 400 anos.<br />

Após o decurso desse tempo, Deus se<br />

apresentou perante Moisés, filho a<strong>do</strong>tivo<br />

de uma filha <strong>do</strong> faraó, e, dizen<strong>do</strong> chamar-se<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Jeová, que quer dizer “Eu Sou”, man<strong>do</strong>u<br />

que Moisés liderasse o povo hebreu de volta<br />

para a “terra prometi<strong>da</strong>”, Canaã, o que aca-<br />

bou se concretizan<strong>do</strong> já sob a liderança de<br />

Josué, após a morte de Moisés e depois de<br />

40 anos de peregrinação no deserto e depois<br />

de receberem as leis de Deus, sintetiza<strong>da</strong>s<br />

nos dez man<strong>da</strong>mentos.<br />

Chegan<strong>do</strong> à terra prometi<strong>da</strong>, os isra-<br />

elitas a conquistaram, vencen<strong>do</strong> os povos<br />

cananeus e seguin<strong>do</strong> as ordenações divinas,<br />

primeiramente dirigi<strong>do</strong>s pelos juízes, líde-<br />

res escolhi<strong>do</strong>s por Deus para a liderança<br />

em situações difíceis, merecen<strong>do</strong> menção<br />

Sansão e Débora, encerran<strong>do</strong> esse ciclo<br />

com Samuel, seguin<strong>do</strong>-se a fase <strong>do</strong>s reis, a<br />

qual teve início com Saul, continuou com<br />

o famoso Davi, o qual venceu o gigante<br />

Golias, que começou novo perío<strong>do</strong> de con-<br />

quistas militares, e, posteriormente, seu<br />

filho Salomão, de sabe<strong>do</strong>ria incomparável<br />

e sob a liderança de quem a nação alcançou<br />

sua maior expansão e riqueza e quan<strong>do</strong> foi<br />

construí<strong>do</strong> o primeiro templo de Deus, na<br />

ci<strong>da</strong>de de Jerusalém, capital <strong>do</strong> reino.<br />

Após a morte de Salomão aconteceu<br />

a divisão <strong>do</strong> reino em <strong>do</strong>is, Judá e Israel,<br />

aquele governa<strong>do</strong> por Roboão, filho de Sa-<br />

lomão e este por Jeroboão, divisão que se<br />

manteve até que o reino de Israel foi con-<br />

quista<strong>do</strong> pelos assírios coman<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo rei<br />

Sargão II, manten<strong>do</strong>-se Judá independente<br />

até que foi conquista<strong>do</strong> pelos babilônios<br />

dirigi<strong>do</strong>s por Nabuco<strong>do</strong>nosor.<br />

Venci<strong>do</strong>s os babilônios pelos persas, os<br />

hebreus, já como tributários destes, foram<br />

autoriza<strong>do</strong>s a voltar para sua terra, ocasião<br />

em que, sob a direção de Esdras e Nee-<br />

mias, construíram novo templo, voltan<strong>do</strong><br />

a viver na Palestina, contu<strong>do</strong>, sempre sob<br />

125


126<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> potência <strong>do</strong>minante: persas,<br />

macedônios e sucessores, culminan<strong>do</strong> com<br />

os romanos.<br />

Já sob o <strong>do</strong>mínio de Roma, os judeus se<br />

rebelaram, sen<strong>do</strong>, to<strong>da</strong>via, sucessivamente<br />

derrota<strong>do</strong>s, até que, sob o coman<strong>do</strong> de Tito,<br />

filho <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Vespasiano e futuro im-<br />

pera<strong>do</strong>r, foram venci<strong>do</strong>s no ano 70, sen<strong>do</strong><br />

Jerusalém destruí<strong>da</strong> e o terceiro templo,<br />

reconstruí<strong>do</strong> por Herodes, inteiramente<br />

queima<strong>do</strong>, inician<strong>do</strong>-se a diáspora, com a<br />

dispersão <strong>do</strong>s judeus por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, até<br />

1948, quan<strong>do</strong> foi recria<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> de Israel.<br />

Os hebreus formaram uma nação sin-<br />

gular, cuja característica principal era o<br />

monoteísmo, <strong>ao</strong> contrário de to<strong>do</strong>s os povos<br />

vizinhos. E, ain<strong>da</strong> mais, o seu Deus não<br />

tinha representação física.<br />

Politicamente, os hebreus, como as de-<br />

mais nações <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de antiga, formavam um<br />

esta<strong>do</strong> teocrático, ou seja, o governante deti-<br />

nha autori<strong>da</strong>de decorrente <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, e,<br />

por conseguinte, essa autori<strong>da</strong>de não podia<br />

ser contesta<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> que o povo não tinha<br />

participação na administração pública. Dife-<br />

rentemente <strong>da</strong>s demais nações, entretanto, o<br />

governante não era descendente <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de.<br />

Ademais, o governante também estava<br />

sujeito às leis de Deus, devi<strong>da</strong>mente registra-<br />

<strong>da</strong>s na “Torá” e, portanto, o seu poder não era,<br />

ou pelo menos não devia ser, absoluto.<br />

Finalmente, to<strong>do</strong>s os hebreus, além de<br />

deveres, tinham, outrossim, direitos, até os<br />

escravos.<br />

Grécia<br />

Como se sabe, na ver<strong>da</strong>de não existiu<br />

um Esta<strong>do</strong> Grego, mas diversas ci<strong>da</strong>des-es-<br />

ta<strong>do</strong>, polis, ou seja, ci<strong>da</strong>des que formavam,<br />

por si só, um Esta<strong>do</strong> independente e sobe-<br />

rano em relação <strong>ao</strong>s demais, sen<strong>do</strong> que tais<br />

ci<strong>da</strong>des se juntavam apenas para a prática<br />

de esportes, nos famosos jogos olímpicos<br />

e em caso de guerras. De to<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong>des,<br />

to<strong>da</strong>via, merecem menção especial Atenas<br />

e Esparta, as duas rivais sobre as quais se<br />

fun<strong>do</strong>u a civilização grega.<br />

Esparta, localiza<strong>da</strong> na região sul <strong>do</strong> Pelo-<br />

poneso, às margens <strong>do</strong> rio Eurotas, também<br />

chama<strong>da</strong> de Lacedemônia, era forma<strong>da</strong>, ori-<br />

ginariamente, <strong>do</strong> povo dório, que invadiu a<br />

região por volta <strong>do</strong> século IX a . C.<br />

Em sua estrutura social, Esparta era<br />

constituí<strong>da</strong> <strong>do</strong>s descendentes <strong>do</strong>s dórios,<br />

que eram os únicos considera<strong>do</strong>s esparta-<br />

nos, <strong>do</strong>s periecos, pequenos comerciantes<br />

sem grande expressão social e política,<br />

talvez descendentes <strong>do</strong>s povos existentes na<br />

região antes <strong>da</strong> invasão dórica e <strong>do</strong>s hilotas,<br />

os escravos, sem qualquer direito, os quais<br />

eram geralmente inimigos venci<strong>do</strong>s.<br />

Esparta era um Esta<strong>do</strong> extremamente<br />

militarista, em que to<strong>do</strong>s os homens livres<br />

eram sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e estavam sempre prontos<br />

para a guerra, situação que perdurava até<br />

que completassem 60 anos de i<strong>da</strong>de. Carrei-<br />

ra militar que tinha início <strong>ao</strong>s sete anos de<br />

i<strong>da</strong>de. Assim, luxo e conforto eram abomi-<br />

na<strong>do</strong>s, <strong>da</strong> mesma forma que os outros exces-<br />

sos, até relativos <strong>ao</strong> falar.<br />

Em vista de tal filosofia, a eugenia era<br />

integralmente pratica<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> mortas <strong>ao</strong><br />

nascer as crianças porta<strong>do</strong>ras de deficiências.<br />

Pouco antes <strong>da</strong> invasão dórica à região<br />

sul <strong>do</strong> Peloponeso, o povo jônico, <strong>ao</strong> norte,<br />

fun<strong>do</strong>u a ci<strong>da</strong>de de Atenas. Esta tinha a<br />

sua socie<strong>da</strong>de composta pelos eupátri<strong>da</strong>s,<br />

grandes proprietários de terras, paralianos,<br />

comerciantes <strong>do</strong> litoral, diacrianos, comer-<br />

ciantes, metecos, os estrangeiros, e os escra-


Platão afirma<br />

que o Esta<strong>do</strong> é<br />

necessário em<br />

virtude <strong>da</strong> falta<br />

de autarquia<br />

de que sofre<br />

aquele que,<br />

isola<strong>da</strong>mente,<br />

não é capaz<br />

de prover<br />

to<strong>da</strong>s as suas<br />

necessi<strong>da</strong>des.<br />

vos, destituí<strong>do</strong>s de quaisquer direitos.<br />

Se em Esparta tu<strong>do</strong> era volta<strong>do</strong> para<br />

a preparação militar, em Atenas a arte era<br />

particularmente valoriza<strong>da</strong>, haven<strong>do</strong> gran-<br />

des obras arquitetônicas e esculturas.<br />

Diferentemente <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s teocráticos,<br />

as ci<strong>da</strong>des gregas eram democracias, na<br />

ver<strong>da</strong>de, até o berço <strong>da</strong> idéia desta forma de<br />

governo, muito embora não de uma pers-<br />

pectiva moderna, pois não era o povo que<br />

decidia as questões públicas, escolhia os<br />

governantes e votava as leis, porém somente<br />

os ci<strong>da</strong>dãos, quais sejam os homens livres<br />

nasci<strong>do</strong>s nas respectivas ci<strong>da</strong>des.<br />

Os governantes, outrossim, não eram<br />

descendentes ou escolhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s deuses, mas<br />

ci<strong>da</strong>dãos eleitos por seus pares, ten<strong>do</strong> car-<br />

gos com duração limita<strong>da</strong> no tempo.<br />

A filosofia, como ciência volta<strong>da</strong> à bus-<br />

ca <strong>da</strong>s explicações para as causas primeiras,<br />

teve origem na Grécia antiga, ou, pelo me-<br />

nos foi lá que se desenvolveu espetacular-<br />

mente, poden<strong>do</strong>-se mencionar os filósofos<br />

sofistas, epicuristas, he<strong>do</strong>nistas, estóicas,<br />

Sócrates, que voltou seu olhar para o estu<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> homem, ten<strong>do</strong> por lema o famoso “co-<br />

nhece-te a ti mesmo”. Interessan<strong>do</strong> a nosso<br />

estu<strong>do</strong> o seu ensinamento de que se devia<br />

obedecer a to<strong>da</strong>s as leis <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, boas ou<br />

más, sen<strong>do</strong> que o bom ci<strong>da</strong>dão devia obede-<br />

cer a estas para que o mau ci<strong>da</strong>dão não fosse<br />

leva<strong>do</strong> a desobedecer aquelas. Ensinamento<br />

que seguiu até à própria morte, toman<strong>do</strong> a<br />

cicuta que fora condena<strong>do</strong> a beber, muito<br />

embora tivesse oportuni<strong>da</strong>de de fugir.<br />

Quanto à problemática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, con-<br />

tu<strong>do</strong>, deve-se reparar em Platão, que, em<br />

sua obra República, forneceu sua concepção<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

Segun<strong>do</strong> Giorgio Del Vecchio [1979:39],<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

para Platão o Esta<strong>do</strong> é o homem em grande,<br />

ou seja: um organismo completo, em que se<br />

encontra reproduzi<strong>da</strong> a mais perfeita uni<strong>da</strong>-<br />

de. Constituí<strong>do</strong> por indivíduos, soli<strong>da</strong>mente<br />

estrutura<strong>do</strong>, semelha um corpo forma<strong>do</strong> por<br />

vários órgãos, cujo conjunto lhe torna pos-<br />

sível a vi<strong>da</strong>. No indivíduo, como no Esta<strong>do</strong>,<br />

deve reinar aquela harmonia que se obtém<br />

pela virtude.<br />

Ain<strong>da</strong> na República, Platão traça um<br />

paralelo entre o homem e o Esta<strong>do</strong>, des-<br />

cen<strong>do</strong> a um exame minucioso e chegan<strong>do</strong> à<br />

conclusão de que um indivíduo é forma<strong>do</strong><br />

de três partes: a razão, que governa; a cora-<br />

gem, que atua; e os senti<strong>do</strong>s, que obedecem.<br />

Semelhantemente, o Esta<strong>do</strong> é forma<strong>do</strong> de<br />

três classes: os sábios, que devem governar;<br />

os guerreiros, para atuar na defesa <strong>do</strong> Es-<br />

ta<strong>do</strong>; e, os artesãos e camponeses, a quem<br />

caberia obedecer.<br />

Seguin<strong>do</strong> nessa contraposição entre<br />

indivíduo e Esta<strong>do</strong>, Platão afirma que o<br />

Esta<strong>do</strong> é necessário em virtude <strong>da</strong> falta de<br />

autarquia de que sofre aquele que, isola<strong>da</strong>-<br />

mente, não é capaz de prover to<strong>da</strong>s as suas<br />

necessi<strong>da</strong>des, enquanto que este é perfeito,<br />

pois bastante em si mesmo.<br />

Nessa glorificação <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>, Platão<br />

outorgou <strong>ao</strong> mesmo o poder absoluto, cain<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> debaixo de sua competência e interven-<br />

ção e não ten<strong>do</strong> o indivíduo qualquer direito<br />

e chegan<strong>do</strong> <strong>ao</strong> ponto de defender a supressão<br />

<strong>da</strong> família e <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, susten-<br />

tan<strong>do</strong> a comuni<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s bens e <strong>da</strong>s mulheres<br />

pelos sábios e pelos guerreiros.<br />

Já Aristóteles, discípulo de Platão, con-<br />

siderava o Esta<strong>do</strong> uma necessi<strong>da</strong>de, por ser<br />

uma perfeita união orgânica, ten<strong>do</strong> como<br />

objetivo a virtude e a felici<strong>da</strong>de universal,<br />

enquanto que o homem é um animal políti-<br />

127


128<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

co, ou seja, um ser eminentemente gregário,<br />

destina<strong>do</strong> a viver em socie<strong>da</strong>de.<br />

Ain<strong>da</strong> consoante Giorgio Del Vecchio<br />

{1979:45], Aristóteles ensinava que: “Assim<br />

como não é possível conceber uma mão viva<br />

separa<strong>da</strong> <strong>do</strong> corpo, assim também, não se<br />

pode conceber o indivíduo sem o Esta<strong>do</strong>.”<br />

Ao contrário de seu mestre, Aristóteles<br />

não pregava a extinção <strong>da</strong> família, conside-<br />

ran<strong>do</strong> que a união de várias é que formava<br />

o Esta<strong>do</strong>. Também defenden<strong>do</strong> a proprie-<br />

<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>.<br />

Semelhantemente, de mo<strong>do</strong> a justificar<br />

a escravatura, Aristóteles primeiramente<br />

afirmou que algumas pessoas nasceram<br />

incapazes de governar, não ten<strong>do</strong> condições<br />

de serem livres, diversamente de outras,<br />

e, portanto, aqueles deveriam ser escra-<br />

vos. Ao la<strong>do</strong> dessa explicação, Aristóteles<br />

apresentou outra, mas pragmática, dizen<strong>do</strong><br />

que o Esta<strong>do</strong> precisava de uma classe de<br />

homens que pudessem ser coloca<strong>do</strong>s para<br />

as ocupações físicas, a fim de que as outras<br />

classes tivessem condições de se dedicar às<br />

ativi<strong>da</strong>des superiores, acrescentan<strong>do</strong> que<br />

tal situação poderia ser resolvi<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> a<br />

lançadeira e a agulha trabalhassem sem a<br />

intervenção de alguém sobre o tear.<br />

Finalmente, foi Aristóteles o precursor <strong>da</strong><br />

teoria <strong>da</strong> tripartição <strong>do</strong>s poderes estatais, exe-<br />

cutivo, legislativo e judiciário, posteriormente<br />

desenvolvi<strong>da</strong> por Locke e Montesquieu, con-<br />

cluin<strong>do</strong> que, independente de ser o governo<br />

de um só, de alguns ou de to<strong>do</strong>s, bom governo<br />

é o que é exerci<strong>do</strong> para o bem de to<strong>do</strong>s.<br />

Roma<br />

Após o declínio <strong>da</strong> Grécia, causa<strong>do</strong><br />

pelas guerras internas e ten<strong>do</strong> curta dura-<br />

ção a hegemonia macedônica, em virtude<br />

<strong>da</strong>s conten<strong>da</strong>s advin<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> morte<br />

de Alexandre, surgiu no horizonte Roma,<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por volta <strong>do</strong> século VIII a. C. e cuja<br />

história pode ser dividi<strong>da</strong> em três fases:<br />

reina<strong>do</strong>, república e império.<br />

A primeira, <strong>do</strong>s primórdios de Roma,<br />

tinha como forma de governo a monarquia,<br />

sen<strong>do</strong> o rei detentor de poder quase absolu-<br />

to, apenas atenua<strong>do</strong> pelo poder de veto <strong>do</strong>s<br />

anciãos integrantes <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>.<br />

Já a segun<strong>da</strong>, de início <strong>do</strong> poderio ex-<br />

terno, foi assola<strong>da</strong> por lutas internas entre<br />

patrícios, detentores de to<strong>do</strong>s os direitos e<br />

<strong>do</strong>s plebeus, que não possuíam terras e não<br />

podiam influir nos negócios de Esta<strong>do</strong>.<br />

A terceira fase, afinal, foi a <strong>da</strong> máxima<br />

expansão e conseqüente declínio <strong>do</strong> poderio<br />

romano.<br />

Se o esplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s gregos aconteceu<br />

quanto à filosofia, os romanos não chega-<br />

ram a fazer-lhes frente nessa área, pelo con-<br />

trário, tornaram-se segui<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s correntes<br />

filosóficas importa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Grécia, mere-<br />

cen<strong>do</strong> realce, por interessar <strong>ao</strong> estu<strong>do</strong>, a<br />

filosofia estóica, que pregava que o homem<br />

sábio é aquele que venceu to<strong>da</strong>s as paixões<br />

e se livrou <strong>da</strong>s influências externas, a qual<br />

influenciou inúmeros homens ilustres,<br />

como Cícero e o impera<strong>do</strong>r Marco Aurélio,<br />

e a filosofia he<strong>do</strong>nística, que estatuía que o<br />

único bem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é o prazer.<br />

Essas duas correntes filosóficas tiveram<br />

notável desenvolvimento prático na vi<strong>da</strong><br />

romana, em especial na época <strong>do</strong> império,<br />

quan<strong>do</strong>, sujeitos a perder a vi<strong>da</strong> a qualquer<br />

momento, <strong>da</strong><strong>do</strong> o poder absoluto e caráter<br />

instável de vários de seus governantes, os<br />

romanos, ou se mantinham indiferentes<br />

à sorte, viven<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia como se fosse o<br />

último e desprezan<strong>do</strong> a própria vi<strong>da</strong> e a <strong>do</strong>s<br />

Se o esplen<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong>s gregos<br />

aconteceu<br />

quanto à<br />

filosofia, os<br />

romanos não<br />

chegaram a<br />

fazer-lhes frente<br />

nessa área,<br />

pelo contrário,<br />

tornaram-se<br />

segui<strong>do</strong>res<br />

<strong>da</strong>s correntes<br />

filosóficas<br />

importa<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

Grécia


outros, ou entregavam-se totalmente <strong>ao</strong>s<br />

prazeres físicos, o que é bem representa<strong>do</strong><br />

pelo costume de fazer refeições, vomitar o<br />

alimento e novamente se alimentar.<br />

Assim, se no perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> república os<br />

ci<strong>da</strong>dãos tinham participação na vi<strong>da</strong> pú-<br />

blica, muito embora o sena<strong>do</strong> fosse vitalício<br />

e não eleito, no império, com o governante<br />

concentran<strong>do</strong> em suas mãos to<strong>do</strong> o poder,<br />

inclusive o de vi<strong>da</strong> e morte, passan<strong>do</strong> o<br />

sena<strong>do</strong> e as magistraturas a uma atuação<br />

meramente simbólica, o governo tornou-se<br />

despótico, até retornan<strong>do</strong> a uma feição te-<br />

ocrática, pois os impera<strong>do</strong>res se tornavam<br />

deuses e deveriam inclusive ser objeto de<br />

a<strong>do</strong>ração.<br />

Entretanto, mesmo conviven<strong>do</strong> com tal<br />

poder absoluto, Roma merece realce pelo<br />

notável impulso que deu <strong>ao</strong> direito, instru-<br />

mento regula<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s relações sociais <strong>da</strong>s<br />

pessoas, exceto os escravos, que eram consi-<br />

dera<strong>do</strong>s “res”, coisa e até <strong>da</strong>s pessoas para<br />

com o governo.<br />

Esta<strong>do</strong> feu<strong>da</strong>l<br />

Com a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> Império Romano <strong>do</strong><br />

Ocidente, em 476, os bárbaros completaram<br />

o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> continente europeu e come-<br />

çaram, gra<strong>da</strong>tivamente, a misturar os seus<br />

costumes e leis com as normas romanas,<br />

muito mais desenvolvi<strong>da</strong>s e com as regras<br />

cristãs, pois o cristianismo já tinha toma<strong>do</strong><br />

conta de Roma.<br />

Tal mistura acarretava a coexistência,<br />

simultânea, <strong>do</strong> evoluí<strong>do</strong> direito romano,<br />

de normas como a que proibia a prisão por<br />

dívi<strong>da</strong>s, consoante a célebre lei Poetelia<br />

Papiria, <strong>do</strong> preceito cristão relativo <strong>ao</strong> amor<br />

fraternal, com regras como o julgamento<br />

pelas ordálias, ou juízo de Deus.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Como os bárbaros não formavam um só<br />

povo, mas vários, go<strong>do</strong>s, francos, norman-<br />

<strong>do</strong>s, vân<strong>da</strong>los etc., o império romano foi<br />

fraciona<strong>do</strong> em diversos Esta<strong>do</strong>s, os quais<br />

não tinham um poder central forte, porém<br />

tinham o território dividi<strong>do</strong> em feu<strong>do</strong>s,<br />

ca<strong>da</strong> um ten<strong>do</strong> um chefe, que possuía pouco<br />

contato e submissão <strong>ao</strong> governo central,<br />

reunin<strong>do</strong>-se normalmente apenas para as<br />

guerras entre os Esta<strong>do</strong>s e, posteriormente,<br />

contra os invasores mouros.<br />

Entretanto, com a crescente conversão<br />

<strong>do</strong>s bárbaros <strong>ao</strong> cristianismo, a Igreja Cató-<br />

lica começou a se impor e, então, a figurar<br />

como força até nas questões internas e ex-<br />

ternas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s.<br />

Tal atuação se fun<strong>da</strong>mentava filosofica-<br />

mente nas teses <strong>da</strong>s duas escolas mais desta-<br />

cáveis <strong>da</strong> época: a Patrística e a Escolástica.<br />

A primeira teve como expoente princi-<br />

pal Santo Agostinho, bispo de Hipona que,<br />

em sua obra monumental, De Civitate Dei,<br />

estabelece a distinção entre o Esta<strong>do</strong> terre-<br />

no, que corresponde <strong>ao</strong> reino <strong>da</strong> impie<strong>da</strong>de,<br />

societas impiorum, falho e distancia<strong>do</strong> de<br />

Deus, decorrente <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original de<br />

Adão, <strong>ao</strong> qual se seguiram os peca<strong>do</strong>s de<br />

to<strong>do</strong>s os homens, Esta<strong>do</strong> que, mesmo que<br />

tenha um objetivo louvável, a paz entre as<br />

pessoas e, nesse senti<strong>do</strong>, seja deriva<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

vontade de Deus e <strong>da</strong> natureza, acha-se<br />

sempre subordina<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> Celeste,<br />

Civitas Dei, a comunhão <strong>do</strong>s fiéis, que, no<br />

fim <strong>do</strong>s tempos, substituiria inteiramente o<br />

Esta<strong>do</strong> terreno.<br />

Assim, Santo Agostinho estatuiu que a<br />

Igreja Católica deveria ter primazia sobre<br />

os Esta<strong>do</strong>s Feu<strong>da</strong>is.<br />

Já a Escolástica teve como principal<br />

representante São Tomás de Aquino, cuja<br />

129


130<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

obra principal foi a Summa Theologiae, o<br />

qual asseverava que o Esta<strong>do</strong> é um produto<br />

natural e indispensável à satisfação <strong>da</strong>s ne-<br />

cessi<strong>da</strong>des humanas, deriva<strong>do</strong> <strong>da</strong> natureza<br />

social <strong>do</strong> homem e que existiria mesmo que<br />

Adão não tivesse peca<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> como fim a<br />

garantia <strong>da</strong> segurança de seus integrantes e<br />

promover o bem comum.<br />

Distinguin<strong>do</strong>-se, por conseguinte, de<br />

Santo Agostinho neste ponto, São Tomás<br />

com ele concor<strong>da</strong>va quanto à subordinação<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> à Igreja Católica, à qual devia ser<br />

obediente para se manter legítimo e ten<strong>do</strong><br />

o Papa, como vigário de Deus, o poder de<br />

punir os reis e de dispensar os súditos <strong>do</strong><br />

juramento de fideli<strong>da</strong>de <strong>ao</strong>s soberanos.<br />

Dessa forma, o Esta<strong>do</strong> feu<strong>da</strong>l se carac-<br />

terizava, principalmente, pela fraqueza <strong>do</strong><br />

poder central, com conseqüente fortale-<br />

cimento <strong>do</strong>s feu<strong>do</strong>s, em que o chefe tinha<br />

soberania sobre os bens e as pessoas exis-<br />

tentes em seus <strong>do</strong>mínios, sen<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong><br />

girava sobre a posse e a proprie<strong>da</strong>de de<br />

terras, <strong>da</strong>li decorren<strong>do</strong> as relações entre os<br />

chefes feu<strong>da</strong>is e os habitantes de suas terras,<br />

seus servos, a instabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fronteiras,<br />

decorrentes <strong>da</strong>s incessantes guerras entre os<br />

feu<strong>do</strong>s, e, a supremacia <strong>da</strong> Igreja Católica<br />

sobre as diversas nações.<br />

Esta<strong>do</strong> absolutista<br />

Ao final <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de média, as idéias que<br />

alicerçavam o Esta<strong>do</strong> Feu<strong>da</strong>l passaram a<br />

ser violentamente ataca<strong>da</strong>s, inicialmente no<br />

confronto entre guelfos e gibelinos, quan<strong>do</strong><br />

a supremacia estatal sobre a esfera eclesiás-<br />

tica foi defendi<strong>da</strong> especialmente por Dante<br />

Alighieri, situação que recrudesceu com a<br />

Reforma protestante.<br />

No mesmo diapasão, surgiu uma filosofia<br />

<strong>da</strong> supremacia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não somente sobre a<br />

Igreja Católica, porém, outrossim, sobre to<strong>da</strong>s<br />

as pessoas, merecen<strong>do</strong> menção especial Nico-<br />

lau Maquiavel e Thomaz Hobbes.<br />

O primeiro, em sua famosa obra, O<br />

príncipe, ain<strong>da</strong> hoje tão discuti<strong>da</strong> e que<br />

é considera<strong>da</strong> a base <strong>da</strong> ciência política,<br />

em seu senti<strong>do</strong> moderno, defendeu, sem<br />

qualquer consideração moral, que o líder<br />

político deveria praticar to<strong>da</strong>s as ações, sem<br />

preocupação se justas ou injustas, éticas ou<br />

antiéticas, exclusivamente com o propósito<br />

de alcançar o poder e mantê-lo, objetivan<strong>do</strong><br />

a libertação <strong>da</strong> Itália <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio estrangei-<br />

ro. Nesse senti<strong>do</strong>, afirmou que “o cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

maior de um príncipe deve ser o <strong>da</strong> manu-<br />

tenção <strong>do</strong> seu Esta<strong>do</strong>; os meios que ele utili-<br />

zar para esse fim serão sempre justifica<strong>do</strong>s<br />

e terão o louvor de to<strong>do</strong>s, porque o vulgo se<br />

deixa impressionar pelas aparências e pelos<br />

efeitos - e o vulgo é quem faz o mun<strong>do</strong>.”<br />

O surpreendente, portanto, nas teses<br />

de Maquiavel, não é nem o fato de consi-<br />

derar que, no que concerne à conquista e<br />

manutenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, os fins justificarem<br />

os meios, o que na<strong>da</strong> tinha de novo nos<br />

governos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mas o cinismo de apre-<br />

sentar as formas práticas de consecução de<br />

tal objetivo, haven<strong>do</strong> chega<strong>do</strong> <strong>ao</strong> ponto de<br />

afirmar, segun<strong>do</strong> cita<strong>do</strong> por Ernst Cassirer<br />

[1976:166 - 167]:<br />

“Um príncipe tem de saber ser bicho ou<br />

homem, consoante as ocasiões: e isto é-nos<br />

sugeri<strong>do</strong> pelos escritores antigos, que relatam<br />

terem Aquiles e outros príncipes si<strong>do</strong> envia-<br />

<strong>do</strong>s, a fim de serem educa<strong>do</strong>s, para junto <strong>do</strong><br />

centauro Quíron; e como o seu preceptor era<br />

meio homem e meio bicho, tiveram de ser en-<br />

sina<strong>do</strong>s a imitar ambas as naturezas, de tal<br />

mo<strong>do</strong> que uma não se podia conservar sem a


Hobbes<br />

afirmou que o<br />

homem, antes<br />

<strong>da</strong> criação <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, vivia<br />

na constante<br />

prática de<br />

violência<br />

contra os<br />

outros homens.<br />

outra. Portanto, porque é tão necessário para<br />

o príncipe aprender como deve algumas ve-<br />

zes fazer o papel de bicho, deve tomar como<br />

modelo o leão e a raposa: porque o leão não<br />

é suficientemente manhoso para se livrar <strong>da</strong>s<br />

serpentes e <strong>da</strong>s armadilhas e a raposa não é<br />

suficientemente forte para vencer o lobo; por<br />

conseguinte, ele deve ser uma raposa, a fim<br />

de descobrir as serpentes, e um leão, para que<br />

os lobos o temam.”<br />

No mesmo senti<strong>do</strong>, também consideran-<br />

<strong>do</strong> que as organizações políticas deveriam<br />

se basear na premissa de que os homens são<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente maus, surgiu Hobbes,<br />

que afirmou que o homem, antes <strong>da</strong> criação<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, vivia na constante prática de<br />

violência contra os outros homens (homo<br />

homini lupus), haven<strong>do</strong>, por conseguinte,<br />

guerras por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s (bellum omnium<br />

contra omnes), o que teria leva<strong>do</strong> as pesso-<br />

as, para fazer cessar tal situação e alcançar<br />

a paz, a chegar a um pacto, que tinha a se-<br />

guinte fórmula:<br />

“Autorizo e transfiro a este homem ou assem-<br />

bléia de homens o meu direito de governar-<br />

me a mim mesmo, com a condição de que vós<br />

outros transfirais também a ele o vosso direi-<br />

to, e autorizeis to<strong>do</strong>s os seus atos nas mesmas<br />

condições como o faço.”<br />

Firma<strong>do</strong> esse pacto, que <strong>do</strong>tou poder a<br />

uma pessoa ou organismo para pacificar a<br />

convivência social, o ente cria<strong>do</strong> assumiria<br />

alcance absoluto e ilimita<strong>do</strong>, de mo<strong>do</strong> a<br />

cumprir suas funções.<br />

Alicerça<strong>do</strong> nessa filosofia e declinan<strong>do</strong><br />

o poder <strong>da</strong> Igreja Católica, o continente<br />

europeu viu surgirem diversos esta<strong>do</strong>s de<br />

formato absolutista, como Inglaterra, Fran-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

ça, Áustria, Rússia, etc., os quais tinham em<br />

comum o fato de serem monarquias, com<br />

soberanos, como retorno às civilizações <strong>da</strong><br />

i<strong>da</strong>de antiga, que detinham autori<strong>da</strong>de pro-<br />

veniente de Deus, como pessoas escolhi<strong>da</strong>s<br />

pela divin<strong>da</strong>de para governar, portanto,<br />

de poder central forte e indiviso, ou, pelo<br />

menos, inquestionavelmente superior <strong>ao</strong>s<br />

demais e com os governa<strong>do</strong>s destituí<strong>do</strong>s de<br />

qualquer direito frente <strong>ao</strong> poder público.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, o rei Luís XV, <strong>da</strong> França,<br />

afirmara: “nós não temos a nossa coroa<br />

senão de Deus e o direito de fazer as leis<br />

nos pertence sem co-participação ou depen-<br />

dência” e, o rei Carlos I, <strong>da</strong> Inglaterra: “a<br />

liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> povo consiste nas leis que lhe<br />

assegurem a vi<strong>da</strong> e os bens próprios, nunca<br />

no direito de governar por si mesmo. Este<br />

direito é <strong>do</strong> soberano”.<br />

Ademais, encontran<strong>do</strong>-se o Esta<strong>do</strong> fir-<br />

ma<strong>do</strong> na pessoa <strong>do</strong> monarca, “L’État c’est<br />

moi”, disse o rei francês Luís XIV, tu<strong>do</strong>, até<br />

as guerras, estava relaciona<strong>do</strong>, diretamente,<br />

às vontades <strong>do</strong> soberano, que guerreava ou<br />

fazia a paz com os outros Esta<strong>do</strong>s de acor<strong>do</strong><br />

com seus interesses particulares. Os gover-<br />

na<strong>do</strong>s, em especial os que não constituíam a<br />

nobreza, não tinham seus interesses leva<strong>do</strong>s<br />

em conta e nem como influenciar as deci-<br />

sões políticas.<br />

Esta<strong>do</strong> liberal<br />

Reagin<strong>do</strong> contra esse poder absoluto,<br />

causa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> miséria de tantos, surgiram<br />

diversos filósofos, que pugnavam pela li-<br />

ber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem e seu direito de reger o<br />

próprio destino.<br />

Nesse diapasão, encontramos John<br />

Locke, o qual defendia a limitação <strong>da</strong> auto-<br />

ri<strong>da</strong>de <strong>do</strong> rei pela soberania popular e afir-<br />

131


132<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

mava que, no caso de conflito entre o poder<br />

governante e o povo, a vontade deste é que<br />

deveria prevalecer, uma vez que é a única<br />

fonte <strong>do</strong> poder.<br />

Locke acreditava, como Hobbes, que o<br />

Esta<strong>do</strong> fora cria<strong>do</strong> por meio de um contrato,<br />

porém, <strong>ao</strong> contrário <strong>da</strong>quele, considerava<br />

que o homem, antes que fosse firma<strong>do</strong> o pac-<br />

to, por conseguinte, no esta<strong>do</strong> de natureza,<br />

não vivia em guerra permanente, porém, era<br />

possui<strong>do</strong>r de razão e tinha seus impulsos re-<br />

frea<strong>do</strong>s por sentimentos de equi<strong>da</strong>de, poden-<br />

<strong>do</strong>, assim, conservar a sua liber<strong>da</strong>de se assim<br />

o quisesse. Contu<strong>do</strong>, faltan<strong>do</strong> uma autori<strong>da</strong>-<br />

de para garantir o exercício <strong>do</strong>s direitos de li-<br />

ber<strong>da</strong>de, os homens concor<strong>da</strong>ram em retirar<br />

uma parte de seus direitos e concedê-los <strong>ao</strong><br />

Esta<strong>do</strong> para que este pudesse superintender<br />

a ordem civil, julgar e punir os transgresso-<br />

res e promover a defesa externa.<br />

Assim, ten<strong>do</strong> a autori<strong>da</strong>de governa-<br />

mental atribuições defini<strong>da</strong>s por meio <strong>do</strong><br />

contrato, caso exorbitasse o seu poder, esta-<br />

ria violan<strong>do</strong> o pacto e o povo reassumiria a<br />

soberania originária, poden<strong>do</strong> se sublevar.<br />

Também se insurgin<strong>do</strong> contra a onipo-<br />

tência estatal, surgiu depois Jean Jacques<br />

Russeau, que, consideran<strong>do</strong>, outrossim, que<br />

o Esta<strong>do</strong> teve criação contratual, uma vez<br />

que o homem, que, no esta<strong>do</strong> de natureza,<br />

vivia em perfeita felici<strong>da</strong>de, acabou por<br />

desenvolver a inteligência, a linguagem e<br />

outras facul<strong>da</strong>des e, com o surgimento <strong>da</strong><br />

metalurgia e <strong>da</strong> agricultura, veio a desigual-<br />

<strong>da</strong>de, sen<strong>do</strong> que os que adquiriram maiores<br />

posses passaram a submeter os mais pobres,<br />

geran<strong>do</strong> as paixões e violências. Para recu-<br />

perar a situação de paz anterior, então, os<br />

homens reuniram suas forças, arman<strong>do</strong> um<br />

poder supremo que a to<strong>do</strong>s defenderia, fir-<br />

man<strong>do</strong> um contrato social, com o seguinte<br />

enuncia<strong>do</strong> principal:<br />

“ca<strong>da</strong> um põe em comum sua pessoa e to<strong>do</strong> o<br />

seu poder sob a suprema direção <strong>da</strong> vontade<br />

geral; e ca<strong>da</strong> um, obedecen<strong>do</strong> a essa vontade<br />

geral, não obedece senão a si mesmo”.<br />

Sen<strong>do</strong> produto de um acor<strong>do</strong> de vonta-<br />

des e ten<strong>do</strong> como objetivo a promoção <strong>do</strong><br />

bem comum, segun<strong>do</strong> Russeau o Esta<strong>do</strong><br />

somente é suportável quan<strong>do</strong> é justo. Não o<br />

sen<strong>do</strong>, o povo tem o direito de substituí-lo,<br />

refazen<strong>do</strong> o pacto.<br />

Finalmente, de suma importância para o<br />

estabelecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na forma moder-<br />

na foi Charles de Secon<strong>da</strong>t, barão de Mon-<br />

tesquieu, o qual, em sua obra Espírito <strong>da</strong>s<br />

leis, distinguiu três formas de governo: re-<br />

pública, que tem por pressuposto a devoção<br />

<strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos <strong>ao</strong> bem público, e, portanto, seu<br />

princípio particular é a virtude; monarquia,<br />

que tem por base o amor <strong>do</strong>s privilégios e<br />

<strong>da</strong>s distinções, sen<strong>do</strong> seu princípio básico a<br />

honra; e despotismo, que se fun<strong>da</strong> na força e<br />

tem por sustentáculo o me<strong>do</strong>.<br />

Montesquieu, ain<strong>da</strong>, <strong>ao</strong> estu<strong>da</strong>r o siste-<br />

ma político inglês, observou que ali existia<br />

um regime de autêntica liber<strong>da</strong>de política,<br />

acreditan<strong>do</strong> que isso se devia <strong>ao</strong> princípio<br />

<strong>da</strong> divisão <strong>do</strong>s poderes, levan<strong>do</strong>-o a afirmar<br />

que: “para que se não possa abusar <strong>do</strong> poder<br />

urge que o poder detenha o poder” e, recu-<br />

peran<strong>do</strong> as idéias de Aristóteles e Locke,<br />

defendeu que o poder estatal fosse dividi<strong>do</strong><br />

em três, o legislativo, que elaboraria as leis,<br />

o executivo, que as executaria, e, judicial,<br />

que as faria cumprir, sustentan<strong>do</strong> que tais<br />

poderes deveriam ser independentes uns<br />

<strong>do</strong>s outros e confia<strong>do</strong>s a pessoas diferentes,<br />

consoante ocorria na Inglaterra.<br />

Sen<strong>do</strong> produto<br />

de um acor<strong>do</strong><br />

de vontades<br />

e ten<strong>do</strong> como<br />

objetivo a<br />

promoção <strong>do</strong><br />

bem comum,<br />

o Esta<strong>do</strong><br />

somente é<br />

suportável<br />

quan<strong>do</strong> é justo.


Assim, com essa base filosófica e leva-<br />

<strong>do</strong> pela revolta <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong> população<br />

<strong>do</strong>s países despóticos contra a situação de<br />

miséria econômica em que vivia e contra<br />

os privilégios de alguns poucos, o alicerce<br />

<strong>do</strong> absolutismo foi sen<strong>do</strong> corroí<strong>do</strong> e, pri-<br />

meiramente na Inglaterra <strong>do</strong> século XVII,<br />

<strong>da</strong> revolta <strong>do</strong> Parlamento, sob a liderança<br />

de Cromwell, contra o absolutismo tenta<strong>do</strong><br />

pelo rei Carlos I, revolta vitoriosa e que,<br />

após a breve ditadura <strong>do</strong> próprio Cromwell,<br />

com seus princípios cristaliza<strong>do</strong>s nas De-<br />

clarações de Direitos de 1679, 1689 e 1701,<br />

alcançou uma importante redução <strong>do</strong> poder<br />

<strong>do</strong>s soberanos, que ain<strong>da</strong> hoje se mantém.<br />

Em segui<strong>da</strong>, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Amé-<br />

rica <strong>do</strong> Norte, influencia<strong>do</strong>s pelos mesmos<br />

princípios filosóficos e pela rejeição <strong>ao</strong>s<br />

novos impostos cria<strong>do</strong>s pela coroa inglesa,<br />

revoltaram-se contra o <strong>do</strong>mínio britânico e,<br />

valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> direito de rebelião prega<strong>do</strong><br />

por Locke, chegaram à independência polí-<br />

tica, estatuin<strong>do</strong>, em sua Constituição Fede-<br />

ral, o que segue:<br />

“Cremos axiomáticas as seguintes ver<strong>da</strong>-<br />

des: que os homens foram cria<strong>do</strong>s iguais;<br />

que lhes conferiu o Cria<strong>do</strong>r certos direitos<br />

inalienáveis, entre os quais o de vi<strong>da</strong>, o de<br />

liber<strong>da</strong>de e o de procurarem a própria feli-<br />

ci<strong>da</strong>de; que para a segurança desses direitos<br />

se constituíram entre os homens governos,<br />

cujos justos poderes emanam <strong>do</strong> consen-<br />

timento <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>s; que sempre que<br />

qualquer forma de governa ten<strong>da</strong> a destruir<br />

esses fins assiste <strong>ao</strong> povo o direito de mudá-<br />

la ou aboli-la, instituin<strong>do</strong> um novo governo<br />

cujos princípios básicos e organização de<br />

poderes obedeçam às normas que lhe pare-<br />

çam mais próprias a promover a segurança<br />

e a felici<strong>da</strong>de gerais.”<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Acompanhan<strong>do</strong> os exemplos <strong>da</strong> Ingla-<br />

terra e, especialmente, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />

a França, onde o monarca ain<strong>da</strong> reinava<br />

absoluto e, <strong>da</strong><strong>da</strong> a crise econômica <strong>do</strong> Es-<br />

ta<strong>do</strong>, se não causa<strong>da</strong>, pelo menos agrava<strong>da</strong><br />

pelos imensos gastos <strong>da</strong> corte, o que acarre-<br />

tou fome e miséria para a imensa maioria<br />

<strong>da</strong> população, que compunha o Terceiro<br />

Esta<strong>do</strong>, detentor apenas de obrigações, fi-<br />

can<strong>do</strong> quase to<strong>do</strong>s os direitos, muitos ain<strong>da</strong><br />

feu<strong>da</strong>is, e, to<strong>do</strong>s os privilégios, para os in-<br />

tegrantes <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong>is esta<strong>do</strong>s, nobreza<br />

e clero, que constituíam menos de dez por<br />

cento <strong>da</strong> população, o povo, depois de con-<br />

voca<strong>do</strong>, juntamente com a nobreza e o clero,<br />

para uma assembléia <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s, convoca-<br />

<strong>da</strong> pelo rei Luís XVI para aprovar um au-<br />

mento de impostos, acabou por se revoltar<br />

<strong>ao</strong> ver nega<strong>do</strong>s seus pleitos pela melhoria<br />

de sua situação e após o rei haver volta<strong>do</strong><br />

atrás e dissolvi<strong>do</strong> a assembléia, geran<strong>do</strong> a<br />

Revolução Francesa, de 1789, que nivelou<br />

os três esta<strong>do</strong>s, acabou com os privilégios de<br />

classes e proclamou o princípio <strong>da</strong> sobera-<br />

nia nacional, estatuin<strong>do</strong> o seguinte:<br />

“to<strong>do</strong> governo que não provém <strong>da</strong> vontade<br />

nacional é tirania; a nação é soberana e sua<br />

soberania é una, indivisível, inalienável e<br />

imprescritível; o Esta<strong>do</strong> é uma organização<br />

artificial, precária, resultante de um pacto<br />

nacional voluntário, sen<strong>do</strong> o seu destino o<br />

de servir o homem; o pacto social se rompe<br />

quan<strong>do</strong> uma parte lhe viola as cláusulas;<br />

não há governo legítimo sem o consentimento<br />

popular; a lei é a expressão <strong>da</strong> vontade geral;<br />

o homem é livre, poden<strong>do</strong> fazer ou deixar de<br />

fazer o que quiser, contanto que a sua ação<br />

ou omissão não seja defini<strong>da</strong> legalmente<br />

como crime; a liber<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um limita-<br />

se pela igual liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s outros; to<strong>do</strong>s são<br />

133


134<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

iguais perante a lei; o governo se destina à<br />

manutenção <strong>da</strong> ordem jurídica e não in-<br />

tervirá no campo <strong>da</strong>s relações priva<strong>da</strong>s; e,<br />

o governo é limita<strong>do</strong> por uma constituição<br />

escrita, que tem como partes essenciais a<br />

tripartição <strong>do</strong> poder estatal e a declaração<br />

<strong>do</strong>s direitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>do</strong> homem.”<br />

Esses princípios tiveram imensa acolhi-<br />

<strong>da</strong> pelo mun<strong>do</strong>, firman<strong>do</strong>-se como postula-<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s democráticos e, em teoria,<br />

até nos esta<strong>do</strong>s totalitários <strong>do</strong>s séculos se-<br />

guintes, ain<strong>da</strong> que, mesmo na França, a prá-<br />

tica <strong>do</strong> respeito <strong>ao</strong>s direitos individuais não<br />

tenha si<strong>do</strong> manti<strong>da</strong> durante a fase <strong>do</strong> terror,<br />

em que muitos eram julga<strong>do</strong>s e condena<strong>do</strong>s<br />

com reduzidíssima oportuni<strong>da</strong>de de defesa e<br />

sem que tivessem pratica<strong>do</strong> qualquer crime.<br />

Ocorre, entretanto, que, representan<strong>do</strong><br />

o ápice <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de individual e, na teo-<br />

ria, perfeitamente justos, tais princípios<br />

liberais, em especial, o que estabelecia que<br />

cabia <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> unicamente a manutenção<br />

<strong>da</strong> ordem pública, afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> campo <strong>da</strong>s<br />

relações priva<strong>da</strong>s, acabaram por acarretar a<br />

exploração <strong>do</strong> homem pelo próprio homem,<br />

eis que colocavam no mesmo nível pessoas<br />

que, por se acharem desiguala<strong>da</strong>s econo-<br />

micamente, na prática não estavam em<br />

condições iguais para contratarem entre si.<br />

Deficiência que foi claramente evidencia<strong>da</strong><br />

quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> Revolução Industrial.<br />

Essa revolução, que para Alvin Toffler,<br />

representou uma Segun<strong>da</strong> On<strong>da</strong> a varrer a<br />

humani<strong>da</strong>de, modificou, profun<strong>da</strong>mente<br />

a socie<strong>da</strong>de de então, tornan<strong>do</strong>-a mais ur-<br />

bana, desestruturan<strong>do</strong> a família, crian<strong>do</strong><br />

novas relações sociais e, com a implantação<br />

<strong>da</strong>s máquinas nas empresas, que acarretou<br />

grande quanti<strong>da</strong>de de desemprega<strong>do</strong>s, os<br />

quais tiveram suas funções assumi<strong>da</strong>s pelas<br />

máquinas, fez com que o trabalho humano<br />

passasse a ser negocia<strong>do</strong> como merca<strong>do</strong>ria,<br />

sujeito à lei <strong>da</strong> oferta e <strong>da</strong> procura.<br />

Porém, como a oferta era maior que<br />

a procura, <strong>da</strong><strong>da</strong> a grande quanti<strong>da</strong>de de<br />

desemprega<strong>do</strong>s, quem conseguisse um em-<br />

prego era obriga<strong>do</strong> a aceitar as condições<br />

impostas pelo patrão, receben<strong>do</strong> salários<br />

irrisórios, trabalhan<strong>do</strong> mais de 15 horas por<br />

dia, sem dia de descanso e férias.<br />

Ademais, não havia amparo para o tra-<br />

balha<strong>do</strong>r <strong>do</strong>ente e nem para o i<strong>do</strong>so.<br />

Esta<strong>do</strong> comunista<br />

Como reação a essa situação de aban-<br />

<strong>do</strong>no, surgiram diversos movimentos, de<br />

várias feições e objetivos, in<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anar-<br />

quistas, que pugnavam pela destruição<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a, inicialmente, os comunistas<br />

que, partin<strong>do</strong> de uma visão materialista<br />

<strong>da</strong> história, defendiam que o Esta<strong>do</strong> fora<br />

cria<strong>do</strong> originariamente como instrumento<br />

<strong>da</strong> opressão <strong>da</strong> classe <strong>do</strong>minante sobre as<br />

classes trabalha<strong>do</strong>ras.<br />

Assim é que Friedrich Engels, afirmava<br />

[1977:193 - 194]:<br />

“Como o Esta<strong>do</strong> nasceu <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />

conter o antagonismo <strong>da</strong>s classes, e como, <strong>ao</strong><br />

mesmo tempo, nasceu em meio <strong>ao</strong> conflito<br />

delas, é, por regra geral, o Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> classe<br />

mais poderosa, <strong>da</strong> classe economicamente<br />

<strong>do</strong>minante, classe que, por intermédio dele,<br />

se converte também em classe politicamente<br />

<strong>do</strong>minante e adquire novos meios para a<br />

repressão e exploração <strong>da</strong> classe oprimi<strong>da</strong>.<br />

Assim, o Esta<strong>do</strong> antigo foi, sobretu<strong>do</strong>, o Es-<br />

ta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s senhores de escravos para manter<br />

os escravos subjuga<strong>do</strong>s; o Esta<strong>do</strong> feu<strong>da</strong>l foi o<br />

órgão de que se valeu a nobreza para manter


A <strong>do</strong>utrina<br />

comunista<br />

preceituava o<br />

materialismo<br />

histórico,<br />

ou seja, que<br />

o curso <strong>da</strong><br />

história sempre<br />

foi determina<strong>do</strong><br />

pelo la<strong>do</strong><br />

econômico,<br />

representa<strong>do</strong><br />

pelo controle<br />

<strong>do</strong>s meios de<br />

produção.<br />

a sujeição <strong>do</strong>s servos e camponeses depen-<br />

dentes; e o moderno Esta<strong>do</strong> representativo é<br />

o instrumento de que se serve o capital para<br />

explorar o trabalho assalaria<strong>do</strong>.” Acrescen-<br />

tan<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que “o Esta<strong>do</strong> não tem exis-<br />

ti<strong>do</strong> eternamente. Houve socie<strong>da</strong>des que se<br />

organizaram sem ele, não tiveram a menor<br />

noção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ou de seu poder. Ao chegar<br />

a certa fase <strong>do</strong> desenvolvimento econômico,<br />

que estava necessariamente liga<strong>da</strong> à divisão<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em classes, essa divisão tornou<br />

o Esta<strong>do</strong> uma necessi<strong>da</strong>de. Estamos agora<br />

nos aproximan<strong>do</strong>, com rapidez, de uma fase<br />

de desenvolvimento <strong>da</strong> produção em que a<br />

existência dessas classes não apenas deixou<br />

de ser uma necessi<strong>da</strong>de, mas até se converteu<br />

num obstáculo à produção mesma. As classes<br />

vão desaparecer, e de maneira tão inevitável<br />

como no passa<strong>do</strong> surgiram. Com o desapare-<br />

cimento <strong>da</strong>s classes, desaparecerá inevitavel-<br />

mente o Esta<strong>do</strong>. A socie<strong>da</strong>de, reorganizan<strong>do</strong><br />

de uma forma nova a produção, na base de<br />

uma associação livre de produtores iguais,<br />

man<strong>da</strong>rá to<strong>da</strong> a máquina <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para o<br />

lugar que lhe há de corresponder: o museu<br />

de antigui<strong>da</strong>des, <strong>ao</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> roca de fiar e <strong>do</strong><br />

macha<strong>do</strong> de bronze”.<br />

Por conseguinte, a <strong>do</strong>utrina comunista,<br />

arquiteta<strong>da</strong> por Marx e Engels, preceituava<br />

o materialismo histórico, ou seja, que o cur-<br />

so <strong>da</strong> história sempre foi determina<strong>do</strong> pelo<br />

la<strong>do</strong> econômico, representa<strong>do</strong> pelo controle<br />

<strong>do</strong>s meios de produção; que o Esta<strong>do</strong> foi<br />

constituí<strong>do</strong> pelas classes mais fortes, para<br />

a manutenção de sua <strong>do</strong>minação; que essa<br />

situação perduraria até que, revolta<strong>da</strong>s, as<br />

classes trabalha<strong>do</strong>ras, o proletaria<strong>do</strong>, as-<br />

sumissem o poder e, então, o Esta<strong>do</strong> seria<br />

extinto e as pessoas viveriam em perfeita<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

harmonia. Revolta que estaria determina<strong>da</strong><br />

a acontecer, impreterivelmente.<br />

Após o levante popular ocorri<strong>do</strong> no iní-<br />

cio de 1917, causa<strong>do</strong> pela crise social e eco-<br />

nômica reinante na Rússia, agrava<strong>da</strong> pela<br />

participação desse país na Primeira Guerra<br />

Mundial e as sucessivas derrotas em bata-<br />

lhas contra a Alemanha, que levou <strong>ao</strong> poder<br />

o parti<strong>do</strong> menchevique, o chefe <strong>do</strong> governo<br />

Kerenski, socialista modera<strong>do</strong>, resolveu<br />

continuar a participação russa na Primeira<br />

Guerra Mundial, fato que, explora<strong>do</strong> pelos<br />

radicais bolcheviques, acarretou a eclosão<br />

<strong>da</strong> revolução de outubro <strong>do</strong> mesmo ano,<br />

quan<strong>do</strong> os bolcheviques empolgaram o po-<br />

der, sob a direção de Vladimir Ilitch Ulia-<br />

nov, conheci<strong>do</strong> como Lenin.<br />

Alcançan<strong>do</strong> o poder e já se denominan-<br />

<strong>do</strong> de parti<strong>do</strong> comunista, os bolcheviques<br />

fizeram um acor<strong>do</strong> de paz em separa<strong>do</strong> com<br />

a Alemanha e começaram a implantação<br />

<strong>da</strong>s idéias de Marx, acaban<strong>do</strong> com a pro-<br />

prie<strong>da</strong>de imobiliária priva<strong>da</strong>, dissolven<strong>do</strong><br />

a estrutura estatal então existente e estabe-<br />

lecen<strong>do</strong> a divisão <strong>da</strong> administração pública<br />

em soviets, em to<strong>do</strong>s os níveis estatais e<br />

profissionais.<br />

Como os mencheviques e os partidários<br />

<strong>do</strong> czar Nicolau II, deposto e depois morto,<br />

aliaram-se e desencadearam uma guerra<br />

civil, com a participação de forças estran-<br />

geiras, foi cria<strong>do</strong> o exército vermelho, sob a<br />

chefia de Trotsky, que acabou por alcançar<br />

a vitória.<br />

Ao mesmo tempo foi estabeleci<strong>da</strong> a es-<br />

tatização <strong>da</strong> economia, controle estatal de<br />

to<strong>do</strong>s os meios de produção e distribuição,<br />

criação de uma burocracia partidária que se<br />

inseriu em to<strong>da</strong>s as esferas políticas e o pla-<br />

nejamento central <strong>da</strong> economia, e, começou<br />

135


136<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

o terror, com a prisão, julgamento sumário<br />

e execução de to<strong>do</strong>s os adversários <strong>do</strong>s<br />

comunistas, bem como <strong>do</strong>s pequenos pro-<br />

prietários de terras, os kulaks, terror que se<br />

recrudesceu após a morte de Lenin, quan<strong>do</strong><br />

Josef Vessarianovitch Djugachivili, conheci-<br />

<strong>do</strong> como Stalin, alcançou o poder máximo.<br />

Sob a liderança de Stalin, a Rússia<br />

obteve um grande desenvolvimento indus-<br />

trial, derrotou a Alemanha na Segun<strong>da</strong><br />

Guerra Mundial e chegou a rivalizar com<br />

os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na disputa pela lideran-<br />

ça política mundial. Entretanto, as perse-<br />

guições políticas e religiosas, com a morte<br />

de milhares de pessoas, a imensa interfe-<br />

rência <strong>da</strong> polícia política em to<strong>da</strong>s as áreas<br />

e criação de campos de concentração, os<br />

famosos gulags, para onde foram leva<strong>do</strong>s<br />

milhares de russos, continuaram ferozmen-<br />

te, somente diminuin<strong>do</strong> após a morte de<br />

Stalin em 1953.<br />

Essa hipertrofia <strong>do</strong> aparelho estatal,<br />

frontalmente contrária às teses marxistas,<br />

acarretou, também, o surgimento de uma<br />

burocracia poderosa, forma<strong>da</strong> nos quadros<br />

<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> comunista e que acabou se cons-<br />

tituin<strong>do</strong> em uma classe <strong>do</strong>minante e cheia<br />

de privilégios, a nomenklatura, um contra-<br />

senso em uma socie<strong>da</strong>de dita sem classes.<br />

A empolgação pela implantação <strong>do</strong> co-<br />

munismo na Rússia levou a sua difusão por<br />

outros países e, mesmo haven<strong>do</strong> finalmente<br />

fracassa<strong>do</strong> naquela nação, hoje são comu-<br />

nistas, pelo menos em tese, também China,<br />

Vietnan, Coréia <strong>do</strong> Norte e Cuba, apesar de<br />

que to<strong>do</strong>s, com exceção <strong>da</strong> Coréia <strong>do</strong> Norte,<br />

que padece de sérios problemas econômi-<br />

cos presentemente, com forte aplicação de<br />

princípios neoliberais, conforme veremos<br />

futuramente.<br />

Esta<strong>do</strong> fascista<br />

Como reação às tristes conseqüências<br />

sociais <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> liberal e contra a <strong>do</strong>utrina<br />

comunista, surgiu, em diversos países, entre<br />

os quais o Brasil, um regime de hipertrofia<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não somente na prática, caso <strong>da</strong><br />

União Soviética, como na teoria, aponta<strong>do</strong><br />

como solução para to<strong>do</strong>s os males, especial-<br />

mente <strong>do</strong>s <strong>da</strong>s classes trabalha<strong>do</strong>ras, regime<br />

que na Itália, onde se iniciou, denominou-<br />

se de fascismo.<br />

Esse esta<strong>do</strong>, de cunho proclama<strong>da</strong>-<br />

mente nacionalista e inspira<strong>do</strong> no antigo<br />

império romano, alcançou o poder sob a<br />

liderança de Benito Mussolini, após a sua<br />

famosa marcha sobre Roma, na liderança de<br />

seus “camisas negras”, sua milícia popular,<br />

em 1922.<br />

Segun<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrina fascista, a nação<br />

não seria elemento integrante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

mas, criação deste, sen<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> um abso-<br />

luto e indivíduos e grupos o relativo. Assim,<br />

Mussolini proclamou sua máxima: “Tu<strong>do</strong><br />

dentro <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, na<strong>da</strong> fora <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, na<strong>da</strong><br />

contra o Esta<strong>do</strong>”. O Esta<strong>do</strong>, portanto, seria<br />

um fim em si mesmo.<br />

Pretenden<strong>do</strong> acabar com as lutas de<br />

classes, o Esta<strong>do</strong> fascista criou uma organi-<br />

zação sindicalista, o corporativismo, agru-<br />

pan<strong>do</strong> em corporações to<strong>do</strong>s os membros<br />

de ca<strong>da</strong> ramo de produção, as quais tinham<br />

representantes no poder legislativo nacio-<br />

nal, a Câmara Corporativa.<br />

Outrossim, foi manti<strong>da</strong> a proprie<strong>da</strong>de<br />

priva<strong>da</strong> <strong>do</strong>s meios de produção e distribui-<br />

ção, subordina<strong>da</strong>, to<strong>da</strong>via, <strong>ao</strong>s interesses<br />

sociais, passan<strong>do</strong> o trabalho a ser considera-<br />

<strong>do</strong> um dever social e sen<strong>do</strong> aboli<strong>do</strong> o direito<br />

de greve.<br />

Com a implantação <strong>do</strong> fascismo, a eco-


O Brasil sob a<br />

liderança de<br />

Getúlio Vargas,<br />

também teve<br />

implanta<strong>do</strong><br />

um regime de<br />

governo de<br />

características<br />

fortemente<br />

fascistas.<br />

nomia italiana se desenvolveu inicialmen-<br />

te, porém, a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Itália na Segun<strong>da</strong><br />

Guerra Mundial <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> Alemanha aca-<br />

bou por mergulhar o país em uma guerra<br />

civil e em uma situação de c<strong>ao</strong>s social, após<br />

a sucessão de derrotas militares.<br />

De forma semelhante, o Brasil, a partir<br />

de 1937, com o Esta<strong>do</strong> Novo, sob a liderança<br />

de Getúlio Vargas, também teve implanta<strong>do</strong><br />

um regime de governo de características<br />

fortemente fascistas, sen<strong>do</strong> também uma<br />

ditadura, com direitos individuais desres-<br />

peita<strong>do</strong>s, ausência de liber<strong>da</strong>de individual<br />

e de retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> participação popular nos<br />

negócios públicos, muito embora seus reco-<br />

nheci<strong>do</strong>s méritos no que concerne <strong>ao</strong>s direi-<br />

tos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />

Esta<strong>do</strong> nazista<br />

Com muitas semelhanças com o fascis-<br />

mo, nota<strong>da</strong>mente quanto à hipertrofia <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, surgiu na Alemanha o parti<strong>do</strong> na-<br />

cional socialista <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, o qual,<br />

sob o coman<strong>do</strong> de A<strong>do</strong>lf Hitler, seu carismá-<br />

tico líder, alcançou o poder em 1933.<br />

O nazismo tinha raízes que alcançavam<br />

o culto <strong>ao</strong> herói, de Thomas Carlyle, confor-<br />

me Ernst Cassirer [1976:210], que pregava a<br />

necessi<strong>da</strong>de de um homem forte, escolhi<strong>do</strong><br />

por Deus para liderar e governar o povo,<br />

afirman<strong>do</strong> que: “Aquele que deve ser o meu<br />

chefe, cuja vontade terá de ser mais alta <strong>do</strong><br />

que a minha, foi escolhi<strong>do</strong> para mim no Céu.<br />

Não se pode conceber outra liber<strong>da</strong>de que<br />

não seja a de obedecer <strong>ao</strong> escolhi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Céu”.<br />

Semelhantemente, <strong>ao</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> culto <strong>ao</strong><br />

herói, o nazismo pregava a superiori<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> raça ariana, alicerça<strong>do</strong> nas teses de Go-<br />

bineau, raça que tinha o direito e o dever de<br />

governar as demais.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Finalmente, o nazismo tinha como certo<br />

que to<strong>do</strong>s os males <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de em geral<br />

e <strong>do</strong>s alemães em particular se deviam <strong>ao</strong>s<br />

judeus, considera<strong>do</strong>s o câncer social e que<br />

devia ser extirpa<strong>do</strong> de qualquer forma, o<br />

que culminou nos campos de extermínio<br />

de Aushwitz, Bergen-Belsen, Dachau, Tre-<br />

blinka e Sobibor, entre outros, de triste me-<br />

mória, com seus milhões de mortos. Nesse<br />

senti<strong>do</strong>, afirmou Hitler, em seu livro Mein<br />

Kampf, como transcrito por Joachim Fest [<br />

1976:40 - 41]:<br />

“Depois que passei a me preocupar com essa<br />

questão e que minha atenção foi desperta<strong>da</strong><br />

para os judeus, vislumbrei Viena sob outro<br />

aspecto. Em to<strong>do</strong>s os lugares <strong>ao</strong>nde ia, via<br />

judeus e, quanto mais os contemplava, mais<br />

meus olhos aprendiam melhor a distingui-los<br />

claramente <strong>do</strong>s outros homens. O centro <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de e os quarteirões localiza<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> norte<br />

<strong>do</strong> canal <strong>do</strong> Danúbio formigavam especial-<br />

mente de uma população cuja aparência não<br />

apresentava nenhum traço de semelhança<br />

com a <strong>do</strong>s alemães... To<strong>do</strong>s esses detalhes já<br />

não se mostravam atraentes, e se experimen-<br />

tava até repugnância quan<strong>do</strong> se descobria<br />

subitamente sob a sua casca desagradável a<br />

sujeira moral <strong>do</strong> povo eleito. Por que nunca<br />

deixava de haver uma sujeira, qualquer<br />

que fosse, uma infâmia, sobretu<strong>do</strong> na vi<strong>da</strong><br />

cultural, <strong>da</strong> qual um judeu pelo menos não<br />

tivesse participa<strong>do</strong>? Tão logo se introduzia<br />

um bisturi num tumor desse tipo, podería-<br />

mos perceber, como um verme num cadáver<br />

putrefato, um pequeno semita ofusca<strong>do</strong> pela<br />

súbita clari<strong>da</strong>de... Eu passei pouco a pouco a<br />

odiá-los”.<br />

Além de reação <strong>ao</strong>s excessos <strong>do</strong> libera-<br />

lismo e oposição <strong>ao</strong> comunismo, o nazismo<br />

137


138<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

deveu seu êxito inicial <strong>ao</strong> esta<strong>do</strong> de miséria<br />

econômica <strong>da</strong> Alemanha decorrente <strong>da</strong><br />

grande depressão <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 30 e <strong>da</strong>s<br />

conseqüências <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Versalhes, im-<br />

posto à Alemanha em razão de sua derrota<br />

na Primeira Guerra Mundial.<br />

Sob o governo de seu herói e ten<strong>do</strong><br />

como lema a expressão: Ein Volk, ein Reich,<br />

ein Fueher, ou seja, “Um povo, um império<br />

e um líder”, o nazismo inicialmente recu-<br />

perou a auto-estima nacional, retirou o país<br />

<strong>da</strong> crise econômica, realizou grandes obras<br />

que reduziram o desemprego e fez com que<br />

a Alemanha voltasse a sua situação anterior<br />

de grande potência. Contu<strong>do</strong>, essa busca<br />

por um império, que lhe permitisse obter o<br />

que denominava de “espaço vital”, levou-a<br />

a desencadear a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,<br />

com seus milhões de mortos e a conseqüen-<br />

te destruição <strong>da</strong> Europa, além de ter gera<strong>do</strong><br />

uma ditadura cruel na própria nação.<br />

Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> bem-estar social<br />

A destruição de boa parte <strong>da</strong> Europa e<br />

o conseqüente me<strong>do</strong> <strong>do</strong> avanço <strong>do</strong> comu-<br />

nismo fizeram com que os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />

pusessem em prática um plano de aju<strong>da</strong><br />

econômica <strong>ao</strong>s países <strong>da</strong> parte ocidental <strong>da</strong><br />

Europa, chama<strong>do</strong> de Plano Marshall, o qual<br />

propiciou, em poucos anos, a recuperação<br />

econômica de tais nações.<br />

Esse desenvolvimento e o aumento<br />

<strong>da</strong> riqueza que o seguiu levaram a que os<br />

governos de diversos países europeus, geral-<br />

mente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s por parti<strong>do</strong>s ditos de cen-<br />

tro-esquer<strong>da</strong>, implantassem uma série de<br />

medi<strong>da</strong>s que visavam a proteção <strong>da</strong>s pessoas<br />

<strong>do</strong> nascimento à morte.<br />

Assim, foram estabeleci<strong>do</strong>s o salário-<br />

desemprego para os que não conseguiam<br />

arranjar trabalho; instituí<strong>da</strong> a educação<br />

gratuita em to<strong>do</strong>s os níveis; saúde também<br />

gratuita; pensão para os aposenta<strong>do</strong>s e para<br />

as mães solteiras, entre outras medi<strong>da</strong>s, que<br />

foram aplica<strong>da</strong>s especialmente na Dina-<br />

marca, Noruega, Suécia, Suíça, França, Ale-<br />

manha, Bélgica, Holan<strong>da</strong> e, durante algum<br />

tempo, na Inglaterra.<br />

Esses países, portanto, ten<strong>do</strong> a po-<br />

pulação tão bem cui<strong>da</strong><strong>da</strong> e se achan<strong>do</strong><br />

atravessan<strong>do</strong> época de grande progresso<br />

econômico, não somente passaram a atrair<br />

um eleva<strong>do</strong> número de imigrantes, prove-<br />

nientes de nações mais pobres, <strong>do</strong> terceiro<br />

mun<strong>do</strong>, como, também, levaram à difusão<br />

de suas maiores empresas pelo globo terres-<br />

tre, as ditas multinacionais, com tentáculos<br />

em diversas regiões.<br />

A elevação <strong>da</strong>s despesas públicas, to<strong>da</strong>-<br />

via, que gerou a elevação de impostos, alia-<br />

<strong>da</strong> <strong>ao</strong> acirramento <strong>da</strong> competição de preços<br />

entre as empresas por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, além<br />

<strong>do</strong>s baixos salários pagos <strong>ao</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

<strong>da</strong>s filiais de tais empresas nos países po-<br />

bres, fizeram com que milhares de postos de<br />

trabalho fossem fecha<strong>do</strong>s nas nações desen-<br />

volvi<strong>da</strong>s, acarretan<strong>do</strong> um grande aumento<br />

no desemprego, com evidentes efeitos elei-<br />

torais.<br />

Dessa forma, começaram a tomar o po-<br />

der os parti<strong>do</strong>s que pregavam a necessi<strong>da</strong>de<br />

de retira<strong>da</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> esfera priva<strong>da</strong>,<br />

redução <strong>do</strong>s benefícios sociais e aumento<br />

<strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de nacional, o que levou <strong>ao</strong><br />

neoliberalismo.<br />

Esta<strong>do</strong> neoliberal<br />

Alicerça<strong>do</strong>s especialmente na pregação<br />

política <strong>da</strong> ex-primeira-ministra <strong>da</strong> Ingla-<br />

terra, Margaret Tatcher, os adeptos dessa


O<br />

<strong>Neoliberalismo</strong><br />

é capaz de<br />

renovar o velho<br />

defeito <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> Liberal,<br />

o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong><br />

intervenção<br />

nas relações<br />

entre<br />

emprega<strong>do</strong> e<br />

emprega<strong>do</strong>r.<br />

forma de Esta<strong>do</strong> afirmam que este não é<br />

capaz de intervir com sucesso na economia,<br />

é por demais perdulário, além de cria<strong>do</strong>r de<br />

privilégios injustificáveis para os integran-<br />

tes de sua burocracia.<br />

Assim, pregam a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mo-<br />

dernização <strong>da</strong>s empresas, representa<strong>da</strong> pela<br />

redução nos custos e retira<strong>da</strong>, total, <strong>do</strong> con-<br />

trole estatal <strong>do</strong>s meios de produção, portan-<br />

to, defenden<strong>do</strong> a privatização de to<strong>da</strong>s as<br />

empresas estatais, argumentan<strong>do</strong>, consoan-<br />

te André Franco Montoro Filho, nos Anais<br />

<strong>da</strong> XV Conferência Nacional <strong>da</strong> OAB [1995:<br />

251], o seguinte:<br />

“Democracia e Merca<strong>do</strong>, que têm como<br />

base comum a descentralização <strong>do</strong> processo<br />

de toma<strong>da</strong> de decisões, têm se mostra<strong>do</strong>,<br />

nesta metade <strong>do</strong> século XX, como a organi-<br />

zação política e econômica de maior suces-<br />

so, seja em termos de ren<strong>da</strong> per capita, seja<br />

em termos de distribuição de ren<strong>da</strong>. Esta é<br />

a grande lição <strong>da</strong> história atual, inclusive<br />

<strong>da</strong> Europa <strong>do</strong> Leste e a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> muro de<br />

Berlim.” Acrescentan<strong>do</strong>, a seguir: “Tornou-<br />

se imperativo, desta forma, uma profun<strong>da</strong><br />

reformulação em nossa organização política<br />

e econômica na direção de uma descentra-<br />

lização <strong>do</strong> processo de toma<strong>da</strong> de decisões.<br />

Isto significa a substituição <strong>do</strong> autorita-<br />

rismo pela democracia e <strong>do</strong> planejamento<br />

governamental centraliza<strong>do</strong> por instituições<br />

orienta<strong>da</strong>s pelo merca<strong>do</strong> (cliente).”<br />

Fortaleci<strong>do</strong>s pela constatação <strong>do</strong> colap-<br />

so <strong>do</strong> capitalismo no mun<strong>do</strong> e pela pujança<br />

<strong>da</strong> economia <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, os segui-<br />

<strong>do</strong>res dessa <strong>do</strong>utrina, entre os quais merece<br />

menção o deputa<strong>do</strong> Roberto Campos, con-<br />

seguiram que, após o restabelecimento <strong>da</strong><br />

democracia no Brasil, fossem eleitos presi-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

dentes <strong>da</strong> república, sucessivamente, adep-<br />

tos de tal corrente política, Fernan<strong>do</strong> Collor<br />

de Mello e Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so,<br />

os quais, no poder, passaram a atacar as<br />

normas constitucionais e legais contrárias<br />

<strong>ao</strong> neoliberalismo, buscan<strong>do</strong> e conseguin<strong>do</strong>,<br />

até o momento, retirar o Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> econo-<br />

mia, desregulamentar as relações de empre-<br />

go e reduzir os gastos públicos, para tanto<br />

acaban<strong>do</strong> com a estabili<strong>da</strong>de no emprego<br />

<strong>do</strong> servi<strong>do</strong>r público e com a obrigatorie<strong>da</strong>de<br />

de reajuste anual <strong>do</strong>s vencimentos, aumen-<br />

tan<strong>do</strong> os requisitos para a aposenta<strong>do</strong>ria de<br />

emprega<strong>do</strong>s públicos e priva<strong>do</strong>s.<br />

O <strong>Neoliberalismo</strong>, entretanto, <strong>ao</strong> repre-<br />

sentar a retoma<strong>da</strong> de muitos <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Liberal, especialmente no tocan-<br />

te à retira<strong>da</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio priva<strong>do</strong>,<br />

com endeusamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> como o<br />

supra-sumo <strong>da</strong> perfeição, e pugnan<strong>do</strong> pela<br />

desregulamentação <strong>da</strong>s relações de traba-<br />

lho, é capaz de renovar o velho defeito <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> Liberal, o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong> intervenção<br />

nas relações entre emprega<strong>do</strong> e emprega<strong>do</strong>r<br />

e, assim, <strong>da</strong><strong>da</strong> a superiori<strong>da</strong>de econômica<br />

deste, ensejar o massacre <strong>da</strong>quele, obriga<strong>do</strong><br />

a aceitar as condições estabeleci<strong>da</strong>s pelo<br />

patrão, ain<strong>da</strong> mais que o desenvolvimento<br />

tecnológico é causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> fechamento de<br />

grande número de postos de trabalho.<br />

Por sinal, o desemprego gera<strong>do</strong> pela<br />

globalização <strong>da</strong> economia é ain<strong>da</strong> mais<br />

perverso em nosso país, em que o seguro-<br />

desemprego dura apenas poucos meses, <strong>ao</strong><br />

contrário até <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, paradig-<br />

ma maior <strong>do</strong> neoliberalismo.<br />

Por fim, a reforma <strong>do</strong> texto constitucio-<br />

nal no que diz respeito à seguri<strong>da</strong>de social<br />

tende a acarretar um sério problema para<br />

os trabalha<strong>do</strong>res rurais e para os que traba-<br />

139


140<br />

A EVOLUÇÃO DO ESTADO: DA TEOCRACIA AO NEOLIBERALISMO<br />

lham no setor informal. É que, passan<strong>do</strong> a<br />

vigorar a exigência de tempo de contribui-<br />

ção para a aposenta<strong>do</strong>ria, como está propos-<br />

to, tais trabalha<strong>do</strong>res, que normalmente não<br />

contribuem e nunca contribuíram, jamais<br />

terão direito a aposenta<strong>do</strong>ria.<br />

Conclusão<br />

Em ver<strong>da</strong>de, conforme visto, o desenrolar, na<br />

história humana, <strong>da</strong>s diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de<br />

Esta<strong>do</strong> evidencia que sua sucessão nem sempre<br />

significou um progresso, <strong>do</strong> ponto de vista <strong>da</strong><br />

possibili<strong>da</strong>de de escolha <strong>do</strong>s governantes, <strong>da</strong><br />

limitação <strong>do</strong> poder destes e <strong>da</strong> atuação estatal<br />

para redução <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des entre os inte-<br />

grantes <strong>da</strong> população. Ao contrário, o Esta<strong>do</strong><br />

hebreu, em que rei e súditos tinham seus<br />

direitos e deveres bem defini<strong>do</strong>s e registra<strong>do</strong>s<br />

na Torá, era bem superior, nesses aspectos, <strong>ao</strong><br />

Esta<strong>do</strong> imperial romano, onde os impera<strong>do</strong>res<br />

faziam o que queriam, sem qualquer limitação,<br />

ten<strong>do</strong> o poder de vi<strong>da</strong> e morte sobre to<strong>do</strong>s.<br />

Semelhantemente, no Esta<strong>do</strong> absolutis-<br />

ta o poder <strong>do</strong>s monarcas era quase ilimita-<br />

<strong>do</strong>, excessivamente superior <strong>ao</strong> poder exer-<br />

ci<strong>do</strong> pelos governantes na Grécia antiga.<br />

Do mesmo mo<strong>do</strong>, o nazismo, o fascismo<br />

e o comunismo, em que os governantes eram<br />

quase a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>s como deuses, conforme acon-<br />

tecia com os faraós, e nos quais o povo em<br />

geral pouco mais podia fazer <strong>do</strong> que obedecer<br />

às determinações superiores, e, na prática, em<br />

na<strong>da</strong> interferiam na escolha <strong>do</strong>s líderes, de<br />

forma alguma eram mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de Esta<strong>do</strong><br />

superiores <strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> liberal no quesito liber-<br />

<strong>da</strong>de individual, muito embora efetivamente o<br />

superassem no que diz respeito <strong>ao</strong> oferecimen-<br />

to de condições mínimas de saúde e educação<br />

para to<strong>do</strong>s.<br />

O neoliberalismo, contu<strong>do</strong>, principalmen-<br />

te na forma que está sen<strong>do</strong> aplica<strong>da</strong> no Brasil,<br />

tem suas peculiari<strong>da</strong>des.<br />

A primeira, diz respeito <strong>ao</strong> que é uni-<br />

versal, em to<strong>da</strong>s as regiões <strong>do</strong> globo onde<br />

está sen<strong>do</strong> posto em prática, implican<strong>do</strong><br />

em desemprego, redução de direitos traba-<br />

lhistas e diminuição de salários, em virtude<br />

<strong>da</strong> competição por emprego com países em<br />

que direitos trabalhistas são muito reduzi-<br />

<strong>do</strong>s e qualquer salário é bem vin<strong>do</strong>, como<br />

China, Índia, etc. Repetin<strong>do</strong>-se que, neste<br />

caso, no Brasil não existe a mesma proteção,<br />

representa<strong>da</strong> por contínuo pagamento de<br />

auxílio financeiro <strong>ao</strong> desemprega<strong>do</strong>, con-<br />

forme ocorre nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Europa<br />

Ocidental.<br />

A segun<strong>da</strong> peculiari<strong>da</strong>de é que, concomi-<br />

tante à redução <strong>da</strong> participação estatal na ati-<br />

vi<strong>da</strong>de econômica, até mesmo quanto <strong>ao</strong> acom-<br />

panhamento e punição <strong>ao</strong>s abusos no caso de<br />

cartéis e monopólios, o Poder Executivo vem<br />

se hipertrofian<strong>do</strong>, especialmente o executivo<br />

federal, em detrimento <strong>do</strong>s demais poderes<br />

estatais e <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s-membros <strong>da</strong> federação.<br />

Assim, na prática o Poder Executivo fede-<br />

ral pode legislar, como o vem fazen<strong>do</strong> continu-<br />

amente, através de medi<strong>da</strong>s provisórias, que<br />

tratam de to<strong>da</strong> e qualquer matéria e atrapa-<br />

lham a prestação jurisdicional, pelas excessivas<br />

modificações no ordenamento jurídico.<br />

Entre essas modificações, merece ressalva<br />

a Lei nº 9.494, de 10.09.97, que aprovou uma<br />

medi<strong>da</strong> provisória, a qual, de re<strong>da</strong>ção obscura,<br />

por sinal, intervin<strong>do</strong>, outrossim e diretamente,<br />

na prestação jurisdicional, impedin<strong>do</strong> a ante-<br />

cipação <strong>da</strong> tutela em causas contra a fazen<strong>da</strong><br />

pública, representa uma restrição <strong>ao</strong>s direitos<br />

<strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>s frente <strong>ao</strong> poder governante.<br />

Da mesma forma e, ain<strong>da</strong>, em razão <strong>da</strong>s<br />

O desenrolar, na<br />

história humana,<br />

<strong>da</strong>s diversas<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />

de Esta<strong>do</strong><br />

evidencia que<br />

sua sucessão<br />

nem sempre<br />

significou um<br />

progresso.


dívi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s-membros, o governo fede-<br />

ral tem podi<strong>do</strong> curvar aqueles <strong>ao</strong>s seus interes-<br />

ses e, não achan<strong>do</strong> suficiente, acha-se cogitan-<br />

<strong>do</strong>, inclusive, de, em reforma tributária, acabar<br />

com o imposto sobre circulação de merca<strong>do</strong>rias<br />

e serviços, que é arreca<strong>da</strong><strong>do</strong> pelos esta<strong>do</strong>s e<br />

criar um outro tributo, a ser arreca<strong>da</strong><strong>do</strong> pela<br />

união, passan<strong>do</strong> os esta<strong>do</strong>s a meros recebe<strong>do</strong>res<br />

<strong>da</strong> porcentagem respectiva desse tributo e le-<br />

van<strong>do</strong>-os a mais dependência <strong>do</strong> poder federal.<br />

Tal mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de Esta<strong>do</strong>, por conseguin-<br />

te, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as diversas formas em que é aplica<strong>da</strong><br />

no mun<strong>do</strong>, nem sempre representa um retorno<br />

à valorização <strong>do</strong>s direitos individuais, como<br />

na época <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal, poden<strong>do</strong> até ser<br />

aplica<strong>do</strong> em esta<strong>do</strong>s ditos comunistas e de<br />

escasso controle <strong>do</strong> poder estatal, a China, por<br />

exemplo; também não demonstran<strong>do</strong> objetivar<br />

reduzir as desigual<strong>da</strong>des sociais.<br />

Bibliografia<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Percebe-se, portanto, que a evolução <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong> na história humana não significou seu<br />

aperfeiçoamento. A mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de posterior nem<br />

sempre é melhor <strong>do</strong> que a anterior, e, <strong>da</strong> mes-<br />

ma forma, a atual não é a mais perfeita, muito<br />

embora seus evidentes méritos, especialmente<br />

no que diz respeito à economia.<br />

Saben<strong>do</strong>-se desse fato, porém, e examinan-<br />

<strong>do</strong>-se a sucessão de Esta<strong>do</strong>s, consoante feito<br />

neste trabalho, é que é possível que a busca<br />

contínua <strong>do</strong> homem pela perfeição, ain<strong>da</strong> que<br />

inatingível, alcance resulta<strong>do</strong>s ca<strong>da</strong> vez melho-<br />

res, tanto para o indivíduo isola<strong>do</strong>, quanto para<br />

a socie<strong>da</strong>de como um to<strong>do</strong>.<br />

José Vi<strong>da</strong>l de Freitas Filho é Juiz de Direi-<br />

to <strong>da</strong> Comarca de São Raimun<strong>do</strong> Nonato,<br />

Piauí.<br />

Bastos, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição <strong>do</strong> Brasil. São<br />

Paulo: Saraiva, 1988.<br />

Caetano, Marcelo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1977.<br />

Cassirer, Ernest. O mito <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.<br />

Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 19 ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995.<br />

Del Vecchio, Giorgio. Lições de filosofia <strong>do</strong> direito. 5ª ed. Trad. António José Brandão.<br />

Coimbra: Armênio Ama<strong>do</strong>, 1979.<br />

Engels, Friedrich. A origem <strong>da</strong> família, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 3ª ed. Trad.<br />

Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.<br />

Fest, Joachim Fest. Hitler. 4ª ed. Trad. Analúcia Teixeira Ribeiro /e outros/. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1976.<br />

Maluf, Sahid. Teoria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 9ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias S/A, 1978.<br />

Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil. Conferência Nacional, XV, 1994. Anais...São Paulo: JBA<br />

Comunicações, 1995.<br />

Vicentino, Cláudio. História Integra<strong>da</strong>: <strong>da</strong> pré-história à I<strong>da</strong>de Média. São Paulo: Scipione, 1995.<br />

141


Joana França


Formalismo<br />

O formalismo jurídico e suas<br />

conseqüências<br />

A herança liberal burguesa trouxe consigo,<br />

além de importantes transformações de<br />

cunho sócio-político, não só na Europa,<br />

mas em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> ocidental, uma<br />

conseqüência não de to<strong>do</strong> louvável, haja<br />

vista as implicações dela advin<strong>da</strong>s.<br />

Na busca pela desconstituição de<br />

um modelo de magistratura origina<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>s regimes absolutistas de governo, e<br />

neles basea<strong>da</strong>, formulou a nova classe em<br />

ascensão um novo padrão de julga<strong>do</strong>r,<br />

padrão que fornecesse <strong>ao</strong>s seus institui<strong>do</strong>res<br />

meios de controle <strong>do</strong> exercício jurisdicional<br />

<strong>da</strong>quele. Um <strong>do</strong>s pilares <strong>da</strong> ideologia<br />

liberal era o legalismo, estriba<strong>do</strong> este em<br />

um conceito eminentemente positivista,<br />

no senti<strong>do</strong> de que a produção jurídica era,<br />

agora, monopoliza<strong>da</strong> pelo Esta<strong>do</strong> vigente.<br />

De uma classe defini<strong>do</strong>ra <strong>da</strong>s regras de<br />

conduta de uma socie<strong>da</strong>de, à ditadura de<br />

uma nova classe social que, pretensamente<br />

representan<strong>do</strong> os anseios <strong>do</strong> povo, a bem,<br />

no entanto, de seus próprios interesses,<br />

cria as normas que irão reger to<strong>do</strong> um<br />

Jurídico<br />

O Formalismo Jurídico e o Mito <strong>da</strong> Neutrali<strong>da</strong>de Estrita<br />

Ana Karena Nobre<br />

contexto de vi<strong>da</strong> social. As novas normas<br />

foram instituí<strong>da</strong>s através de códigos ou de<br />

Constituições, positiva<strong>da</strong>s pelo aparelho<br />

estatal, e por ele impostas <strong>ao</strong>s seus<br />

destinatários.<br />

A exigência de uma jurisdição<br />

formalista, extreme de quaisquer vícios de<br />

uma hermenêutica mais inquiri<strong>do</strong>ra é que<br />

informará o modelo de julga<strong>do</strong>r o qual, a<br />

despeito de enunciar-se o próprio arauto <strong>da</strong><br />

justiça, trata-se de um mero repeti<strong>do</strong>r de<br />

textos legais os quais, muitas vezes, acham-<br />

se despi<strong>do</strong>s de um mínimo de legitimi<strong>da</strong>de<br />

ou eficácia sociais.<br />

Para o chama<strong>do</strong> formalismo ético ou<br />

legalismo, a teoria <strong>da</strong> justiça baseia-se no<br />

fato de que “justo” é aquilo que se encontra<br />

de conformi<strong>da</strong>de com a lei, consideran<strong>do</strong>-<br />

se a assertiva recíproca também como<br />

ver<strong>da</strong>deira. Dessa forma, considera-<br />

se justa uma socie<strong>da</strong>de na qual são<br />

estabeleci<strong>do</strong>s, por lei, padrões ou modelos<br />

de comportamento os quais são plenamente<br />

respeita<strong>do</strong>s e segui<strong>do</strong>s por quem de direito.<br />

143


144<br />

O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />

Definin<strong>do</strong> seus critérios de justiça com<br />

assento no fato de o ato estar ou não de con-<br />

formi<strong>da</strong>de com a lei, confunde o formalista<br />

legalismo com justiça, conceitos não neces-<br />

sariamente coincidentes, não sen<strong>do</strong> um o<br />

pressuposto <strong>do</strong> outro, porquanto não é inco-<br />

mum afirmar que nem sempre o que é legal<br />

é justo, ou, ain<strong>da</strong>, que aquilo que nos parece<br />

justo nem sempre é legal. Assim é que, para<br />

a concepção legalista, “a lei positiva é justa,<br />

pelo só fato de ser lei” 1 .<br />

Jeveaux 2 obtempera que as visões for-<br />

malistas <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> justiça podem ser esta-<br />

beleci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

1) jurista: a lei deve ser obedeci<strong>da</strong> pelo sim-<br />

ples fato de ser lei. A convenção (lei) não<br />

pressupõe a questão <strong>da</strong> justiça;<br />

2) legalista: a lei é justa pelo fato de ser lei.<br />

A questão <strong>da</strong> justiça pressupõe a convenção<br />

(lei), mas reduz-se a justiça à questão <strong>da</strong><br />

vali<strong>da</strong>de (existência);<br />

3) jusnaturalista geral: a lei é váli<strong>da</strong> se<br />

justa, reduzin<strong>do</strong>-se a vali<strong>da</strong>de à justiça;<br />

4) jusnaturalista clássica: dá a mesma idéia<br />

anterior, mas vincula a lei à teoria <strong>da</strong> obe-<br />

diência.<br />

Dentre as espécies supradelinea<strong>da</strong>s, a que<br />

nos interessa para análise é a legalista, concep-<br />

ção que, a despeito de to<strong>do</strong> um decurso evolutivo<br />

histórico, ain<strong>da</strong> teima em contaminar discursos<br />

ideológicos, servin<strong>do</strong> como justificativa para<br />

posturas de inércia e <strong>do</strong>gmatismo extremo, fan-<br />

tasia<strong>do</strong>s com a “tinta” <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de.<br />

1 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz, Rio de Janeiro: Forense: 1999, pág. 23.<br />

2 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so. Op. cit. pág. 23.<br />

Dentre as escolas de hermenêuticas<br />

cria<strong>da</strong>s no Século XIX, merece destaque a<br />

Escola <strong>da</strong> Exegese, surgi<strong>da</strong> na França pós-<br />

revolução, cujos paradigmas eram o culto à<br />

vontade <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r e <strong>ao</strong>s códigos, sen<strong>do</strong><br />

constituí<strong>da</strong>, em grande parte, pelos comen-<br />

ta<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s códigos napoleônicos, mormen-<br />

te o Civil de 1804.<br />

Para os exegetas, a lei escrita era a única<br />

fonte <strong>do</strong> Direito, e o méto<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> por<br />

eles para a interpretação <strong>do</strong>s textos legais<br />

era o literal, dirigi<strong>do</strong> à busca <strong>da</strong> vontade<br />

<strong>da</strong> lei (mens legis) ou <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r (mens<br />

legislatoris), repudian<strong>do</strong> veementemente os<br />

costumes ou a jurisprudência.<br />

O radicalismo de alguns desses pen-<br />

sa<strong>do</strong>res era tão extremo que chegavam até<br />

mesmo a admitir o non liquet 3 , defenden<strong>do</strong><br />

que, na ausência <strong>da</strong> norma, deveria o juiz<br />

abster-se de julgar. Outros, no entanto, me-<br />

nos ferrenhos em suas posições, admitiam o<br />

uso <strong>da</strong> analogia como méto<strong>do</strong> de integração<br />

<strong>da</strong> norma. Faria 4 traça um esboço <strong>da</strong> ativi-<br />

<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz, naquele contexto:<br />

(...) os juízes somente teriam o trabalho de,<br />

com o auxílio de um ‘méto<strong>do</strong> lógico’, derivar<br />

por dedução a decisão relativa a um caso con-<br />

creto <strong>do</strong> sistema de conceitos jurídicos; rigoro-<br />

samente vincula<strong>do</strong>s a esse sistema, na medi<strong>da</strong><br />

em que são obriga<strong>do</strong>s a tomar os conceitos <strong>da</strong><br />

jurisprudência como base para a dedução <strong>da</strong>s<br />

normas e para a subsunção de fatos. Os ma-<br />

gistra<strong>do</strong>s terminam desta maneira converti<strong>do</strong>s<br />

numa espécie de ‘porta-vozes <strong>da</strong> lei’.<br />

3 Expressão exemplifica<strong>da</strong> na obra de André-Jean Arnaud como: “o juiz que se recusa ou que difere um julgamento sob o pretexto de silêncio, de<br />

obscuri<strong>da</strong>de, ou de insuficiência <strong>da</strong> lei, torna-se culpa<strong>do</strong> de abuso de poder ou de negação <strong>da</strong> justiça”. O direito entre a moderni<strong>da</strong>de e a globalização, Rio<br />

de Janeiro: Renovar,1999, pág. 115.<br />

4 Faria, José Eduar<strong>do</strong>. Justiça e Conflito: os juízes em face <strong>do</strong>s novos movimentos sociais. São Paulo: RT, 1992, págs. 29/30.<br />

Um <strong>do</strong>s pilares<br />

<strong>da</strong> ideologia<br />

liberal era o<br />

legalismo,<br />

estriba<strong>do</strong> este<br />

em um conceito<br />

eminentemente<br />

positivista.


A <strong>do</strong>utrina montesquiana influenciou,<br />

de forma clara, o pensamento exegeta,<br />

defensora que era <strong>da</strong> estrita separação <strong>do</strong>s<br />

poderes instituí<strong>do</strong>s, recriminan<strong>do</strong> a inva-<br />

são <strong>do</strong> Judiciário na esfera <strong>do</strong> Legislativo,<br />

através <strong>da</strong> interpretação de textos legais<br />

que não fosse meramente literal, deven<strong>do</strong>,<br />

por conseguinte, o juiz atuar como “a boca<br />

inanima<strong>da</strong> <strong>da</strong> lei”, na expressão <strong>da</strong>quele<br />

pensa<strong>do</strong>r.<br />

Na América Latina, mormente no Bra-<br />

sil, a concepção normativista teve uma aco-<br />

lhi<strong>da</strong> muito significativa, ten<strong>do</strong> em vista,<br />

além <strong>da</strong>s teorias clássicas acerca <strong>do</strong> tema,<br />

a influência muito forte <strong>da</strong> obra de Hans<br />

Kelsen.<br />

Kelsen fora um teórico de grande im-<br />

portância no panorama que se instalou<br />

no Império Austro-Húngaro pós Primeira<br />

Guerra. Exercen<strong>do</strong> poderosa influência po-<br />

lítica, Kelsen contribuiu de forma decisiva<br />

para o desenvolvimento de um constitucio-<br />

nalismo forte cujo pilar era a supremacia <strong>da</strong><br />

norma constitucional sobre to<strong>da</strong>s as normas<br />

de legislação infraconstitucional. Defendia<br />

Kelsen que à norma constitucional deve-<br />

riam subordinar-se to<strong>da</strong>s as normas de “ca-<br />

tegoria inferior”, deven<strong>do</strong> estas se inspirar<br />

naquela, e em na<strong>da</strong> contrariá-la.<br />

Apesar <strong>da</strong> grande eminência <strong>da</strong> obra de<br />

Kelsen naquele contexto, o que realmente<br />

exerceu influência dentre os juristas latinos<br />

foi um aspecto de menor relevância na obra<br />

<strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r: sua concepção normativista <strong>do</strong><br />

Direito. Em nome de uma pretensa filiação<br />

<strong>ao</strong> pensamento kelseniano, vestiram alguns<br />

juristas a bandeira panfletária <strong>do</strong> normati-<br />

5 Kelsen, Hans, Teoria Pura <strong>do</strong> Direito. Tradução: João Batista Macha<strong>do</strong>. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág. 1.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

vismo, exacerban<strong>do</strong>, alguns, os limites <strong>da</strong><br />

própria teoria que os embasara, demons-<br />

tran<strong>do</strong> um radicalismo <strong>do</strong> qual não se servi-<br />

ra o teórico que fora seu paradigma.<br />

Buscan<strong>do</strong> furtar-se à crescente influên-<br />

cia sociológica e às antigas concepções filo-<br />

sóficas, Kelsen elaborara uma “teoria pura<br />

<strong>do</strong> direito”, pureza que consistia na criação<br />

de uma “norma fun<strong>da</strong>mental hipotética”,<br />

despi<strong>da</strong> de ilações de qualquer natureza.<br />

Dela derivaria uma “constituição teórica”,<br />

que, por sua vez, seria o ponto de parti<strong>da</strong><br />

para uma “constituição positiva”, <strong>da</strong> qual<br />

deveria derivar to<strong>do</strong> o ordenamento jurídi-<br />

co, sob pena de inexistência <strong>da</strong> norma que<br />

excepcionasse essa determinação.<br />

O teórico explica seu conceito de “pure-<br />

za” como sen<strong>do</strong>:<br />

Quan<strong>do</strong> a si própria se designa como ‘pura’<br />

teoria <strong>do</strong> Direito, isto significa que ela se pro-<br />

põe garantir um conhecimento apenas vol-<br />

ta<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Direito e excluir desse conhecimento<br />

tu<strong>do</strong> quanto não pertença <strong>ao</strong> seu objeto, tu<strong>do</strong><br />

quanto não se possa, rigorosamente, deter-<br />

minar como Direito. Quer isto dizer que ela<br />

pretende libertar a ciência jurídica de to<strong>do</strong>s<br />

os elementos que lhe são estranhos. Esse é o<br />

princípio meto<strong>do</strong>lógico fun<strong>da</strong>mental. 5<br />

O positivismo, defendi<strong>do</strong> por uma<br />

imensa gama de juristas e teóricos, a exem-<br />

plo <strong>do</strong> próprio Kelsen, teve e tem, é claro,<br />

seus méritos; condenável, no entanto, é a<br />

deturpação de que foram vítimas as mais<br />

diversas vertentes <strong>da</strong> teoria, utiliza<strong>da</strong> que<br />

ain<strong>da</strong> é por aqueles que, em nome de um<br />

falso positivismo, preferem não se preocu-<br />

145


146<br />

O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />

par com a questão <strong>da</strong> justiça, ou mesmo <strong>da</strong><br />

evolução social, inevitável e constante, que<br />

ocasiona, muitas vezes, a per<strong>da</strong> de eficácia<br />

material de uma norma, que se torna obso-<br />

leta por não atender mais <strong>ao</strong>s anseios <strong>da</strong>-<br />

quela socie<strong>da</strong>de na qual se inspirara. Dalla-<br />

ri 6 , em sua indignação com o problema em<br />

questão, disserta:<br />

Para os adeptos dessa linha de pensamento, o<br />

direito se restringe <strong>ao</strong> conjunto de regras for-<br />

malmente postas pelo Esta<strong>do</strong>, seja qual for o<br />

seu conteú<strong>do</strong>, resumin<strong>do</strong>-se nisso o chama<strong>do</strong><br />

positivismo jurídico que tem si<strong>do</strong> pratica<strong>do</strong><br />

em vários países europeus e em to<strong>da</strong> a Améri-<br />

ca Latina. Desse mo<strong>do</strong>, a procura <strong>do</strong> justo foi<br />

elimina<strong>da</strong> e o que sobrou foi um apanha<strong>do</strong> de<br />

normas técnico-formais, que, sob a aparência<br />

de rigor científico, reduzem o direito a uma<br />

superficiali<strong>da</strong>de mesquinha.<br />

O normativismo exagera<strong>do</strong> traz consigo<br />

incontáveis prejuízos <strong>ao</strong> exercício de uma<br />

jurisdição justa. Em nome <strong>da</strong> estrita apli-<br />

cação <strong>do</strong> texto legal, são olvi<strong>da</strong><strong>do</strong>s aspectos<br />

importantes envolvi<strong>do</strong>s na questão, capazes<br />

de, se devi<strong>da</strong>mente aprecia<strong>do</strong>s e valora<strong>do</strong>s,<br />

produzir significativas mu<strong>da</strong>nças no pro-<br />

nunciamento normativista eventualmente<br />

proferi<strong>do</strong>, mu<strong>da</strong>nças essas dirigi<strong>da</strong>s a um<br />

único objetivo: a solução justa <strong>da</strong> deman<strong>da</strong>.<br />

Muitos são os argumentos justifica<strong>do</strong>res<br />

desse posicionamento legalista, os quais<br />

vão desde o fato de que o magistra<strong>do</strong>, por<br />

não ser legisla<strong>do</strong>r, deve respeitar os estri-<br />

tos limites <strong>da</strong> letra <strong>da</strong> lei, a fim de que seu<br />

subjetivismo não inva<strong>da</strong> a esfera de compe-<br />

tência <strong>da</strong>quele, passan<strong>do</strong> pela “exigência”<br />

6 Dallari, Dalmo de Abreu, O poder <strong>do</strong>s juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, pág. 83.<br />

7 Dallari, Dalmo de Abreu, O poder <strong>do</strong>s juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, pág. 38.<br />

de neutrali<strong>da</strong>de política que se faz <strong>ao</strong> juiz<br />

(exigência quimérica, visto que o legalista<br />

atua, sobretu<strong>do</strong>, como instrumento político<br />

de manutenção <strong>da</strong>s regras estabeleci<strong>da</strong>s por<br />

aqueles que exercem o poder <strong>do</strong>minante),<br />

no exercício de suas funções, chegan<strong>do</strong> até<br />

<strong>ao</strong> argumento <strong>do</strong>s que se dizem “escravos<br />

<strong>da</strong> lei”, a fim de legitimar sua atuação co-<br />

modista, irresponsável e injusta, disfarça<strong>da</strong><br />

por uma máscara de falsa neutrali<strong>da</strong>de e<br />

comprometimento inexistente com sua fun-<br />

ção judicante, atuan<strong>do</strong>, na reali<strong>da</strong>de, como<br />

meros vestais, travesti<strong>do</strong>s de uma hipócrita<br />

fantasia de técnicos <strong>do</strong> direito.<br />

As peculiari<strong>da</strong>des inerentes a ca<strong>da</strong> caso<br />

são fato <strong>do</strong> qual não pode esquivar-se o jul-<br />

ga<strong>do</strong>r, sob o pretexto de que a lei é genérica<br />

e não prevê a adequação casuística de seus<br />

preceitos, visto que ca<strong>da</strong> litígio trazi<strong>do</strong> a<br />

exame é rico de particulari<strong>da</strong>des, as quais<br />

deverão ser examina<strong>da</strong>s no curso <strong>do</strong> feito,<br />

até porque, em determina<strong>do</strong>s casos, uma<br />

mera firula poderá ser o diferencial entre<br />

se ter ou não direito <strong>ao</strong> objeto jurídico plei-<br />

tea<strong>do</strong>. A lição de Dallari 7 continua em seu<br />

inconformismo com o formalismo de alguns<br />

juristas:<br />

Outro perigo, que favorece a impuni<strong>da</strong>de,<br />

é o <strong>do</strong>s juízes que, por um vício de sua for-<br />

mação jurídica, são demasia<strong>do</strong> formalistas.<br />

Geralmente fanatiza<strong>do</strong>s pela lógica aparente<br />

<strong>do</strong> positivismo jurídico, muitas vezes não<br />

chegam a perceber que o excessivo apego a<br />

exigências formais impede ou dificulta <strong>ao</strong> ex-<br />

tremo a consideração <strong>do</strong>s direitos envolvi<strong>do</strong>s<br />

no processo. Condiciona<strong>do</strong>s por uma visão<br />

exclusivamente formalista <strong>do</strong> direito, esses<br />

As<br />

peculiari<strong>da</strong>des<br />

inerentes a ca<strong>da</strong><br />

caso são fato <strong>do</strong><br />

qual não pode<br />

esquivar-se o<br />

julga<strong>do</strong>r, sob o<br />

pretexto de que<br />

a lei é genérica<br />

e não prevê<br />

a adequação<br />

casuística de<br />

seus preceitos


juízes concebem o respeito <strong>da</strong>s formali<strong>da</strong>des<br />

processuais como o objetivo mais importante<br />

<strong>da</strong> função judicial. Não se sensibilizam pelas<br />

mais graves violações <strong>do</strong>s direitos humanos,<br />

desde que sejam respeita<strong>da</strong>s as formali<strong>da</strong>des.<br />

Por isso se pode dizer que os juízes formalis-<br />

tas são cúmplices inconscientes <strong>do</strong>s viola<strong>do</strong>res<br />

de direitos humanos e concorrem de maneira<br />

significativa para garantir sua impuni<strong>da</strong>de.<br />

A interpretação estritamente literal <strong>do</strong>s<br />

preceitos normativos é tarefa reprovável <strong>ao</strong><br />

jurista moderno, e essa reprovação se torna<br />

ain<strong>da</strong> mais severa quan<strong>do</strong> se trata esse ju-<br />

rista <strong>do</strong> próprio aplica<strong>do</strong>r direto <strong>da</strong> norma;<br />

o juiz não pode eximir-se de analisar os<br />

aspectos específicos de ca<strong>da</strong> caso, sob o pre-<br />

texto de qualificar sua atuação como neutra<br />

e imparcial, em respeito a uma “exigível”<br />

abstração, quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> subsunção <strong>do</strong> fato à<br />

norma, sob pena de padecerem seus pro-<br />

nunciamentos de legitimi<strong>da</strong>de, ou mesmo,<br />

em última instância, de eficácia material,<br />

hajam vista as injustiças patentes que se<br />

podem cometer mediante a a<strong>do</strong>ção dessa<br />

prática.<br />

A prática jurisdicional lastrea<strong>da</strong> em<br />

princípios de <strong>do</strong>gmatismo extremo masca-<br />

ra, na reali<strong>da</strong>de, uma atitude covarde <strong>do</strong><br />

julga<strong>do</strong>r frente à evolução <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des<br />

sociais, covardia essa em: inovar e ser, por<br />

isso, considera<strong>do</strong> rebelde pelos represen-<br />

tantes de seu órgão hierárquico superior,<br />

poden<strong>do</strong> sofrer as “conseqüências” de sua<br />

rebeldia; covardia em atualizar-se <strong>do</strong>utrina-<br />

riamente, em romper as amarras de uma le-<br />

gislação, em muitos aspectos ultrapassa<strong>da</strong> e<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

ineficaz; covardia em subverter uma ordem<br />

que subjuga os pronunciamentos judiciais<br />

<strong>ao</strong>s simulacros legislativos produzi<strong>do</strong>s pelo<br />

poder “competente” (de competência ques-<br />

tionável), enfim, covardia que, em alguns<br />

casos, avizinha-se <strong>ao</strong> mero comodismo, à<br />

preguiça em interpretar segun<strong>do</strong> as necessi-<br />

<strong>da</strong>des <strong>do</strong> litígio em espécie, deriva<strong>da</strong>, tam-<br />

bém, <strong>do</strong> fato de ser infinitamente mais fácil<br />

simplesmente “colar” o texto legal no caso<br />

concreto, sem maiores ilações valorativas,<br />

num exercício bem delinea<strong>do</strong> por Jeveaux 8 :<br />

O legalismo incipiente, entretanto, asseverou<br />

ser o texto <strong>da</strong> lei suficiente por si mesmo,<br />

auto-esclareci<strong>do</strong> e elabora<strong>do</strong> de forma tão<br />

inteligível que <strong>ao</strong> juiz restava somente<br />

aplicá-lo <strong>ao</strong> caso concreto sem conjecturas<br />

próprias. Imaginava-se que o legisla<strong>do</strong>r era<br />

já o intérprete de um direito natural (ideal)<br />

razão por que o juiz devia cumprir um papel<br />

media<strong>do</strong>r de silogismo entre a lei escrita e os<br />

casos particulares. Estava situa<strong>do</strong>, portanto,<br />

o legislativismo, de pretensão absorvente <strong>da</strong><br />

tarefa normativa, que buscava compor a lei<br />

<strong>do</strong> bastante para a regulação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social,<br />

impon<strong>do</strong> <strong>ao</strong> juiz aquela função mecânica de<br />

mera correspondência lógica.<br />

8 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz. Rio de Janeiro: Forense: 1999, pág. 62.<br />

Não se está pretenden<strong>do</strong>, aqui, fazer<br />

a pregação de uma aplicação anárquica<br />

ou subversiva <strong>do</strong> direito, mas reste claro<br />

que é possível uma utilização <strong>do</strong>s próprios<br />

coman<strong>do</strong>s normativos de forma adequa<strong>da</strong><br />

<strong>ao</strong> caso trazi<strong>do</strong> a exame, respeitan<strong>do</strong>-se as<br />

peculiari<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> caso, buscan<strong>do</strong> al-<br />

ternativas lícitas <strong>ao</strong> coman<strong>do</strong> legal obsoleto<br />

ou demasia<strong>da</strong>mente rigoroso, exercen<strong>do</strong>,<br />

147


148<br />

O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />

assim, a ver<strong>da</strong>deira jurisdição, dizen<strong>do</strong> o di-<br />

reito, e não, simplesmente, repetin<strong>do</strong> a lei.<br />

O mito <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de estrita<br />

A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz pro-<br />

duz diversos efeitos e, dentre eles, o de <strong>da</strong>r<br />

suporte à idéia de que o julga<strong>do</strong>r deve pau-<br />

tar sua conduta e jurisdição segun<strong>do</strong> princí-<br />

pios de interpretação estrita <strong>do</strong>s coman<strong>do</strong>s<br />

normativos, num exercício de positivismo<br />

extremo, sem <strong>da</strong>r lugar a juízos de valor ou<br />

idéias preconcebi<strong>da</strong>s próprias.<br />

A concepção de que o juiz, <strong>ao</strong> julgar um<br />

feito, deve atuar como se máquina fosse,<br />

despi<strong>do</strong> de conteú<strong>do</strong> axiológico ou ideoló-<br />

gico próprios, é uma falácia que merece ser<br />

trazi<strong>da</strong> à colação, a fim de que se explicitem<br />

seus fun<strong>da</strong>mentos e defeitos.<br />

A imagem de juiz autômato, um sim-<br />

ples repeti<strong>do</strong>r de coman<strong>do</strong>s legislativos, por<br />

muitas déca<strong>da</strong>s foi arduamente defendi<strong>da</strong><br />

pelos teóricos de uma forma um tanto exa-<br />

cerba<strong>da</strong> de positivismo jurídico, fato que<br />

pode ser percebi<strong>do</strong> claramente na obra de<br />

Merryman 9 :<br />

La imagen neta Del juez es la del opera<strong>do</strong>r<br />

de una máquina diseña<strong>da</strong> y construi<strong>da</strong> por<br />

los legisla<strong>do</strong>res. Su función es meramente<br />

mecánica. Los grandes nombres del derecho<br />

civil no son los de jueces (¿quién conoce el<br />

nombre de un juez del derecho civil?), sino<br />

los de legisla<strong>do</strong>res (Justiniano, Napoleón) y<br />

académicos (Gayo, Irnerio, Bartolo, Manzi-<br />

ni, Domat, Pothier, Savigny y una multitud<br />

de académicos europeos y latinoamericanos<br />

de los siglos XIX y XX). El juez del derecho<br />

civil no es un héroe cultural ni una figura<br />

paternal, como lo es frecuentemente entre no-<br />

sotros. Su imagen es la de un emplea<strong>do</strong> públi-<br />

co que desempeña funciones importantes pero<br />

que resultan esencialmente poco creativas.<br />

Tarefa impossível é aquela que se exige<br />

<strong>ao</strong> julga<strong>do</strong>r, de abstrair-se de sua experiência<br />

de vi<strong>da</strong>, <strong>do</strong>s conceitos apreendi<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> longo<br />

de sua formação, pessoal e jurídica, de suas<br />

bases conceituais, ou seja, de qualquer ele-<br />

mento que seja estranho <strong>ao</strong> texto puro <strong>da</strong> lei,<br />

a fim de que sua jurisdição seja considera<strong>da</strong><br />

objetiva e imparcial. Ao deferir ou indeferir<br />

os pedi<strong>do</strong>s intraprocessuais, <strong>ao</strong> fixar os pon-<br />

tos controversos <strong>da</strong> deman<strong>da</strong>, <strong>ao</strong> examinar as<br />

provas trazi<strong>da</strong>s como respal<strong>do</strong> às alegações,<br />

<strong>ao</strong> decidir sobre as questões incidentais, en-<br />

fim, <strong>ao</strong> emitir qualquer pronunciamento no<br />

processo sob seu exame, terá o magistra<strong>do</strong>,<br />

muitas vezes, que optar pela aplicação de<br />

um coman<strong>do</strong> normativo em detrimento de<br />

outro, também aplicável à espécie, ato que,<br />

inegavelmente, estará imbuí<strong>do</strong> de um espíri-<br />

to opinativo acerca <strong>do</strong> cabimento ou não <strong>da</strong><br />

norma <strong>ao</strong> caso. Azeve<strong>do</strong> 10 , corroboran<strong>do</strong> este<br />

entendimento, leciona que:<br />

Mas, <strong>ao</strong> buscar apreender as concepções so-<br />

ciais <strong>do</strong>minantes, não se pode pretender que o<br />

juiz aban<strong>do</strong>ne de to<strong>do</strong> seu critério e formação<br />

pessoais. Julgan<strong>do</strong>, não lhe é possível despojar-<br />

se de sua individuali<strong>da</strong>de para tão-só chance-<br />

lar o sentimento social prevalente. Os <strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />

9 A imagem clara <strong>do</strong> juiz é a <strong>do</strong> opera<strong>do</strong>r de uma máquina desenha<strong>da</strong> e construí<strong>da</strong> pelos legisla<strong>do</strong>res. Sua função é meramente mecânica. Os grandes<br />

nomes <strong>do</strong> direito civil não são de juízes (quem conhece o nome de um juiz de direito civil?), senão os de legisla<strong>do</strong>res (Justiniano, Napoleão) e acadêmicos...<br />

O juiz <strong>do</strong> direito civil não é um herói cultural nem uma figura paternal, como o é freqüentemente entre nós. Sua imagem é a de um emprega<strong>do</strong> público<br />

que desempenha funções importantes mas que resultam essencialmente pouco criativas. Merryman, John Henry, La tradición romano-canónica. México:<br />

Fon<strong>do</strong> de Cultura Económica, pág. 77.<br />

10 Azeve<strong>do</strong>, Plauto Faraco de, Aplicação <strong>do</strong> direito. São Paulo: RT, 1998, pág. 141.<br />

A concepção<br />

de que o juiz,<br />

<strong>ao</strong> julgar um<br />

feito, deve<br />

atuar como se<br />

máquina fosse<br />

é uma falácia.


objetivos emergentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social precisam<br />

ter seu lugar no raciocínio judiciário. Mas são<br />

necessária e naturalmente integra<strong>do</strong>s e aferi-<br />

<strong>do</strong>s pelos <strong>da</strong><strong>do</strong>s subjetivos <strong>do</strong> juiz.<br />

O fato de que, por exigência de normas<br />

legais específicas, está o juiz, em qualquer<br />

ato de cunho decisório, obriga<strong>do</strong> a explici-<br />

tar as razões de seu convencimento, tende<br />

a corroborar o entendimento de que são os<br />

pronunciamentos judiciais eiva<strong>do</strong>s de con-<br />

teú<strong>do</strong> valorativo pessoal <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, posto<br />

que tais valores são os ver<strong>da</strong>deiros móveis<br />

<strong>da</strong> argumentação <strong>da</strong>quele que terá que re-<br />

latar, de forma convincente, por que razão,<br />

em sua opinião, deverá prevalecer a tese de<br />

uma e não de outra parte.<br />

Durante muito tempo prevaleceu e,<br />

há que se dizer, no pensamento de alguns<br />

(poucos, felizmente) juristas <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de<br />

ain<strong>da</strong> prevalece, a idéia de que o formalis-<br />

mo na interpretação jurídica deve prevale-<br />

cer à hermenêutica de cunho racionalista,<br />

mas a mu<strong>da</strong>nça de consciência, a evolução<br />

<strong>da</strong>quele a este mo<strong>do</strong> de aplicar o Direito já<br />

se fazia sentir desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Século XIX,<br />

devi<strong>do</strong> à percepção <strong>do</strong>s claros defeitos que<br />

viciavam a prática legalista, como o que<br />

Jeveaux 11 trouxe à ilustração:<br />

Ocorre que no momento <strong>da</strong> ‘applicatio’ a ten-<br />

são inevitável entre o texto e a subsunção <strong>do</strong>s<br />

fatos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a ele se fazia sentir claramente,<br />

e era vivi<strong>da</strong> exatamente pelo juiz autômato, a<br />

quem se exigia uma decisão. E a dificul<strong>da</strong>de<br />

de uma decisão estritamente ‘conforme a lei’<br />

foi fican<strong>do</strong> permea<strong>da</strong> de um entendimento <strong>do</strong>s<br />

dispositivos que descaracterizou, ou melhor,<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

descerrou as cortinas <strong>do</strong> legislativismo, em<br />

face <strong>da</strong> natureza sempre pessoal <strong>do</strong>s pronun-<br />

ciamentos, queren<strong>do</strong> ou não a <strong>do</strong>utrina tradi-<br />

cional ou mesmo aquela que surgia.<br />

Interessa, sobremaneira, àqueles que<br />

exercem o poder em uma socie<strong>da</strong>de, o po-<br />

sicionamento inerte de seu corpo de magis-<br />

tra<strong>do</strong>s, haja vista que, sen<strong>do</strong> as leis elabora-<br />

<strong>da</strong>s pelo mais político <strong>do</strong>s três poderes e, na<br />

enorme maioria <strong>da</strong>s vezes, num exercício de<br />

positivação <strong>do</strong>s seus próprios interesses, a<br />

aplicação objetiva desses preceitos traduz-<br />

se, na reali<strong>da</strong>de, como a reafirmação <strong>do</strong>s<br />

interesses políticos de seus institui<strong>do</strong>res,<br />

numa atitude, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses,<br />

subserviente e vincula<strong>da</strong>. Essa conveniência<br />

de ser a legislação utiliza<strong>da</strong> como respal<strong>do</strong><br />

<strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong> que a institui já era um conteú<strong>do</strong><br />

bastante freqüente na obra de Rosseau 12 ,<br />

que afirmava:<br />

11 Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz. Rio de Janeiro: Forense: 1999, pág. 62.<br />

12 Rosseau, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes , 1996, pág. 69.<br />

O que torna a constituição de um Esta<strong>do</strong><br />

ver<strong>da</strong>deiramente sóli<strong>da</strong> e estável é o fato <strong>da</strong>s<br />

conveniências serem de tal mo<strong>do</strong> observa<strong>da</strong>s,<br />

que as circunstâncias naturais e as leis (grifo<br />

nosso), estejam sempre de acor<strong>do</strong> nos mesmos<br />

pontos e que aquelas façam, senão assegurar,<br />

pelo menos acompanhar e retificar estas.<br />

A linguagem jurídica, por sua termino-<br />

logia específica e, por vezes, inacessível <strong>ao</strong><br />

leigo, é poderoso instrumento de <strong>do</strong>minação<br />

e controle sociais, visto que, sen<strong>do</strong> ve<strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />

justiça priva<strong>da</strong>, somente <strong>ao</strong> aparato público<br />

encerra<strong>do</strong> no Poder Judiciário é que se legi-<br />

tima a solução <strong>do</strong>s conflitos interpessoais.<br />

O exercício desse poder deve, portanto,<br />

149


150<br />

O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />

realizar-se segun<strong>do</strong> os princípios de res-<br />

peito e digni<strong>da</strong>de que se podem atribuir à<br />

função, e a distribuição <strong>da</strong> justiça somente<br />

pode ser compreendi<strong>da</strong> pela análise <strong>da</strong>s<br />

situações inerentes a ca<strong>da</strong> conflito trazi<strong>do</strong><br />

à apreciação <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, com a valoração<br />

<strong>da</strong> importância e <strong>da</strong> urgência de ca<strong>da</strong> situ-<br />

ação específica, sob pena de padecerem de<br />

inutili<strong>da</strong>de os pronunciamentos judiciais,<br />

como nos casos em que, apesar <strong>da</strong> existência<br />

pré-constituí<strong>da</strong> <strong>do</strong> exigível periculum in<br />

mora, o julga<strong>do</strong>r, privilegian<strong>do</strong> a forma - em<br />

detrimento <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> direito pleite-<br />

a<strong>do</strong> - indefere a tutela liminar requeri<strong>da</strong>,<br />

causan<strong>do</strong> o perecimento <strong>do</strong> objeto processu-<br />

al, haja vista que o decurso de tempo, nessa<br />

espécie casuística, macula de ineficácia o<br />

provimento tardio.<br />

O Poder Judiciário é detentor de prer-<br />

rogativa que, certamente, preocupa o poder<br />

político <strong>do</strong>minante com relação à sua exten-<br />

são e força coercitiva. Aliás, é a coercitivi<strong>da</strong>-<br />

de <strong>da</strong> atuação jurisdicional importante ins-<br />

trumento de poder também com relação às<br />

demais esferas, haja vista que, a respal<strong>da</strong>r o<br />

provimento jurisdicional, encontra-se to<strong>do</strong><br />

um aparato administrativo e policial de im-<br />

posição deste <strong>ao</strong> seu destinatário, tornan<strong>do</strong><br />

inteligível o temor que permeia as demais<br />

esferas com relação à Judiciária, porquanto<br />

maior que o poder de instituir a lei é o de se<br />

fazer cumpri-la, poder este de titulari<strong>da</strong>de<br />

exclusiva <strong>do</strong> Judiciário. Tanto poder só po-<br />

deria mesmo despertar sentimentos e intui-<br />

tos pouco gloriosos com relação <strong>ao</strong> exercício<br />

<strong>da</strong> jurisdição, e, como não poderia mesmo<br />

deixar de ser, não quer o poder político <strong>da</strong>r-<br />

13 Dinamarco, Cândi<strong>do</strong> Rangel, A instrumentali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 196.<br />

se o luxo de perder “as rédeas” dessa pode-<br />

rosa “cavalaria”, que deve ser manti<strong>da</strong> dócil<br />

e submissa, em seus respectivos “estábulos”.<br />

O positivismo serve, sim, à manutenção<br />

<strong>da</strong>s estruturas de <strong>do</strong>minação, fun<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se<br />

tal assertiva no fato mesmo de que tal <strong>do</strong>u-<br />

trina teve sua origem no pensamento liberal<br />

revolucionário, <strong>da</strong> França <strong>do</strong> Século XVIII,<br />

cujo fun<strong>da</strong>mento era justamente o controle<br />

<strong>do</strong> exercício <strong>da</strong> função de magistra<strong>do</strong> que,<br />

àquela época, era pauta<strong>do</strong> de arbitrarie<strong>da</strong>des<br />

e injustiças, haja vista sua tradição econômi-<br />

ca e hereditária, her<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>do</strong> ancien régime<br />

absolutista. Interessante, para a conservação<br />

<strong>do</strong> status quo, é a operação de produzir um<br />

coman<strong>do</strong> normativo e tê-lo aplica<strong>do</strong> em sua<br />

íntegra, sem possibili<strong>da</strong>de de desvios de in-<br />

terpretação, os quais causariam o afastamen-<br />

to <strong>do</strong> intuito primeiro <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r/institui-<br />

<strong>do</strong>r acerca <strong>da</strong> norma em questão.<br />

Ocorre, no entanto, que o objetivo de<br />

manter-se a magistratura em uma re<strong>do</strong>-<br />

ma de legalismo é tarefa irreal, visto que,<br />

pela própria formação intelectual à qual<br />

os profissionais <strong>do</strong> Direito têm acesso em<br />

suas academias, são eles “infecta<strong>do</strong>s” pelo<br />

pensamento racionalista que se segue à cria-<br />

ção <strong>do</strong> positivismo jurídico, persistin<strong>do</strong>, no<br />

entanto, alguns refratários <strong>ao</strong> conhecimento<br />

inova<strong>do</strong>r, seguin<strong>do</strong> em seu caminho reto e<br />

previsível de repetição normativa.<br />

São esses racionalistas que trazem à<br />

aplicação <strong>do</strong> Direito uma luz de justiça, de<br />

respeito <strong>ao</strong>s direitos <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de, de<br />

observância <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças sociais constan-<br />

tes, produzin<strong>do</strong> um julga<strong>do</strong>r comparável <strong>ao</strong><br />

padrão elabora<strong>do</strong> por Dinamarco 13 :<br />

O Poder<br />

Judiciário é<br />

detentor de<br />

prerrogativa<br />

que,<br />

certamente,<br />

preocupa o<br />

poder político<br />

<strong>do</strong>minante com<br />

relação à sua<br />

extensão e<br />

força coercitiva.


Examinar as provas, intuir o correto en-<br />

quadramento jurídico e interpretar de mo<strong>do</strong><br />

correto os textos legais à luz <strong>do</strong>s grandes<br />

princípios e <strong>da</strong>s exigências sociais <strong>do</strong> tempo -,<br />

eis a grande tarefa <strong>do</strong> juiz <strong>ao</strong> sentenciar. En-<br />

tram aí as convicções sociopolíticas <strong>do</strong> juiz,<br />

que hão de refletir as aspirações <strong>da</strong> própria<br />

socie<strong>da</strong>de; o juiz indiferente às escolhas axio-<br />

lógicas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e que preten<strong>da</strong> apegar-se<br />

a um exagera<strong>do</strong> literalismo exegético tende a<br />

ser injusto, porque pelo menos estende gene-<br />

ralizações a pontos intoleráveis, tratan<strong>do</strong> os<br />

casos peculiares como se não fossem porta<strong>do</strong>-<br />

res de peculiari<strong>da</strong>des, na ingênua crença de<br />

estar com isso sen<strong>do</strong> fiel <strong>ao</strong> direito.<br />

O direito, na sua acepção pessoal, indi-<br />

vidual, nasce <strong>do</strong> convívio em socie<strong>da</strong>de, já<br />

que não seria razoável admitir a existência<br />

de direitos de um indivíduo que vivesse<br />

isola<strong>do</strong>, completamente abstraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> seio<br />

social, pois o direito, como pertencente <strong>ao</strong><br />

patrimônio pessoal de ca<strong>da</strong> um, só se perce-<br />

be por ser oponível a outrem, por ser passí-<br />

vel de defesa pelo seu detentor.<br />

Assim é que, na expressão <strong>do</strong> brocar-<br />

<strong>do</strong> “<strong>da</strong> mihi factum <strong>da</strong>bo tibi ius” 14 , os<br />

conflitos entre direitos são submeti<strong>do</strong>s <strong>ao</strong><br />

julgamento <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, juízo este que,<br />

informa<strong>do</strong> por um processo, instrumento<br />

material de uma ação, vai decidir qual di-<br />

reito deverá prevalecer, ou se somente um<br />

<strong>do</strong>s direitos alega<strong>do</strong>s é váli<strong>do</strong> perante a or-<br />

dem jurídica estatal.<br />

Dentro <strong>da</strong> processualística vigente, a<br />

solução <strong>do</strong>s conflitos é <strong>da</strong><strong>da</strong> pela sentença<br />

judicial (ou acórdão, conforme o grau de<br />

14 Dá-me os fatos, que te <strong>da</strong>rei o direito.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

jurisdição <strong>do</strong>nde provenha), que põe termo<br />

à lide e visa pacificar o conflito que nela<br />

se insere. A sentença judicial, porém, deve<br />

submeter-se <strong>ao</strong> ordenamento jurídico posi-<br />

tivo, nele buscan<strong>do</strong> seu fun<strong>da</strong>mento, como<br />

requisito mesmo de sua legali<strong>da</strong>de.<br />

A influência <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> axiológico <strong>do</strong><br />

julga<strong>do</strong>r em seus pronunciamentos é fato<br />

inarredável, visto que a mera ativi<strong>da</strong>de de<br />

subsunção <strong>do</strong> fato jurídico à norma aplicá-<br />

vel exige <strong>do</strong> aplica<strong>do</strong>r um juízo de valora-<br />

ção acerca <strong>da</strong> pertinência ou <strong>da</strong> aplicabi-<br />

li<strong>da</strong>de <strong>do</strong> preceito normativo que escolhe<br />

como atinente à espécie.<br />

A sentença, como ato judicial terminati-<br />

vo <strong>do</strong> conflito trazi<strong>do</strong> à apreciação <strong>do</strong> juiz, é<br />

permea<strong>da</strong> de conteú<strong>do</strong> valorativo, haja vista<br />

que terá o julga<strong>do</strong>r de escolher a tese jurídica<br />

a qual prevalecerá sobre a outra, para isso<br />

<strong>da</strong>n<strong>do</strong> as razões que motivaram seu conven-<br />

cimento. O simples fato de o julga<strong>do</strong>r enten-<br />

der que deve <strong>da</strong>r provimento <strong>ao</strong>s argumentos<br />

jurídicos de uma parte, e não de outra, já<br />

transparece a escolha que teve de fazer, esco-<br />

lha essa lastrea<strong>da</strong> em seu entendimento <strong>do</strong><br />

que é certo ou erra<strong>do</strong>, <strong>da</strong>quilo que possui ou<br />

não o respal<strong>do</strong> <strong>da</strong> lei objetiva vigente. Lo-<br />

gicamente, existem aqueles casos em que a<br />

apreciação valorativa <strong>do</strong> juiz não se faz ne-<br />

cessária, por tratar-se o fato de questão emi-<br />

nentemente técnica, de mera aplicação <strong>do</strong><br />

coman<strong>do</strong> normativo específico; nesses casos<br />

inegável é a ativi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>gmática <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r,<br />

a qual não traduz, por óbvio, uma postura de<br />

sua parte, mas uma atitude isola<strong>da</strong>.<br />

A interpretação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> normativo<br />

positiva<strong>do</strong> é tarefa <strong>da</strong> qual se serve diaria-<br />

151


152<br />

O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />

mente o juiz <strong>ao</strong> proferir suas decisões ou<br />

despachos ordinatórios, e essa interpretação<br />

não pode ser vista de forma negativa ou ten-<br />

dente a considerá-la inapropria<strong>da</strong> ou mes-<br />

mo capaz de denegrir o espírito <strong>da</strong> lei, visto<br />

que, na ativi<strong>da</strong>de judicante, impossível será<br />

<strong>ao</strong> julga<strong>do</strong>r realizar a subsunção <strong>do</strong> fato à<br />

norma sem que se incorra em um mínimo<br />

de esforço hermenêutico; a aplicação <strong>do</strong><br />

direito <strong>ao</strong> caso concreto irá requerer <strong>do</strong> jul-<br />

ga<strong>do</strong>r, muitas vezes, uma atitude de inova-<br />

ção <strong>do</strong> direito positivo, de forma a adequar<br />

sua decisão às peculiari<strong>da</strong>des inerentes <strong>ao</strong>s<br />

casos trazi<strong>do</strong>s à sua obtemperação. Sobre o<br />

assunto, assevera Men<strong>do</strong>nça 15 :<br />

O papel criativo <strong>da</strong> jurisprudência de mo<strong>do</strong><br />

algum afeta a segurança <strong>do</strong> direito, mas, de<br />

mo<strong>do</strong> contrário, é capaz de legitimá-lo pe-<br />

rante a socie<strong>da</strong>de; pois o juiz representa um<br />

ente personaliza<strong>do</strong>, em meio a um sistema<br />

essencialmente impessoal. Portanto, em reali-<br />

<strong>da</strong>de, não há conflito entre a esfera constru-<br />

tiva <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de judicante e a legali<strong>da</strong>de,<br />

mas apenas uma complementação de papéis,<br />

onde a lei fornece o eixo básico, a partir <strong>do</strong><br />

qual, no momento <strong>da</strong> aplicação <strong>do</strong> direito, o<br />

juiz formulará uma tese, a fim de solucionar<br />

o litígio.<br />

O juiz, como ser humano que é, encon-<br />

tra-se sujeito às influências <strong>do</strong> meio em<br />

que vive, seja o acadêmico, o familiar ou o<br />

social, a despeito de abaliza<strong>da</strong>s opiniões em<br />

contrário. Os valores que ca<strong>da</strong> um adqui-<br />

riu na formação de sua personali<strong>da</strong>de não<br />

podem (no senti<strong>do</strong> mesmo <strong>da</strong> falta de pos-<br />

sibili<strong>da</strong>de) ser simplesmente abstraí<strong>do</strong>s em<br />

nome <strong>da</strong> proclama<strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz<br />

na apreciação <strong>do</strong> fato.<br />

Não há uma medi<strong>da</strong> unicamente obje-<br />

tiva <strong>do</strong> que é justo. A justiça é, eminente-<br />

mente, um valor, valor este que é informa<strong>do</strong><br />

pelos critérios pessoais de ca<strong>da</strong> um - o que<br />

é justo para A pode não sê-lo para B - res-<br />

peitan<strong>do</strong>-se, entretanto, aquele critério mais<br />

ou menos comum de morali<strong>da</strong>de média, o<br />

qual fornece à justiça o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> mínimo<br />

que se deve buscar no convívio social, aque-<br />

la justiça a qual, no entender de Rawls 16 , é<br />

informa<strong>da</strong> por certos princípios, objetos de<br />

um consenso social:<br />

São esses princípios que pessoas livres e racio-<br />

nais, preocupa<strong>da</strong>s em promover seus próprios<br />

interesses, aceitariam numa posição de igual-<br />

<strong>da</strong>de, como defini<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s termos fun<strong>da</strong>men-<br />

tais de sua associação.<br />

Nesse senti<strong>do</strong> é que o juiz decide, uti-<br />

lizan<strong>do</strong>-se de seus valores pessoais, de suas<br />

experiências de vi<strong>da</strong>, de seus méto<strong>do</strong>s de<br />

indução, deven<strong>do</strong> pautar-se nas raias <strong>da</strong><br />

normali<strong>da</strong>de, evitan<strong>do</strong> as convicções faccio-<br />

sas, os preconceitos infun<strong>da</strong><strong>do</strong>s e os juízos<br />

distorci<strong>do</strong>s e exacerba<strong>do</strong>s acerca <strong>do</strong>s fatos<br />

mais polêmicos.<br />

O meio social de onde provém o juiz<br />

também vai influenciar na sua toma<strong>da</strong> de<br />

posição em um determina<strong>do</strong> processo. A<br />

origem <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong> vai impingir a sua<br />

marca nas decisões a ele submeti<strong>da</strong>s, admi-<br />

tin<strong>do</strong>-se que o juízo formula<strong>do</strong> por alguém<br />

oriun<strong>do</strong> de uma classe menos favoreci<strong>da</strong><br />

faz, por exemplo, de um furto famélico, pro-<br />

vavelmente não coincidirá com a opinião<br />

15 Men<strong>do</strong>nça, Paulo Roberto Soares, A argumentação nas decisões judiciais. Rio de Janeiro: Renovar, 1990, págs. 17/18.<br />

16 Rawls, John, Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág.12.<br />

O meio social<br />

de onde provém<br />

o juiz também<br />

vai influenciar<br />

na sua toma<strong>da</strong><br />

de posição em<br />

um determina<strong>do</strong><br />

processo.


que detém o juiz nasci<strong>do</strong> em uma classe<br />

abasta<strong>da</strong> sobre o mesmo assunto.<br />

Por tu<strong>do</strong> isso a subsunção <strong>do</strong> fato à<br />

norma não é tarefa simples <strong>ao</strong> estudioso <strong>do</strong><br />

direito, posto que sujeita às variáveis acima<br />

apresenta<strong>da</strong>s, entre tantas outras, para sua<br />

caracterização. Adequar o fato à norma que<br />

mais se lhe favoreça não é uma operação<br />

aritmética. O entendimento final <strong>do</strong> aplica-<br />

<strong>do</strong>r <strong>do</strong> direito vai sempre estar carrega<strong>do</strong> de<br />

suas opiniões e valores pessoais, adquiri<strong>do</strong>s<br />

no processo de formação de seu entendi-<br />

mento, passíveis de modificação por novas<br />

experiências adquiri<strong>da</strong>s, tanto na vi<strong>da</strong> so-<br />

cial, como no exercício <strong>da</strong> profissão.<br />

Como em to<strong>do</strong>s os campos <strong>da</strong> argu-<br />

mentação jurídica, existem aqueles que<br />

defendem e os que repudiam a valoração<br />

<strong>da</strong> norma pelo aplica<strong>do</strong>r, em sua ativi<strong>da</strong>de<br />

judicante. Para aqueles defensores de uma<br />

influência axiológica no exercício <strong>do</strong> munus<br />

de decidir os litígios, os argumentos aduzi-<br />

<strong>do</strong>s em favor dessa concepção são inúmeros;<br />

alguns deles, enumera<strong>do</strong>s por Herkenhof 17 ,<br />

são elenca<strong>do</strong>s em sua obra como sen<strong>do</strong>:<br />

a) O juiz é porta<strong>do</strong>r de valores, de que sem-<br />

pre impregna suas sentenças;<br />

b) Os critérios axiológicos acompanham o<br />

ofício <strong>do</strong> juiz: não apenas naqueles casos em<br />

que, expressamente, a lei defere a solução à<br />

discrição judicial, como naqueles outros em<br />

que, dentro de dispositivos expressos, a mar-<br />

gem de discrição é ampla ou, naquelas outras<br />

hipóteses, em que a escolha <strong>do</strong> dispositivo a<br />

aplicar é também axiológica;<br />

c) A sentença <strong>do</strong> juiz, em qualquer situação,<br />

tem conteú<strong>do</strong> axiológico, subjetivo, político;<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

d) Poderia parecer que, quanto mais buscasse<br />

penetrar na inteligência <strong>da</strong> norma, como<br />

edita<strong>da</strong>, estaria o juiz fugin<strong>do</strong> de um julga-<br />

mento subjetivo. Mas esta fixação na norma<br />

também é um posicionamento ideológico,<br />

político, niti<strong>da</strong>mente conserva<strong>do</strong>r;<br />

e) O juiz, aprisiona<strong>do</strong> à lei, serve às forças<br />

<strong>da</strong> conservação, tanto quanto serve às forças<br />

<strong>da</strong> renovação o juiz que assuma, com hones-<br />

ti<strong>da</strong>de, uma pauta axiológica e uma visão<br />

sociopolítica de compromisso <strong>do</strong> Direito com<br />

o povo, não com os privilégios.<br />

Fazen<strong>do</strong> o papel de uma espécie de “ad-<br />

voga<strong>do</strong> <strong>do</strong> diabo”, em um exercício de pura<br />

dialética, continua o autor, explicitan<strong>do</strong>, em<br />

segui<strong>da</strong>, os argumentos contrários à juris-<br />

dição com conteú<strong>do</strong> axiológico, os quais<br />

foram sintetiza<strong>do</strong>s <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

a) O juiz não pode transcender a norma.<br />

Como homem pode discor<strong>da</strong>r <strong>da</strong> justiça <strong>da</strong><br />

norma. Não obstante, deverá aplicá-la <strong>ao</strong><br />

caso que lhe incumbe julgar;<br />

b) Há uma incompatibili<strong>da</strong>de entre o mister<br />

de filósofo e o de juiz; estaria instaura<strong>da</strong> a<br />

arbitrarie<strong>da</strong>de se as sentenças ficassem subor-<br />

dina<strong>da</strong>s às valorações decorrentes <strong>da</strong> consci-<br />

ência <strong>do</strong> juiz;<br />

c) O Direito deve ser visualiza<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong><br />

composto de duas partes estanques entre si:<br />

uma lógica - ciência <strong>da</strong>s normas -, outra<br />

axiológica - ornamento <strong>do</strong> Direito, matéria<br />

esta a ser cultiva<strong>da</strong> pelos que gostam de es-<br />

peculação, mas fora <strong>da</strong> seara propriamente<br />

jurídica;<br />

17 Herkenhoff, João Batista, Como aplicar o direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, págs. 82/83.<br />

d) O juiz deve subordinar-se à norma, ain<strong>da</strong><br />

que sob o peso <strong>do</strong>s dramas íntimos;<br />

153


154<br />

O FORMALISMO JURÍDICO E O MITO DA NEUTRALIDADE ESTRITA<br />

Após a exposição <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is pressupostos<br />

dessa dialética, posiciona-se Herkenhoff<br />

favoravelmente à primeira concepção, es-<br />

posan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s argumentos justifica<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />

posicionamento ativo <strong>do</strong> juiz quan<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

solução <strong>da</strong>s deman<strong>da</strong>s trazi<strong>da</strong>s à sua apre-<br />

ciação, entendimento, aliás, <strong>do</strong> qual comun-<br />

ga Men<strong>do</strong>nça 18 , quan<strong>do</strong> afirma:<br />

(...) o juiz não é apenas mais uma peça na<br />

engrenagem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, mas na ver<strong>da</strong>de um<br />

indivíduo pessoalmente identifica<strong>do</strong>, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />

de uma racionali<strong>da</strong>de própria e que decide os<br />

litígios inegavelmente influencia<strong>do</strong> por suas<br />

experiências pessoais. Nesta situação, torna-<br />

se bastante problemático falar-se em neutrali-<br />

<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz.<br />

A mu<strong>da</strong>nça de consciência quanto <strong>ao</strong><br />

papel social <strong>do</strong>s juízes é, em grande parte,<br />

devi<strong>do</strong> à atuação <strong>da</strong> magistratura <strong>do</strong>s Esta-<br />

<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>da</strong> América. A jurisprudência,<br />

naquele país, é uma <strong>da</strong>s mais importantes<br />

fontes <strong>do</strong> Direito vigente, em sua maioria<br />

aquela emana<strong>da</strong> <strong>da</strong> Suprema Corte, órgão<br />

supremo <strong>da</strong> jurisdição americana. Inicia<strong>da</strong><br />

com a inova<strong>do</strong>ra atuação <strong>do</strong> Juiz Marshall,<br />

que enfrentou o poder Executivo <strong>da</strong> época,<br />

proferin<strong>do</strong>, no caso conheci<strong>do</strong> como Madi-<br />

son vs. Marbury, decisão importantíssima<br />

no senti<strong>do</strong> de firmar o primeiro passo rumo<br />

à independência <strong>do</strong> órgão jurisdicional,<br />

a tendência de um Judiciário “pensante”<br />

tem si<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais reforça<strong>da</strong> nos dias<br />

atuais, e o padrão de magistratura inerte e<br />

legitima<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> poder estatal tem perdi<strong>do</strong>,<br />

de forma definitiva, seu poder de influência<br />

sobre aqueles que possuem o mister de com-<br />

por as lides com justiça.<br />

18 Men<strong>do</strong>nça, Paulo Roberto Soares, A argumentação nas decisões judiciais. Rio de Janeiro: Renovar, 1990, pág. 11.<br />

19 Rigaux, François, A lei <strong>do</strong>s juízes. Tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág. 71.<br />

Essa tendência “racionaliza<strong>do</strong>ra” foi<br />

perfeitamente delinea<strong>da</strong> por Rigaux 19 ,<br />

quan<strong>do</strong> afirmou:<br />

Ninguém ousaria mais sustentar que o juiz é<br />

apenas ‘a boca <strong>da</strong> lei’. Não obstante, as opini-<br />

ões continuam a divergir sobre a necessi<strong>da</strong>de<br />

e, portanto, sobre a extensão de seu poder de<br />

apreciação. As explicações precedentes suge-<br />

rem que a aplicação <strong>do</strong> Direito não se reduz a<br />

um puro mecanismo, nem sequer a uma série<br />

de operações exclusivamente lógicas. Entre os<br />

conceitos que descrevem uma situação de fato<br />

e os que formulam a hipótese de uma regra de<br />

direito, não existe a harmonia preestabeleci<strong>da</strong><br />

que um simples silogismo, ou mesmo um enca-<br />

deamento de silogismos, permitiria constatar.<br />

Não somente o fato não se deixa verificar<br />

facilmente e o direito é freqüentemente obscu-<br />

ro, antinômico ou incompleto, mas é o ajuste<br />

mútuo deles que confere <strong>ao</strong> juiz uma função<br />

propriamente cria<strong>do</strong>ra.<br />

O reconhecimento <strong>da</strong> existência de um<br />

conteú<strong>do</strong> axiológico nas decisões judiciais<br />

não pode, no entanto, ser utiliza<strong>do</strong> como<br />

meio de fun<strong>da</strong>mentar uma subversão <strong>da</strong><br />

ordem jurídica estabeleci<strong>da</strong>, sob pena de se<br />

estar legitiman<strong>do</strong> um império de juízes-le-<br />

gisla<strong>do</strong>res que, a despeito <strong>do</strong> ordenamento<br />

jurídico vigente, entendem por solucionar<br />

os conflitos, segun<strong>do</strong> suas próprias convic-<br />

ções sociopolítico-ideológicas, ingressan<strong>do</strong><br />

na perigosa seara <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de, eivan<strong>do</strong> de<br />

total nuli<strong>da</strong>de seus pronunciamentos, con-<br />

duzin<strong>do</strong> a atuação jurisdicional a uma fatal<br />

e peremptória instabili<strong>da</strong>de. Nesse mesmo


senti<strong>do</strong> é que vem a manifestar-se Dinamar-<br />

co 20 , quan<strong>do</strong> afirma:<br />

Daí, porém, não deve emanar a idéia de uma<br />

carga excessiva e perigosa de poderes entregues<br />

<strong>ao</strong> juiz. Legisla<strong>do</strong>r ele não é e, com as ressal-<br />

vas postas, sempre continua o juiz sujeito à<br />

lei. Aquele que, a pretexto de <strong>da</strong>r a esta uma<br />

interpretação evolutiva, pretender impor<br />

soluções suas personalíssimas, decorrentes de<br />

suas opções políticas, crenças religiosas, pre-<br />

conceitos, preferências, etc., estará cometen<strong>do</strong><br />

ilegali<strong>da</strong>de e sua decisão não será legítima.<br />

A função jurisdicional requer dedica-<br />

ção, estu<strong>do</strong>, atualização e, antes de tu<strong>do</strong>,<br />

Bibliografia<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

bom senso. Reitere-se, no entanto que não<br />

se está, aqui, fazen<strong>do</strong> apologia <strong>ao</strong> uso alter-<br />

nativo <strong>do</strong> direito, ou à subversão <strong>da</strong> ordem<br />

jurídica. Está-se tentan<strong>do</strong> demonstrar é<br />

que a função de julgar deve ser exerci<strong>da</strong> de<br />

mo<strong>do</strong> a propiciar um real acesso à justiça e<br />

a pacificação <strong>do</strong>s conflitos sociais, na busca<br />

pela realização <strong>do</strong>s reais escopos <strong>da</strong> atuação<br />

judicante.<br />

Ana Karena Nobre é juíza estadual na<br />

Bahia, professora de Direito Civil na Uni-<br />

versi<strong>da</strong>de Estadual de Santa Cruz; mestre<br />

em Direito Público pela UFPE.<br />

Azeve<strong>do</strong> <strong>do</strong>, Plauto Faraco de, Aplicação <strong>do</strong> direito, São Paulo: RT, 1998.<br />

Dallari, Dalmo de Abreu, O poder <strong>do</strong>s juízes, São Paulo: Saraiva, 1996.<br />

Dinamarco, Cândi<strong>do</strong> Rangel, A Instrumentali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo, São Paulo: Malheiros, 2000.<br />

Faria, José Eduar<strong>do</strong>, Justiça e conflito: os juízes em face <strong>do</strong>s novos movimentos sociais, São<br />

Paulo: RT, 1992.<br />

Herkenhoff, João Batista, Como aplicar o direito, Rio de Janeiro: Forense, 2001.<br />

Jeveaux, Geovany Car<strong>do</strong>so, A simbologia <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juiz, Rio de Janeiro: Foren-<br />

se: 1999.<br />

Kelsen, Hans, Teoria pura <strong>do</strong> Direito, Tradução: João Batista Macha<strong>do</strong>. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2000.<br />

Men<strong>do</strong>nça, Paulo Roberto Soares, A argumentação nas decisões judiciais, Rio de Janeiro:<br />

Renovar, 1990.<br />

2000.<br />

Rawls, John, Justiça e Democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />

Rigaux, François, A lei <strong>do</strong>s juízes, Tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes,<br />

Rosseau, Jean-Jacques, O contrato social, São Paulo: Martins Fontes, 1996.<br />

20 DINAMARCO, Cândi<strong>do</strong> Rangel, A instrumentali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> processo. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 295.<br />

155


Conflitos<br />

O novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10<br />

de janeiro de 2002), que entrou este ano,<br />

<strong>ao</strong> incorporar o espírito <strong>da</strong> Constituição de<br />

1988 no tocante à instituição <strong>da</strong> família,<br />

transformou o juiz no grande árbitro <strong>do</strong>s<br />

conflitos familiares.<br />

Alguns exemplos, colhi<strong>do</strong>s aqui e ali,<br />

ilustram bem a assertiva: haven<strong>do</strong> diver-<br />

gência entre o casal no tocante à autoriza-<br />

ção para casamento <strong>do</strong> filho menor de 16<br />

anos, pode ele recorrer <strong>ao</strong> juiz, enquanto<br />

no regime anterior prevalecia a vontade<br />

paterna (art. 1.517). A direção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

conjugal, antes atribuí<strong>da</strong> <strong>ao</strong> mari<strong>do</strong>, passa<br />

a ser exerci<strong>da</strong> em colaboração com a mu-<br />

lher. Mas, se eles não entrarem em acor<strong>do</strong>,<br />

podem pedir <strong>ao</strong> juiz a solução para a con-<br />

trovérsia, a qual será decidi<strong>da</strong> no interesse<br />

<strong>do</strong> casal e <strong>do</strong>s filhos (art. 1.567). No Código<br />

de 1916, o pátrio poder competia <strong>ao</strong> mari<strong>do</strong>,<br />

que o exercia com a colaboração <strong>da</strong> esposa.<br />

O pátrio poder passou a ser denomina<strong>do</strong> po-<br />

der familiar, no novo Código, e o seu exer-<br />

cício compete, em conjunto, <strong>ao</strong> casal. Mas,<br />

Familiares<br />

Judicialização <strong>do</strong>s Conflitos Familiares<br />

Mônica Sifuentes<br />

se no Código anterior prevalecia a vontade<br />

paterna em caso de desacor<strong>do</strong>, no Código<br />

atual o árbitro é, uma vez mais, o juiz (art.<br />

1.631). A habilitação para o casamento, ato<br />

tipicamente cartorário, bem como a separa-<br />

ção judicial amigável, continuam a passar<br />

pelo crivo <strong>do</strong> juiz, que deve homologá-las<br />

(arts. 1.526 e 1.574).<br />

A bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, a família parece já<br />

não mais constituir a preocupação primeira<br />

<strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r civil, que elegeu, antes dela,<br />

outras priori<strong>da</strong>des, mais de acor<strong>do</strong> com os<br />

tempos modernos. Basta ver a ordem <strong>do</strong>s<br />

livros que formam os códigos civis velho e<br />

novo. No Código de 1916, a ordem <strong>do</strong>s livros<br />

era: Direito de Família, Direito <strong>da</strong>s Coisas,<br />

Direito <strong>da</strong>s Obrigações e, por fim, Direito<br />

<strong>da</strong>s Sucessões. Representava, como uma<br />

seqüência, o ciclo <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>: o homem<br />

adquiria a maiori<strong>da</strong>de, se casava, criava a<br />

família, adquiria proprie<strong>da</strong>de, contraía obri-<br />

gações, fazia contratos e, por fim, a morte o<br />

colhia e vinha o direito regular à distribuição<br />

<strong>do</strong>s seus bens entre os que ficavam.<br />

157


158<br />

JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES<br />

O novo Código traz novi<strong>da</strong>des: primei-<br />

ro, Direito <strong>da</strong>s Obrigações; segun<strong>do</strong>, Direito<br />

de Empresa; depois, Direito de Família?<br />

Não. Direito <strong>da</strong>s Coisas. O Direito de Famí-<br />

lia vem em quarto lugar, segui<strong>do</strong> <strong>da</strong>s Suces-<br />

sões. É como um retrato <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de:<br />

o homem adquire a maiori<strong>da</strong>de, contrai<br />

obrigações, faz contratos, cria empresas,<br />

enriquece ou empobrece, adquire bens ou<br />

não, torna-se proprietário ou possui<strong>do</strong>r e,<br />

se der tempo, constitui família. A sucessão<br />

vem por último, mesmo porque a ciência<br />

genética não conseguiu, por enquanto, nos<br />

livrar <strong>da</strong> morte. Na próxima codificação,<br />

quem sabe...<br />

O juiz passa a ser, <strong>do</strong>ravante, o res-<br />

ponsável pelo delineamento <strong>da</strong> instituição<br />

familiar nesse início de século. Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

uma grande responsabili<strong>da</strong>de lhe é outorga-<br />

<strong>da</strong> - o papel que a socie<strong>da</strong>de patriarcal e ru-<br />

ral <strong>do</strong> velho Código atribuía <strong>ao</strong> pater fami-<br />

lias, a socie<strong>da</strong>de cibernética delega <strong>ao</strong> juiz,<br />

terceiro imparcial, representante de um<br />

Esta<strong>do</strong> que vai se tornan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais<br />

um big brother. Contraditórias disposições<br />

em face <strong>do</strong> art. 1.513 <strong>do</strong> mesmo Código, que<br />

proíbe a qualquer pessoa, de direito público<br />

ou priva<strong>do</strong>, interferir na comunhão de vi<strong>da</strong><br />

constituí<strong>da</strong> pela família. Para harmonizar<br />

esse dispositivo com os outros é necessário<br />

acrescentar: a não ser que essa comunhão<br />

não exista, quan<strong>do</strong> então o Esta<strong>do</strong>-Juiz de-<br />

verá ser aciona<strong>do</strong>.<br />

Diz-se que o novo Código, com essas<br />

medi<strong>da</strong>s, insere-se na linha pós-positivista,<br />

em que <strong>ao</strong> juiz é <strong>da</strong><strong>do</strong> um papel de des-<br />

taque, como elemento integra<strong>do</strong>r de uma<br />

nova filosofia de codificação, que se carac-<br />

teriza por uma estrutura aberta e flexível.<br />

O juiz é o elemento flui<strong>do</strong> que se move<br />

no meio dessas normas, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes vi<strong>da</strong> e<br />

abrin<strong>do</strong> espaço para uma nova faceta <strong>do</strong> Es-<br />

ta<strong>do</strong>, que prima pela judicialização <strong>do</strong>s seus<br />

conflitos e transforma o magistra<strong>do</strong> em uma<br />

estrela em ascensão, como o fora o legisla-<br />

<strong>do</strong>r, no século XVIII, ou o administra<strong>do</strong>r,<br />

nos séculos XIX e XX.<br />

Se a experiência <strong>do</strong>s outros vale como<br />

exemplo, Portugal tem a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> caminho<br />

diferente: partiu para a desjudicialização.<br />

Medi<strong>da</strong>s relativas a menores ou relações<br />

familiares, tais como atribuição de alimen-<br />

tos a filhos maiores, a autorização para<br />

utilização ou proibição <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> sobreno-<br />

me <strong>do</strong> cônjuge divorcia<strong>do</strong>, a conversão <strong>da</strong><br />

separação em divórcio, quan<strong>do</strong> não houver<br />

litígio, a reconciliação de cônjuges separa-<br />

<strong>do</strong>s, entre outras, foram transferi<strong>da</strong>s para<br />

o Ministério Público ou o próprio Cartório<br />

de Registro Civil (Decretos-Leis nºs 272 e<br />

273 de 13 de outubro de 2001). É o retorno<br />

<strong>ao</strong> Esta<strong>do</strong>-Administra<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s questões que<br />

efetivamente não possuíam natureza juris-<br />

dicional e foram por isso denomina<strong>da</strong>s de<br />

“jurisdição voluntária”. O Judiciário por-<br />

tuguês se despe dessas atribuições, para se<br />

concentrar naquilo que originariamente lhe<br />

cabe: a solução <strong>do</strong>s conflitos.<br />

As conseqüências <strong>da</strong> judicialização bra-<br />

sileira são previsíveis: provável aumento <strong>do</strong><br />

número de deman<strong>da</strong>s, congestionamento<br />

<strong>do</strong> (já sufoca<strong>do</strong>) aparelho judiciário, eter-<br />

nização <strong>do</strong>s litígios familiares, necessi<strong>da</strong>de<br />

de mais juízes, mais funcionários, mais<br />

recursos, ci<strong>da</strong>dão insatisfeito, Esta<strong>do</strong> em<br />

descrédito.<br />

A solução possível parece ser a aponta-<br />

<strong>da</strong> e defendi<strong>da</strong> com ênfase pela nobre mi-<br />

nistra Fátima Nancy Andrighi, <strong>do</strong> Superior<br />

Tribunal de Justiça: Juiza<strong>do</strong>s de Conciliação


ou de Pequenas Causas, também para a área<br />

de família. A experiência envolve custos<br />

menores, poden<strong>do</strong>-se valer de organismos<br />

de apoio psicológico e assistencial que não<br />

depen<strong>da</strong>m exclusivamente <strong>do</strong> dinheiro<br />

público, como por exemplo, as associações<br />

não-governamentais e o voluntaria<strong>do</strong>.<br />

De qualquer mo<strong>do</strong>, o novo Código reve-<br />

la uma curiosa faceta: apresenta-se como di-<br />

reito em construção, especialmente na área<br />

de família, em que para o juiz se transfere<br />

a penosa missão de intermediar os comple-<br />

xos (sob o ponto de vista social e humano)<br />

conflitos familiares. Dos juízes se espera, no<br />

entanto, a sabe<strong>do</strong>ria de deixar preserva<strong>da</strong><br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

a intimi<strong>da</strong>de familiar, utilizan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s<br />

meios que levem <strong>ao</strong> seu fortalecimento e<br />

não à sua dissolução. Afinal, ain<strong>da</strong> que sob<br />

nova roupagem, a família continua a ser,<br />

como já dizia Rui no início <strong>do</strong> século que<br />

fin<strong>do</strong>u, o refúgio e o conforto <strong>do</strong> indivíduo,<br />

a primeira escola, a célula forma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong><br />

grande organismo que é a pátria.<br />

Mônica Sifuentes é juíza federal em<br />

Brasília/DF, mestre em Direito Econômico<br />

pela UFMG e <strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> em Ciências Jurí-<br />

dico-Políticas pela Facul<strong>da</strong>de de Direito de<br />

Lisboa.<br />

159


Absorção<br />

O Crime de Roubo Segui<strong>do</strong> <strong>do</strong> Crime de Resistência:<br />

Absorção ou Desígnios Autônomos?<br />

Introdução<br />

O artigo visa esclarecer um <strong>do</strong>s temas<br />

mais complexos acerca <strong>do</strong> crime de re-<br />

sistência, qual seja, a verificação que se<br />

ocorrer à abor<strong>da</strong>gem, logo após o roubo.<br />

Cumpre concluir se teremos um des-<br />

<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> nexo de causali<strong>da</strong>de ou<br />

um caso de desígnios autônomos.<br />

Algumas considerações acerca<br />

<strong>do</strong> crime de resistência<br />

O atual Código Penal estatui um capítulo<br />

destina<strong>do</strong> à tutela penal <strong>da</strong> Administra-<br />

ção Pública, protegen<strong>do</strong>-a <strong>da</strong> atuação<br />

<strong>do</strong> particular que visar mediante meios<br />

obtusos frau<strong>da</strong>r as ativi<strong>da</strong>des públicas e<br />

dessa forma lesar o desenvolvimento <strong>do</strong><br />

mecanismo estatal, obten<strong>do</strong> um proveito<br />

para si ou para outrem, sen<strong>do</strong> essa a re-<br />

gra geral.<br />

ou Desígnios<br />

O tipo penal <strong>do</strong> art. 329, <strong>do</strong> Código<br />

Penal, diz ser crime o oferecimento de<br />

resistência, <strong>ao</strong> considerar mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

típica o ato de: “Opor-se à execução de<br />

Renato Flávio Marcão e Flávio Augusto Maretti Siqueira<br />

ato legal, mediante violência ou ameaça<br />

a funcionário competente para executá-lo<br />

ou a quem lhe esteja prestan<strong>do</strong> auxílio”,<br />

estabelecen<strong>do</strong> pena de detenção, de 2<br />

(<strong>do</strong>is) meses a 2 (<strong>do</strong>is) anos. Se o ato,<br />

em razão <strong>da</strong> resistência, não se executa,<br />

a pena será de reclusão, de 1 (um) a 3<br />

(três) anos, consoante determina o § 1º,<br />

sen<strong>do</strong> certo que a teor <strong>do</strong> disposto no §<br />

2º, as penas deste artigo são aplicáveis<br />

sem prejuízo <strong>da</strong>s correspondentes à vio-<br />

lência.<br />

1) Objetivi<strong>da</strong>de jurídica<br />

A tutela penal conferi<strong>da</strong> à Admi-<br />

nistração Pública visa a manutenção <strong>da</strong><br />

legali<strong>da</strong>de, licitude, prestígio, moral e<br />

<strong>do</strong> dever de probi<strong>da</strong>de. O que se verifica<br />

<strong>ao</strong> traçarmos um paralelo com o direito<br />

administrativo é que a proteção penal é<br />

conferi<strong>da</strong> justamente para a consecução<br />

<strong>da</strong> maioria <strong>do</strong>s princípios constitucionais<br />

administrativos que regulam o desenvol-<br />

ver estatal. A ativi<strong>da</strong>de administrativa é<br />

161


162<br />

O CRIME DE ROUBO SEGUIDO DO CRIME DE RESISTÊNCIA:<br />

ABSORÇÃO OU DESÍGNIOS AUTÔNOMOS?<br />

considera<strong>da</strong> em to<strong>do</strong>s os níveis e subdivi-<br />

sões inerentes à administração indireta,<br />

que dá tenaci<strong>da</strong>de e vivaci<strong>da</strong>de <strong>ao</strong> apara-<br />

to estatal.<br />

Luiz Régis Pra<strong>do</strong> apresenta boa lição<br />

acerca <strong>do</strong> objeto e objetivos <strong>da</strong> tutela<br />

estatal a si próprio, asseveran<strong>do</strong> que: “A<br />

tutela penal, in casu, visa assegurar o<br />

normal funcionamento <strong>da</strong> Administra-<br />

ção Pública, asseguran<strong>do</strong> o exercício <strong>da</strong><br />

autori<strong>da</strong>de estatal, o prestígio <strong>da</strong> função<br />

pública e a segurança <strong>do</strong>s agentes públi-<br />

cos, bem como <strong>da</strong>queles que lhe prestam<br />

auxílio, para a consecução <strong>do</strong>s atos de<br />

ofício. Evidentemente, o ilegal insurgi-<br />

mento contra o exercício funcional <strong>da</strong><br />

Administração Pública resultaria no de-<br />

sencadeamento <strong>do</strong> c<strong>ao</strong>s social, em face <strong>da</strong><br />

degra<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> poder estatal; <strong>da</strong>í a neces-<br />

si<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proteção penal” 1 .<br />

O ilícito penal é reclama<strong>do</strong> pelas<br />

ativi<strong>da</strong>des estatais porque as sanções ad-<br />

ministrativas e civis não pareceram ser<br />

suficientes para conter as lesões <strong>ao</strong>s inte-<br />

resses públicos tutela<strong>do</strong>s.<br />

2) Sujeitos <strong>do</strong> crime<br />

Por se tratar de crimes pratica<strong>do</strong>s<br />

por particular contra a Administração,<br />

trata-se de crime comum, poden<strong>do</strong> ser<br />

pratica<strong>do</strong> por qualquer pessoa, inclusive<br />

o próprio funcionário público, mas se<br />

pratica<strong>do</strong> durante o exercício de suas<br />

funções, o delito poderá ser outro.<br />

O sujeito passivo será sempre o Esta-<br />

<strong>do</strong>, que é o titular, maior interessa<strong>do</strong> na<br />

manutenção <strong>da</strong> regulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Adminis-<br />

tração Pública e no justo cumprimento<br />

<strong>da</strong>s ordens dela emana<strong>da</strong>s. De forma<br />

subsidiária podemos cogitar <strong>do</strong> funcioná-<br />

rio público no exercício de suas funções,<br />

que está incumbi<strong>do</strong> <strong>da</strong> prática <strong>do</strong> ato de<br />

execução, e aquele que acompanha o fun-<br />

cionário no cumprimento <strong>do</strong> coman<strong>do</strong>, o<br />

qual o particular forçosamente visa obs-<br />

tar por via <strong>da</strong> ameaça ou violência.<br />

Convém a nós lembrarmos que o con-<br />

ceito de funcionário público restringe-se<br />

àquele que possui competência para a<br />

prática <strong>do</strong> ato executório, na elastici<strong>da</strong>-<br />

de <strong>do</strong> conceito 2 <strong>do</strong> art. 327, <strong>do</strong> Código<br />

Penal. Julio Fabbrini Mirabete lembra<br />

que: “É necessário que o funcionário seja<br />

competente para a prática <strong>do</strong> ato de ofí-<br />

cio, já que o dispositivo se refere à ordem<br />

legal, e um <strong>do</strong>s requisitos desta é que<br />

tenha o executor atribuição para praticá-<br />

lo. É necessário para a caracterização <strong>do</strong><br />

crime que o funcionário esteja exercen<strong>do</strong><br />

suas funções quan<strong>do</strong> o agente se opõe à<br />

execução <strong>do</strong> ato” 3 .<br />

1 Pra<strong>do</strong>, Luiz Régis, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. IV. 3ª Ed. RT. SP/SP, 2001, pág. 516.<br />

Nesse diapasão, lembremos que o<br />

funcionário deve ter competência para o<br />

ato, sen<strong>do</strong> que esta se subdivide em com-<br />

petência delega<strong>da</strong> em virtude <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>-<br />

de pública e competência no momento <strong>da</strong><br />

ocorrência <strong>da</strong> resistência.<br />

Tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema em apreço, o egré-<br />

gio Tribunal de Alça<strong>da</strong> Criminal <strong>do</strong> Esta-<br />

<strong>do</strong> de São Paulo já decidiu que: “É neces-<br />

2 Sobre o conceito de funcionário público vide nosso artigo: “O Funcionário Público visto pelo Direito Penal”, in www.direitonet.com.br, onde dissertamos<br />

sobre o tema.<br />

3 Mirabete, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, vol. III. 16ª. Ed. Atlas. SP/SP, 2001, pág. 361.<br />

O ilícito penal<br />

é reclama<strong>do</strong><br />

pelas<br />

ativi<strong>da</strong>des<br />

estatais porque<br />

as sanções<br />

administrativas<br />

e civis não<br />

pareceram<br />

ser suficientes<br />

para conter<br />

as lesões <strong>ao</strong>s<br />

interesses<br />

públicos<br />

tutela<strong>do</strong>s.


sário para a caracterização <strong>do</strong> crime <strong>do</strong><br />

art. 329 <strong>do</strong> CP que o funcionário esteja<br />

exercen<strong>do</strong> suas funções quan<strong>do</strong> o agente<br />

se opõe à execução de ato legal” (RJDTA-<br />

CRIM 2/144).<br />

3) Tipo objetivo<br />

A conduta encarta<strong>da</strong> como afrontosa<br />

à lei penal é a de oferecer oposição <strong>ao</strong> ato<br />

legal de execução, com a demonstração<br />

de força por via de violência ou ameaça.<br />

O foco <strong>da</strong> conduta ilícita está na de-<br />

monstração <strong>do</strong> agente com a insatisfação<br />

na execução <strong>do</strong> ato e também que esta<br />

provenha de forma comissiva, dirigi<strong>da</strong><br />

diretamente contra o agente público en-<br />

carrega<strong>do</strong> <strong>do</strong> cumprimento <strong>do</strong> ato.<br />

A ação positiva deve revelar uma<br />

violência ou ameaça, pois caso revele<br />

somente uma forma omissiva, com uma<br />

resistência pacífica, sem as elementares<br />

agressivas, nos depararemos com a figu-<br />

ra penal <strong>da</strong> desobediência (art. 330, <strong>do</strong><br />

Código Penal). Assim, nos remetemos à<br />

lição de Julio Fabbrini Mirabete, cuja<br />

lição é no senti<strong>do</strong> de que: “A oposição à<br />

prática <strong>do</strong> ato legal deve ser atuante e<br />

positiva, não a configuran<strong>do</strong> a resistên-<br />

cia passiva, a passivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> agente, a<br />

atitude que, embora possa ser tendente a<br />

impedir o ato legal, não se configura em<br />

violência ou ameaça (RT 509/343, 601/<br />

332, 356/307, JTACrSP 74/261; RF 264/<br />

344). Nesse caso poderá ocorrer o crime<br />

de desobediência (RF 225/329)” 4 .<br />

A vis corporalis pode se <strong>da</strong>r com o<br />

emprego de qualquer instrumento ou<br />

4 Mirabete, Julio Fabbrini, op. cit. pág. 362.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

meio apto a gerar na vítima lesões, feri-<br />

mentos, independen<strong>do</strong> se aconteceu ou<br />

não, pois, basta a tentativa. A ameaça<br />

não se reveste aqui <strong>da</strong> “promessa de mal<br />

injusto e grave”, característica <strong>do</strong> art.<br />

147, <strong>do</strong> Código Penal, aparecen<strong>do</strong> essa<br />

vis moralis por via de gestos, palavras.<br />

Ain<strong>da</strong>, interessante é relevarmos<br />

que a resistência deve ocorrer no exato<br />

momento <strong>da</strong> consumação <strong>do</strong> ato legal,<br />

que por via de sua conduta o particular<br />

tenta barrar, impedir, parar, coagir para<br />

infiltrar o temor e afastar a ação estatal<br />

lícita. Caso ocorra antes <strong>do</strong> início <strong>do</strong> ato<br />

ou a posteriori, com vistas a responder <strong>ao</strong><br />

ato legal, como via de represália, teremos<br />

um outro crime (desacato, injúria, difa-<br />

mação), mas o certo é que não teremos<br />

a incidência <strong>da</strong> resistência, justamente<br />

pelo ato ter se consuma<strong>do</strong>.<br />

Se o ato não estiver revesti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

mais estrita legali<strong>da</strong>de, terá o particu-<br />

lar o direito de resistir <strong>ao</strong> mesmo, pois,<br />

haverá frontal violação <strong>ao</strong> princípio <strong>da</strong><br />

legali<strong>da</strong>de insculpi<strong>do</strong> no art. 5º, II, CR,<br />

segun<strong>do</strong> o qual “ninguém será obriga<strong>do</strong><br />

a fazer ou deixar de fazer alguma coisa<br />

senão em virtude de lei”. Então, surge a<br />

norma excludente <strong>da</strong> antijuridici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

legítima defesa (arts. 23, inc. II, e 25, <strong>do</strong><br />

Código Penal) contra ato que foge à lega-<br />

li<strong>da</strong>de e, portanto, arrepia a lei e a ordem<br />

jurídica como um to<strong>do</strong>, sempre fazen<strong>do</strong><br />

a ressalva de que tu<strong>do</strong> o que excede os<br />

patamares <strong>da</strong> normali<strong>da</strong>de para afastar a<br />

infringência estatal configura o excesso<br />

<strong>do</strong>loso ou culposo, que ganha forma e<br />

163


164<br />

O CRIME DE ROUBO SEGUIDO DO CRIME DE RESISTÊNCIA:<br />

ABSORÇÃO OU DESÍGNIOS AUTÔNOMOS?<br />

capitulação no estatuto repressivo pátrio<br />

(art. 23, § único, <strong>do</strong> Código Penal). A<br />

conduta é plenamente fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> no<br />

alicerce basilar <strong>da</strong> natureza humana, o<br />

de o homem lutar contra tu<strong>do</strong> aquilo que<br />

injustamente reprime.<br />

São comuns os casos de resistência<br />

contra a efetivação de prisão em flagran-<br />

te, cumprin<strong>do</strong> assinalar, com apoio na<br />

jurisprudência, que “sen<strong>do</strong> o flagrante<br />

provoca<strong>do</strong>, o que torna impossível a con-<br />

sumação de um crime, que, assim, não se<br />

materializa (Súmula 145 <strong>do</strong> STF) não se<br />

caracterizam os crimes <strong>do</strong>s arts. 329, 330<br />

e 331 <strong>do</strong> CP, na resistência ilegal à pri-<br />

são. Também não se caracteriza o <strong>do</strong> art.<br />

129 <strong>do</strong> CP, quan<strong>do</strong>, nas mesmas circuns-<br />

tâncias, o agente, repele, <strong>ao</strong> abrigo <strong>do</strong><br />

art. 25 <strong>do</strong> CP, a violência física de agente<br />

<strong>da</strong> Administração que, sem esteio legal, o<br />

pretende subjugar, para conduzi-lo pre-<br />

so” (RT 686/370).<br />

4) Tipo subjetivo<br />

O <strong>do</strong>lo <strong>do</strong> agente aqui é o de resistir,<br />

apresentar oposição, defender na tentati-<br />

va de afastar o ato estatal lícito mediante<br />

violência ou grave ameaça emprega<strong>da</strong><br />

contra o funcionário público ou seu as-<br />

sistente, saben<strong>do</strong> dessa condição e <strong>da</strong><br />

legali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> ato, que é o elemento espe-<br />

cial <strong>do</strong> injusto. O que deixa níti<strong>do</strong> que a<br />

forma culposa nos conduz <strong>ao</strong> erro penal<br />

<strong>do</strong> art. 20 e ss., <strong>do</strong> Código Penal, afastan-<br />

<strong>do</strong> a incidência <strong>do</strong> tipo.<br />

Estes méto<strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s devem ser<br />

aptos para tentar embargar a ação estatal<br />

sobre o agente. Conforme eluci<strong>da</strong> Julio<br />

Fabbrini Mirabete, <strong>ao</strong> cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> conduta<br />

pratica<strong>da</strong> por pessoa embriaga<strong>da</strong>: “Quan-<br />

to à resistência de pessoa embriaga<strong>da</strong>,<br />

há duas posições: a primeira é a de que o<br />

embriaga<strong>do</strong> não age com o <strong>do</strong>lo específi-<br />

co <strong>do</strong> delito; a segun<strong>da</strong> é a de que, além<br />

de tu<strong>do</strong>, basta o <strong>do</strong>lo genérico para a<br />

caracterização <strong>do</strong> crime. Deve prevalecer<br />

aquela que não exclui o <strong>do</strong>lo ou a culpa-<br />

bili<strong>da</strong>de à embriaguez voluntária ou cul-<br />

posa, como expressamente o prevê o art.<br />

28, II, <strong>do</strong> CP” 5 .<br />

5 Mirabete, Julio Fabbrini, Código Penal interpreta<strong>do</strong>; 1ª ed. Atlas; São Paulo/SP, 1999, pág. 1765.<br />

6 Pra<strong>do</strong>, Luiz Régis, Op. cit. pág. 520.<br />

Não se exige aqui o <strong>do</strong>lo específico,<br />

como pugna uma parte <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina, mas<br />

sim o <strong>do</strong>lo genérico, dessa sorte, o in-<br />

divíduo embriaga<strong>do</strong> poderá ser sujeito<br />

ativo <strong>do</strong> crime. Interessante ponderarmos<br />

que essa embriaguez restringe-se àquela<br />

voluntariamente procura<strong>da</strong> pelo agente,<br />

afastan<strong>do</strong> aqui a embriaguez fortuita ou<br />

proveniente de força maior, que configu-<br />

rará causa excludente <strong>da</strong> culpabili<strong>da</strong>de,<br />

nos termos <strong>do</strong> art. 28, <strong>do</strong> Código Penal,<br />

pois conforme se tem entendi<strong>do</strong>, é “sufi-<br />

ciente à configuração <strong>do</strong> delito de resis-<br />

tência conduzir-se o agente com <strong>do</strong>lo ge-<br />

nérico. Assim, irrelevante à consumação<br />

<strong>do</strong> crime, encontrar-se o agente em esta<strong>do</strong><br />

de ebrie<strong>da</strong>de” (JTACRIM 74/385). “Dis-<br />

pon<strong>do</strong> a lei penal que a embriaguez vo-<br />

luntária ou culposa <strong>do</strong> agente não exclui a<br />

responsabili<strong>da</strong>de penal, não se pode, com<br />

base nela, absolver o acusa<strong>do</strong> <strong>do</strong> delito de<br />

resistência. Mesmo porque nem <strong>do</strong>lo espe-<br />

cífico exige o crime, contentan<strong>do</strong>-se com<br />

o genérico” (JTACRIM 46/270).


5) Consumação e tentativa<br />

Segun<strong>do</strong> a lição de Luiz Régis Pra-<br />

<strong>do</strong>: “O delito é formal e se consuma no<br />

momento em que o agente pratica a vio-<br />

lência ou ameaça contra o funcionário<br />

ou seu eventual assistente, com o escopo<br />

de que não seja realiza<strong>do</strong> o ato de ofício,<br />

não se exigin<strong>do</strong> que o agente alcance a<br />

meta optata, bastan<strong>do</strong> que a conduta seja<br />

apta a atingir tal fim” 6 .<br />

A tentativa, por se tratar de crime<br />

formal, somente será possível nos casos<br />

em que a ameaça se dê por escrito, sen<strong>do</strong><br />

intercepta<strong>da</strong> antes de chegar <strong>ao</strong> conheci-<br />

mento <strong>do</strong> funcionário público incumbi<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> tarefa ou seu auxiliar, mas nunca será<br />

possível na hipótese de violência, pois o<br />

ato de tentar praticar a violência física já<br />

configura o delito, que é formal.<br />

A questão <strong>do</strong> roubo<br />

O roubo é um crime contra o patrimônio<br />

descrito nas linhas <strong>do</strong> art. 157, <strong>do</strong> Código<br />

Penal. Neste delito, o agente se vale <strong>do</strong><br />

emprego de violência, <strong>da</strong> grave ameaça<br />

ou de meio que impossibilite a defesa <strong>do</strong><br />

ofendi<strong>do</strong> para alcançar a inversão <strong>da</strong> pos-<br />

se e ter a coisa alheia móvel como sua,<br />

mediante subtração.<br />

Destarte, verificamos que o crime de<br />

roubo tem como elementar a violência<br />

(em senti<strong>do</strong> amplo), o que o diferencia<br />

<strong>do</strong> furto qualifica<strong>do</strong>, onde esta é empre-<br />

ga<strong>da</strong> contra a coisa (em algumas hipó-<br />

teses). Ao contrapormos com o delito de<br />

resistência, verificamos o emprego <strong>da</strong><br />

7 Jesus, Damásio E. de. Direito Penal, 22a Ed., São Paulo: Saraiva, v. I, Parte Geral, 1999.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

violência em ambos, mas com finali<strong>da</strong>-<br />

des diferentes, pois, neste último ela é<br />

utiliza<strong>da</strong> para contrariar a prática de ato<br />

legal, e no primeiro para que o me<strong>do</strong> eive<br />

os sentimentos <strong>da</strong> pessoa e esta entregue<br />

a coisa <strong>ao</strong> agente.<br />

O problema surge quan<strong>do</strong> a resistência<br />

é emprega<strong>da</strong> após a consumação <strong>do</strong> roubo.<br />

Seria esta um des<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> nexo de<br />

causali<strong>da</strong>de ou um delito autônomo?<br />

Os defensores <strong>da</strong> primeira teoria en-<br />

tendem que há um des<strong>do</strong>bramento no uso<br />

<strong>da</strong> violência, com esta resistência se <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

para manter a posse <strong>da</strong> coisa e não autono-<br />

mamente, com a resistência sen<strong>do</strong> absorvi-<br />

<strong>da</strong> pelo roubo, pois foi meio para o fim.<br />

Nos ensina Damásio E. de Jesus que:<br />

“Ocorre a relação consuntiva, ou de ab-<br />

sorção, quan<strong>do</strong> um fato defini<strong>do</strong> por uma<br />

norma incrimina<strong>do</strong>ra é meio necessário<br />

ou normal fase de preparação ou execu-<br />

ção de outro crime, bem como quan<strong>do</strong><br />

constitui conduta anterior ou posterior<br />

<strong>do</strong> agente, cometi<strong>da</strong> com a mesma finali-<br />

<strong>da</strong>de prática atinente àquele crime.” 7 O<br />

mais grave vai absorver to<strong>do</strong>s os crimes<br />

que ocorreram antes <strong>do</strong> mais grave, du-<br />

rante o Iter Criminis.<br />

Há entendimento no senti<strong>do</strong> de que<br />

“a resistência oposta pelo agente de roubo<br />

<strong>ao</strong>s policiais que, o ten<strong>do</strong> surpreendi<strong>do</strong> em<br />

plena execução desse crime, passaram a<br />

persegui-lo, constitui mero des<strong>do</strong>bramento<br />

<strong>da</strong> violência emprega<strong>da</strong> para a violação<br />

patrimonial, e, conseqüentemente, o delito<br />

<strong>do</strong> art. 329 fica absorvi<strong>do</strong> pelo <strong>do</strong> art. 157,<br />

<strong>do</strong> CP, em virtude <strong>do</strong> concurso aparente<br />

165


166<br />

O CRIME DE ROUBO SEGUIDO DO CRIME DE RESISTÊNCIA:<br />

ABSORÇÃO OU DESÍGNIOS AUTÔNOMOS?<br />

dessas duas normas, só aplicável, entretan-<br />

to, à hipótese de tentativa” (TACrimSP, RT<br />

704/358 e TACRimSP, JTACRIM 67/344),<br />

sen<strong>do</strong> certo que a “resistência subseqüente<br />

a roubo, mormente o impróprio previsto<br />

no art. 157, § 1º, CP, é des<strong>do</strong>bramento <strong>da</strong><br />

violência, caracteriza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> delito inicial,<br />

não merecen<strong>do</strong>, assim apenação (NÃO É<br />

A PENAÇÃO?) autônoma” (JTACRIM<br />

58/275).<br />

A outra corrente, a qual entendemos<br />

ser correta, defende que há um des<strong>do</strong>bra-<br />

mento no nexo de causali<strong>da</strong>de, uma vez<br />

que a inversão <strong>da</strong> posse se operou com o<br />

agente empregan<strong>do</strong> a violência ou grave<br />

ameaça contra autori<strong>da</strong>de, com vistas a<br />

manter a sua posse, mas primordialmente<br />

para a manutenção <strong>do</strong> status libertatis, que<br />

se encontra em vias de ser perdi<strong>do</strong> com a<br />

sua prisão em flagrante delito.<br />

O des<strong>do</strong>bramento ocorre porque a vio-<br />

lência visa evitar a autuação em flagrância<br />

delitiva e a manutenção <strong>da</strong> coisa, e não<br />

como no roubo, onde se objetiva a obten-<br />

ção <strong>da</strong> posse. Com a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> posse<br />

em suas mãos, ocorren<strong>do</strong> após a subtração<br />

e a violência posterior contra a imposição<br />

policial, denota o dúplice caráter <strong>da</strong> vio-<br />

lência utiliza<strong>da</strong> e o cúmulo <strong>da</strong>s penas, nos<br />

termos <strong>do</strong> art. 69, <strong>do</strong> Código Penal.<br />

Esse entendimento tem si<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />

em diversas decisões <strong>do</strong> egrégio Tribunal<br />

de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo, onde<br />

se tem ressalta<strong>do</strong> que “a violência empre-<br />

ga<strong>da</strong> pelo assaltante para resistir à prisão<br />

não se confunde com a utiliza<strong>da</strong> para a<br />

prática <strong>do</strong> roubo, configuran<strong>do</strong>-se, pois,<br />

o delito <strong>do</strong> art. 329, § 1º, <strong>do</strong> CP e justifi-<br />

can<strong>do</strong> a aplicação de penas cumulativas”<br />

(RT 560/352). Em acórdão <strong>do</strong> egrégio<br />

Tribunal de Alça<strong>da</strong> Criminal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

de São Paulo ficou consigna<strong>do</strong> que “se a<br />

ação <strong>do</strong> infrator, resistin<strong>do</strong> à interven-<br />

ção <strong>da</strong> polícia, teve lugar muito tempo<br />

depois <strong>da</strong> subtração <strong>da</strong> res, quan<strong>do</strong> com<br />

ela procurava fugir, evitan<strong>do</strong> sua prisão,<br />

configura<strong>do</strong> resulta o delito <strong>do</strong> art. 329<br />

<strong>do</strong> CP” (RT 577/389).<br />

Conclusão<br />

A absorção <strong>do</strong> crime de resistência, <strong>ao</strong><br />

nosso ver, não se opera aqui porque são<br />

lesa<strong>da</strong>s duas objetivi<strong>da</strong>des jurídicas dis-<br />

tintas, a saber: a administração pública e<br />

o patrimônio; em momentos diferentes e<br />

por razões diversas, embora seqüenciais<br />

no tempo. Assim, entendemos que haven-<br />

<strong>do</strong> resistência de molde a configurar a<br />

conduta típica, após o crime de roubo, a<br />

questão jurídica proposta se resolve pela<br />

regra <strong>do</strong> concurso de crimes, segun<strong>do</strong> a<br />

regra <strong>do</strong> cúmulo material (art. 69 <strong>do</strong> Có-<br />

digo Penal), in<strong>do</strong> além <strong>do</strong> permiti<strong>do</strong> no<br />

art. 329, § 2º, <strong>do</strong> Código Penal.<br />

Renato Flávio Marcão é membro <strong>do</strong> Mi-<br />

nistério Público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo;<br />

mestre em Direito Penal, coordena<strong>do</strong>r<br />

Cultural <strong>da</strong> Escola Superior <strong>do</strong> Ministério<br />

Público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo - Núcleo<br />

de São José <strong>do</strong> Rio Preto-SP e membro <strong>da</strong><br />

Associação Internacional de Direito Penal<br />

(AIDP).<br />

Flávio Augusto Maretti Siqueira é aluno<br />

<strong>do</strong> Curso de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Ribeirão Preto (UNAERP) e presidente<br />

<strong>do</strong> Instituto de Estu<strong>do</strong>s de Direito Penal e<br />

Processo Penal (IEDPP) <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de.


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Pra<strong>do</strong>, Luiz Régis. Curso de Direito Penal brasileiro, 3ª ed., São Paulo: Revista <strong>do</strong>s<br />

Tribunais, vol. IV, 2001.<br />

Siqueira, Flávio Augusto Maretti. O Funcionário Público visto pelo Direito Direito<br />

Penal (artigo). www.direitonet.com.br. Dezembro/2002. Dezembro/2002.<br />

167


Agência Esta<strong>do</strong>


Só se pode<br />

falar em<br />

inclusão porque<br />

há a exclusão;<br />

só se fala<br />

de excluí<strong>do</strong>s<br />

porque há<br />

aqueles que<br />

não o são, os<br />

ditos incluí<strong>do</strong>s.<br />

Inclusão<br />

A inclusão social tem si<strong>do</strong> um tema<br />

amplamente debati<strong>do</strong> e estu<strong>da</strong><strong>do</strong> sob as<br />

mais diversas óticas, geralmente contra-<br />

posto à noção de exclusão social e en-<br />

tendi<strong>do</strong> como um direito. O discurso <strong>da</strong><br />

inclusão social tem permea<strong>do</strong> as falas de<br />

profissionais, pesquisa<strong>do</strong>res, trabalha<strong>do</strong>-<br />

res <strong>da</strong>s mais diversas áreas, geralmente<br />

coloca<strong>da</strong> como forma de trabalho ou<br />

como meta.<br />

Mas a discussão sobre a inclusão<br />

toca em aspectos muito mais complexos:<br />

envolve pensar quem é esse outro a ser<br />

incluí<strong>do</strong> e que espaço ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s atores<br />

desta situação acredita que este outro<br />

deve ocupar. Por isso, é essencial pensar<br />

no conceito de inclusão (e conseqüente-<br />

mente de exclusão), sem o que fica muito<br />

difícil compreender o porquê <strong>da</strong>s difi-<br />

cul<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>s resistências e <strong>do</strong>s sucessos<br />

desse processo.<br />

A exclusão vem sen<strong>do</strong> coloca<strong>da</strong> como<br />

a grande vilã em contraponto à inclusão,<br />

esta ti<strong>da</strong> como a solução para os proble-<br />

Celina Camargo Bartalotti<br />

mas <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s. As coisas<br />

não são assim tão simples.<br />

Existe realmente exclusão? Será que<br />

essa polarização acontece, como se hou-<br />

vessem <strong>do</strong>is espaços distintos, incompa-<br />

tíveis: o <strong>da</strong> inclusão e o <strong>da</strong> exclusão, o <strong>do</strong><br />

bem e o <strong>do</strong> mal, o que apontaria para a<br />

meta de aban<strong>do</strong>nar o espaço <strong>da</strong> exclusão<br />

e alcançar a tão almeja<strong>da</strong> inclusão social?<br />

Segun<strong>do</strong> Sawaia (1999: 105),<br />

“... ambas não constituem categorias em<br />

si, cujo significa<strong>do</strong> é <strong>da</strong><strong>do</strong> por quali<strong>da</strong>des<br />

específicas, invariantes, conti<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong><br />

um <strong>do</strong>s termos, mas são <strong>da</strong> mesma subs-<br />

tância e formam um par indissociável,<br />

que se constitui na própria relação. A<br />

dinâmica entre elas demonstra a capaci-<br />

<strong>da</strong>de de uma socie<strong>da</strong>de existir como um<br />

sistema”.<br />

Só se pode falar em inclusão porque<br />

há a exclusão; só se fala de excluí<strong>do</strong>s<br />

porque há aqueles que não o são, os ditos<br />

incluí<strong>do</strong>s.<br />

Social<br />

A Inclusão Social <strong>da</strong> Pessoa com Deficiência<br />

e o Papel <strong>da</strong> Terapia Ocupacional<br />

169


170<br />

A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />

E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />

Mas, segun<strong>do</strong> Martins (1999) a exclu-<br />

são, de fato, não existe. O que existe são<br />

inclusões precárias, marginais, instáveis.<br />

O fato de alguém estar excluí<strong>do</strong> de algum<br />

espaço significa que não pertence a este,<br />

mas pertence a algum outro, no qual se<br />

inclui. Continua Martins (1999: 27) afir-<br />

man<strong>do</strong> que:<br />

“O discurso corrente sobre a exclusão é<br />

basicamente produto de um equívoco, de<br />

uma fetichização conceitual <strong>da</strong> exclusão,<br />

a exclusão transforma<strong>da</strong> numa palavra<br />

mágica que explicaria tu<strong>do</strong>.”<br />

Existem, portanto, formas de inclu-<br />

são, locais sociais defini<strong>do</strong>s. O movimen-<br />

to <strong>da</strong> inclusão social, na ver<strong>da</strong>de, é uma<br />

proposta de mu<strong>da</strong>nça de lugar social - ti-<br />

rar (ou desencluir) alguém de um espaço<br />

e incluí-lo em outro. Isso pode desestru-<br />

turar tanto o lugar de onde se tira, como<br />

o lugar no qual se coloca. É um processo<br />

que envolve um rearranjo, em última<br />

instância, <strong>da</strong>s relações entre as pessoas.<br />

Esse pensamento nos leva a um dis-<br />

tanciamento <strong>da</strong>s análises sociológicas,<br />

obrigan<strong>do</strong> à busca de um olhar sobre<br />

os sujeitos constituintes <strong>da</strong>s relações<br />

inclusivas/exclusivas, conforme propõe<br />

Jodelet (1999: 53):<br />

“A noção de exclusão, bastante polissêmi-<br />

ca, compreende fenômenos tão varia<strong>do</strong>s<br />

que nós podemos nos perguntar até onde<br />

se justifica falar ou tratar de exclusão em<br />

geral, o que suporia juntar to<strong>do</strong>s os pro-<br />

cessos que ela implica ou to<strong>da</strong>s as formas<br />

que ela toma em uma mesma alterna-<br />

tiva. Até onde é legítimo ligar exclusão<br />

<strong>ao</strong> racismo, <strong>ao</strong> desemprego, <strong>ao</strong>s conflitos<br />

internacionais ou ain<strong>da</strong> a um esta<strong>do</strong> de<br />

incapaci<strong>da</strong>de física ou mental, etc? Há<br />

pelo menos um nível onde a abor<strong>da</strong>gem<br />

única <strong>da</strong> exclusão pode fazer senti<strong>do</strong>: o<br />

nível <strong>da</strong>s interações entre pessoas e entre<br />

grupos, que dela são agentes ou vítimas.”<br />

A inclusão social é, portanto, um con-<br />

ceito bastante abrangente, que implica<br />

multideterminações, que sempre envol-<br />

vem a interação de intersubjetivi<strong>da</strong>des e<br />

sujeitos que partilham uma determina<strong>da</strong><br />

situação.<br />

Falar em inclusão social implica falar<br />

em democratização <strong>do</strong>s espaços sociais,<br />

em crença na diversi<strong>da</strong>de como valor,<br />

na socie<strong>da</strong>de para to<strong>do</strong>s. Incluir não é<br />

apenas colocar junto e, principalmente,<br />

não é negar a diferença, mas respeitá-la<br />

como constitutiva <strong>do</strong> humano. O valor<br />

- positivo ou negativo - que se atribui à<br />

diferença é algo construí<strong>do</strong> nas relações<br />

humanas. O vetor <strong>da</strong> exclusão/inclusão<br />

não está, portanto, na diferença em si,<br />

mas no valor a ela atribuí<strong>do</strong>.<br />

Os discursos inclusivistas têm si<strong>do</strong><br />

acompanha<strong>do</strong>s de sentimentos contradi-<br />

tórios: muitos o consideram utópico; ou-<br />

tros, inadequa<strong>do</strong>. Muitos <strong>do</strong> que defen-<br />

dem a inclusão, geralmente de maneira<br />

apaixona<strong>da</strong>, tendem a ser intransigentes<br />

- incluir já, incluir to<strong>do</strong>s! A reação?<br />

Me<strong>do</strong>, desconfiança. Como é possível<br />

que estes que, até ontem necessitavam de<br />

espaços especiais, de profissionais treina-<br />

<strong>do</strong>s especificamente para os atender, pos-<br />

sam hoje partilhar, em pé de igual<strong>da</strong>de,<br />

os mesmo espaços destina<strong>do</strong>s <strong>ao</strong>s “não<br />

diferentes”? Não eram, até ontem, neces-<br />

sários méto<strong>do</strong>s e estratégias específicas<br />

para eles? Isso acabou?<br />

Falar em<br />

inclusão<br />

social implica<br />

falar em<br />

democratização<br />

<strong>do</strong>s espaços<br />

sociais, em<br />

crença na<br />

diversi<strong>da</strong>de<br />

como valor, na<br />

socie<strong>da</strong>de para<br />

to<strong>do</strong>s.


O me<strong>do</strong> é fruto, muitas vezes, <strong>do</strong> des-<br />

conhecimento. Outras vezes, <strong>da</strong> própria<br />

experiência (que pode ser a <strong>do</strong> fracasso,<br />

a <strong>da</strong> sensação de incapaci<strong>da</strong>de para li<strong>da</strong>r<br />

com algo). Na área <strong>da</strong> educação temos<br />

muitos exemplos disso:<br />

“Os professores <strong>da</strong>s turmas de educação<br />

regular consideravam os professores que<br />

trabalhavam nas turmas de educação<br />

especial como detentores de uma prepara-<br />

ção especial e de uma habili<strong>da</strong>de especial<br />

para o trabalho. Eram uma raça à parte,<br />

e era visto como inadequa<strong>do</strong> esperar que<br />

professores que não tivessem esse preparo<br />

e inclinação participassem <strong>da</strong> educação de<br />

alunos em cadeiras de ro<strong>da</strong>s e alunos com<br />

dificul<strong>da</strong>de de aprendizagem.” (Stainback<br />

e Stainback, 1999: 38)<br />

Profissionais especiais para pessoas<br />

especiais. Olhar o diferente (no caso a<br />

pessoa com deficiência) de longe, de uma<br />

distância segura, parece criar uma mís-<br />

tica em torno de seu acompanhamento,<br />

como se aqueles que se dedicassem a<br />

este trabalho fossem possui<strong>do</strong>res de al-<br />

gum <strong>do</strong>m, habili<strong>da</strong>de especial. É muito<br />

comum na experiência cotidiana ouvir-<br />

mos falas <strong>do</strong> tipo: trabalhar com essas<br />

crianças exige muita paciência, é muito<br />

difícil, vocês certamente são pessoas es-<br />

peciais. Mais <strong>do</strong> que o preparo especiali-<br />

za<strong>do</strong>, parece haver um imaginário de que<br />

é preciso ser diferente para li<strong>da</strong>r com o<br />

diferente.<br />

Nesta discussão, é preciso considerar<br />

que o discurso inclusivista, como vem<br />

sen<strong>do</strong> coloca<strong>do</strong> (inclusive na legislação<br />

atual), é recente. Segun<strong>do</strong> Sassaki (1998),<br />

embora o chama<strong>do</strong> movimento <strong>da</strong> inclu-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

são social tenha se inicia<strong>do</strong> na segun<strong>da</strong><br />

metade <strong>do</strong>s anos 80, foi apenas na déca<strong>da</strong><br />

de 90 que tomou impulso, embora as<br />

idéias inclusivistas já viessem, há muito<br />

tempo, perpassan<strong>do</strong> várias propostas re-<br />

ferentes <strong>ao</strong>s chama<strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s.<br />

Mas, na ver<strong>da</strong>de, a diferença vem<br />

sen<strong>do</strong>, historicamente, considera<strong>da</strong> como<br />

um problema, como uma <strong>do</strong>ença. As pes-<br />

soas com deficiência têm uma história<br />

de segregação, seja em espaços asilares,<br />

seja em espaços chama<strong>do</strong>s especializa-<br />

<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> seu atendimento. Trata<strong>do</strong>s como<br />

<strong>do</strong>entes, as ações destina<strong>da</strong>s a essas pes-<br />

soas, a partir de concepções higienistas,<br />

tratam de isola-las. Consideramos esta<br />

uma forma que a socie<strong>da</strong>de encontra de<br />

não defrontar-se com a diferença, com o<br />

estranho.<br />

Segun<strong>do</strong> Amaral (1995), o confronto<br />

com a diferença causa uma hegemonia <strong>do</strong><br />

emocional sobre o racional. Negar, não<br />

a diferença, mas o diferente é, de certa<br />

forma, confortável, pois não nos obriga<br />

a qualquer transformação. A diferença<br />

(no caso desse artigo, a deficiência) apa-<br />

rece coloca<strong>da</strong> como algo que não nos diz<br />

respeito, algo que pertence <strong>ao</strong> espaço <strong>do</strong><br />

outro, entenden<strong>do</strong> o outro não no senti<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, mas <strong>do</strong> estranho, <strong>do</strong> que<br />

causa incômo<strong>do</strong>. Assim, isola-lo em espa-<br />

ços que, confortavelmente, se apresenta-<br />

riam como “mais adequa<strong>do</strong>s”, de alguma<br />

forma, exime a socie<strong>da</strong>de de enfrentar a<br />

contradição essencial de seu caráter ex-<br />

cludente.<br />

Mas vamos continuar nosso caminho<br />

no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> compreensão <strong>do</strong>s conceitos<br />

inclusivistas. Estes surgiram a partir <strong>do</strong>s<br />

chama<strong>do</strong>s conceitos pré-inclusivistas.<br />

171


172<br />

A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />

E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />

No que se refere à deficiência em geral,<br />

ain<strong>da</strong> pre<strong>do</strong>mina o modelo médico, que,<br />

como já dissemos, a vê como patologia,<br />

como um problema <strong>do</strong> indivíduo, que<br />

deve ser trata<strong>do</strong>. Encaran<strong>do</strong>-se a defici-<br />

ência como patologia, as diferenças que<br />

este indivíduo apresenta, em relação a<br />

um padrão considera<strong>do</strong> normal, são ava-<br />

lia<strong>da</strong>s como sintomas que precisam ser<br />

trata<strong>do</strong>s para que a diferença seja supe-<br />

ra<strong>da</strong>. Deste modelo deriva a maioria <strong>do</strong>s<br />

conheci<strong>do</strong>s trabalhos de reabilitação que,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, investem na tentati-<br />

va de “minimizar” a diferença para que<br />

estas pessoas possam ser aceitas na so-<br />

cie<strong>da</strong>de. Este processo se dá, geralmente,<br />

de maneira segrega<strong>da</strong>, nas instituições<br />

especializa<strong>da</strong>s.<br />

Segun<strong>do</strong> Sassaki (1998:29),<br />

“...o modelo médico tem si<strong>do</strong> responsável,<br />

em parte, pela resistência <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

em aceitar a necessi<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>r suas<br />

estruturas e atitudes para incluir em seu<br />

seio as pessoas porta<strong>do</strong>ras de deficiência<br />

e/ou outras condições atípicas para que<br />

estas possam, aí sim, buscar o seu desen-<br />

volvimento pessoal, social, profissional.”<br />

É bastante comum acreditar-se que<br />

estas pessoas são muito diferentes e, por<br />

isso, exigem formas muito especiais de<br />

serem trata<strong>da</strong>s. Espera-se então que, após<br />

a reabilitação, o indivíduo (reabilita<strong>do</strong>)<br />

esteja pronto para assumir seu lugar na<br />

socie<strong>da</strong>de. Este seria o momento <strong>da</strong> In-<br />

tegração Social. O que a prática mostra<br />

é que raramente esta integração se efe-<br />

tiva, até porque as pessoas não deixam<br />

de ser deficientes, ou seja, não “saram”;<br />

a diferença se mantém, embora muitas<br />

vezes mascara<strong>da</strong> por desempenhos mais<br />

próximos <strong>ao</strong> considera<strong>do</strong> normal. Assim,<br />

nunca estão prontas para se a<strong>da</strong>ptar to-<br />

talmente à socie<strong>da</strong>de ou para nela com-<br />

petir em pé de igual<strong>da</strong>de.<br />

O princípio, então, é o de que, se não<br />

é possível integrar as pessoas à socie<strong>da</strong>-<br />

de, “socie<strong>da</strong>des” o mais possível pare-<br />

ci<strong>da</strong>s com a socie<strong>da</strong>de real precisam ser<br />

cria<strong>da</strong>s para que, nelas, as pessoas com<br />

deficiência tenham experiências de vi<strong>da</strong><br />

o mais “normais” possíveis - temos aí as<br />

oficinas abriga<strong>da</strong>s, as colônias-residên-<br />

cia, etc. Estas propostas têm como base<br />

<strong>do</strong>is princípios fun<strong>da</strong>mentais: primeiro,<br />

o de que as situações protegi<strong>da</strong>s são mais<br />

adequa<strong>da</strong>s para estas pessoas, em ter-<br />

mos de seu desenvolvimento, na medi<strong>da</strong><br />

em que podem receber as intervenções<br />

específicas necessárias. O segun<strong>do</strong> (que<br />

considero o mais perverso), é o de que a<br />

situação segrega<strong>da</strong> seria protetora para a<br />

própria pessoa com deficiência, pois esta<br />

se sentiria infeliz em uma socie<strong>da</strong>de na<br />

qual não pode competir em pé de igual-<br />

<strong>da</strong>de. Ou seja, esta postura trata a defi-<br />

ciência como patologia, e como algo que<br />

diminui o indivíduo e de que ele deve se<br />

envergonhar. Entre pares, to<strong>do</strong>s iguais na<br />

desigual<strong>da</strong>de, não haveria razão para so-<br />

frimento: ninguém se sentiria diminuí<strong>do</strong>.<br />

No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 80, buscou-se<br />

um avanço na idéia de integração. É a época<br />

<strong>do</strong> Mainstreaming, <strong>da</strong>s tentativas de envol-<br />

ver essas pessoas (principalmente crianças<br />

em i<strong>da</strong>de escolar) na corrente principal <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> maneira que fosse possível,<br />

seja em sala de aula com os demais alunos,<br />

seja juntos na hora <strong>do</strong> recreio, seja em ativi-<br />

<strong>da</strong>des extra-curriculares etc.


A inclusão é,<br />

portanto, uma<br />

proposta de<br />

construção de<br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

“O movimento denomina<strong>do</strong> mainstre-<br />

aming, cujo objetivo é a<strong>da</strong>ptar o aluno de-<br />

ficiente às classes comuns, preconiza que o<br />

professor procure realçar as semelhanças<br />

entre as crianças deficientes e as normais,<br />

minimizan<strong>do</strong> as diferenças entre elas.”<br />

(Raiça e Oliveira, 1990: 5)<br />

Essa idéia, que poderia promover<br />

uma prática mais próxima de um pro-<br />

cesso de desinstitucionalização, não<br />

discute as mu<strong>da</strong>nças que devem ocorrer<br />

na socie<strong>da</strong>de para receber estas pessoas.<br />

Elas eram, em princípio, inseri<strong>da</strong>s nas<br />

ativi<strong>da</strong>des que lhes era possível partici-<br />

par, com o discurso contraditório de se<br />

minimizar as diferenças, mas, <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo, com a prática de acentuá-las,<br />

pois estas eram decisivas para determi-<br />

nar onde e quan<strong>do</strong> essas pessoas esta-<br />

riam inseri<strong>da</strong>s junto com os demais.<br />

Nesse movimento - o <strong>do</strong> mainstrea-<br />

ming - a noção de integração encontra-<br />

se ain<strong>da</strong> muito liga<strong>da</strong> às competências<br />

particulares, dependente <strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong>-<br />

des individuais para enfrentar as de-<br />

man<strong>da</strong>s <strong>do</strong> meio. Fala-se <strong>do</strong> deficiente<br />

‘capacita<strong>do</strong> para’, de mo<strong>do</strong> que se pode<br />

dizer que o modelo médico de deficiên-<br />

cia continua imperan<strong>do</strong>.<br />

A tentativa de avançar no processo<br />

de construção de uma socie<strong>da</strong>de que<br />

respeite a diversi<strong>da</strong>de firma o movimen-<br />

to de Inclusão Social. Seu princípio<br />

básico é o de que a vi<strong>da</strong> humana é reple-<br />

ta de diferenças, e que estas devem ser<br />

encara<strong>da</strong>s como naturais, no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

diversi<strong>da</strong>de. Conforme aponta Melero<br />

(1999):<br />

“El discurso de la cultura de la diver-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

si<strong>da</strong>d es el discurso de la legitimi<strong>da</strong>d de<br />

la otra y del otro como ver<strong>da</strong>dera otra y<br />

otro; es decir es el reconocimiento de la<br />

identi<strong>da</strong>d personal y de la emancipaci-<br />

ón de las personas excepcionales. Es la<br />

lucha contra cualquier manifestación de<br />

segregación y no la búsque<strong>da</strong> de medios y<br />

recursos para integrarse en un mun<strong>do</strong> que<br />

le es hostil. No es la persona excepcional<br />

la culpable de su situación, sino nosotros.<br />

No son las personas excepcionales los que<br />

tienen que cambiar, sino la socie<strong>da</strong>d en-<br />

tera. No se trata de educar a las personas<br />

excepcionales juntas a los no excepciona-<br />

les, sino de combatir con to<strong>da</strong>s nuestras<br />

fuerzas la segregación institucional. No se<br />

trata de aprenderse las reglas del juego,<br />

sino la de construir un nuevo juego. Si no<br />

se entiende esto dificilmente se puede re-<br />

conducir la naturaleza del “problema” de<br />

las culturas minoritarias.”<br />

A base <strong>do</strong> paradigma inclusivista<br />

é, portanto, a crença na socie<strong>da</strong>de para<br />

to<strong>do</strong>s; não cabe somente <strong>ao</strong>s indivíduos<br />

se integrar à socie<strong>da</strong>de: é preciso que<br />

ela também se transforme para acolher<br />

to<strong>do</strong>s os seus ci<strong>da</strong>dãos. A inclusão é,<br />

portanto, uma proposta de construção<br />

de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

Fica claro, conseqüentemente, que<br />

a inclusão social é um processo de mão<br />

dupla, ou seja, tanto a pessoa com de-<br />

ficiência como a socie<strong>da</strong>de precisam<br />

se modificar. Conforme coloca Sassaki<br />

(1998: 41-42),<br />

“A prática <strong>da</strong> inclusão repousa em prin-<br />

cípios até então considera<strong>do</strong>s incomuns,<br />

tais como: a aceitação <strong>da</strong>s diferenças<br />

individuais, a valorização de ca<strong>da</strong> pes-<br />

173


174<br />

A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />

E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />

soa, a convivência dentro <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />

humana, a aprendizagem através <strong>da</strong> coo-<br />

peração.”<br />

Três conceitos inclusivistas são<br />

fun<strong>da</strong>mentais para que se compreen<strong>da</strong><br />

este processo que significa, em última<br />

instância, permitir à pessoa com defici-<br />

ência recuperar o poder sobre a própria<br />

vi<strong>da</strong>: autonomia, independência e empo-<br />

werment. 1<br />

A autonomia refere-se <strong>ao</strong> que se po-<br />

deria chamar de prontidão física, cogni-<br />

tiva e/ou social que a pessoa com defici-<br />

ência tem em um determina<strong>do</strong> ambiente,<br />

por exemplo para locomover-se, para<br />

realizar determina<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de escolar,<br />

profissional, etc.<br />

A independência é a capaci<strong>da</strong>de de<br />

tomar decisões, sem depender de outras<br />

pessoas. A independência e a autonomia<br />

estão relaciona<strong>da</strong>s, mas não são total-<br />

mente interdependentes. Por exemplo,<br />

uma pessoa pode não ter plena autono-<br />

mia para realizar alguma ativi<strong>da</strong>de, mas<br />

ter independência para decidir se neces-<br />

sita de aju<strong>da</strong> e de qual tipo.<br />

O empowerment é um conceito in-<br />

terdependente <strong>ao</strong> de independência, uma<br />

vez que diz respeito <strong>ao</strong> uso que a pessoa<br />

com deficiência faz de seu poder pessoal<br />

de toma<strong>da</strong> de decisões.<br />

“... definiremos empowerment como um<br />

processo de reconhecimento, criação e<br />

utilização de recursos e instrumentos<br />

pelos indivíduos, grupo e comuni<strong>da</strong>des,<br />

em si mesmo e no meio envolvente, que se<br />

traduz num acréscimo de poder - psicoló-<br />

gico, sócio-cultural, político e econômico<br />

- que permite <strong>ao</strong>s sujeitos aumentar a<br />

eficácia <strong>do</strong> exercício de sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.”<br />

(Pinto, 1998).<br />

Diz-se de uma pessoa que faz uso de<br />

seu poder pessoal de escolha, que é uma<br />

pessoa “empodera<strong>da</strong>”, que tem controle<br />

sobre sua própria vi<strong>da</strong>. É o que chama-<br />

mos de autodeterminação, possibili<strong>da</strong>de<br />

de ação que pode se manifestar em vários<br />

níveis, <strong>ao</strong> longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> sujeito.<br />

É em busca dessa autodeterminação<br />

que as pessoas com deficiência vêm lu-<br />

tan<strong>do</strong> pelo direito à inclusão social que,<br />

em última instância, representa o direito<br />

de ocupar, na socie<strong>da</strong>de, o espaço que<br />

lhes pertence, como ci<strong>da</strong>dãos.<br />

Ten<strong>do</strong> a compreensão sobre os con-<br />

ceitos básicos que norteiam o movimen-<br />

to pela inclusão social <strong>da</strong>s pessoas com<br />

deficiências, passaremos agora a abor-<br />

<strong>da</strong>r o papel <strong>da</strong> terapia ocupacional nesse<br />

processo.<br />

A terapia ocupacional é uma profis-<br />

são <strong>da</strong> área de saúde, que tem como ob-<br />

jeto de estu<strong>do</strong> a ação humana, entendi<strong>da</strong><br />

como to<strong>do</strong> o fazer <strong>do</strong> homem em sua vi<strong>da</strong><br />

cotidiana. A partir desta compreensão e<br />

<strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s condições (físicas, psicoló-<br />

gicas, sociais) que podem afetar esse fa-<br />

zer, o terapeuta ocupacional intervem, no<br />

senti<strong>do</strong> de aju<strong>da</strong>r aquele que se lhe apre-<br />

senta como cliente, a encontrar (ou reen-<br />

1 Segun<strong>do</strong> Sassaki (1998:39), o termo inglês empowerment foi manti<strong>do</strong> sem tradução porque ele já está consagra<strong>do</strong> na comuni<strong>da</strong>de empresarial e entre<br />

os ativistas de vi<strong>da</strong> independente. Mas têm havi<strong>do</strong> tentativas no senti<strong>do</strong> de traduzi-lo como ‘emponderamento’, ‘fortalecimento’, ‘potencialização’ e até<br />

‘energização’.


contrar) seu lugar social, como ser ativo<br />

e <strong>do</strong>no de sua vi<strong>da</strong>, ten<strong>do</strong> como metas a<br />

quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> e a inclusão social.<br />

Por ser o fazer humano seu objeto de<br />

estu<strong>do</strong>, é também este fazer o seu ins-<br />

trumento de trabalho. É através <strong>da</strong> ação,<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de, que terapeuta e cliente<br />

constroem os caminhos <strong>do</strong> processo te-<br />

rapêutico.<br />

A terapia ocupacional, historicamen-<br />

te volta<strong>da</strong> <strong>ao</strong> estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> ação humana, é,<br />

conseqüentemente, uma profissão dire-<br />

tamente comprometi<strong>da</strong> com a luta pela<br />

inclusão social de to<strong>do</strong>s aqueles que, de<br />

uma forma ou de outra, encontram-se<br />

coloca<strong>do</strong>s em lugares considera<strong>do</strong>s de<br />

exclusão.<br />

Retoman<strong>do</strong> a discussão realiza<strong>da</strong> so-<br />

bre integração/ inclusão social, podemos<br />

afirmar que a terapia ocupacional tem<br />

aqui um papel primordial. Sua ação não<br />

se limita à intervenção junto à pessoa<br />

com deficiência, mas, conforme os prin-<br />

cípios inclusivistas, estende-se <strong>ao</strong> meio<br />

social <strong>ao</strong> qual pertence esta pessoa. Atuar<br />

como parceiro em processos de inclusão<br />

escolar, inclusão em creches, inclusão<br />

no ambiente de trabalho, em espaços co-<br />

munitários, de lazer etc., tem si<strong>do</strong> parte<br />

integrante, e muitas vezes central, no<br />

trabalho <strong>do</strong> terapeuta ocupacional junto<br />

a esta população.<br />

O que queremos, aqui, deixar claro<br />

é que uma ação que se volte à inclusão<br />

social não pode se basear em inter-<br />

venções que se voltem, única e exclu-<br />

sivamente, a minimizar os possíveis<br />

déficits decorrentes <strong>da</strong> deficiência.<br />

Isso seria uma reafirmação <strong>do</strong> modelo<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

médico, conceben<strong>do</strong> a deficiência como<br />

um problema unicamente localiza<strong>do</strong><br />

no sujeito. É preciso que se aborde o<br />

caráter social <strong>da</strong> deficiência, ou seja,<br />

as conseqüências sociais desta, que são<br />

considera<strong>do</strong>s os fatores mais agravan-<br />

tes, mais excludentes.<br />

A proposta <strong>da</strong> Organização Mun-<br />

dial <strong>da</strong> Saúde é bastante útil para que<br />

se compreen<strong>da</strong> o que chamamos de um<br />

“caráter social” <strong>da</strong> deficiência. Esta<br />

classificação propõe três níveis: a defi-<br />

ciência, que seria a per<strong>da</strong> ou alteração<br />

estrutural, a incapaci<strong>da</strong>de, que se refe-<br />

re às alterações funcionais decorrentes<br />

<strong>da</strong> deficiência e, finalmente, a desvan-<br />

tagem, que aponta para os obstáculos<br />

sociais impostos à pessoa deficiente. Ao<br />

falar em “caráter social” <strong>da</strong> deficiência<br />

navegamos no seio <strong>da</strong> desvantagem, ou<br />

seja, naquilo que está além <strong>da</strong> alteração<br />

orgânica e <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des funcionais.<br />

Estamos falan<strong>do</strong> de obstáculos sociais,<br />

de falta de oportuni<strong>da</strong>des, de interven-<br />

ções basea<strong>da</strong>s em preconceitos e estere-<br />

ótipos.<br />

O modelo médico de deficiência foca<br />

sua atuação no campo <strong>da</strong> incapaci<strong>da</strong>de,<br />

com o objetivo de reabilitação. O mo-<br />

delo social de deficiência, proposto no<br />

paradigma inclusivista, foca sua atenção<br />

também, e talvez principalmente, na<br />

desvantagem. Isso quer dizer encarar a<br />

deficiência não como “<strong>do</strong>ença” <strong>do</strong> indi-<br />

víduo que deve ser trata<strong>da</strong> em busca de<br />

uma improvável “cura”, mas como con-<br />

dição que, em grande parte socialmente<br />

determina<strong>da</strong>, deve ser enfrenta<strong>da</strong> nos<br />

meios sociais que a geraram.<br />

175


176<br />

A INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA<br />

E O PAPEL DA TERAPIA OCUPACIONAL<br />

É a partir dessa concepção que a te-<br />

rapia ocupacional vem construin<strong>do</strong> suas<br />

ações, por um la<strong>do</strong> aprimoran<strong>do</strong> pro-<br />

fun<strong>da</strong>mente as técnicas de intervenção<br />

específica nas incapaci<strong>da</strong>des decorrentes<br />

<strong>da</strong> deficiência, através de abor<strong>da</strong>gens de<br />

reabilitação, tecnologia assistiva etc. e,<br />

por outro, voltan<strong>do</strong> suas ações, ca<strong>da</strong> vez<br />

mais, para um sujeito inseri<strong>do</strong> em um<br />

contexto social, que tem o seu cotidiano<br />

altera<strong>do</strong> pela deficiência e que, para que<br />

possa reconstruir esse cotidiano, necessi-<br />

ta que sua comuni<strong>da</strong>de em particular e a<br />

socie<strong>da</strong>de em geral se transformem para<br />

acolhe-lo. Assim, as intervenções de cará-<br />

ter social, junto às famílias, <strong>ao</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>-<br />

res e à socie<strong>da</strong>de são focos essenciais <strong>da</strong><br />

atuação profissional.<br />

Concluin<strong>do</strong>, é fun<strong>da</strong>mental que se<br />

possa ter clareza de que a inclusão social<br />

é um processo irreversível. Não se pode<br />

mais tolerar uma socie<strong>da</strong>de que conviva<br />

com a desigual<strong>da</strong>de e que, mais que isso,<br />

utilize conceitos pseu<strong>do</strong>-científicos para<br />

justifica-la. Se pretendemos viver em<br />

uma socie<strong>da</strong>de realmente democrática, é<br />

preciso que nos conscientizemos de que<br />

ca<strong>da</strong> um é um agente de transformação,<br />

e que to<strong>do</strong>s, sem exceção, têm direito a<br />

fazer parte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Celina Camargo Bartalotti é terapeuta<br />

ocupacional, mestre e <strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> em<br />

Psicologia <strong>da</strong> Educação pela PUC/SP, as-<br />

sessora <strong>do</strong> Núcleo de Educação Inclusiva<br />

<strong>da</strong> Secretaria <strong>da</strong> Educação <strong>do</strong> Município<br />

de Guarulhos, Assessora Científica <strong>da</strong><br />

LACE - Núcleo de Ações para a Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>-<br />

nia na Diversi<strong>da</strong>de; Professora <strong>do</strong>s cursos<br />

de Terapia Ocupacional e Pe<strong>da</strong>gogia <strong>do</strong><br />

Centro Universitário São Camilo. Uni-<br />

termos: Deficiência, Inclusão, Terapia<br />

Ocupacional.


Referências Bibliográficas<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

AMARAL, Ligia Assumpção. Conhecen<strong>do</strong> a deficiência (em companhia de Hércules).<br />

São Paulo: Robe, 1995.<br />

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Artimanhas <strong>da</strong> Exclusão - Análise Psicossocial e Ética <strong>da</strong> Desigual<strong>da</strong>de Social. São Paulo:<br />

Vozes, 1999. 156 p.<br />

MARTINS, José de Souza. Exclusão Social e a Nova Desigual<strong>da</strong>de. São Paulo: Paulus,<br />

1997. 140 p.<br />

MELERO, Miguel López. La educación intercultural: la diferencia como va-<br />

lor. Universi<strong>da</strong>de de Málaga - Espanha. Disponível em: www.ecof.br/projetos/<strong>do</strong>wn/<br />

index.html / . Acesso em: 20.out.1999.<br />

PINTO, Carla. Política Social. Lisboa, 1998. Apostila<strong>do</strong>.<br />

RAIÇA, Darcy e OLIVEIRA, Maria T. B. A educação especial <strong>do</strong> deficiente mental.<br />

São Paulo: E.P.U., 1990. 53 p. (Temas Básicos de Educação e Ensino).<br />

SASSAKI, Romeu K. Inclusão: construin<strong>do</strong> uma socie<strong>da</strong>de para to<strong>do</strong>s. Rio de<br />

Janeiro: WVA, 1997. 174 p.<br />

STAINBACK, S. e STAINBACK, W. Inclusão: um guia para educa<strong>do</strong>res. Porto Alegre:<br />

Artes Médicas, 1999. 451 p.<br />

SAWAIA, B. O Sofrimento Ético-Político como Categoria de Análise <strong>da</strong> Dialética<br />

Exclusão/Inclusão. In: SAWAIA, B. (org.). As Artimanhas <strong>da</strong> Exclusão - Análise Psicosso-<br />

cial e Ética <strong>da</strong> Desigual<strong>da</strong>de Social. São Paulo: Vozes, 1999. 156 p.<br />

177


Arquivo<br />

Arquivo Como Órgão de Justiça<br />

e de Cultura<br />

Para compreender qual a lógica que rege<br />

o funcionamento <strong>do</strong>s arquivos, através de<br />

seus procedimentos de produção, guar<strong>da</strong><br />

e circulação de <strong>do</strong>cumentos públicos,<br />

consideramos como váli<strong>da</strong> a hipótese de<br />

uma tradição ibérica/mediterrânea 2 que<br />

influenciaria os “processos de produção<br />

de ver<strong>da</strong>de”, <strong>ao</strong>s quais corresponderiam<br />

estratégias e atitudes considera<strong>da</strong>s<br />

eficazes e legítimas na consecução<br />

de seus objetivos. Segun<strong>do</strong> Kant de<br />

Lima (1991), essas características se<br />

manifestam tanto nas práticas jurídicas,<br />

quanto nas práticas acadêmicas e, por<br />

que não dizer, no sistema burocrático<br />

brasileiro 3.<br />

Desse mo<strong>do</strong>, julgo que é interessante<br />

observar a posição <strong>do</strong>s arquivos<br />

públicos <strong>do</strong> Rio de Janeiro na estrutura<br />

burocrática. O Arquivo Nacional está<br />

Ana Paula Mendes de Miran<strong>da</strong><br />

1 Este artigo é parte <strong>do</strong> trabalho classifica<strong>do</strong> em 3º lugar no 1° Concurso de Monografias sobre Informação e Documentação Jurídica <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />

Tema: “ Informação Jurídica – O que se pensa é o que se faz ? “, promovi<strong>do</strong> pelo Centro de Estu<strong>do</strong>s Jurídicos <strong>da</strong> Procura<strong>do</strong>ria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio<br />

de Janeiro, em 1997.<br />

2 Sobre a tradição ibérica ver Braudel (1988) e Peristiany (1988).<br />

3 Ver Miran<strong>da</strong> (1993), Miran<strong>da</strong> & Mouzinho (1996), e Pinto (1993).<br />

Público<br />

Um Segre<strong>do</strong> Bem Guar<strong>da</strong><strong>do</strong> 1 ?<br />

subordina<strong>do</strong> <strong>ao</strong> Ministério <strong>da</strong> Justiça,<br />

já o Arquivo Estadual <strong>do</strong> Rio de Janeiro<br />

está subordina<strong>do</strong> à Secretaria de Justiça,<br />

enquanto que o Arquivo Municipal <strong>do</strong><br />

Rio de Janeiro relaciona-se à Secretaria<br />

de Cultura. A ambigüi<strong>da</strong>de entre a<br />

importância <strong>do</strong> atributo histórico (como<br />

um valor cultural) e o atributo jurídico<br />

(o valor de prova) <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos<br />

está refleti<strong>da</strong> nessa divisão burocrática<br />

que classifica uma mesma instituição<br />

em níveis distintos de hierarquia,<br />

utilizan<strong>do</strong>-se de <strong>do</strong>is critérios<br />

considera<strong>do</strong>s igualmente váli<strong>do</strong>s.<br />

Portanto, não causa nenhuma estranheza<br />

que o arquivo público ora esteja atrela<strong>do</strong><br />

às instituições judiciárias, ora seja liga<strong>do</strong><br />

às instituições culturais.<br />

Atualmente, nos deparamos com uma<br />

nova concepção de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, segun<strong>do</strong> a<br />

179


180<br />

ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />

qual o indivíduo é um sujeito social ativo<br />

que define quais são os seus direitos e<br />

luta para que sejam reconheci<strong>do</strong>s. Esse<br />

novo papel <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão forçou a socie<strong>da</strong>de<br />

e as instituições públicas a repensarem<br />

as suas funções, obrigan<strong>do</strong>-as a conviver<br />

com uma maior deman<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s serviços<br />

por elas presta<strong>do</strong>s.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, o arquivo passou a ter<br />

um papel de destaque para a compro-<br />

vação de direitos mediante o acesso <strong>ao</strong>s<br />

<strong>do</strong>cumentos armazena<strong>do</strong>s. Frente a esse<br />

novo quadro, pode-se tentar explicar a<br />

dificul<strong>da</strong>de que os arquivos têm encon-<br />

tra<strong>do</strong> em divulgar seu acervo, apesar de<br />

já existirem atualmente profissionais<br />

preocupa<strong>do</strong>s em fazê-lo.<br />

Porém, é bom ressaltar que tanto no<br />

arquivo, quanto em museus e bibliotecas<br />

públicas, ain<strong>da</strong> existem profissionais que<br />

acham que os respectivos acervos não<br />

deveriam ser expostos <strong>ao</strong> público, visto<br />

que a exposição sempre representa riscos<br />

<strong>ao</strong> acervo. Para eles o mais importante é<br />

ter estes registros bem guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s, a fim<br />

de que continuem existin<strong>do</strong>, mesmo que<br />

jamais sejam vistos por ninguém.<br />

De acor<strong>do</strong> com Marilena Leite Paes,<br />

o “museu é a instituição de interesse<br />

público, cria<strong>da</strong> com a finali<strong>da</strong>de de con-<br />

servar, estu<strong>da</strong>r e colocar à disposição<br />

<strong>do</strong> público conjuntos de peças e objetos<br />

de valor cultural”, e a “biblioteca é o<br />

conjunto de material, em sua maioria<br />

impresso, disposto ordena<strong>da</strong>mente para<br />

estu<strong>do</strong>, pesquisa e consulta” (1991: 1-2).<br />

A autora opõe as duas instituições <strong>ao</strong><br />

arquivo alegan<strong>do</strong> que a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

mesmas é “cultural”, enquanto o arquivo<br />

teria objetivos funcionais, ou seja, sua<br />

finali<strong>da</strong>de seria a de servir à administra-<br />

ção, tal qual um cartório.<br />

Embora este fato não seja nega<strong>do</strong>,<br />

esta postura vem sen<strong>do</strong> contesta<strong>da</strong> por<br />

funcionários que alegam que os acervos<br />

<strong>do</strong>s arquivos também possuem valor<br />

“cultural”, e não apenas valor adminis-<br />

trativo. Esta mu<strong>da</strong>nça tem altera<strong>do</strong> tam-<br />

bém o mo<strong>do</strong> pelo qual esses funcionários<br />

representam as suas funções, levan<strong>do</strong>-os<br />

a um questionamento sobre suas prá-<br />

ticas, ten<strong>do</strong> em vista uma preocupação<br />

maior com o público, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> um<br />

pouco o perfil <strong>do</strong> “funcionário burocráti-<br />

co” <strong>da</strong> administração pública.<br />

O segre<strong>do</strong> e a “política <strong>do</strong><br />

sigilo”<br />

Pelos motivos aponta<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> longo <strong>do</strong><br />

texto, não podemos atribuir a não di-<br />

vulgação <strong>do</strong>s fatos apenas a uma ques-<br />

tão de responsabili<strong>da</strong>de pessoal <strong>do</strong>s<br />

funcionários, posto que vivem sob uma<br />

tradição 4 , que <strong>ao</strong> garantir a perpetuação<br />

de certos hábitos reproduz a “política<br />

<strong>do</strong> sigilo”, cuja característica principal<br />

é a expressão de um certo temor: os <strong>do</strong>-<br />

cumentos públicos quan<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s<br />

podem significar uma censura a uma má<br />

administração. Segun<strong>do</strong> José Honório<br />

Rodrigues, a “política <strong>do</strong> sigilo” (1989:<br />

13) é uma velha tradição portuguesa que<br />

pretende esconder e sonegar os <strong>do</strong>cu-<br />

4 O conceito de tradição é entendi<strong>do</strong> aqui como um determina<strong>do</strong> “padrão”, oculto, produzi<strong>do</strong> e reproduzi<strong>do</strong> por um grupo através de suas práticas.


O temor pela<br />

existência de<br />

restrições e<br />

pela existência<br />

de <strong>do</strong>cumentos<br />

sigilosos está<br />

relaciona<strong>do</strong> a<br />

nossa tradição<br />

inquisitorial.<br />

mentos, independentemente <strong>do</strong> tempo já<br />

decorri<strong>do</strong>.<br />

Além <strong>do</strong> prazo fixa<strong>do</strong> pela lei, ou<br />

pela vontade <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão no caso de<br />

<strong>do</strong>cumentos particulares, existe um ou-<br />

tro aspecto a ser destaca<strong>do</strong> no acesso à<br />

informação que está relaciona<strong>do</strong> a essa<br />

“política <strong>do</strong> sigilo”, uma tradição oral<br />

que ensinou às sucessivas gerações de<br />

arquivistas que “certos” <strong>do</strong>cumentos<br />

não deveriam ser abertos <strong>ao</strong> público, e<br />

que os critérios utiliza<strong>do</strong>s para a seleção<br />

destes <strong>do</strong>cumentos não deveriam ser<br />

explicita<strong>do</strong>s.<br />

O temor pela existência de restrições<br />

e pela existência de <strong>do</strong>cumentos sigi-<br />

losos está relaciona<strong>do</strong> a nossa tradição<br />

inquisitorial (Kant de Lima, 1992), onde<br />

investigações sigilosas precediam às<br />

acusações públicas durante os procedi-<br />

mentos judiciais. Conseqüentemente, o<br />

que era sigiloso sempre poderia deixar<br />

de ser. Essa rela-tivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sigilo na<br />

socie<strong>da</strong>de brasileira continua presente<br />

até hoje, conforme podemos verificar na<br />

nova legislação acerca <strong>da</strong> questão arqui-<br />

vística, mais precisamente no art. 24 <strong>da</strong><br />

Lei 8.159/91: “Poderá o Poder Judiciá-<br />

rio, em qualquer instância, determinar<br />

a exibição reserva<strong>da</strong> de qualquer <strong>do</strong>cu-<br />

mento sigiloso, sempre que indispensá-<br />

vel à defesa de direito próprio ou escla-<br />

recimento de situação social de parte”<br />

(grifos meus).<br />

Ou seja, não há uma efetiva garantia<br />

de que os <strong>do</strong>cumentos são realmente<br />

sigilosos. De acor<strong>do</strong> com a lei, o sigilo<br />

pode ser quebra<strong>do</strong> pelo Poder Judiciá-<br />

rio, poden<strong>do</strong> ser usa<strong>do</strong> para a “defesa <strong>do</strong><br />

ci<strong>da</strong>dão”, mas não há nenhuma garantia<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

que os <strong>do</strong>cumentos sigilosos não possam<br />

ser usa<strong>do</strong>s contra o ci<strong>da</strong>dão.<br />

As categorias <strong>do</strong> sigilo que servirão<br />

para a classificação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos pú-<br />

blicos não foram fixa<strong>da</strong>s, pois dependem<br />

<strong>da</strong> regulamentação <strong>da</strong> Lei de Arquivos,<br />

o que ain<strong>da</strong> não aconteceu. Assim, na<br />

falta destas definições, os critérios uti-<br />

liza<strong>do</strong>s para os procedimentos classifi-<br />

catórios dependem exclusivamente <strong>do</strong>s<br />

regulamentos internos <strong>da</strong>s instituições<br />

e/ou <strong>da</strong> vontade de seus dirigentes, a<br />

quem cabe o poder de julgar, segun<strong>do</strong><br />

critérios pessoais, o direito de acesso à<br />

informação.<br />

Também merece destaque o fato de<br />

que as “práticas de tratamento <strong>do</strong>cu-<br />

mental” não constituem apenas um mé-<br />

to<strong>do</strong> de “armazenamento de <strong>da</strong><strong>do</strong>s”, na<br />

reali<strong>da</strong>de são um poderoso mecanismo<br />

de controle, à medi<strong>da</strong> que não tornam<br />

universalmente acessíveis os acervos sob<br />

sua guar<strong>da</strong>. Os mecanismos utiliza<strong>do</strong>s<br />

para tal fim são varia<strong>do</strong>s, vão desde a<br />

não explicitação <strong>da</strong>s restrições e <strong>do</strong>s cri-<br />

térios classificatórios <strong>da</strong> <strong>do</strong>cumentação<br />

até a acumulação desordena<strong>da</strong>.<br />

O segre<strong>do</strong> como mecanismo<br />

de controle<br />

O controle <strong>do</strong> acesso à organização quan-<br />

<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong> pela existência <strong>do</strong> segre<strong>do</strong>,<br />

entendi<strong>do</strong> tal como Scheppele o definiu,<br />

como a parte <strong>da</strong> informação que é inten-<br />

cionalmente sonega<strong>da</strong> por um ou mais<br />

atores sociais <strong>do</strong>s demais, transforma o<br />

segre<strong>do</strong> em um mecanismo que, devi<strong>do</strong><br />

a sua significação simbólica, serve de<br />

base para a construção de identi<strong>da</strong>des<br />

181


182<br />

ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />

pessoais e/ou coletivas. O segre<strong>do</strong>, <strong>ao</strong> ser<br />

compartilha<strong>do</strong> e individualiza<strong>do</strong>, cria no<br />

meio social a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autonomia<br />

individual, porém para<strong>do</strong>xalmente serve<br />

também de base para o desenvolvimento<br />

<strong>do</strong> poder, que por sua vez controla essa<br />

autonomia.<br />

Tradicionalmente, o segre<strong>do</strong> foi estu-<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong> pela teoria antropológica relaciona-<br />

<strong>do</strong> a fenômenos religiosos, cujo enfoque<br />

estava volta<strong>do</strong> para o entendimento <strong>do</strong><br />

papel <strong>do</strong>s conhecimentos secretos em<br />

socie<strong>da</strong>des secretas e em rituais iniciató-<br />

rios. Porém, o enfoque que preten<strong>do</strong> de-<br />

senvolver aqui é o <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> como parte<br />

inerente à vi<strong>da</strong> quotidiana, o qual para<br />

Piot tem um papel fun<strong>da</strong>mental na ne-<br />

gociação <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s e nos tipos in-<br />

diretos de comunicação, que constituem<br />

o cotidiano <strong>da</strong>s relações sociais. Deste<br />

mo<strong>do</strong>, o segre<strong>do</strong> também está relaciona-<br />

<strong>do</strong> às noções de vergonha, de hierarquia<br />

e de igual<strong>da</strong>de, e <strong>ao</strong>s respectivos contex-<br />

tos nos quais se materializam.<br />

O uso <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> como técnica so-<br />

ciológica, como forma de ação, que se<br />

mantém neutra acima <strong>do</strong>s valores de seus<br />

conteú<strong>do</strong>s, sem o qual não se poderia<br />

atingir alguns fins, fica claro quan<strong>do</strong> este<br />

produz um sentimento de proprie<strong>da</strong>de<br />

exclusiva, resultante <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />

que outros não tenham essa coisa possu-<br />

í<strong>da</strong>. Para Simmel, esta atitude é fun<strong>da</strong>-<br />

menta<strong>da</strong> pela necessi<strong>da</strong>de que o homem<br />

tem de manter a diferença, de não dese-<br />

jar a igual<strong>da</strong>de. O segre<strong>do</strong> funciona como<br />

elemento diferencia<strong>do</strong>r porque é capaz<br />

de criar posições excepcionais, exercen<strong>do</strong><br />

uma atração social determina<strong>da</strong> inde-<br />

pendente de seu conteú<strong>do</strong>, agin<strong>do</strong> então<br />

como um elemento individualiza<strong>do</strong>r.<br />

Simmel analisou o segre<strong>do</strong> ten<strong>do</strong><br />

como referência as socie<strong>da</strong>des individu-<br />

alistas 5, nas quais a idéia de indivíduo<br />

aparece como uma construção histórica,<br />

não universal, relaciona<strong>da</strong> às dinâmicas<br />

<strong>do</strong>s conflitos origina<strong>do</strong>s pelo desenvolvi-<br />

mento <strong>do</strong> capitalismo. Nesse contexto, o<br />

segre<strong>do</strong> é visto como o elemento produ-<br />

tor de identi<strong>da</strong>des, através <strong>do</strong> estabeleci-<br />

mento de direitos individuais, tais como<br />

o direito à privaci<strong>da</strong>de. Porém, segre<strong>do</strong><br />

e privaci<strong>da</strong>de representam enti<strong>da</strong>des<br />

diferentes, o primeiro representa a infor-<br />

mação sonega<strong>da</strong> intencionalmente, que<br />

reforça uma relação de poder, enquanto<br />

a privaci<strong>da</strong>de representa a possibili<strong>da</strong>de<br />

de autonomia <strong>do</strong>s indivíduos.<br />

Ao analisarmos o papel <strong>do</strong> segre<strong>do</strong><br />

na socie<strong>da</strong>de brasileira nos defrontamos<br />

com sua relação em uma socie<strong>da</strong>de hie-<br />

rárquica e complementar, onde o segre<strong>do</strong><br />

é uma forma legítima de produção de<br />

poder que, no entanto gera exclusão e<br />

desigual<strong>da</strong>de, fazen<strong>do</strong> com que algumas<br />

pessoas tenham acesso a tu<strong>do</strong>, enquanto<br />

as outras que ficam à margem necessitem<br />

descobrir meios de participar <strong>da</strong> sociali-<br />

zação <strong>da</strong> informação, nem sempre sen<strong>do</strong><br />

bem sucedi<strong>da</strong>s.<br />

5 Sobre a oposição entre socie<strong>da</strong>des individualistas e hierárquicas ver Da Matta (1983) e Dumont (1985).<br />

Kant de Lima ressalta ain<strong>da</strong> que a<br />

própria idéia de igual<strong>da</strong>de tem signifi-<br />

ca<strong>do</strong>s distintos em socie<strong>da</strong>des hierár-<br />

quicas e em socie<strong>da</strong>des individualistas.


A mentira é<br />

a forma mais<br />

sofistica<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

segre<strong>do</strong>, pois<br />

envolve a sua<br />

sonegação e<br />

a substituição<br />

por uma outra<br />

informação.<br />

No primeiro tipo, ela se fun<strong>da</strong>menta na<br />

semelhança, ou seja, os indivíduos são<br />

iguais porque são semelhantes, já no<br />

segun<strong>do</strong> é fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na diferença,<br />

deste mo<strong>do</strong> os indivíduos são iguais por-<br />

que são diferentes.<br />

A significação sociológica <strong>do</strong> segre<strong>do</strong><br />

se manifesta através de sua realização, ou<br />

seja, sua importância prática revela-se na<br />

capaci<strong>da</strong>de ou inclinação <strong>do</strong> sujeito para<br />

guardá-lo, ou na sua resistência frente à<br />

tentação de traí-lo. A revelação <strong>do</strong> segre-<br />

<strong>do</strong> faz com que o sujeito fique vulnerável<br />

em seu conhecimento, e por isso passível<br />

de manipulação. Segun<strong>do</strong> Kim Schepelle<br />

as defesas <strong>do</strong> segre<strong>do</strong>, diferentemente<br />

<strong>da</strong>s defesas físicas, nunca podem ser<br />

reconstituí<strong>da</strong>s, posto que um segre<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />

ser revela<strong>do</strong> jamais pode ser manti<strong>do</strong>. O<br />

para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> é que ele para ter<br />

senti<strong>do</strong>, deve ser revela<strong>do</strong>.<br />

A existência <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> serve para<br />

mostrar o mo<strong>do</strong> pelo qual a informação é<br />

compartilha<strong>da</strong> em um contexto e restrita<br />

a outros, explicitan<strong>do</strong>, assim, as diferen-<br />

ças nos tipos de relações sociais, fazen<strong>do</strong><br />

ver quem é “o nós” e quem são “os ou-<br />

tros”. O segre<strong>do</strong> possibilita a existência<br />

de um mun<strong>do</strong> distinto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> aparen-<br />

te, o que cria um campo de ambigüi<strong>da</strong>de<br />

e, conseqüentemente, de interpretações<br />

conflitivas sobre a reali<strong>da</strong>de, forçan<strong>do</strong> a<br />

negociação <strong>da</strong>s posições sociais.<br />

A diferenciação social origina<strong>da</strong> pela<br />

obtenção de um conhecimento priva<strong>do</strong><br />

traz o prestígio, entendi<strong>do</strong> como a atri-<br />

buição de uma competência a alguém<br />

6 Sobre a escrita ver Goody (1986) e Rama (1985).<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

por outros sujeitos. O prestígio pode se<br />

transformar em poder na medi<strong>da</strong> em que<br />

a pessoa consiga manipular os signos<br />

que o representam, de mo<strong>do</strong> a construir<br />

um conjunto de significa<strong>do</strong>s, através <strong>do</strong>s<br />

quais atue sobre a reali<strong>da</strong>de, crian<strong>do</strong> um<br />

código <strong>ao</strong> qual somente ela tem acesso.<br />

A estratificação <strong>do</strong>s que podem, ou<br />

não, ter acesso à informação (o segre<strong>do</strong>)<br />

expõe a mentira como o mecanismo uti-<br />

liza<strong>do</strong> para preservação de uma possível<br />

revelação. Como diz Kim Schepelle, a<br />

mentira é a forma mais sofistica<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

segre<strong>do</strong>, pois envolve a sua sonegação e a<br />

substituição por uma outra informação.<br />

O <strong>do</strong>cumento escrito é por essên-<br />

cia oposto a tu<strong>do</strong> que é secreto, porém<br />

conforme o mo<strong>do</strong> pelo qual as socie<strong>da</strong>-<br />

des controlam o acesso à escrita 6 , esta<br />

também pode fortalecer a existência<br />

<strong>do</strong> segre<strong>do</strong>. É isso que se verifica na<br />

socie<strong>da</strong>de brasileira onde o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong><br />

palavra escrita atua como um patrimô-<br />

nio priva<strong>do</strong>, e quem a possui tem a pos-<br />

sibili<strong>da</strong>de de conhecer a ver<strong>da</strong>de, que<br />

confere autori<strong>da</strong>de a quem a possuir.<br />

Esses fatos expressam o mo<strong>do</strong> como a<br />

hierarquia é concebi<strong>da</strong> e experimenta<strong>da</strong><br />

em nossa socie<strong>da</strong>de, de mo<strong>do</strong> que o co-<br />

nhecimento leva à ver<strong>da</strong>de, por sua vez<br />

a ver<strong>da</strong>de confere autori<strong>da</strong>de e poder a<br />

quem a possuir.<br />

O segre<strong>do</strong> possui um duplo caráter: é<br />

uma forma de controle social, pois dá po-<br />

der a quem o possui, e <strong>ao</strong> mesmo tempo<br />

representa a possibili<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nça,<br />

pois à medi<strong>da</strong> que pode ser revela<strong>do</strong>, cria<br />

183


184<br />

ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />

novas relações de poder e conhecimento 7 .<br />

A importância <strong>do</strong> arquivo enquanto<br />

“fornece<strong>do</strong>r de provas” é fun<strong>da</strong>mental<br />

para o entendimento dessa “política <strong>do</strong><br />

sigilo” pois, por serem secretas, as pro-<br />

vas constituem um patrimônio que está<br />

sen<strong>do</strong> sempre negocia<strong>do</strong> numa relação de<br />

troca 8 entre a socie<strong>da</strong>de e o arquivo.<br />

Sen<strong>do</strong> o arquivo a instituição à qual<br />

se atribuiu a função, efetiva e simbólica,<br />

de guar<strong>da</strong>r os <strong>do</strong>cumentos, e ten<strong>do</strong> em<br />

vista o papel que o segre<strong>do</strong> exerce na<br />

socie<strong>da</strong>de – ser o elemento diferencia-<br />

<strong>do</strong>r – compreende-se o porquê de certas<br />

práticas apropriativas e manipula<strong>do</strong>ras<br />

persistirem, apesar de um discurso mo-<br />

derno e democrático a favor <strong>do</strong> direito à<br />

informação. Por ter o poder de controlar<br />

a revelação <strong>do</strong>s fatos, o arquivo reforça o<br />

seu papel de instituição <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> na es-<br />

trutura social, legitima<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> conheci-<br />

mento como algo esotérico, onde somente<br />

os “inicia<strong>do</strong>s” podem ter o direito à ver-<br />

<strong>da</strong>de, que confere poder e autori<strong>da</strong>de a<br />

quem possuí-la.<br />

Do c<strong>ao</strong>s à ordem: o segre<strong>do</strong><br />

revela<strong>do</strong><br />

Neste artigo procurei desenvolver algu-<br />

mas questões que pudessem contribuir<br />

para a compreensão de como os arquivos<br />

públicos tratam de seus acervos. Uma<br />

primeira conclusão alcança<strong>da</strong> é a de que<br />

no Brasil não existem regras públicas e<br />

claras de acesso, podemos dizer que não<br />

existe uma “política de consulta”, assim<br />

ca<strong>da</strong> arquivo é “independente”, orien-<br />

tan<strong>do</strong>-se apenas pelos critérios pessoais<br />

de um diretor temporário, que chega <strong>ao</strong><br />

cargo através de uma nomeação, o que<br />

deixa a instituição vulnerável <strong>ao</strong>s seus<br />

projetos pessoais, que nem sempre têm<br />

como prioritário o interesse <strong>do</strong> próprio<br />

arquivo e <strong>do</strong> público.<br />

A não existência de uma “política<br />

de consulta” dificulta a obtenção <strong>da</strong><br />

informação deseja<strong>da</strong>, o que provoca no<br />

usuário <strong>do</strong>is tipos de sentimento: a des-<br />

confiança, pois não crê que seja possível<br />

encontrar alguma coisa no meio “<strong>da</strong>quela<br />

confusão de papel”; e o alívio, ou surpre-<br />

sa, <strong>ao</strong> constatar que os <strong>do</strong>cumentos exis-<br />

tem, estão guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s e são acessíveis.<br />

Quan<strong>do</strong> a isso se acrescenta uma tra-<br />

dição inquisitorial, segun<strong>do</strong> a qual a sus-<br />

peição rege as relações fazen<strong>do</strong> com que<br />

o suspeito seja culpa<strong>do</strong> até que se prove<br />

o contrário, aumenta-se a dificul<strong>da</strong>de<br />

na obtenção <strong>da</strong>s informações deseja<strong>da</strong>s,<br />

pois o usuário é muitas vezes visto com<br />

desconfiança. Como diz Cláudia Heyne-<br />

mann, “no Brasil, os <strong>do</strong>cumentos públicos<br />

e as pessoas que por eles se interessam são<br />

suspeitos” (1989: 77).<br />

Por outro la<strong>do</strong>, a instituição também<br />

não é considera<strong>da</strong> pelos usuários muito con-<br />

fiável, pois pode estar “train<strong>do</strong>” a sua con-<br />

fiança <strong>ao</strong> não lhes fornecer o que procuram.<br />

O que foi confirma<strong>do</strong> por um funcionário:<br />

“nem sempre se pode confiar nas respostas<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s sobre um <strong>do</strong>cumento que não foi<br />

7 Kim Schepelle chama a atenção que tanto no Direito quanto na Medicina o poder é basea<strong>do</strong> no controle e na sonegação <strong>da</strong> informação, aqueles que detêm<br />

o conhecimento o controlam de mo<strong>do</strong> a excluir os outros <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de acesso <strong>ao</strong> mesmo.<br />

8 Sobre as relações de troca ver Mauss (1974).<br />

Por ter o poder<br />

de controlar<br />

a revelação<br />

<strong>do</strong>s fatos, o<br />

arquivo reforça<br />

o seu papel<br />

de instituição<br />

<strong>do</strong> segre<strong>do</strong><br />

na estrutura<br />

social.


encontra<strong>do</strong>, às vezes se diz que ele está<br />

na restauração, mas na ver<strong>da</strong>de ele está<br />

desapareci<strong>do</strong>”.<br />

Se analisarmos a atual Lei de Arqui-<br />

vos veremos que os direitos <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão<br />

de acesso às informações estão formal-<br />

mente resguar<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Porém, como res-<br />

salta Wanderley Guilherme <strong>do</strong>s Santos, o<br />

mero reconhecimento <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia não assegura uma parti-<br />

cipação justa na distribuição de bens e<br />

valores sociais. De mo<strong>do</strong> que o maior<br />

obstáculo <strong>ao</strong> acesso é a desorganização<br />

<strong>do</strong>s acervos, que desempenha um papel<br />

fun<strong>da</strong>mental à medi<strong>da</strong> que impede a<br />

obtenção <strong>da</strong> informação, como disse um<br />

entrevista<strong>do</strong>:<br />

“a maior parte <strong>da</strong> <strong>do</strong>cumentação produ-<br />

zi<strong>da</strong> é ostensiva, não é sigilosa, a dificul-<br />

<strong>da</strong>de <strong>do</strong> acesso está na sua organização<br />

e a falta de uma política de gestão, pois<br />

a informação não organiza<strong>da</strong> não serve<br />

para na<strong>da</strong>, a informação armazena<strong>da</strong> é<br />

imprestável”.<br />

Assim sen<strong>do</strong>, pode-se afirmar que a<br />

falta de uma organização real <strong>do</strong>s arqui-<br />

vos é a causa <strong>da</strong> transformação <strong>do</strong> ma-<br />

terial preserva<strong>do</strong> em sigiloso, à medi<strong>da</strong><br />

que só possibilita o seu acesso <strong>ao</strong>s poucos<br />

que conseguem compreender a sua lógica<br />

de funcionamento, tal qual a biblioteca<br />

descrita por Umberto Eco em seu livro O<br />

nome <strong>da</strong> rosa.<br />

Somente a efetiva discussão sobre<br />

essa questão poderá ocasionar uma mu-<br />

<strong>da</strong>nça nesses procedimentos, visan<strong>do</strong> re-<br />

pensar a forma como construímos a nossa<br />

memória, a nossa identi<strong>da</strong>de e nossa ci-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Para Michel Pollak, a memória<br />

tem como função interferir no processo<br />

de construção <strong>da</strong>s representações indivi-<br />

duais e coletivas, permitin<strong>do</strong> a relação <strong>do</strong><br />

presente com o passa<strong>do</strong>. Portanto:<br />

“a construção <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de é um fenôme-<br />

no que se produz em referência a outros,<br />

em referência <strong>ao</strong>s critérios de aceitabili<strong>da</strong>-<br />

de, de credibili<strong>da</strong>de, e que se faz por meio<br />

<strong>da</strong> negociação direta com outros. (...) a<br />

memória e a identi<strong>da</strong>de são valores dispu-<br />

ta<strong>do</strong>s em conflitos sociais e intergrupais”<br />

(1992: 204-205).<br />

A per<strong>da</strong> progressiva <strong>da</strong> memória<br />

equivale à per<strong>da</strong> progressiva <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>-<br />

de, quan<strong>do</strong> a memória social é reduzi<strong>da</strong>,<br />

anula<strong>da</strong> ou abafa<strong>da</strong>, a socie<strong>da</strong>de perde<br />

a habili<strong>da</strong>de de conservar sua própria<br />

história. A identi<strong>da</strong>de se extravia e as<br />

pessoas perdem a capaci<strong>da</strong>de de exercer<br />

seu papel na coletivi<strong>da</strong>de, de exercer a<br />

sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. A existência de uma me-<br />

mória viva é fun<strong>da</strong>mental <strong>ao</strong>s processos<br />

de construção de identi<strong>da</strong>de e ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,<br />

<strong>da</strong>í a importância de “instituições-me-<br />

mória” eficientes e confiáveis.<br />

Esses fatos reiteram a importância <strong>da</strong><br />

preservação <strong>do</strong> acervo estar vincula<strong>da</strong> à<br />

possibili<strong>da</strong>de de acesso <strong>do</strong> público às ins-<br />

tituições, de tal mo<strong>do</strong> que os obstáculos<br />

administrativos e/ou corporativos sejam<br />

supera<strong>do</strong>s, evitan<strong>do</strong>-se a concentração<br />

de poder decisório nas mãos de uns pou-<br />

cos. De mo<strong>do</strong> que esse acesso deve ser<br />

assegura<strong>do</strong> pela existência de critérios<br />

explícitos e publicamente conheci<strong>do</strong>s,<br />

que constituem o princípio fun<strong>da</strong>mental<br />

necessário à garantia <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de<br />

<strong>do</strong>s direitos.<br />

185


186<br />

ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?<br />

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187


Pelourinho,<br />

centro histórico<br />

de Salva<strong>do</strong>r.<br />

Bahia, Brasil.<br />

Uma nova Justiça para um Novo Tempo<br />

O XVIII Congresso Brasileiro de Magistra<strong>do</strong>s passou para a história como o maior evento já<br />

promovi<strong>do</strong> pela magistratura nacional. Mais de três mil pessoas participaram, em Salva<strong>do</strong>r, <strong>da</strong>s<br />

discussões sobre “Uma Nova Justiça Para um Novo Tempo”, o tema central <strong>do</strong> encontro, que se<br />

realizou entre os dias 22 e 25 de outubro, no Centro de Convenções <strong>da</strong> Bahia. Nas próximas pá-<br />

ginas, a íntegra de algumas <strong>da</strong>s palestras proferi<strong>da</strong>s durante o Congresso.


Jorge Car<strong>do</strong>so / CBPress


Quem é o Escravo, Quem Escraviza e o que Liberta 1 Trabalho<br />

Escravo<br />

.<br />

Antes de iniciar o que venho dizer aqui<br />

hoje, quero aproveitar a oportuni<strong>da</strong>de<br />

para agradecer à <strong>AMB</strong>, ANAMATRA,<br />

AMATRA VIII, TST, OIT e CPT, pelo<br />

apoio e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de que me prestaram em<br />

momento difícil ocasiona<strong>do</strong> por situação<br />

de grave risco à minha integri<strong>da</strong>de física<br />

em decorrência <strong>do</strong> efetivo combate <strong>ao</strong><br />

trabalho escravo em nosso País. Pelo<br />

mesmo motivo quero também fazer<br />

menção especial <strong>ao</strong> TRT <strong>da</strong> 8ª Região,<br />

que deu solução <strong>ao</strong> impasse, embora meu<br />

afastamento <strong>da</strong> jurisdição, certamente,<br />

tenha representa<strong>do</strong> retrocesso na luta<br />

contra a prática escravagista, não por causa<br />

<strong>do</strong> meu empenho pessoal decorrente <strong>do</strong><br />

exercício <strong>da</strong> jurisdição, mas porque tal<br />

situação sinalizou <strong>ao</strong> crime organiza<strong>do</strong> a<br />

incapaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Brasileiro frente<br />

<strong>ao</strong>s grandes desafios a serem enfrenta<strong>do</strong>s<br />

Jorge Antonio Ramos Vieira 2<br />

no combate a tais organizações, nefastas<br />

<strong>ao</strong>s direitos sociais e que se mostram<br />

recalcitrantes em relação à efetivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />

direitos humanos em nosso País, seja na<br />

ci<strong>da</strong>de, seja no campo.<br />

Como disse em nota oficial, divulga<strong>da</strong><br />

pela imprensa e pelas Associações<br />

Nacionais, os escravagistas <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Pará<br />

estão “rin<strong>do</strong> à toa” e, penhora<strong>da</strong>mente,<br />

agradecem pela omissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que<br />

não consegue <strong>da</strong>r proteção <strong>ao</strong>s seus<br />

próprios Agentes Políticos, que, como eu,<br />

sonharam sonho possível, e trabalharam,<br />

arriscan<strong>do</strong> a própria vi<strong>da</strong>, por acreditarem,<br />

ingenuamente até, em política pública que<br />

visa a erradicação <strong>do</strong> trabalho escravo no<br />

Brasil e que ontem (22/10/2003), mais uma<br />

vez, foi lança<strong>da</strong> nacionalmente, em Brasília,<br />

soleni<strong>da</strong>de para qual fui convi<strong>da</strong><strong>do</strong>, mas<br />

de cujo honroso convite resolvi declinar,<br />

1 Palestra proferi<strong>da</strong> no XVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE MAGISTRADOS, Salva<strong>do</strong>r/BA, 23/10/2003 - 1° Painel: Trabalho Escravo.<br />

Parte <strong>do</strong> tema (Quem escraviza) foi abor<strong>da</strong><strong>do</strong> pelo painelista na 3ª Edição <strong>do</strong> Fórum Social Mundial, em Porto Alegre/RS. Na presente palestra o tema<br />

foi amplia<strong>do</strong> para abor<strong>da</strong>r os demais aspectos <strong>da</strong> questão (Quem é o escravo, e o que liberta).<br />

2 Juiz Titular <strong>da</strong> Vara <strong>do</strong> Trabalho de Parauapebas/PA - TRT 8ª Região; Coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Fórum Estadual para Erradicação <strong>do</strong> Trabalho Força<strong>do</strong> no<br />

Pará (FERTRAF/PA); Membro <strong>da</strong> Comissão de Promoção e Fiscalização <strong>do</strong> Trabalho Rural no PA; Diretor <strong>da</strong> AMATRA VIII.<br />

191


192<br />

TRABALHO ESCRAVO: QUEM É O ESCRAVO, QUEM ESCRAVIZA E O QUE LIBERTA.<br />

para estar aqui hoje, falan<strong>do</strong> sobre o mesmo<br />

tema, <strong>ao</strong>s meus colegas, Juízes <strong>do</strong> Brasil,<br />

que nos momentos mais difíceis não me<br />

viraram as costas e nem me impuseram<br />

entraves burocráticos, lembra<strong>do</strong>s na última<br />

hora, na tentativa de impor à vítima culpa<br />

pela omissão denuncia<strong>da</strong> e anuncia<strong>da</strong>.<br />

Conquanto possa identificar a fragili<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, quero aqui reafirmar meu compromis-<br />

so com a Justiça <strong>do</strong> meu País na implemen-<br />

tação de medi<strong>da</strong>s concretas que imponham o<br />

respeito <strong>ao</strong>s direitos humanos e dizer que so-<br />

nhei um sonho possível, mas que, para torná-lo<br />

reali<strong>da</strong>de, era preciso, antes, acor<strong>da</strong>rmos aque-<br />

les que <strong>do</strong>rmem tranqüilos se o merca<strong>do</strong> assim<br />

também estiver, zelan<strong>do</strong> pelo cumprimento de<br />

metas questionáveis <strong>do</strong> ponto de vista social.<br />

Para se sonhar um sonho possível, não é ne-<br />

cessário ter apenas “vontade política”, porém,<br />

mais <strong>do</strong> que vontade, é preciso ter CORAGEM<br />

política para enfrentar interesses poderosos de<br />

grupos influentes com os quais alianças impen-<br />

sáveis, até pouco tempo atrás, são feitas mesmo<br />

que se tenha de negar o passa<strong>do</strong> e, negan<strong>do</strong> o<br />

passa<strong>do</strong>, talvez acabem por gerar não apenas<br />

um presente incerto, mas também um futuro<br />

me<strong>do</strong>nho, esse sim um pesadelo possível, con-<br />

cretizável, principalmente para aqueles que,<br />

anônimos, são utiliza<strong>do</strong>s como meio de ganho<br />

em um sistema que talvez agrade <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>,<br />

mas certamente aniquila direitos adquiri<strong>do</strong>s,<br />

relativiza priori<strong>da</strong>des inadiáveis e contingencia<br />

despesas necessárias com políticas basilares<br />

comprometen<strong>do</strong>-se com outras, apenas assis-<br />

tenciais e populistas, de efetivi<strong>da</strong>de duvi<strong>do</strong>sa,<br />

e, nem mesmo estas, conseguem ser implemen-<br />

ta<strong>da</strong>s a contento porque, para sua efetivação,<br />

são considera<strong>do</strong>s apenas gráficos e a pontuação<br />

<strong>do</strong> risco, atos questionáveis <strong>do</strong> ponto de vista<br />

social, repito.<br />

Sobre esse esta<strong>do</strong> de coisas é preciso<br />

alertar a socie<strong>da</strong>de, apesar <strong>do</strong> que diz o<br />

“Ministério <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de”, que, através de sua<br />

máquina de propagan<strong>da</strong>, financia<strong>da</strong> por nós,<br />

o povo, sempre consegue impor sua vontade<br />

- que é a <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>; suas ver<strong>da</strong>des, que são<br />

mentiras conta<strong>da</strong>s repeti<strong>da</strong>s vezes, e assim,<br />

por meio de meias ver<strong>da</strong>des ou completas<br />

mentiras, sempre consegue pôr sobre os om-<br />

bros <strong>do</strong>s mais fracos a responsabili<strong>da</strong>de pelos<br />

males que afetam os interesses <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>,<br />

impostos e declara<strong>do</strong>s como interesses <strong>do</strong><br />

povo, sempre manipula<strong>do</strong> para que <strong>do</strong>cil-<br />

mente faça mais sacrifícios enquanto aguar-<br />

<strong>da</strong> o “espetáculo <strong>do</strong> crescimento”.<br />

As situações presentes me fazem re-<br />

lembrar George Orwel, pois quan<strong>do</strong> se tem<br />

coragem para negar o passa<strong>do</strong> e ignorar<br />

antigos amigos, pode-se fazer qualquer coi-<br />

sa em nome de uma “força estranha”, não<br />

palpável, mas presente como “O GRANDE<br />

IRMÃO”, tão presente que sentimos seu<br />

cheiro, sua presença, sua força e seu poder<br />

dissemina<strong>do</strong> e entranha<strong>do</strong> na ver<strong>da</strong>deira<br />

caixa preta, ou caixa de Pan<strong>do</strong>ra, na qual<br />

entramos e onde estão encerra<strong>do</strong>s vários<br />

monstros, <strong>do</strong>s quais o trabalho escravo<br />

é apenas uma <strong>da</strong>s grandes pragas a nos<br />

assolar e incomo<strong>da</strong>r no alvorecer de uma<br />

“nova era”, que, por ser tão pareci<strong>da</strong> com a<br />

“antiga”, já não mais nos permite distinguir<br />

quem são os homens e quem são os bichos.<br />

Assim, dileta platéia, inicio minha<br />

exposição, citan<strong>do</strong> Orwel (“1984” e “A Re-<br />

volução <strong>do</strong>s Bichos”) pois, nunca antes,<br />

como agora, vejo tanta semelhança entre<br />

as Obras em questão e a reali<strong>da</strong>de que nos<br />

cerca, nos vigia e nos impõe sua ver<strong>da</strong>de de<br />

forma ca<strong>da</strong> vez mais sufocante e totalitária.<br />

Por isso, mais uma vez, advirto aqueles que<br />

Para se sonhar<br />

um sonho<br />

possível, não<br />

é necessário<br />

ter apenas<br />

“vontade<br />

política”,<br />

porém, mais <strong>do</strong><br />

que vontade,<br />

é preciso ter<br />

CORAGEM<br />

política


se curvam <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>: “quem se assenta no<br />

lombo <strong>do</strong> tigre, acaba em seu ventre”.<br />

Embora possa constatar to<strong>da</strong>s essas<br />

estranhas e assusta<strong>do</strong>ras situações, não pos-<br />

so deixar de registrar a satisfação de estar<br />

na ci<strong>da</strong>de de Salva<strong>do</strong>r/BA, berço <strong>do</strong> desco-<br />

brimento, e, segun<strong>do</strong> um poeta brasileiro,<br />

nasci<strong>do</strong> neste grande Esta<strong>do</strong>, esta é a terra<br />

“que Deus entendeu de <strong>da</strong>r a primazia,<br />

pro bem pro mal, primeira mão na Bahia;<br />

primeira missa, primeiro índio abati<strong>do</strong><br />

também; que Deus entendeu de <strong>da</strong>r to<strong>da</strong> a<br />

magia, pro bem pro mal, primeiro chão na<br />

Bahia; primeiro carnaval, primeiro pelouri-<br />

nho também” (Gilberto Gil - “To<strong>da</strong> menina<br />

Baiana”). Que Deus enfim, também enten-<br />

deu de <strong>da</strong>r to<strong>da</strong> beleza e que deu <strong>ao</strong> Brasil<br />

muito de sua cultura e de suas tradições.<br />

O tema que abor<strong>do</strong> não é <strong>do</strong>s mais le-<br />

ves, pois representa grave violência contra<br />

os direitos humanos em nosso País. Para<br />

entender o moderno trabalho escravo, na<br />

visão central de “Uma Nova Justiça Para<br />

Um Novo Tempo”, é necessário sabermos<br />

quem são os principais personagens dessa<br />

tragédia brasileira.<br />

“A escravidão no Brasil foi aboli<strong>da</strong>,<br />

ain<strong>da</strong> na época <strong>do</strong> Império, com a chama<strong>da</strong><br />

“Lei Áurea”, de 1888”. Quem ouve a frase<br />

pode assim estranhar que ain<strong>da</strong> hoje se fale<br />

no assunto. Esclareço, então, que a escravi-<br />

dão de que se trata agora não é a mesma.<br />

Modernamente, é processo de exploração<br />

violento de seres humanos cativos por dívi<strong>da</strong>s<br />

contraí<strong>da</strong>s pela necessi<strong>da</strong>de de sobrevivência,<br />

e força<strong>do</strong>s a trabalhar porque não têm opção.<br />

Recruta<strong>do</strong>s em bolsões de miséria, são leva<strong>do</strong>s<br />

para locais de difícil acesso, sem possibili<strong>da</strong>de<br />

de fuga, às vezes vigia<strong>do</strong>s por homens arma-<br />

<strong>do</strong>s, atraí<strong>do</strong>s através de falsas promessas.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

Neste aspecto, o escravo moderno pode<br />

ser entendi<strong>do</strong> como o trabalha<strong>do</strong>r, de qual-<br />

quer i<strong>da</strong>de ou sexo, que, não ten<strong>do</strong> como<br />

subsistir em sua ci<strong>da</strong>de de origem, é leva<strong>do</strong><br />

pela necessi<strong>da</strong>de a procurar trabalho em re-<br />

giões distantes, através de aliciamento feito<br />

por pessoas que lucram com o fornecimento<br />

e a utilização de sua força de trabalho em<br />

proprie<strong>da</strong>des rurais, geralmente localiza<strong>da</strong>s<br />

na Região Amazônica, onde o acesso é difí-<br />

cil ou quase impossível, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as enormes<br />

distâncias a serem percorri<strong>da</strong>s e as dificul-<br />

<strong>da</strong>des impostas pela própria floresta, o que<br />

impossibilita a fuga <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r escravo<br />

ou suas localização e resgate, pois, na maio-<br />

ria <strong>da</strong>s vezes, sequer sabe, ou pode-se saber,<br />

onde se encontra, sen<strong>do</strong> inútil fugir, ou pro-<br />

curá-lo, até porque não teria mesmo para<br />

onde ir, ou como ser encontra<strong>do</strong> não fossem<br />

as denúncias <strong>do</strong>s poucos que conseguem es-<br />

capar e chegar até um órgão confiável. Fuga<br />

sempre perigosa e muito arrisca<strong>da</strong>.<br />

Assim, o “escravo moderno” é menos<br />

que o boi (que é cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, vacina<strong>do</strong> e bem<br />

alimenta<strong>do</strong>), que a terra (que é protegi<strong>da</strong> e<br />

bem vigia<strong>da</strong>) e que a proprie<strong>da</strong>de (sempre<br />

defendi<strong>da</strong> com firmeza). Dessarte, o tra-<br />

balha<strong>do</strong>r escraviza<strong>do</strong>, por não integrar o<br />

patrimônio <strong>do</strong> “escravagista moderno”, este<br />

não se preocupa com sua saúde, segurança e<br />

higidez física ou mental, sen<strong>do</strong> totalmente<br />

DESCARTÁVEL, utiliza<strong>do</strong> apenas como<br />

meio de produção e não liga<strong>do</strong> <strong>ao</strong> proprie-<br />

tário por qualquer liame, legal ou social, na<br />

visão <strong>da</strong>queles que se utilizam <strong>da</strong> prática ou<br />

que pretendem legalizá-la.<br />

Quem escraviza nunca está sozinho. Há<br />

uma rede criminosa composta por vários<br />

agentes, ca<strong>da</strong> um com finali<strong>da</strong>de própria,<br />

cria<strong>da</strong> para exploração de seres humanos<br />

193


194<br />

TRABALHO ESCRAVO: QUEM É O ESCRAVO, QUEM ESCRAVIZA E O QUE LIBERTA.<br />

como fonte de riquezas, sem nenhuma res-<br />

ponsabili<strong>da</strong>de, em benefício de organização<br />

produtiva que viceja, principalmente, na<br />

Região Norte <strong>do</strong> País, em particular no Sul<br />

<strong>do</strong> Pará, onde exerço jurisdição.<br />

Assim, há aqueles que aliciam os traba-<br />

lha<strong>do</strong>res (“gatos”); há os que disponibilizam<br />

locais (“pensões”) para facilitar o alicia-<br />

mento; há também aqueles que se utilizam<br />

<strong>do</strong> trabalho escravo (<strong>do</strong>nos ou “grileiros”<br />

<strong>da</strong> terra) e ain<strong>da</strong> mantêm estabelecimento<br />

(“cantina”) onde lhes vendem bens que<br />

deveriam fornecer gratuitamente, endivi-<br />

<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-os, prenden<strong>do</strong>-os à terra por dívi<strong>da</strong>s<br />

ilegais e intermináveis, já que impedi<strong>do</strong>s de<br />

sair enquanto não quita<strong>do</strong>s seus “débitos”<br />

com os alicia<strong>do</strong>res/toma<strong>do</strong>res. Aliás, tal<br />

se torna impossível, uma vez que jamais<br />

conseguem pagar a compra <strong>da</strong> própria<br />

alimentação e equipamentos de trabalho,<br />

cujos preços são exorbitantes exatamente<br />

para tornar impossível a quitação <strong>do</strong> débito,<br />

pago com trabalho árduo e degra<strong>da</strong>nte, em<br />

condições subumanas de higiene, segurança<br />

e saúde no trabalho.<br />

Mas dizer que “gatos”, estalajadeiros e<br />

<strong>do</strong>nos ou possui<strong>do</strong>res <strong>da</strong> terra são os únicos<br />

escraviza<strong>do</strong>res e que a miséria leva as pesso-<br />

as a se submeterem a tais condições de tra-<br />

balho é ver o problema por ótica limita<strong>da</strong>.<br />

Socie<strong>da</strong>des criminosas e miséria há em<br />

várias regiões, mas nem por isso pode-se<br />

dizer que onde existam tais fatores haja<br />

também trabalho escravo.<br />

Quem me ouve poderia, então, in<strong>da</strong>gar:<br />

o que existe nas regiões onde se verifica a<br />

moderna escravidão que faz com que o con-<br />

certo de vontades cause o fenômeno?<br />

Além dessas organizações criminosas<br />

e <strong>da</strong> miséria <strong>do</strong> nosso povo, há outro fator<br />

que também escraviza: a ausência <strong>do</strong> Es-<br />

ta<strong>do</strong>, onde deveria fazer-se presente, e sua<br />

presença, quan<strong>do</strong> esta é “questionável” e<br />

suspeita, fazen<strong>do</strong> imperar a barbárie e pos-<br />

sibilitan<strong>do</strong> a utilização <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

como meio de obtenção de riquezas, sem<br />

responsabili<strong>da</strong>de social.<br />

A permissivi<strong>da</strong>de, passivi<strong>da</strong>de, conivência<br />

ou ausência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> são determinantes para<br />

que tal cadeia produtiva viceje. Se o Esta<strong>do</strong><br />

permitir, o explora<strong>do</strong>r continuará com sua<br />

ativi<strong>da</strong>de ilegal, pois, quanto mais sonegar<br />

direitos, mais enriquecerá, e essa forma de<br />

produção cria cultura selvagem, onde o boi e a<br />

terra são mais importantes <strong>do</strong> que o homem.<br />

Esse mo<strong>do</strong> de produção, mol<strong>da</strong><strong>do</strong> pela<br />

“pata <strong>do</strong> boi” e condiciona<strong>do</strong> pelas necessi-<br />

<strong>da</strong>des <strong>do</strong> rebanho, inverte a lei natural, na<br />

escala média de valores de qualquer civi-<br />

lização, excluí<strong>da</strong>s as questões de natureza<br />

religiosa, pois o animal passa a ser mais<br />

importante <strong>do</strong> que o homem e gera selva-<br />

geria, proporciona<strong>da</strong>, principalmente, pela<br />

limitação estatal (financeira, orçamentária,<br />

de pessoal, de investimentos e de custeio<br />

<strong>da</strong>s ações erradicantes) e pela corrupção.<br />

Tais limitações proporcionam brutali<strong>da</strong>de,<br />

excluem a civilização e o Esta<strong>do</strong> de Direito,<br />

geran<strong>do</strong> guetos, com códigos de conduta<br />

próprios, inadequa<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> interesse civi-<br />

lizatório e que impõem limites à própria<br />

atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, impon<strong>do</strong> sanções (até<br />

capitais) contra aqueles que denunciam ou<br />

combatem a prática criminosa no Brasil.<br />

Essas circunstâncias criam um tipo de<br />

socie<strong>da</strong>de cruel, que aceita seja a proprie-<br />

<strong>da</strong>de mais importante que a vi<strong>da</strong>, e isso<br />

também escraviza. O mo<strong>do</strong> de produção<br />

escravagista moderno é suficientemente<br />

plástico para admitir em sua cadeia produ-


O Esta<strong>do</strong> se<br />

faz presente<br />

na cadeia<br />

produtiva<br />

escravagista<br />

quan<strong>do</strong><br />

incentiva<br />

proprie<strong>da</strong>des<br />

e proprietários<br />

rurais já<br />

denuncia<strong>do</strong>s<br />

tiva a violência contra os direitos humanos,<br />

<strong>ao</strong> la<strong>do</strong> de safras recordes, alta tecnologia de<br />

inseminação artificial, criação e manejo de<br />

rebanhos bem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e proprie<strong>da</strong>des com<br />

vastos e quase ilimita<strong>do</strong>s recursos econômi-<br />

cos e financeiros, com grande influência em<br />

nosso sistema político.<br />

Contu<strong>do</strong>, como disse acima, nem sem-<br />

pre há ausência estatal, mas, infelizmente,<br />

quan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> se faz presente tal atuação<br />

é nefasta, na maioria <strong>do</strong>s casos.<br />

O Esta<strong>do</strong> se faz presente na cadeia<br />

produtiva escravagista quan<strong>do</strong> incentiva<br />

proprie<strong>da</strong>des e proprietários rurais já denun-<br />

cia<strong>do</strong>s, flagra<strong>do</strong>s e condena<strong>do</strong>s pela prática,<br />

entregan<strong>do</strong> seus recursos através de financia-<br />

mentos públicos e incentivos fiscais. Assim,<br />

há aqui um para<strong>do</strong>xo de difícil explicação: se<br />

de um la<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> Brasileiro nos paga para<br />

erradicar o regime de escravidão no País, não<br />

pode financiar os mesmos produtores que se<br />

utilizam de tal prática. Deve, assim, definir<br />

suas priori<strong>da</strong>des, independentemente <strong>do</strong>s<br />

interesses <strong>da</strong>s banca<strong>da</strong>s que necessita, e com<br />

elas se alia, para aprovar seus projetos que<br />

tanto agra<strong>da</strong>m <strong>ao</strong> merca<strong>do</strong>.<br />

Conquanto duras, estas são constata-<br />

ções de quem vive o problema de perto e vê,<br />

diariamente, esse esta<strong>do</strong> de coisas que nos<br />

levam a criticar as políticas públicas até aqui<br />

implanta<strong>da</strong>s para erradicar o problema, meta<br />

ousa<strong>da</strong> que o governo federal se propôs, atra-<br />

vés de programa lança<strong>do</strong> em março de 2003.<br />

E o que liberta? A resposta parece óbvia,<br />

mas, de tão óbvia, é difícil compreender<br />

porque o problema parece não ter solução. A<br />

libertação só ocorre quan<strong>do</strong> há o que chamo<br />

de esforço civilizatório, capaz de levar o Es-<br />

ta<strong>do</strong> de Direito às regiões em que esse está<br />

ausente, com finali<strong>da</strong>de de erradicação <strong>da</strong><br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

selvageria a que já me referi alhures.<br />

Neste aspecto e com tal missão, Órgãos<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Brasileiro vêm atuan<strong>do</strong> de forma<br />

decisiva para combater o trabalho escravo<br />

no País, logo, nem tu<strong>do</strong> está perdi<strong>do</strong>, mas<br />

há deficiências que devem ser resolvi<strong>da</strong>s<br />

imediatamente. Ou o Esta<strong>do</strong> bem agra<strong>da</strong> <strong>ao</strong><br />

merca<strong>do</strong> e contém seus gastos, elevan<strong>do</strong> seu<br />

“superávit primário”, ou realmente investe<br />

na execução <strong>do</strong> programa de ERRADICA-<br />

ÇÃO a que se propôs. Nesse senti<strong>do</strong>, aprovou<br />

a criação de novas Varas <strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Traba-<br />

lho, que já está interioriza<strong>da</strong>, mas para insta-<br />

lação a longo prazo... Assim, criou os Órgãos,<br />

mas não os instalou, logo, estamos na mesma<br />

situação, mas com um sopro de esperança.<br />

Vamos aguar<strong>da</strong>r o “parecer <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>” e<br />

ver se a instalação <strong>da</strong>s Varas será priori<strong>da</strong>de,<br />

já que, segun<strong>do</strong> o Relatório de ilustre Sena-<br />

<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> PT/PA que aprovou a criação <strong>da</strong>s<br />

Varas Trabalhistas, cerca de 50 (cinqüenta)<br />

delas estão liga<strong>da</strong>s diretamente à erradicação<br />

<strong>do</strong> Trabalho Escravo, no Brasil.<br />

A Justiça <strong>do</strong> Trabalho no Pará, através<br />

de Ações Civis Públicas ou Coletivas, pro-<br />

postas pelo Ministério Público <strong>do</strong> Trabalho,<br />

vem aplican<strong>do</strong> pesa<strong>da</strong>s multas e impon<strong>do</strong><br />

sanções financeiras <strong>ao</strong>s <strong>do</strong>nos <strong>da</strong> terra que<br />

se utilizam desse “mo<strong>do</strong> de produção”, para<br />

torná-lo economicamente inviável, se o em-<br />

preendimento a<strong>do</strong>tar, como “mão-de-obra”,<br />

trabalha<strong>do</strong>res submeti<strong>do</strong>s <strong>ao</strong> regime es-<br />

cravocrata. Do mesmo mo<strong>do</strong>, nos casos em<br />

que identifiquei financiamentos públicos,<br />

determinei <strong>ao</strong>s Bancos que interrompessem<br />

o fornecimento <strong>do</strong>s créditos, com base na<br />

ilicitude verifica<strong>da</strong>.<br />

A sanção pecuniária assume relevo<br />

fun<strong>da</strong>mental para erradicação <strong>do</strong> trabalho<br />

escravo, pois quebra a lucrativi<strong>da</strong>de desse<br />

195


196<br />

TRABALHO ESCRAVO: QUEM É O ESCRAVO, QUEM ESCRAVIZA E O QUE LIBERTA.<br />

tipo de empreendimento criminoso e impõe<br />

observância <strong>da</strong> legislação trabalhista, impe-<br />

din<strong>do</strong> que o trabalha<strong>do</strong>r continue a ser en-<br />

tendi<strong>do</strong> como meio de ganho fácil, na mão<br />

<strong>da</strong>queles que pensam estar acima <strong>da</strong>s Leis.<br />

Impõe ain<strong>da</strong> <strong>ao</strong>s <strong>do</strong>nos <strong>da</strong> terra responsabi-<br />

li<strong>da</strong>de social para com seus emprega<strong>do</strong>s, eis<br />

que, por força de medi<strong>da</strong>s judiciais, inclu-<br />

sive liminares, são obriga<strong>do</strong>s a respeitar os<br />

direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, com fiscalização<br />

efetiva <strong>do</strong> cumprimento <strong>da</strong>s decisões pelo<br />

Esta<strong>do</strong>-Juiz, com a participação <strong>do</strong> MPT,<br />

Equipe de Fiscalização Móvel <strong>do</strong> Ministério<br />

<strong>do</strong> Trabalho e Polícia Federal, que acompa-<br />

nham e atuam nas chama<strong>da</strong>s Varas Móveis<br />

<strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Trabalho.<br />

Contu<strong>do</strong>, conforme venho sempre in-<br />

sistin<strong>do</strong>, somente sanções econômicas não<br />

são suficientes, embora até aqui, sejam as<br />

mais eficientes e concretas. É preciso que se<br />

apurem os delitos e os criminosos sejam con-<br />

dena<strong>do</strong>s a penas restritivas de liber<strong>da</strong>de, pois<br />

o Código Penal Brasileiro prevê como crime,<br />

sujeito a reclusão, a prática aqui defini<strong>da</strong><br />

(art. 149, CPB), que geralmente está em con-<br />

curso com vários outros tipos penais. É ne-<br />

cessário pôr na cadeia aqueles que exploram<br />

trabalha<strong>do</strong>res como escravos e compõem a<br />

rede criminosa que atua e dá suporte opera-<br />

cional à moderna escravidão. Neste aspecto,<br />

uma solução simples, <strong>do</strong> ponto de vista legis-<br />

lativo, é o reconhecimento <strong>da</strong> competência<br />

<strong>da</strong> Justiça <strong>do</strong> Trabalho para conhecer e julgar<br />

tais crimes, pois, estan<strong>do</strong> interioriza<strong>da</strong>, a<br />

Justiça Trabalhista está melhor aparelha<strong>da</strong><br />

para solucionar tais questões, inclusive com<br />

menor custo para o erário pois os Órgãos<br />

Jurisdicionais já cria<strong>do</strong>s e instala<strong>do</strong>s estão<br />

funcionan<strong>do</strong> nas áreas de maior incidência<br />

e têm, efetivamente, <strong>da</strong><strong>do</strong> a devi<strong>da</strong> resposta<br />

<strong>ao</strong>s escravagistas deste novo tempo, impon-<br />

<strong>do</strong>-lhes sanções econômicas que inviabilizam<br />

o mo<strong>do</strong> produtivo fun<strong>da</strong><strong>do</strong> na exploração<br />

cruel de seres humanos.<br />

De outra face, posso afirmar: o que<br />

liberta é o comprometimento social <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, através de seus vários Órgãos, no<br />

senti<strong>do</strong> de impor a observância <strong>da</strong>s Leis; a<br />

repressão contra o crime organiza<strong>do</strong>, que<br />

acumula riquezas através <strong>da</strong> exploração<br />

degra<strong>da</strong>nte <strong>do</strong> trabalho humano; e o con-<br />

tínuo esforço civilizatório para substituir<br />

a selvageria pelo Esta<strong>do</strong> Democrático de<br />

Direito, que somente pode ser alcança<strong>do</strong><br />

mediante políticas públicas de combate <strong>ao</strong>s<br />

fatores que levam as populações a condições<br />

miseráveis, facilitan<strong>do</strong> possam ser agentes<br />

transforma<strong>do</strong>s e transforma<strong>do</strong>res <strong>da</strong> socie-<br />

<strong>da</strong>de onde vivem, pois somente se deixa<br />

escravizar aquele que não tem consciência<br />

de sua condição de ci<strong>da</strong>dão e está submeti-<br />

<strong>do</strong> à miséria absoluta, e só escraviza aquele<br />

que acredita na impuni<strong>da</strong>de de seus atos.<br />

Desse mo<strong>do</strong>, como resolver a situação de<br />

miséria em que vive nosso povo não é tarefa<br />

para apenas um governo, principalmente<br />

com políticas assistencialistas equivoca<strong>da</strong>s,<br />

e, independentemente disso, tal poderá levar<br />

gerações, logo, para se ter solução mais efe-<br />

tiva e rápi<strong>da</strong> para o problema, o Esta<strong>do</strong> tem<br />

que concentrar seus esforços na outra ponta<br />

<strong>do</strong> fenômeno, ou seja, os escravagistas.<br />

Neste ponto, tramita na Câmara <strong>do</strong>s<br />

Deputa<strong>do</strong>s, em Brasília, PEC que trata <strong>da</strong><br />

expropriação <strong>da</strong>s terras <strong>da</strong>queles que utilizam<br />

práticas escravocratas, já aprova<strong>da</strong> no Sena<strong>do</strong><br />

Federal. A expropriação, sem maiores delon-<br />

gas, é medi<strong>da</strong> que certamente desencorajará<br />

práticas dessa natureza em nosso País.<br />

Ao la<strong>do</strong> <strong>da</strong> expropriação e <strong>da</strong> interrup-<br />

É necessário<br />

pôr na cadeia<br />

aqueles que<br />

exploram<br />

trabalha<strong>do</strong>res<br />

como escravos<br />

e compõem a<br />

rede criminosa<br />

que atua e<br />

dá suporte<br />

operacional<br />

à moderna<br />

escravidão.


ção <strong>ao</strong>s créditos públicos e priva<strong>do</strong>s (inclusi-<br />

ve chaman<strong>do</strong> à responsabili<strong>da</strong>de patrimonial<br />

as instituições financeiras que proporcionam<br />

recursos para proprie<strong>da</strong>des onde se constate<br />

utilização de trabalho escravo), a imposição<br />

de penali<strong>da</strong>des pecuniárias de grande monta<br />

e a aplicação <strong>da</strong> lei penal com efetivi<strong>da</strong>de,<br />

também são medi<strong>da</strong>s que podem, eficaz-<br />

mente, erradicar o problema e apagar essa<br />

mancha <strong>da</strong> nossa terra, no campo ou nas<br />

ci<strong>da</strong>des. Essas medi<strong>da</strong> podem fazer com que<br />

seja economicamente inviável a utilização <strong>do</strong><br />

trabalho escravo e, por isso, impor <strong>ao</strong>s maus<br />

produtores rurais mu<strong>da</strong>nça de comporta-<br />

mento e de mo<strong>do</strong> de produção arcaico, que<br />

somente gera violência, crimes ambientais,<br />

trabalha<strong>do</strong>res mutila<strong>do</strong>s por acidentes, so-<br />

negações fiscal e previdenciária, assassinatos<br />

e lucros para o particular em detrimento<br />

<strong>do</strong>s interesses <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que<br />

emprega recursos preciosos em proprie<strong>da</strong>des<br />

cuja função social é duvi<strong>do</strong>sa.<br />

O que liberta, também, é nossa capaci-<br />

<strong>da</strong>de de indignação, enquanto ci<strong>da</strong>dãos ou<br />

Membros de Poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, eis que, por<br />

nossas ações, ou omissões, temos responsabili-<br />

<strong>da</strong>de pelos destinos de nossa Nação e de nosso<br />

Povo, principalmente pela transformação <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de, onde seja direito e obrigação de<br />

to<strong>do</strong>s o cumprimento <strong>da</strong>s Leis e a realização<br />

<strong>da</strong> Justiça, para que possamos ser, assim, ver-<br />

<strong>da</strong>deiramente, homens livres e liberta<strong>do</strong>res.<br />

Aqui tracei algumas medi<strong>da</strong>s que, segu-<br />

ramente, se implanta<strong>da</strong>s, poderão, a médio<br />

prazo, erradicar práticas escravagistas que<br />

ain<strong>da</strong> vicejam no Esta<strong>do</strong> Brasileiro, mas,<br />

para implementá-las, como já disse, é preci-<br />

so coragem, e não apenas “vontade” políti-<br />

ca. Ou enfrentamos o problema e elegemos<br />

como priori<strong>da</strong>de a efetivação <strong>do</strong>s direitos<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

humanos em nosso País, ou vamos ficar nos<br />

discursos, na criação de comissões e nas<br />

manchetes de jornais. Esses fatores podem<br />

até gerar votos e notorie<strong>da</strong>de, mas não erra-<br />

dicarão o problema.<br />

Concluin<strong>do</strong>, espero que as palavras di-<br />

tas aqui não sejam lança<strong>da</strong>s em solo estéril.<br />

Roguemos a to<strong>do</strong>s os Santos, principal-<br />

mente nesta terra que tem uma igreja para<br />

ca<strong>da</strong> dia <strong>do</strong> ano, que a brisa <strong>da</strong> Bahia e <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de São Salva<strong>do</strong>r leve essas semen-<br />

tes de UMA NOVA JUSTIÇA PARA UM<br />

NOVO TEMPO, e deposite seus esporos<br />

nas mentes <strong>da</strong>queles que legislam, que go-<br />

vernam e que julgam, principalmente em<br />

Brasília, de onde emana o poder de fazê-las<br />

germinar; que o sol <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> lhes seja fa-<br />

vorável; que encontrem as condições certas<br />

de cultivo, em nossas mãos, Juízes <strong>do</strong> Brasil,<br />

para que se transformem no que sonhamos<br />

e tornem-se árvores fron<strong>do</strong>sas nas quais<br />

nossos semelhantes, ain<strong>da</strong> que excluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

“espetáculo <strong>do</strong> crescimento”, possam, en-<br />

fim, também aproveitar de sua sombra.<br />

Também rogo <strong>ao</strong>s Juízes <strong>do</strong> Brasil, que<br />

possam ver<strong>da</strong>deiramente ostentar este título<br />

e tu<strong>do</strong> o que ele representa, para que além<br />

de aplicar as Leis possamos fazer e distribuir<br />

Justiça, pois, “ou o Direito serve a vi<strong>da</strong>, ou<br />

não serva pra na<strong>da</strong>” (Legaz y Lacambra).<br />

Muito Obriga<strong>do</strong>.<br />

Jorge Antonio Ramos Vieira é Juiz Titular <strong>da</strong><br />

Vara <strong>do</strong> Trabalho de Parauapebas/PA - TRT<br />

8ª Região; Coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Fórum Estadual<br />

para Erradicação <strong>do</strong> Trabalho Força<strong>do</strong> no<br />

Pará (FERTRAF/PA); Membro <strong>da</strong> Comissão<br />

de Promoção e Fiscalização <strong>do</strong> Trabalho Ru-<br />

ral no PA; Diretor <strong>da</strong> AMATRA VIII.<br />

197


Orçamento<br />

Judiciário<br />

Princípio <strong>da</strong> Autonomia Administrativa e Financeira<br />

<strong>do</strong> Judiciário e a Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />

I - Introdução<br />

Extremamente honra<strong>do</strong> com o convite<br />

formula<strong>do</strong> pelo colega e companheiro<br />

de lutas, Desembarga<strong>do</strong>r Cláudio Bal-<br />

dino Maciel (Presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>), uma<br />

<strong>da</strong>s grandes lideranças <strong>da</strong> magistratu-<br />

ra nacional e que vem fazen<strong>do</strong> gestão<br />

impecável à frente <strong>da</strong> nossa enti<strong>da</strong>de<br />

maior, sinto-me como receben<strong>do</strong> uma<br />

homenagem em nome <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro - que, com<br />

fibra e determinação, vêm granjean<strong>do</strong><br />

o reconhecimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de a que<br />

servem.<br />

Permito-me, ain<strong>da</strong>, em nome <strong>do</strong> Co-<br />

ordena<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Justiça Estadual <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>,<br />

Juiz Rodrigo Collaço, sau<strong>da</strong>r to<strong>do</strong>s os<br />

presidentes de associações de magistra-<br />

<strong>do</strong>s e to<strong>da</strong>s as lideranças <strong>da</strong> magistra-<br />

tura nacional. Rodrigo vem se transfor-<br />

man<strong>do</strong> em um símbolo, uma liderança<br />

moderna que representa o modelo de<br />

magistra<strong>do</strong> que desejamos.<br />

Luis Felipe Salomão<br />

Peço licença para uma homenagem<br />

especial à expressiva delegação de co-<br />

legas <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e o faço nas<br />

figuras emblemáticas de Thiago Ribas<br />

Filho, Luiz Fernan<strong>do</strong> Ribeiro de Carva-<br />

lho e Doris Castro Neves. Magistra<strong>do</strong>s<br />

que dedicaram e dedicam seus esforços<br />

<strong>ao</strong>s avanços associativos e à construção<br />

<strong>do</strong> Judiciário <strong>do</strong>s nossos sonhos.<br />

Agradeço <strong>ao</strong>s colegas Cláudio Cesare<br />

e Maria de Fátima Stern, Presidentes<br />

<strong>da</strong>s Associações locais de Magistra<strong>do</strong>s,<br />

pela generosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acolhi<strong>da</strong> e a exce-<br />

lente organização <strong>do</strong> conclave.<br />

Meus colegas congressistas desse<br />

XVIII Congresso Brasileiro de Magis-<br />

tra<strong>do</strong>s.<br />

Distingüi<strong>do</strong> para abor<strong>da</strong>r o tema<br />

<strong>do</strong> “Princípio <strong>da</strong> Autonomia Adminis-<br />

trativa e Financeira <strong>do</strong> Judiciário e a<br />

Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal”, pro-<br />

curei destacar os <strong>do</strong>is principais as-<br />

pectos de ambas as questões: o político<br />

e o técnico.<br />

199


200<br />

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />

JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

Com efeito, após uma rápi<strong>da</strong> abor-<br />

<strong>da</strong>gem histórica tanto em relação <strong>ao</strong><br />

orçamento público como <strong>ao</strong> próprio de-<br />

senvolvimento <strong>do</strong> tema no que pertine<br />

<strong>ao</strong> Judiciário, propõe-se uma análise<br />

compara<strong>da</strong> <strong>da</strong> situação de autonomia<br />

<strong>da</strong> magistratura e salienta-se a expe-<br />

riência pioneira <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />

onde os juízes vêm contribuin<strong>do</strong> com<br />

sugestões para elaboração <strong>da</strong>s propos-<br />

tas orçamentárias <strong>do</strong> Poder Judiciário,<br />

assim como para o plano bienal de ação<br />

governamental. O Rio de Janeiro é hoje<br />

um Esta<strong>do</strong> onde o Judiciário, por força<br />

de lei, é auto-sustentável em matéria<br />

financeira, administran<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a receita<br />

e aplican<strong>do</strong>-a no custeio e gestão.<br />

Esse é o plano de trabalho, que espe-<br />

ro possa despertar o interesse e a parti-<br />

cipação <strong>do</strong>s colegas.<br />

A autonomia administrativa e fi-<br />

nanceira <strong>do</strong> Judiciário passa, neces-<br />

sariamente, pela análise <strong>do</strong>s aspectos<br />

orçamentários e afeta diretamente a<br />

independência <strong>do</strong> Poder.<br />

Acredito que existe um texto que<br />

pode servir como fio condutor para o<br />

que se pretende dizer.<br />

Trata-se de apertadíssimo resumo<br />

<strong>do</strong> livro que me foi presentea<strong>do</strong> pela<br />

Colega de Diretoria <strong>da</strong> AMAERJ, e que<br />

muito vem colaboran<strong>do</strong> com a vi<strong>da</strong> asso-<br />

ciativa, a juíza Andréa Pachá, de autoria<br />

<strong>do</strong> consagra<strong>do</strong> dramaturgo norueguês<br />

Ibsen, denomina<strong>do</strong> “Um inimigo <strong>do</strong><br />

povo”. Esse texto já fora por mim lem-<br />

bra<strong>do</strong> no inesquecível e pioneiro Con-<br />

gresso de Juízes Estaduais, que ocorreu<br />

em Balneário Camburiú, mas que vale<br />

agora ser repeti<strong>do</strong> para fixação <strong>da</strong> idéia.<br />

Apesar de escrito em 1922, o livro é<br />

de impressionante atuali<strong>da</strong>de.<br />

O personagem que <strong>do</strong>mina a trama<br />

e prende a atenção <strong>do</strong> leitor é o Doutor<br />

Tomas Stockmann. Ele aju<strong>do</strong>u a fun<strong>da</strong>r<br />

um balneário que se transformou em sen-<br />

sação para turistas, trazen<strong>do</strong> prosperi<strong>da</strong>-<br />

de <strong>ao</strong> lugarejo onde vivia. De repente, ele<br />

descobre que as águas <strong>da</strong> estação, porque<br />

mal capta<strong>da</strong>s (ca<strong>da</strong> um pretendeu gor<strong>da</strong>s<br />

indenizações com o sistema de canaliza-<br />

ção) são perigosas. Quan<strong>do</strong> avisa que irá<br />

denunciar a situação, há uma trama que<br />

estabelece soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de entre o Prefeito<br />

<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de (irmão <strong>do</strong> Dr. Stockmann), a<br />

imprensa e os acionistas. Desejam impor<br />

os custos <strong>ao</strong>s contribuintes e fazer com<br />

que to<strong>do</strong>s identifiquem no Dr. Stock-<br />

mann o “inimigo <strong>do</strong> povo”.<br />

A trama <strong>do</strong> Ibsen pode ser relaciona-<br />

<strong>da</strong> <strong>ao</strong> tema aqui abor<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />

O conflito entre o interesse “público<br />

X priva<strong>do</strong>”, entre a “ver<strong>da</strong>de X menti-<br />

ra”, e o final em que o personagem de-<br />

seja reiniciar tu<strong>do</strong> com o idealismo que<br />

marca as suas peças: “E quan<strong>do</strong> formos<br />

homens livres e distintos, que é o que<br />

faremos então? Vocês escorraçarão os<br />

lobos para além <strong>da</strong>s montanhas”.<br />

Como menciona Heguel, em singular<br />

advertência: “A história é a consciência<br />

progressiva <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.”<br />

II - Síntese histórica<br />

brevíssima sobre o<br />

Orçamento Público e sua<br />

finali<strong>da</strong>de atual<br />

A história <strong>do</strong> orçamento público remon-<br />

ta à Inglaterra (1217), quan<strong>do</strong> o Rei<br />

A autonomia<br />

administrativa<br />

e financeira <strong>do</strong><br />

Judiciário afeta<br />

diretamente a<br />

independência<br />

<strong>do</strong> Poder.


João, na Carta Magna, expressou que<br />

“nenhum tributo <strong>ao</strong> auxílio será insti-<br />

tuí<strong>do</strong> no reino, senão pelo seu Conselho<br />

Comum”.<br />

Em duas palavras, está aí o germe <strong>do</strong><br />

“planejamento/controle”.<br />

A pressão por regras claras e trans-<br />

parentes quanto a receitas e despesas<br />

públicas permeou as lutas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

nas Revoluções Francesa e Americana<br />

(século XVII) e também na Inconfidên-<br />

cia Mineira <strong>do</strong> Brasil (século XVIII).<br />

Mas foi só a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século<br />

XIX que os orçamentos públicos passa-<br />

ram a ter a feição atual, com o princípio<br />

<strong>da</strong> anuali<strong>da</strong>de, sua votação antes <strong>do</strong><br />

início <strong>do</strong> exercício, inclusão de to<strong>da</strong>s as<br />

previsões financeiras e a não vinculação<br />

<strong>da</strong> receita às despesas específicas.<br />

A partir <strong>da</strong> metade <strong>do</strong> século XX,<br />

foi estabeleci<strong>da</strong> uma significativa dife-<br />

rença entre as práticas orçamentárias<br />

norte-americana (presidencialismo)<br />

e européia. Os EUA conferem amplos<br />

poderes <strong>ao</strong> Legislativo nessa matéria,<br />

enquanto os europeus prestigiam o<br />

Executivo (Cabinet) - e qualquer des-<br />

confiança, há a troca <strong>do</strong> governo no<br />

regime parlamentarista.<br />

No Brasil, a Constituição Imperial,<br />

de 1824, estabelecia que o Ministro <strong>da</strong><br />

Fazen<strong>da</strong> era o responsável pela elabo-<br />

ração e encaminhamento à Assembléia<br />

Geral <strong>do</strong>s Orçamentos e de “to<strong>da</strong>s as<br />

“despesas” e “receitas públicas”.<br />

A Constituição de 1891, que se<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

seguiu à proclamação <strong>da</strong> República,<br />

transferiu <strong>ao</strong> Congresso a atribuição <strong>da</strong><br />

elaboração orçamentária, engloban<strong>do</strong> os<br />

Poderes <strong>da</strong> Nova República.<br />

Com a Constituição outorga<strong>da</strong> de<br />

1934, no entanto, perde espaço o Par-<br />

lamento e volta a reinar absoluto o<br />

Executivo - que elaborava e decretava o<br />

orçamento.<br />

Diante <strong>da</strong> redemocratização (Consti-<br />

tuição de 1946), houve nova alteração: o<br />

Executivo elaborava proposta orçamen-<br />

tária, que depois era discuti<strong>da</strong> e vota<strong>da</strong><br />

nas duas Casas <strong>do</strong> Congresso.<br />

Durante o perío<strong>do</strong> de ditadura, é<br />

desnecessário qualquer outro comentá-<br />

rio sobre o tratamento <strong>do</strong> tema. O or-<br />

çamento era elabora<strong>do</strong> e implementa<strong>do</strong><br />

pelo Executivo, pois não havia Congres-<br />

so funcionan<strong>do</strong>.<br />

Contu<strong>do</strong>, com o advento <strong>da</strong> Consti-<br />

tuição de 1988, a matéria passou a ser<br />

trata<strong>da</strong> com destaque e de maneira de-<br />

talha<strong>da</strong> 1 . O Congresso volta a ter papel<br />

destaca<strong>do</strong>.<br />

Em aperta<strong>da</strong> síntese, o especialista<br />

na matéria Desembarga<strong>do</strong>r Jessé Tor-<br />

res 2 , expõe com muita clareza o ciclo re-<br />

lativo à proposta pública orçamentária:<br />

Extrai-se <strong>da</strong> Constituição, especialmente<br />

de seus arts. 165 e seguintes, que, a ca<strong>da</strong><br />

ano, o Poder Legislativo deve aprovar a<br />

Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)<br />

e a Lei <strong>do</strong> Orçamento (LOA), que re-<br />

gerão a execução, <strong>do</strong> ponto de vista <strong>da</strong><br />

receita e <strong>da</strong> despesa, <strong>do</strong>s programas e<br />

1 Arts. 165 a 169, CF/88.<br />

2 Gerente <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> Especial <strong>do</strong> TJ/RJ e que elaborou este texto especialmente para os associa<strong>do</strong>s <strong>da</strong> AMAERJ.<br />

201


202<br />

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />

JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

projetos <strong>do</strong> interesse <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de e <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> no exercício seguinte.<br />

A LDO estabelece objetivos, metas e prio-<br />

ri<strong>da</strong>des. A LOA define quais os programas<br />

e projetos que se compatibilizam com as<br />

diretrizes <strong>da</strong> LDO e distribui os recursos<br />

previstos entre eles, estiman<strong>do</strong> as receitas e<br />

fixan<strong>do</strong> as despesas de ca<strong>da</strong> qual. A LDO<br />

precede a LOA e orienta a elaboração des-<br />

ta, por isto que <strong>ao</strong> Legislativo não é <strong>da</strong><strong>do</strong><br />

entrar em recesso sem aprovar a LDO.<br />

Ambas as leis começam o seu ciclo vital<br />

no primeiro semestre de ca<strong>da</strong> exercício,<br />

embora almejem o exercício subseqüente.<br />

Note-se que quan<strong>do</strong> o art. 100 <strong>da</strong> CF/88<br />

estabelece 1º de julho como a <strong>da</strong>ta limite<br />

para a inserção <strong>do</strong>s precatórios judiciais<br />

no orçamento <strong>do</strong> ano seguinte, está a indi-<br />

car que este deve ter a sua proposta con-<br />

soli<strong>da</strong><strong>da</strong> e apresenta<strong>da</strong> até essa <strong>da</strong>ta. Os<br />

Poderes encaminham as suas respectivas<br />

propostas <strong>ao</strong> Executivo, que as consoli<strong>da</strong><br />

e remete <strong>ao</strong> Legislativo, que é o competen-<br />

te para transformá-las em lei (art. 48, II).<br />

Daí a regra <strong>do</strong> art. 99, § 1º, <strong>da</strong> CF/88<br />

- “Os tribunais elaborarão suas propostas<br />

orçamentárias dentro <strong>do</strong>s limites estipula-<br />

<strong>do</strong>s conjuntamente com os demais Poderes<br />

na lei de diretrizes orçamentárias”.<br />

O ciclo orçamentário des<strong>do</strong>bra-se em<br />

quatro etapas: elaboração (<strong>da</strong>s propos-<br />

tas), aprovação (<strong>da</strong>s propostas consoli-<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s e sua conversão em lei), execução<br />

(durante o exercício a que se referirem<br />

a LDO e a LOA) e controle (avaliação,<br />

quanto à legali<strong>da</strong>de, legitimi<strong>da</strong>de e eco-<br />

nomici<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> aplicação <strong>do</strong>s recursos<br />

orçamentários, durante e após o exer-<br />

cício, pelos órgãos de controle interno e<br />

externo - CF/88, art. 74).<br />

O orçamento público, além de ser expressão<br />

constitucional e legal de relações entre os<br />

Poderes (a Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />

trouxe várias regras e inovações nesse sen-<br />

ti<strong>do</strong>, to<strong>da</strong>s restritivas), deve traduzir um<br />

processo de escolhas e servir como instru-<br />

mento de gestão <strong>da</strong>s organizações.<br />

III - O planejamento como<br />

decisão política<br />

A decisão de planejar, coordenar as<br />

ações e controlar despesas e investimen-<br />

tos públicos é essencialmente política.<br />

Vale dizer, depende de coragem e<br />

determinação <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r públi-<br />

co, pois significa imprimir quali<strong>da</strong>de<br />

<strong>ao</strong> gasto <strong>da</strong>s receitas, de sorte a que sua<br />

conformação aten<strong>da</strong>, essencialmente,<br />

<strong>ao</strong>s anseios sociais. O planejamento e<br />

controle implicam em amarras (sadias)<br />

<strong>ao</strong> administra<strong>do</strong>r.<br />

3 “O planejamento no Brasil - Observações sobre o plano de metas”, Ministro Celso Lafer, 1987.<br />

4 Relatório Simonsen: Diagnóstico <strong>da</strong> Comissão Mista Brasil-EUA (1951); Plano Saute (1948).<br />

Nosso país não tem uma tradição de<br />

planejamento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de pública, tam-<br />

pouco uma vivência grande na elabora-<br />

ção de orçamentos públicos.<br />

As Instituições Públicas, em regra ge-<br />

ral, não são vistas como sinônimos de efici-<br />

ência pela população, muito <strong>ao</strong> contrário.<br />

A partir de 1940 3 , ocorrem as pri-<br />

meiras tentativas de controle e planos<br />

de metas na administração brasileira 4 .<br />

A decisão<br />

de planejar,<br />

coordenar<br />

as ações e<br />

controlar<br />

despesas e<br />

investimentos<br />

públicos é<br />

essencialmente<br />

política.


Sobretu<strong>do</strong> o “Plano de Metas” (1956/61)<br />

pode ser considera<strong>do</strong> a grande e pionei-<br />

ra experiência de planejamento público<br />

no Brasil.<br />

Até esse momento (em torno de<br />

1961), havia no país uma forte atuação<br />

de movimentos sociais que impulsiona-<br />

vam o planejamento <strong>da</strong>s políticas pú-<br />

blicas. No entanto, a partir de 1970 (em<br />

plena ditadura), com o fim <strong>do</strong> “milagre<br />

econômico”, surge a crise fiscal que dele<br />

decorre e, com esse malogro, a escassez<br />

de recursos públicos se transforma na<br />

tônica <strong>do</strong> momento 5 .<br />

O que se denominou “crise <strong>da</strong> ad-<br />

ministração pública” tinha suas raízes<br />

profun<strong>da</strong>s 6 :<br />

a) baixa capaci<strong>da</strong>de e pouca experiência<br />

<strong>do</strong>s órgãos públicos em planejamento,<br />

com conseqüências na elaboração <strong>do</strong> defi-<br />

ciente orçamento público.<br />

b) deficiência e falta de controle na polí-<br />

tica de recursos humanos (pouca motiva-<br />

ção <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res).<br />

c) falta de recursos tecnológicos adequa<strong>do</strong>s.<br />

Para superar essa situação de defa-<br />

sagem, que se perdura desde então, afi-<br />

gura-se necessário uma severa reforma<br />

<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> - que já vem sen<strong>do</strong> aplica<strong>da</strong><br />

em países desenvolvi<strong>do</strong>s, e que, a partir<br />

<strong>da</strong>í, espera-se uma guina<strong>da</strong> nas políticas<br />

públicas visan<strong>do</strong> transformações econô-<br />

micas e sociais.<br />

A par <strong>do</strong> indispensável planejamen-<br />

to, conjuga<strong>do</strong> com procedimentos de<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

ordenamento e controle <strong>da</strong> despesa pú-<br />

blica, a estratégia para a saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> crise,<br />

a permitir melhor gerenciamento <strong>da</strong>s<br />

contas públicas, passa por algumas re-<br />

ceitas básicas.<br />

Não só os países em desenvolvimen-<br />

to, mas também as superpotências se<br />

deparam com a “ferrugem” <strong>da</strong> máquina<br />

estatal.<br />

Nos EUA, entre 1993 e 1996, foi im-<br />

planta<strong>do</strong> o programa “Reinventan<strong>do</strong> o<br />

Governo: funcionar melhor e custar me-<br />

nos”. Parte-se de um modelo de gestão<br />

com três características básicas: clareza<br />

na definição de objetivos; indica<strong>do</strong>res<br />

de desempenho defini<strong>do</strong>s; sistema de<br />

responsabili<strong>da</strong>de partilha<strong>da</strong>.<br />

Nos processos de modernização <strong>da</strong><br />

administração pública, em quase to<strong>do</strong>s<br />

os países que tiveram sucesso, não foi<br />

possível a empreita<strong>da</strong> sem que houvesse<br />

interação com a socie<strong>da</strong>de. Em outras<br />

palavras, é fun<strong>da</strong>mental que haja trans-<br />

parência e responsabili<strong>da</strong>de comparti-<br />

lha<strong>da</strong>, com medi<strong>da</strong>s tais como:<br />

1) publici<strong>da</strong>de de Governo (publicação<br />

de orçamentos, balanços, de maneira<br />

clara e transparente).<br />

2) prestação de contas <strong>da</strong>s ações públicas.<br />

3) participação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de na elabora-<br />

ção <strong>da</strong> proposta pública de orçamento.<br />

Recentemente, em <strong>do</strong>is diplomas<br />

legais, fica patente a intenção <strong>do</strong> legis-<br />

la<strong>do</strong>r brasileiros de rumar nessa trilha<br />

(art. 9º, § 4º, 32, § 4º, 45, 48, 49 e 67<br />

5 Foi para buscar o equilíbrio fiscal que o Brasil recorreu a organismos multilaterais de financiamento, como o BID e Banco Mundial.<br />

6 Transparência e controle social como paradigmas para gestão pública no Esta<strong>do</strong> Moderno, Milton Coelho Neto (RT, 2002).<br />

203


204<br />

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />

JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

<strong>da</strong> Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal (Lei<br />

Complementar 101/2000) e arts. 2o, II,<br />

XIII, 4o, III, b e § 3º, 40, 44 <strong>do</strong> Estatuto<br />

<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de - Lei 10.257/2001).<br />

A responsabili<strong>da</strong>de compartilha<strong>da</strong>,<br />

ademais, não deve ser vista como evento<br />

isola<strong>do</strong> ou descontínuo: a participação<br />

popular é processo dialético de avalia-<br />

ção e inovação.<br />

O controle social <strong>da</strong> administração<br />

pública, por certo, não exclui os demais<br />

controles, antes os estimula a atuar 7 .<br />

IV - Brevíssimo<br />

histórico sobre as formas<br />

administrativas <strong>do</strong> Judiciário<br />

e a evolução quanto à<br />

elaboração <strong>do</strong> seu orçamento<br />

Dos tempos em que os juízes eram os<br />

sacer<strong>do</strong>tes, passan<strong>do</strong> pela fase que <strong>da</strong>s<br />

sentenças surgiam as leis (<strong>do</strong>s quais o<br />

Código de Hamurabi, exposto no Mu-<br />

seu <strong>do</strong> Louvre, é ain<strong>da</strong> um exemplo),<br />

a imbricação entre religião e direito, o<br />

formalismo <strong>do</strong> direito arcaico, o direito<br />

grego e depois o romano, saltan<strong>do</strong> pela<br />

i<strong>da</strong>de média (o direito feu<strong>da</strong>l), até os<br />

dias atuais <strong>do</strong> direito contemporâneo,<br />

a administração <strong>da</strong> Justiça passou por<br />

enormes transformações. Nota<strong>da</strong>mente,<br />

quan<strong>do</strong> o poder deixa de ser exerci<strong>do</strong><br />

pelos monarcas e passa a existir a idéia<br />

de nação e esta<strong>do</strong>.<br />

Os três grandes sistemas jurídicos<br />

modernos, como se sabe, são: o <strong>da</strong> civil<br />

law (sistema continental ou romano/<br />

germânico), em contraparti<strong>da</strong> <strong>ao</strong> sis-<br />

tema <strong>da</strong> common law (preponderância<br />

para os precedentes) e o sistema soviéti-<br />

co (regime socialista) 8 .<br />

As fórmulas, portanto, de adminis-<br />

tração <strong>da</strong> Justiça são especialmente va-<br />

riáveis de acor<strong>do</strong> com o sistema jurídico<br />

a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo país e, ain<strong>da</strong> levan<strong>do</strong> em<br />

conta, sobretu<strong>do</strong>, a forma de Esta<strong>do</strong> e de<br />

Governo.<br />

Partin<strong>do</strong> para exame histórico <strong>da</strong><br />

situação peculiar <strong>do</strong> Brasil, necessária<br />

a leitura <strong>da</strong> obra primorosa <strong>do</strong> magis-<br />

tra<strong>do</strong> gaúcho Lenine Nequete 9 , que<br />

conta um pouco <strong>da</strong> trajetória acerca <strong>do</strong><br />

funcionamento <strong>do</strong> Poder Judiciário no<br />

nosso país.<br />

Lembra o Ministro Carlos Mário <strong>da</strong><br />

Silva Velloso (STF), na apresentação <strong>do</strong><br />

trabalho <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r e magistra<strong>do</strong>,<br />

que a trajetória <strong>do</strong> Judiciário brasileiro,<br />

desde o Brasil-Colônia, foi longa e pe-<br />

nosa. Ele afirma:<br />

“... essa trajetória sempre foi ascen-<br />

dente. É dizer, a Justiça brasileira, a<br />

partir <strong>do</strong> descobrimento, a partir, mais<br />

exatamente, de 1530, quan<strong>do</strong>, Martins<br />

Afonso de Souza foi investi<strong>do</strong>, pelo Rei<br />

de Portugal, de poderes de jurisdição<br />

administrativa e judiciária, até os nossos<br />

dias, é uma história de sucessos, de con-<br />

quistas, com a ampliação - o que, aliás,<br />

é a tônica <strong>do</strong> constitucionalismo contem-<br />

7 J. Habernas fala em tornar mais real a democracia formal.<br />

8 O renoma<strong>do</strong> constitucionalista português Jorge Miran<strong>da</strong> (Teoria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>da</strong> Constituição, 2002, Forense), fala em quatro grandes sistemas e famílias<br />

constitucionais na atuali<strong>da</strong>de (inglesa, norte-americana, francesa e soviética).<br />

9 “O Poder Judiciário no Brasil”, quatro volumes, STF, 2000.


porâneo - <strong>da</strong>s atribuições <strong>do</strong> Judiciário<br />

brasileiro”.<br />

Tanto quanto no Brasil-Colônia,<br />

passan<strong>do</strong> pelo Império, até chegar a<br />

proclamação <strong>da</strong> República, a ativi<strong>da</strong>de<br />

judicial era apêndice <strong>da</strong> função admi-<br />

nistrativa, sem qualquer autonomia<br />

- especialmente no que tange a ausência<br />

total de orçamento próprio: é que existia<br />

o Poder Modera<strong>do</strong>r (na ver<strong>da</strong>de, poder<br />

único), que apagava a existência <strong>do</strong>s<br />

Poderes Legislativo e Judiciário.<br />

Mas foi desengana<strong>da</strong>mente a partir<br />

<strong>da</strong> República que a magistratura foi<br />

sen<strong>do</strong> reconheci<strong>da</strong>, desde o primeiro<br />

momento, como integrante de um <strong>do</strong>s<br />

Poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e, paulatinamente,<br />

foi ganhan<strong>do</strong> independência e conso-<br />

li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> garantias (não <strong>do</strong>s juízes, mas<br />

<strong>do</strong>s jurisdiciona<strong>do</strong>s).<br />

Desde a Constituição de 1891 até a<br />

atual de 1988, procurou-se preservar a<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

intangibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Poder Judiciário e<br />

<strong>do</strong>s juízes 10 .<br />

Mas em tempo algum houve regras<br />

tão claras, no tocante à transparência e<br />

engajamento <strong>da</strong> magistratura no funcio-<br />

namento <strong>da</strong> máquina judiciária como<br />

atualmente existe.<br />

Vale mencionar alguns tópicos em<br />

relação à transparência <strong>do</strong>s atos judi-<br />

ciais e administrativos.<br />

Recentemente, no julgamento <strong>da</strong><br />

liminar <strong>da</strong> ADIN n° 2.700 (RJ), o STF<br />

deixou assenta<strong>do</strong>:<br />

“Por maioria, o Tribunal deferiu a me-<br />

di<strong>da</strong> acautela<strong>do</strong>ra para suspender, até<br />

a decisão final <strong>da</strong> ação, a eficácia <strong>do</strong><br />

artigo 156 <strong>da</strong> Constituição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> Rio de Janeiro, considera<strong>da</strong> a re<strong>da</strong>-<br />

ção imprimi<strong>da</strong> pela Emen<strong>da</strong> Constitu-<br />

cional n. 28, de 25 de junho de 2002,<br />

<strong>do</strong> mesmo Esta<strong>do</strong>, venci<strong>do</strong>s os Senhores<br />

Ministros Sepúlve<strong>da</strong> Pertence e o Presi-<br />

dente, o Senhor Ministro Marco Auré-<br />

10 - Constituição de 16/07/1934:<br />

Artigo 104 - Da Justiça <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> DF e <strong>do</strong>s Territórios: concurso, lista tríplice; promoção por merecimento e antigui<strong>da</strong>de; vencimentos que não<br />

exce<strong>da</strong>m a diferença de 30%; merecimento por escutínio secreto <strong>do</strong> Tribunal para a lista tríplice;<br />

Artigo 80 - Juízes federais sem concurso<br />

Artigo 64 - vitalicie<strong>da</strong>de - 75 anos, inamovibili<strong>da</strong>de e irredutibili<strong>da</strong>de de vencimentos.<br />

- Constituição de 10/11/1937:<br />

Artigo 91 - vitalicie<strong>da</strong>de - 68 anos, inamovibili<strong>da</strong>de e iredutibili<strong>da</strong>de.<br />

Artigo 103 - concurso, lista tríplice; Remuneração - 30%<br />

- Constituição de 18/09/1946:<br />

Artigo 95 - vitalicie<strong>da</strong>de, inamovibili<strong>da</strong>de, irredutibili<strong>da</strong>de, compulsória <strong>ao</strong>s 70 anos.<br />

Artigo 124 - concurso público, lista tríplice; promoção por merecimento de juiz de qualquer entrância e lista tríplice pelo Governa<strong>do</strong>r; antigui<strong>da</strong>de pelo<br />

Tribunal; antigui<strong>da</strong>de - recusa somente por 3/4 <strong>do</strong> tribunal; vencimentos diferença não excedente de 30%.<br />

- Constituição de 24/01/1967:<br />

Artigo 108 - vitalicie<strong>da</strong>de; inamovibili<strong>da</strong>de; irredutibili<strong>da</strong>de; 2/3 para disponibili<strong>da</strong>de com ampla defesa.<br />

Artigo 136 - ingresso por concurso, lista tríplice; promoção, entrância por entrância, merecimento e antigui<strong>da</strong>de; maioria absoluta para recusar o mais<br />

antigo; <strong>ao</strong> Tribunal, merecimento e antigui<strong>da</strong>de, recusa por maioria absoluta.<br />

- Emen<strong>da</strong> Constitucional nº 1, de 17/10/69:<br />

Artigo 113 - irredutibili<strong>da</strong>de, vitalicie<strong>da</strong>de, aposenta<strong>do</strong>ria 70/30.<br />

Artigo 144 - concurso, lista tríplice; promoção por antigui<strong>da</strong>de e merecimento; obrigatória a promoção na 5ª vez consecutiva em lista de merecimento;<br />

recusa pela maioria absoluta; critério de promoção por merecimento - frequência e aprovação em escola de aperfeiçoamento de magistra<strong>do</strong>s; vencimentos<br />

- diferença de menos de 20%. O <strong>da</strong> entrância mais eleva<strong>da</strong> não menos de 2/3 <strong>do</strong>s vencimentos <strong>do</strong>s desembarga<strong>do</strong>res.<br />

205


206<br />

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />

JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

lio. Ausente, justifica<strong>da</strong>mente, o Senhor<br />

Ministro Celso de Mello. Plenário,<br />

17.10.2002.” 11<br />

Vale aqui mencionar, ain<strong>da</strong>, o aviso<br />

Kantiano acerca <strong>da</strong> transparência, que<br />

faz suspeitar como injusto tu<strong>do</strong> aquilo<br />

que não possa, de algum mo<strong>do</strong>, tornar-<br />

se público 12 .<br />

Por outro la<strong>do</strong>, há ain<strong>da</strong> tribunais<br />

que criaram Ouvi<strong>do</strong>rias que, quan<strong>do</strong><br />

atuantes, conferem transparência e<br />

servem de canal de contato entre o ci-<br />

<strong>da</strong>dão-jurisdiciona<strong>do</strong> e a administração<br />

judiciária.<br />

No que pertine à autonomia adminis-<br />

11 Artigo 156 <strong>da</strong> Constituição Estadual <strong>do</strong> Rio de Janeiro, com a re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Emen<strong>da</strong> Constitucional nº 28: “A magistratura estadual terá seu regime<br />

jurídico estabeleci<strong>do</strong> no Estatuto <strong>da</strong> Magistratura, observa<strong>do</strong>s os seguintes princípios:<br />

1 - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, por concurso público de provas e títulos, promovi<strong>do</strong> pelo Tribunal de Justiça com a<br />

participação <strong>da</strong> Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil, em to<strong>da</strong>s as suas fases, obedecen<strong>do</strong>-se, nas nomeações, à ordem de classificação;<br />

II - promoção de entrância para entrância, alterna<strong>da</strong>mente, por antigui<strong>da</strong>de e merecimento, observa<strong>do</strong> o seguinte:<br />

a) é obrigatória a promoção <strong>do</strong> juiz que figure por três vezes consecutivas, ou cinco alterna<strong>da</strong>s, em listas de merecimento;<br />

a) a promoção por merecimento pressupõe <strong>do</strong>is anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte <strong>da</strong> lista de antigui<strong>da</strong>de<br />

desta, salvo se não houver, com tais requisitos, quem aceite o lugar vago;<br />

a) a aferição <strong>do</strong> merecimento pelos critérios de presteza e segurança no exercício <strong>da</strong> jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos reconheci<strong>do</strong>s<br />

de aperfeiçoamento;<br />

a) na apuração <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, o Tribunal de Justiça somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo voto nominal, aberto e motiva<strong>do</strong> de <strong>do</strong>is terços <strong>do</strong>s<br />

membros efetivos de seu Órgão Especial, conforme procedimento próprio, repetin<strong>do</strong>-se a votação até fixar-se a indicação, ve<strong>da</strong><strong>do</strong>s o escrutínio secreto e o<br />

voto não declara<strong>do</strong>;<br />

a) a recusa de promoção de juízes por antigui<strong>da</strong>de será toma<strong>da</strong> pelo voto nominal de <strong>do</strong>is terços de to<strong>do</strong>s os membros efetivos <strong>do</strong> Órgão Especial <strong>do</strong><br />

Tribunal, tal como previsto no artigo 93, II, “d”, <strong>da</strong> Constituição Federal, motivan<strong>do</strong>-se ca<strong>da</strong> voto, e pressupõe a prévia aplicação de penali<strong>da</strong>de após o<br />

regular processo administrativo disciplinar, ou a notícia de fato grave, que dê ensejo a instauração <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> processo, nos termos <strong>da</strong> legislação própria;<br />

a) concretiza<strong>da</strong> a recusa de promoção, deverá ser instaura<strong>do</strong> processo administrativo disciplinar no prazo de quinze dias, sob pena de nuli<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

deliberação e responsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> órgão coletivo.<br />

III - o acesso <strong>ao</strong>s Tribunais de segun<strong>do</strong> grau será feito por antigui<strong>da</strong>de e merecimento, alterna<strong>da</strong>mente, apura<strong>do</strong>s na última entrância ou no Tribunal de<br />

Alça<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> se tratar de promoção para o Tribunal de Justiça, observa<strong>do</strong>s o inciso II e a classe de origem;<br />

IV - previsão de cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistra<strong>do</strong>s como requisitos para ingresso e promoção na carreira;<br />

V - os vencimentos <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s serão fixa<strong>do</strong>s com diferença não superior a dez por cento de uma para outra <strong>da</strong>s categorias <strong>da</strong> carreira, não poden<strong>do</strong>,<br />

a título nenhum, exceder os <strong>do</strong>s Ministros <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal;<br />

VI - a aposenta<strong>do</strong>ria com proventos integrais é compulsória, por invalidez ou <strong>ao</strong>s setenta anos de i<strong>da</strong>de, e facultativa, <strong>ao</strong>s trinta anos de serviço, após cinco<br />

anos de exercício efetivo na judicatura;<br />

VII - o juiz titular residirá na respectiva comarca;<br />

VIII - o ato de remoção, disponibili<strong>da</strong>de e aposenta<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, por interesse público, fun<strong>da</strong>r-se-á em decisão por voto de <strong>do</strong>is terços <strong>do</strong> órgão<br />

especial <strong>do</strong> Tribunal de Justiça, assegura<strong>da</strong> ampla defesa;<br />

IX - to<strong>do</strong>s os julgamentos <strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong> Poder Judiciário serão públicos, e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as decisões, sob pena de nuli<strong>da</strong>de, poden<strong>do</strong> a lei, se o<br />

interesse público o exigir, limitar a presença, em determina<strong>do</strong>s atos, às próprias partes e seus advoga<strong>do</strong>s, ou somente a estes;<br />

X - to<strong>da</strong>s as decisões administrativas <strong>do</strong>s tribunais serão motivi<strong>da</strong>s, aquelas sobre a promoção de magistra<strong>do</strong>s serão públicas mediante votação aberta e as<br />

disciplinares serão toma<strong>da</strong>s pelo voto <strong>da</strong> maioria absoluta <strong>do</strong>s membros efetivos <strong>do</strong>s órgãos competentes, observa<strong>do</strong> o seguinte:<br />

a) a motivação <strong>da</strong>s decisões administrativas pressupõe que ca<strong>da</strong> magistra<strong>do</strong> que participe de órgão de deliberação coletiva apresente de forma clara,<br />

objetiva e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> as razões de seu voto individual;<br />

a) a decisão administrativa final, que represente a vontade <strong>do</strong> órgão de deliberação coletiva como um to<strong>do</strong>, também deverá ser apresenta<strong>da</strong> e redigi<strong>da</strong> de<br />

forma clara, objetiva e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>, apresentan<strong>do</strong> as razões <strong>da</strong> decisão que represente a vontade <strong>do</strong>s seus membros, conforme o quórum exigi<strong>do</strong> para a<br />

votação;<br />

a) a decisão administrativa final, bem como os votos individuais <strong>do</strong>s membros <strong>do</strong> órgão de deliberação coletiva, serão devi<strong>da</strong>mente publica<strong>do</strong>s no órgão<br />

oficial de comunicação, asseguran<strong>do</strong>-se a não identificação <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, que, pessoalmente ou através de seu procura<strong>do</strong>r, será intima<strong>do</strong> e poderá<br />

requerer, previamente, que a decisão seja toma<strong>da</strong> apenas na presença <strong>da</strong>s partes e seus procura<strong>do</strong>res, em se tratan<strong>do</strong> de deliberação sobre infração<br />

disciplinar.<br />

XI - nos tribunais com número superior a vinte e cinco julga<strong>do</strong>res poderá ser constituí<strong>do</strong> órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco<br />

membros, para o exercício <strong>da</strong>s atribuições administrativas e jurisdicionais <strong>da</strong> competência <strong>do</strong> tribunal pleno.<br />

12 Kant, “Zum Ewigen Frieden, Volume: XI, Werkausgabe, Frankfurt Aum Main, 1988, p.250.


À falta de um<br />

percentual fixo<br />

<strong>da</strong>s receitas<br />

líqui<strong>da</strong>s <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, que<br />

deveria ser<br />

estabeleci<strong>do</strong><br />

no texto<br />

constitucional,<br />

o que ocorre é<br />

que a grande<br />

maioria <strong>do</strong>s<br />

tribunais<br />

necessita<br />

<strong>da</strong> famosa<br />

“suplementação<br />

de verba”.<br />

trativa e financeira 13 , nesse mesmo passo,<br />

há também muito ain<strong>da</strong> por fazer. 14<br />

Muito se avançou, é ver<strong>da</strong>de, pois<br />

quem não se lembra <strong>da</strong>s nomeações <strong>do</strong>s<br />

magistra<strong>do</strong>s pelos governa<strong>do</strong>res, <strong>da</strong>s<br />

férias <strong>do</strong>s juízes deferi<strong>da</strong>s no Palácio<br />

<strong>do</strong> Executivo, exemplos de práticas que<br />

ocorriam antes <strong>da</strong> Constituição/88.<br />

Ain<strong>da</strong> na questão <strong>da</strong> autonomia<br />

administrativa <strong>do</strong> Judiciário, cumpre<br />

mencionar o recrutamento <strong>do</strong>s juízes.<br />

A proposta de reforma constitucional<br />

que será vota<strong>da</strong> no Sena<strong>do</strong> prevê que o<br />

concurso será feito por órgão externo <strong>ao</strong><br />

Judiciário. Fala-se também em estabele-<br />

cer paradigmas mínimos para realização<br />

<strong>do</strong>s concursos nos Esta<strong>do</strong>s. Assim como<br />

um exame de seleção <strong>do</strong> candi<strong>da</strong>to, a<br />

nível federal, para poder se habilitar<br />

nos Esta<strong>do</strong>s. E a autonomia? E o pacto<br />

federativo?<br />

Tirante alguns esta<strong>do</strong>s brasileiros<br />

que possuem leis que conferem inde-<br />

pendência financeira <strong>ao</strong> Judiciário 15 , o<br />

enuncia<strong>do</strong> constitucional ain<strong>da</strong> não pas-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

sa de mera promessa inalcançável.<br />

À falta de um percentual fixo <strong>da</strong>s<br />

receitas líqui<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que deveria<br />

ser estabeleci<strong>do</strong> no texto constitucional,<br />

o que ocorre é que a grande maioria <strong>do</strong>s<br />

tribunais necessita <strong>da</strong> famosa “suple-<br />

mentação de verba”, uma porta escan-<br />

cara<strong>da</strong> para a “troca de favores” e con-<br />

descendências administrativas mediante<br />

práticas intoleráveis e incompatíveis<br />

com a ética que deve nortear o adminis-<br />

tra<strong>do</strong>r público.<br />

A Lei <strong>da</strong> Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />

ain<strong>da</strong> estabelece o percentual de 6%<br />

para o limite de gastos com pessoal <strong>do</strong><br />

Judiciário (art. 20, II, “b”, <strong>da</strong> Lei Com-<br />

plementar 101/2002) 16 .<br />

Em termos de direito compara<strong>do</strong>,<br />

buscan<strong>do</strong> análise apenas em <strong>do</strong>is para-<br />

digmas (norte-americano e europeu),<br />

assevere-se que, nos EUA, tanto a elabo-<br />

ração como a destinação <strong>do</strong> orçamento<br />

<strong>do</strong> Judiciário tem ampla participação<br />

popular. Inclusive, em alguns esta<strong>do</strong>s,<br />

o custeio <strong>do</strong>s tribunais é proveniente de<br />

13 - “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto <strong>da</strong> Magistratura, observa<strong>do</strong>s os seguintes<br />

princípios:<br />

IX - to<strong>do</strong>s os julgamentos <strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong> Poder Judiciário serão públicos, e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as decisões, sob pena de nuli<strong>da</strong>de, poden<strong>do</strong> a lei, se o<br />

interesse público o exigir, limitar a presença, em determina<strong>do</strong>s atos, às próprias partes e a seus advoga<strong>do</strong>s, ou somente a estes;<br />

X - as decisões administrativas <strong>do</strong>s tribunais serão motiva<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> as disciplinares toma<strong>da</strong>s pelo voto <strong>da</strong> maioria absoluta de seus membros;<br />

- Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegura<strong>da</strong> autonomia administrativa e financeira.<br />

Parágrafo 1º. Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro <strong>do</strong>s limites estipula<strong>do</strong>s conjuntamente com os demais Poderes na lei de<br />

diretrizes orçamentárias.<br />

Parágrafo 2º. O encaminhamento <strong>da</strong> proposta, ouvi<strong>do</strong>s os outros tribunais interessa<strong>do</strong>s, compete:<br />

I. No âmbito <strong>da</strong> União, <strong>ao</strong>s Presidentes <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal e <strong>do</strong>s Tribunais Superiores, com a aprovação <strong>do</strong>s respectivos tribunais.<br />

II. No âmbito <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e no <strong>do</strong> Distrito Federal e Territórios, <strong>ao</strong>s Presidentes <strong>do</strong>s Tribunais de Justiça, com a aprovação <strong>do</strong>s respectivos tribunais.”<br />

14 Em pesquisa realiza<strong>da</strong> nas Constituições atuais <strong>do</strong>s EUA, Itália, França, Alemanha, Rússia, nenhum Judiciário tem essa autonomia assegura<strong>da</strong> no<br />

texto constitucional.<br />

15 No Rio de Janeiro, o art. 1º <strong>da</strong> Lei Estadual n° 2.524/96, dispõe: “Fica cria<strong>do</strong>, na estrutura administrativa <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />

o Fun<strong>do</strong> Especial <strong>do</strong> Tribunal de Justiça - FETJ”. Ain<strong>da</strong> assim, a folha de pagamento <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res e magistra<strong>do</strong>s é provi<strong>da</strong> pelo Executivo, sen<strong>do</strong> o<br />

Tribunal responsável por to<strong>da</strong>s as despesas de custeio.<br />

16 A propósito <strong>da</strong> origem <strong>da</strong> LRF como imposição <strong>do</strong> FMI e sua inspiração na legislação semelhante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Unitário <strong>da</strong> Nova Zelândia, confira-se<br />

“Aspectos Constitucionais <strong>da</strong> LRF”, Jessé Torres, Revista <strong>da</strong> EMERJ, v. 04, n° 15, 2001, pág. 63. O STF já declarou constitucional o artigo 20 <strong>da</strong><br />

LRF (Adin 2238).<br />

207


208<br />

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />

JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

uma combinação de recursos públicos e<br />

priva<strong>do</strong>s.<br />

Em relação à Europa, há uma pro-<br />

posta <strong>da</strong> Associação Européia de Magis-<br />

tra<strong>do</strong>s para a Democracia e as Liber<strong>da</strong>-<br />

des (MEDEL) para o “Estatuto Europeu<br />

<strong>da</strong> Magistratura”, que passaria a incor-<br />

porar os avanços que já ocorrem em al-<br />

guns países <strong>da</strong>quele velho continente.<br />

Vale conferir os artigos 3.2, 3.3 e 3.4<br />

<strong>da</strong> proposta:<br />

3.2 Na sua composição, metade, pelo<br />

menos, <strong>do</strong> Conselho deve ser constituí<strong>da</strong><br />

por magistra<strong>do</strong>s eleitos pelos seus pares<br />

segun<strong>do</strong> a regra <strong>da</strong> representação propor-<br />

cional. O Conselho incluirá, ain<strong>da</strong>, per-<br />

sonali<strong>da</strong>des designa<strong>da</strong>s pelo parlamento.<br />

To<strong>do</strong>s os seus membros devem ser nomea-<br />

<strong>do</strong>s por tempo determina<strong>do</strong>.<br />

3.3 O parlamento vota o orçamento <strong>da</strong><br />

Justiça sob proposta <strong>do</strong> Conselho Supe-<br />

rior <strong>da</strong> Magistratura e <strong>do</strong> Governo.<br />

O Conselho deve dispor de orçamento<br />

próprio para executar as sua atribuições.<br />

3.4 As reuniões <strong>do</strong> Conselho devem ser<br />

públicas, salvo nos casos referi<strong>do</strong>s no<br />

ponto 8.2., parágrafo 2º , que podem ser<br />

à porta fecha<strong>da</strong>.<br />

V - A elaboração <strong>da</strong><br />

proposta orçamentária<br />

<strong>do</strong> Poder Judiciário com<br />

a participação <strong>do</strong>s juízes.<br />

A experiência <strong>do</strong> Rio de<br />

Janeiro<br />

Convém relembrar que o ciclo orçamen-<br />

tário des<strong>do</strong>bra-se em quatro etapas:<br />

a) elaboração <strong>da</strong>s propostas;<br />

b) aprovação <strong>da</strong>s mesmas propostas, ago-<br />

ra consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s e converti<strong>da</strong>s em lei;<br />

c) execução;<br />

d) controle (durante e após o exercício).<br />

No caso <strong>do</strong> Rio de Janeiro, no ano de<br />

2002 houve a solicitação <strong>da</strong> Associação <strong>do</strong>s<br />

Magistra<strong>do</strong>s (AMAERJ) para que os ma-<br />

gistra<strong>do</strong>s pudessem participar <strong>da</strong> proposta<br />

orçamentária e <strong>da</strong> elaboração <strong>do</strong> plano<br />

bienal 17 , o que foi pioneiramente acolhi<strong>do</strong><br />

pelo ex-Presidente <strong>do</strong> Tribunal de Justiça,<br />

Desembarga<strong>do</strong>r Marcus Faver.<br />

A participação ocorre novamente no<br />

ano de 2003, atenden<strong>do</strong> a chama<strong>da</strong> <strong>do</strong> Pre-<br />

sidente <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> Rio de Janeiro, Desembarga<strong>do</strong>r Miguel<br />

Pachá.<br />

Como a experiência é pioneira, a ver<strong>da</strong>-<br />

de é que nós, juízes, ain<strong>da</strong> estamos “apren-<br />

den<strong>do</strong>” a trabalhar com essa ativi<strong>da</strong>de 18 .<br />

Ocorreram os passos ordinariamente<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong>s na elaboração <strong>da</strong> proposta orça-<br />

mentária, consideran<strong>do</strong>:<br />

I - os limites <strong>da</strong> receita <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> Espe-<br />

cial <strong>do</strong> Tribunal de Justiça (arreca<strong>da</strong>ção<br />

média mensal em torno de vinte e cinco<br />

milhões de reais);<br />

II - os programas e projetos <strong>do</strong> plano bienal<br />

de ação governamental 2001-2002 e 2003-<br />

2004 (o plano 1999-2000, o primeiro <strong>da</strong><br />

história <strong>do</strong> TJRJ, foi executa<strong>do</strong> em 82%);<br />

17 O ideal é que a participação ocorra em to<strong>da</strong>s as fases antes menciona<strong>da</strong>s.<br />

18 Aliás, convém aqui salientar que, no nosso Tribunal, a AMAERJ vem indican<strong>do</strong> um magistra<strong>do</strong> para participar de to<strong>da</strong> e qualquer Comissão<br />

importante, o que vem implementan<strong>do</strong> uma ver<strong>da</strong>deira renovação na gestão administrativa.


III - as previsões que nossa Secretaria<br />

de Planejamento colhe junto <strong>ao</strong>s órgãos<br />

responsáveis pelas despesas (as de custeio,<br />

que são as que cui<strong>da</strong>m <strong>da</strong> manutenção,<br />

e as de capital, que são as que investem<br />

em obras e equipamentos, cujo somatório,<br />

neste exercício, situa-se na média mensal<br />

de quinze milhões de reais);<br />

IV - e que as despesas com a folha de<br />

pessoal (incluin<strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>s e serven-<br />

tuários, ativos e inativos, em to<strong>do</strong> o Es-<br />

ta<strong>do</strong>), que superam cem milhões <strong>ao</strong> mês,<br />

constituem encargo <strong>do</strong> Tesouro Estadual,<br />

não <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> a legislação esta-<br />

dual que a este criou.<br />

Hoje, o Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> Rio de Janeiro tem um caixa de R$<br />

260 milhões de reais. Esses <strong>da</strong><strong>do</strong>s são pu-<br />

blica<strong>do</strong>s mensalmente no Diário Oficial,<br />

assim como o patrimônio <strong>do</strong>s gestores <strong>do</strong><br />

Fun<strong>do</strong> estão disponíveis no site <strong>do</strong> Tribu-<br />

nal de Justiça (www.tj.rj.gov.br).<br />

Nesse passo, a Administração Judiciá-<br />

ria Superior <strong>do</strong> RJ buscou iniciar um mé-<br />

to<strong>do</strong> novo de elaboração de proposta orça-<br />

mentária, de mo<strong>do</strong> a contar com a partici-<br />

pação, igualmente, <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s.<br />

Vale a leitura de um trecho elabora-<br />

<strong>do</strong> pelo colega Jessé Torres 19 :<br />

Por isto que, no Judiciário, a elaboração<br />

<strong>da</strong> proposta orçamentária anual não<br />

deve mais ser vista como uma questão ex-<br />

clusivamente técnica. Além <strong>do</strong>s matizes<br />

técnicos, indissociáveis <strong>da</strong>s balizas que a<br />

ordem constitucional e legal traça, a pro-<br />

19 Texto já menciona<strong>do</strong>.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

posta orçamentária deve refletir aquele<br />

compromisso, de cuja consecução muito<br />

se pode e deve esperar <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>, seu<br />

artífice principal. Este acha-se na ponta<br />

<strong>da</strong> prestação jurisdicional, entregan<strong>do</strong>-<br />

a a ca<strong>da</strong> dia <strong>ao</strong>s titulares de direitos e<br />

interesses em conflito. Sente, em conse-<br />

qüência, as dificul<strong>da</strong>des que se erguem<br />

à execução <strong>da</strong>quela prestação, sejam as<br />

de ordem estratégica (definição de prin-<br />

cípios, objetivos, metas e priori<strong>da</strong>des <strong>do</strong><br />

sistema a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pela organização), ge-<br />

rencial (a estruturação <strong>do</strong>s meios dispo-<br />

níveis ou mobilizáveis pelos gestores, com<br />

o fim de propiciar a melhor realização<br />

<strong>da</strong> missão institucional), ou operacional<br />

(a gestão cotidiana desses meios). Tu<strong>do</strong>,<br />

infira-se, poden<strong>do</strong> confluir ou defluir <strong>do</strong><br />

orçamento, se compreendi<strong>do</strong> este como<br />

poderoso instrumento de gestão.<br />

É evidente que ca<strong>da</strong> magistra<strong>do</strong>, na<br />

região em que exerce a jurisdição, terá<br />

uma perspectiva <strong>da</strong>quelas dificul<strong>da</strong>des.<br />

Sua manifestação, concilia<strong>da</strong> com a ma-<br />

nifestação <strong>do</strong>s demais, é que propiciará a<br />

visão sistêmica <strong>do</strong> conjunto e aju<strong>da</strong>rá na<br />

definição, com maior pertinência e senso<br />

de reali<strong>da</strong>de, <strong>do</strong>s programas e projetos a<br />

serem estabeleci<strong>do</strong>s como prioritários em<br />

face <strong>do</strong>s recursos disponíveis. É o desafio<br />

que se abre <strong>ao</strong> Judiciário que quer ser,<br />

como nós queremos, fiel intérprete <strong>da</strong>s<br />

expectativas <strong>do</strong>s jurisdiciona<strong>do</strong>s e <strong>da</strong><br />

ordenação racional <strong>do</strong>s recursos orga-<br />

nizacionais, materiais e humanos para<br />

atendê-las em tempo razoável.<br />

209


210<br />

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA DO<br />

JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

Pioneiro em atos que possibilitaram<br />

maior transparência administrativa, o TJ-<br />

RJ, através <strong>do</strong> Ato Normativo n° 01/99,<br />

instituiu o Centro de Acompanhamento e<br />

Controle de Custos <strong>do</strong> Poder Judiciário, o<br />

qual produz um relatório periódico <strong>do</strong>s gas-<br />

tos jurisdicionais e administrativos de to<strong>da</strong>s<br />

as Comarcas 20 .<br />

Os Planos de Ação Governamental,<br />

respal<strong>da</strong><strong>do</strong>s em Lei Complementar, especial-<br />

mente no que se refere <strong>ao</strong> planejamento, à<br />

geração de despesa, <strong>ao</strong> controle e à transpa-<br />

rência de recursos públicos, ensejam seguran-<br />

ça <strong>ao</strong> Administra<strong>do</strong>r Público <strong>do</strong> Judiciário.<br />

Fazen<strong>do</strong> parte também <strong>do</strong> plano estra-<br />

tégico, foram indica<strong>do</strong>s pela AMAERJ 11<br />

juízes de direito (<strong>da</strong>s diversas regiões <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>) para colaborarem na elaboração<br />

<strong>da</strong> Proposta Orçamentária <strong>do</strong> Tribunal de<br />

Justiça/RJ para o exercício de 2003 21 .<br />

A AMAERJ intermediou a integração<br />

<strong>da</strong> Secretaria de Planejamento com o ma-<br />

gistra<strong>do</strong>s 22 , objetivan<strong>do</strong> um orçamento par-<br />

ticipativo. Dentre outras sugestões envia<strong>da</strong>s<br />

pelos juízes, que serão incluí<strong>da</strong>s na próxima<br />

edição <strong>do</strong> Plano de Ação Governamental<br />

para o biênio de 2003/2004, podemos citar:<br />

- melhoria nas instalações físicas;<br />

- aquisição de equipamentos de informática;<br />

- construção de Foros;<br />

- realização de seminários, congressos e<br />

cursos de atualização 23 .<br />

Desta união resultou maior conhe-<br />

cimento, tanto de parte <strong>da</strong> Secretaria de<br />

Planejamento no que concerne às reais<br />

necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s Comarcas que compõem o<br />

Poder Judiciário, quanto <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s,<br />

no que se refere às dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s<br />

pela Administração em atender to<strong>da</strong>s as<br />

reivindicações propostas, ten<strong>do</strong> em vista as<br />

limitações impostas pela arreca<strong>da</strong>ção e pela<br />

Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal.<br />

A proposta é uma só: melhores condições<br />

de trabalho para um atendimento adequa<strong>do</strong><br />

<strong>ao</strong> ci<strong>da</strong>dão, usuário <strong>do</strong> sistema judicial.<br />

No entanto, não se olvi<strong>da</strong> aqui o fato ge-<br />

ral, aplicável <strong>ao</strong> Judiciário, de que “quan<strong>do</strong><br />

algum governante decide abrir espaço para<br />

a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia participar <strong>da</strong>s decisões públi-<br />

cas, “a burocracia como grupo faz tu<strong>do</strong> para<br />

coagir uma real participação. Daí a necessi-<br />

<strong>da</strong>de de atuar com muita sabe<strong>do</strong>ria política<br />

para assegurar a preservação <strong>do</strong>s mecanis-<br />

mos que institucionalizam a participação” 24 .<br />

VI - Conclusão<br />

Em tempos atuais de globalização econô-<br />

mica, o merca<strong>do</strong> passa a ser coloca<strong>do</strong> como<br />

20 Ca<strong>da</strong> processo custa, no Rio de Janeiro, o valor de R$ 353,12 e, por habitante R$ 23,48 (<strong>da</strong><strong>do</strong>s recolhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Relatório de acompanhamento de custos,<br />

referente <strong>ao</strong> 2º quadrimestre de 2002).<br />

21 Juízes Márcia Cunha Silva Araújo de Carvalho (Capital); Maria Sandra Rocha Kayat (Niterói); Alexandre Teixeira De Souza (Região<br />

Correspondente Ao 3º Nurc); Elizabete Alves De Aguiar (Região Correspondente Ao 4º Nurc); Renato De Oliveira Freitas (Região Correspondente Ao<br />

5º Nurc); Denise Appolinária Dos Reis Oliveira (Região Correspondente Ao 6º Nurc); Francisco Ferraro Junior (Região Correspondente Ao 7º Nurc);<br />

Lúcia Regina Esteves De Magalhães (Região Correspondente Ao 8º Nurc); Andrea Barroso Silva (Região Correspondente Ao 9º Nurc); Alexandre<br />

Correa Leite (Região Correspondente Ao 10º Nurc); Alexandre Chini Neto (Região Correspondente Ao 11º Nurc).<br />

22 Foi fun<strong>da</strong>mental a participação <strong>da</strong> Des. Leila Mariano (1ª Vice-Presidente <strong>da</strong> AMAERJ e Diretora <strong>da</strong> ESAJ - Escola de Administração <strong>do</strong><br />

Tribunal de Justiça) nessa interlocução com a Administração.<br />

23 Muitas solicitações e sugestões já foram atendi<strong>da</strong>s e outras tantas constam <strong>do</strong> plano de ação <strong>da</strong> próxima gestão. Estão sen<strong>do</strong> entregues “laptops” para<br />

to<strong>do</strong>s os juízes de primeiro grau, que contarão também com um segun<strong>do</strong> assessor remunera<strong>do</strong>.<br />

24 Enrique Saraiva, Cadernos de Estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> EPAB/FGV, dezembro/98).<br />

A AMAERJ<br />

intermediou a<br />

integração <strong>da</strong><br />

Secretaria de<br />

Planejamento<br />

com o<br />

magistra<strong>do</strong>s22,<br />

objetivan<strong>do</strong><br />

um orçamento<br />

participativo.


instância máxima de regulação social.<br />

O fenômeno denomina<strong>do</strong> de “novo ca-<br />

pitalismo” desconhece fronteiras jurídicas<br />

entre as nações e permite o trânsito de capi-<br />

tais sem qualquer controle governamental.<br />

A transnacionalização <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, no<br />

dizer <strong>do</strong> professor José Eduar<strong>do</strong> Faria, coloca<br />

o Judiciário em uma encruzilha<strong>da</strong>, um Poder<br />

em busca de uma identi<strong>da</strong>de funcional.<br />

Vale aqui uma rápi<strong>da</strong> menção a uma<br />

fábula indiana, cujo texto circulou pela<br />

internet, de sorte a ilustrar o que se pre-<br />

tende desenvolver. Uma expedição de<br />

caça rumou para a África e anunciava a<br />

descoberta de uma fórmula mágica para<br />

o sucesso <strong>da</strong> empreita<strong>da</strong>: um flautista<br />

que, <strong>ao</strong> som <strong>do</strong> instrumento, fazia parar<br />

as feras e permitia a caça<strong>da</strong> fácil. No<br />

início, a inovação se mostrou um suces-<br />

so. Inúmeras feras foram abati<strong>da</strong>s com<br />

grande facili<strong>da</strong>de, o que fez os caça<strong>do</strong>res<br />

relaxarem nas tarefas de defesa. Certo<br />

dia, porém, um leão não se intimi<strong>do</strong>u<br />

com a flauta e, alteran<strong>do</strong> a lógica <strong>da</strong><br />

expedição, a caça passou a caça<strong>do</strong>r,<br />

abaten<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os integrantes <strong>do</strong> grupo.<br />

Moral <strong>da</strong> fábula: prepare-se sempre para<br />

enfrentar o leão sur<strong>do</strong>, preveja o futuro<br />

e previna soluções. Sempre se prepare<br />

para situações difíceis e inespera<strong>da</strong>s.<br />

Temos um quadro no Brasil de hoje<br />

bastante complexo, a demonstrar que<br />

não houve preparo adequa<strong>do</strong> para resol-<br />

ver o dilema em que se encontra o Poder<br />

Judiciário.<br />

A autonomia administrativa e finan-<br />

ceira <strong>do</strong> Judiciário é exigência e condi-<br />

ção para a construção de um Judiciário<br />

melhor.<br />

O momento, ademais, é de participação.<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

A magistratura quer estar engaja<strong>da</strong><br />

e atuante, contribuin<strong>do</strong> para identificar<br />

os pontos onde haja possibili<strong>da</strong>de de<br />

melhorar a sua ativi<strong>da</strong>de-fim.<br />

A participação ordena<strong>da</strong>, transpa-<br />

rente e qualifica<strong>da</strong> de magistra<strong>do</strong>s na<br />

elaboração <strong>da</strong> proposta orçamentária<br />

de certo que lhe conferirá maior teor de<br />

aptidão para responder <strong>ao</strong>s reptos <strong>do</strong><br />

novo século, em matéria de eficiência<br />

no desempenho <strong>da</strong> jurisdição, afastan<strong>do</strong><br />

a concentração de poderes e superan<strong>do</strong><br />

a compartimentação que caracterizam<br />

a cultura administrativa <strong>da</strong> elaboração<br />

orçamentária. Será mais um encargo,<br />

dentre tantos outros que integram o<br />

nosso dia-a-dia. Mas, afinal, esta é a<br />

responsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Judiciário, a que<br />

decerto corresponderão a vocação e o<br />

compromisso a que a toga nos conclama.<br />

Thiago de Mello, o poeta caboclo,<br />

escreveu os “Estatutos <strong>do</strong> homem - Ato<br />

Institucional Permanente”, em 1964, no<br />

Chile, e o dedicou a Carlos Heitor Cony.<br />

Os artigos finais são pérolas e se encai-<br />

xam no nosso tema:<br />

“Fica proibi<strong>do</strong> o uso <strong>da</strong> palavra liber<strong>da</strong>-<br />

de, a qual será suprimi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s dicionários<br />

e <strong>do</strong> pântano enganoso <strong>da</strong>s bocas.<br />

A partir deste instante a liber<strong>da</strong>de será<br />

alvo vivo e transparente como um fogo<br />

ou um rio, e a sua mora<strong>da</strong> será sempre o<br />

coração <strong>do</strong> homem”.<br />

Luis Felipe Salomão é Juiz de Direito<br />

no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Presidente<br />

<strong>da</strong> Associação <strong>do</strong>s Magistra<strong>do</strong>s - AMA-<br />

ERJ, Professor Universitário e Expositor<br />

<strong>da</strong> Escola <strong>da</strong> Magistratura - RJ.<br />

211


Parceria<br />

Possível<br />

Ong’s e o Judiciário: Parceria Possível<br />

Segun<strong>do</strong> o pensa<strong>do</strong>r colombiano Ber-<br />

nar<strong>do</strong> Toro, a maior invenção <strong>do</strong> século XX<br />

não se deu no campo científico-tecnológico,<br />

mas no campo <strong>do</strong> direito. Esta invenção foi a<br />

Declaração Universal <strong>do</strong>s Direitos Humanos<br />

(1948). Pensem <strong>da</strong>qui a cem, duzentos, tre-<br />

zentos anos. Os nossos atuais computa<strong>do</strong>res<br />

serão relíquias, instrumentos tão rudimen-<br />

tares como a comunicação por nuvens de<br />

fumaça ou o cálculo feito com a aju<strong>da</strong> de um<br />

ábaco. Os Direitos Humanos, no entanto,<br />

ain<strong>da</strong> serão um tema atual, que terá guar<strong>da</strong>-<br />

<strong>do</strong> to<strong>do</strong> seu frescor e sua imediatici<strong>da</strong>de.<br />

Por que isso ocorre? Isso ocorre porque<br />

os Direitos Humanos são o principal ins-<br />

trumento para a consecução de um projeto<br />

de humani<strong>da</strong>de cuja construção - apesar de<br />

to<strong>do</strong>s os avanços científicos e tecnológicos<br />

<strong>do</strong> homem - ain<strong>da</strong> está nos seus alicerces.<br />

Trata-se <strong>do</strong> projeto de construção de uma<br />

vi<strong>da</strong> digna para to<strong>do</strong>s.<br />

Na realização desse projeto, as ONG’s e<br />

os poderes públicos - respeita<strong>da</strong>s a identi<strong>da</strong>-<br />

de, a autonomia e o dinamismo de ca<strong>da</strong> um<br />

Viviane Senna<br />

- podem e devem ser interlocutores e par-<br />

ceiros. Na visão que venho defenden<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />

longo <strong>do</strong>s últimos anos, o Esta<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong><br />

empresarial e as organizações <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

civil sem fins de lucro podem e devem ser<br />

interlocutores (para refletir e dialogar) e<br />

parceiros (para agir conjuntamente) na pro-<br />

moção e defesa de objetivos nobres, superio-<br />

res e comuns;<br />

Objetivos nobres, superiores e comuns<br />

são objetivos que transcendem os interesses<br />

individuais, setoriais e corporativos <strong>do</strong>s<br />

diversos segmentos tanto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de,<br />

como <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Eu sempre tenho dito que<br />

o erro não está nas pessoas, setores sociais<br />

e corporações defenderem seus interesses.<br />

Isto é compreensível e legítimo. O erra<strong>do</strong> - e<br />

isto sim é muito grave - é fazê-lo de costas<br />

para o to<strong>do</strong>. E o que é o to<strong>do</strong>? O to<strong>do</strong> a que<br />

me refiro é o grande projeto de nação e de<br />

humani<strong>da</strong>de representa<strong>do</strong> pela Declaração<br />

Universal <strong>do</strong>s Diretos Humanos, ou seja, o<br />

projeto de se construir uma vi<strong>da</strong> digna para<br />

to<strong>do</strong>s.<br />

213


214<br />

ONG’S E O JUDICIÁRIO: PARCERIA POSSÍVEL<br />

O que é construir uma vi<strong>da</strong> digna para<br />

to<strong>do</strong>s? Na visão de Hanna Arendt, é asse-<br />

gurar a to<strong>do</strong>s os seres humanos o exercício<br />

pleno <strong>do</strong> direito de ter direitos e <strong>do</strong> dever<br />

de ter deveres no marco de uma ordem so-<br />

cial fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na democracia.<br />

Os Direitos Humanos - os senhores<br />

sabem muito melhor <strong>do</strong> que eu - são uni-<br />

versais e indivisíveis. Universais porque são<br />

para to<strong>do</strong>s. E indivisíveis porque formam<br />

uma totali<strong>da</strong>de solidária, que abrange os<br />

direitos individuais e coletivos. Os direitos<br />

individuais (civis e políticos) e os direitos<br />

coletivos (sociais, econômicos, culturais e<br />

ambientais) formam o conteú<strong>do</strong> mesmo <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Não podemos construir uma vi<strong>da</strong><br />

digna para to<strong>do</strong>s contemplan<strong>do</strong> a uns e ne-<br />

gligencian<strong>do</strong> a outros. O principal, o maior<br />

e talvez o único grande problema brasileiro<br />

é sermos um país de apartação, um país<br />

dramaticamente dividi<strong>do</strong> entre ci<strong>da</strong>dãos e<br />

sub-ci<strong>da</strong>dãos. Subnutrição, subemprego,<br />

sub-habitação, sub-educação, subdesenvol-<br />

vimento e tu<strong>do</strong> mais que começa com sub<br />

são as expressões deste cruel esta<strong>do</strong> de coi-<br />

sas, que nos acompanha em to<strong>da</strong>s as fases<br />

de nossa evolução histórica.<br />

Superar tu<strong>do</strong> isso é um objetivo nobre,<br />

superior e comum em que o Poder Judici-<br />

ário e as ONG’s podem e devem atuar con-<br />

juntamente, ou seja, como interlocutores<br />

e parceiros. Um objetivo nobre, superior e<br />

comum é uma causa. Uma causa é alguma<br />

coisa pela qual vale a pena trabalhar e lu-<br />

tar. Superar a subci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia é um objetivo<br />

comum <strong>da</strong>queles que atuam no marco <strong>da</strong>s<br />

políticas públicas e <strong>da</strong>queles que atuam no<br />

marco <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de social.<br />

Norberto Bobbio escreveu que “tu<strong>do</strong> é<br />

política, mas a política não é tu<strong>do</strong>”. Acima<br />

<strong>da</strong> política deve estar a ética, colocan<strong>do</strong><br />

limites à luta legítima <strong>da</strong>s pessoas e <strong>da</strong>s<br />

organizações para fazer prevalecer seus<br />

pontos de vistas e defender seus interesses<br />

no âmbito <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> democrático de direito,<br />

no que ele sabiamente chama de as regras<br />

<strong>do</strong> jogo democrático.<br />

Em razão disto é que tenho defendi<strong>do</strong><br />

com veemência a a<strong>do</strong>ção de uma ética de<br />

co-responsabili<strong>da</strong>de pelo to<strong>do</strong> como cami-<br />

nho para o Brasil enfrentar e vencer os seus<br />

grandes desafios. E quais são esses desafios?<br />

O desafio econômico <strong>da</strong> inserção competiti-<br />

va e soberana de nosso país numa economia<br />

internacional em acelera<strong>do</strong> e irreversível<br />

processo de globalização. O desafio social<br />

de erradicar as desigual<strong>da</strong>des intoleráveis,<br />

que nos dividem entre ci<strong>da</strong>dãos e subci<strong>da</strong>-<br />

dãos. E o desafio ético-político <strong>do</strong> respeito<br />

<strong>ao</strong>s direitos humanos e de participação de-<br />

mocrática <strong>da</strong> população.<br />

Para responder a estes três desafios,<br />

precisamos construir e tirar <strong>do</strong> papel três<br />

agen<strong>da</strong>s:<br />

(i) uma agen<strong>da</strong> de transformação produtiva,<br />

para enfrentar o desafio econômico,<br />

(ii) uma agen<strong>da</strong> de eqüi<strong>da</strong>de social, para<br />

enfrentar as desigual<strong>da</strong>des intoleráveis,<br />

(iii) uma agen<strong>da</strong> de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e justiça, para<br />

assegurar o respeito <strong>ao</strong>s direitos humanos e<br />

elevar e qualificar os níveis de participação<br />

democrática de nossa população;<br />

Não se pode pensar numa agen<strong>da</strong> de<br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e justiça sem pensar numa justiça<br />

acessível e ágil e esta não é uma causa ape-<br />

nas <strong>do</strong> Judiciário. É uma causa <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

como um to<strong>do</strong>. Existem ONG’s que lutam<br />

pelo direito no campo <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de so-<br />

cial nas mais diversas áreas ou no empenho<br />

Não se pode<br />

pensar numa<br />

agen<strong>da</strong> de<br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />

e justiça<br />

sem pensar<br />

numa justiça<br />

acessível e<br />

ágil.


- como é o caso <strong>do</strong> Instituto Ayrton Senna<br />

- para ampliar a cobertura e melhorar a<br />

quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s políticas públicas.<br />

Existem ONG’s que lutam pelo di-<br />

reito no campo <strong>do</strong> direito, defenden<strong>do</strong> os<br />

direitos <strong>da</strong> criança e <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente, <strong>do</strong><br />

jovem, <strong>da</strong> mulher, <strong>do</strong> deficiente, <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so,<br />

<strong>da</strong>s minorias e <strong>do</strong>s priva<strong>do</strong>s de liber<strong>da</strong>de.<br />

O Instituto Ayrton Senna é uma ONG.<br />

Nós temos a advocacia no cerne de nossa<br />

missão institucional. Não praticamos, no<br />

entanto, uma advocacia jurídica. Não atu-<br />

amos nos tribunais. Optamos por defen-<br />

der a causa que abraçamos - o desenvol-<br />

vimento <strong>do</strong> potencial <strong>da</strong>s novas gerações<br />

(crianças, a<strong>do</strong>lescentes e jovens) - por<br />

meio de uma advocacia ética, social e po-<br />

lítica. Nossa advocacia é para fazer saírem<br />

<strong>do</strong> papel leis como o Estatuto <strong>da</strong> Criança<br />

e <strong>do</strong> A<strong>do</strong>lescente e a LDB (Leis de Dire-<br />

trizes e Bases <strong>da</strong> Educação Nacional).<br />

Em que as ONG’s e o Poder Judiciário<br />

podem ser parceiros? As vestes talares - di-<br />

zia Santiago Dantas - não têm o branco <strong>da</strong><br />

paz, o verde <strong>da</strong> esperança, o vermelho <strong>da</strong><br />

luta e o azul <strong>da</strong> sereni<strong>da</strong>de. Resolver con-<br />

flitos com base na lei é uma tarefa muitas<br />

vezes dura e espinhosa. Por isso as vestes<br />

talares têm a cor negra <strong>da</strong> abnegação e <strong>da</strong><br />

renúncia. Ser um magistra<strong>do</strong> é renunciar a<br />

quase to<strong>da</strong>s a outras ativi<strong>da</strong>des em favor <strong>do</strong><br />

exercício <strong>da</strong> função judicante. Aos magis-<br />

tra<strong>do</strong>s, porém, não está ve<strong>da</strong><strong>do</strong> o exercício<br />

<strong>do</strong> magistério, <strong>da</strong> função de educar. To<strong>do</strong><br />

juiz pode exercer a função de professor <strong>ao</strong><br />

la<strong>do</strong> <strong>da</strong> função de magistra<strong>do</strong>. Sem jamais<br />

interferir no exercício <strong>da</strong> função judican-<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

te, vejo que ONG’s e o Judiciário podem e<br />

devem exercer juntos a função de educar a<br />

socie<strong>da</strong>de brasileira - com ênfase especial<br />

nas novas gerações: crianças, a<strong>do</strong>lescentes e<br />

jovens - para o exercício pleno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />

nos seus mais diversos âmbitos.<br />

Portanto, assim como um juiz pode<br />

acumular com o exercício <strong>da</strong> magistratura<br />

a função de professor, o Poder Judiciário<br />

pode e deve acumular em parceria com as<br />

ONG’s a função de educar o povo brasileiro<br />

para o exercício pleno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, para o<br />

exercício <strong>do</strong> direito de ter direitos e o dever<br />

de ter deveres. O Programa Eleitor <strong>do</strong> Futu-<br />

ro idealiza<strong>do</strong> pelo meu amigo Dr. Antônio<br />

Fernan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Amaral e Silva, quan<strong>do</strong> pre-<br />

sidente <strong>do</strong> TRE de Santa Catarina e, hoje,<br />

posto em prática por vários tribunais eleito-<br />

rais em to<strong>do</strong> país, é um exemplo vivo desta<br />

possibili<strong>da</strong>de, viabili<strong>da</strong>de e necessi<strong>da</strong>de de<br />

parceria entre o Esta<strong>do</strong> e as organizações <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de civil.<br />

Muitos outros programas nesta linha<br />

são possíveis e necessários nos mais di-<br />

versos âmbitos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>dã. Portanto a<br />

educação - insisto eu - é uma causa comum<br />

entre as ONG’s e o Judiciário. Numa demo-<br />

cracia o soberano é o povo. Se quisermos ter<br />

bons governos capazes de conduzir o país<br />

na consecução <strong>do</strong>s seus grandes objetivos<br />

nacionais permanentes, precisamos educar<br />

o soberano. E isto deve começar pelas crian-<br />

ças, os a<strong>do</strong>lescentes e os jovens.<br />

Muito obriga<strong>da</strong>!<br />

Viviane Senna é psicóloga e empresária. É<br />

Presidente <strong>do</strong> Instituto Ayrton Senna.<br />

215


Autonomia<br />

e Responsabili<strong>da</strong>de<br />

Princípio Constitucional <strong>da</strong> Autonomia<br />

Administrativa e Financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário e a<br />

Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal<br />

Ó mar salga<strong>do</strong>, quanto <strong>do</strong> teu sal São lágri-<br />

mas de Portugal<br />

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,<br />

Quantos filhos em vão rezaram, Quantas<br />

noivas ficaram por casar... Para que fosses<br />

nosso, ó mar!<br />

Valeu a pena? Tu<strong>do</strong> vale a pena Se a alma<br />

não é pequena.<br />

Quem quer passar além <strong>do</strong> Boja<strong>do</strong>r Tem<br />

que passar além <strong>da</strong> <strong>do</strong>r<br />

Deus <strong>ao</strong> mar o perigo e o abismo deu, Mas<br />

nele é que espelhou o céu.<br />

Senhoras e senhores,<br />

Permitam-me dedicar esta singela palestra<br />

à inteligência e inspira<strong>do</strong>ra coragem <strong>do</strong><br />

Ministro Maurício Corrêa, Presidente <strong>do</strong><br />

Supremo Tribunal Federal. Dedico-a, tam-<br />

bém, <strong>ao</strong> Desembarga<strong>do</strong>r Cláudio Maciel,<br />

presidente <strong>da</strong> <strong>AMB</strong>, <strong>ao</strong> Desembarga<strong>do</strong>r<br />

Amaral e Silva, presidente <strong>do</strong> TJSC, <strong>ao</strong> Juiz<br />

Rodrigo Collaço, presidente <strong>da</strong> AMC e a<br />

to<strong>do</strong>s os Magistra<strong>do</strong>s que, como eles, estão<br />

aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a construir um Poder Judiciário<br />

mais forte e uni<strong>do</strong>.<br />

Para iniciar nosso encontro, tomei de<br />

empréstimo os versos de Pessoa os quais<br />

traduzem, com singular beleza e poesia, o<br />

destemor necessário para enfrentar desafios<br />

e encarar o desconheci<strong>do</strong>. Talvez, e digo<br />

apenas talvez, seja necessário experimentar-<br />

mos a <strong>do</strong>r para, também nós juízes, ultra-<br />

passarmos o Boja<strong>do</strong>r.<br />

Mas como estamos na simpática Bahia,<br />

na<strong>da</strong> melhor <strong>do</strong> que citar um ilustre filho<br />

<strong>da</strong> terra a respeito <strong>da</strong>s conseqüências de<br />

uma palestra “li<strong>da</strong>”, como esta agora apre-<br />

senta<strong>da</strong>. Referia Jorge Ama<strong>do</strong> que “no<br />

embalo <strong>da</strong>s palavras <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r, meu pensa-<br />

mento não tar<strong>da</strong> a afastar-se <strong>do</strong> assunto em<br />

debate e parte, despreocupa<strong>do</strong>, em outras<br />

direções, as mais diversas”.<br />

Romano José Enzweiler<br />

É desejo sincero que as minhas palavras<br />

não os embalem no sono desta cáli<strong>da</strong> manhã<br />

de sexta-feira, mas os despertem, sem qual-<br />

217


218<br />

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E<br />

FINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

quer presunção, para os riscos de sermos<br />

Juízes, numa era estrutura<strong>da</strong> em cima <strong>do</strong><br />

desprezo pelo tempo e pelo espaço.<br />

Para tanto, valen<strong>do</strong>-me agora de Mon-<br />

taigne, divi<strong>do</strong> com a seleta audição “a res-<br />

ponsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra, que é metade de<br />

quem diz e metade de quem ouve”.<br />

Meus preza<strong>do</strong>s,<br />

O Judiciário, perplexo e atônito diante <strong>da</strong><br />

arrogância de um bizarro presidencialismo<br />

imperial que faz inaugurar uma espécie<br />

de nova I<strong>da</strong>de Média, desenha<strong>da</strong> nas in-<br />

terrogações <strong>do</strong> futuro e nos horizontes <strong>da</strong><br />

desorganização social, não quer, não pode e<br />

não vai calar.<br />

Vivemos horas amargas, numa constela-<br />

ção de autocracias e despotismos, e por isso<br />

nos é reserva<strong>da</strong> a defesa <strong>do</strong> humanismo tão<br />

maltrata<strong>do</strong>, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> razão no meio<br />

de asfixiante incerteza.<br />

Promovem-se reformas constitucionais<br />

às pressas, a partir de argumentos de terror.<br />

Celebra-se a superficiali<strong>da</strong>de irresponsá-<br />

vel no trato <strong>da</strong>s coisas públicas, ten<strong>do</strong>-se<br />

transforma<strong>do</strong> a falta de conhecimento em<br />

predica<strong>do</strong> <strong>do</strong> poder. Buscam fazer com que<br />

tenhamos orgulho <strong>da</strong> ignorância e menos-<br />

prezo pelos que se esforçam e aprendem.<br />

Criticam a erudição, ridicularizam o saber<br />

e desacreditam as ciências, jogan<strong>do</strong>-nos no<br />

abismo <strong>da</strong> pobreza fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong>ra, a fim<br />

de justificar a entronização <strong>do</strong>s medíocres.<br />

A lógica <strong>da</strong> argumentação está sen<strong>do</strong><br />

substituí<strong>da</strong> pela lógica <strong>da</strong> exterminação.<br />

Devemos denunciar o estarrece<strong>do</strong>r e<br />

aflitivo silêncio <strong>da</strong> intelectuali<strong>da</strong>de bra-<br />

sileira, <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de, a qual, em plena<br />

era comunicacional, continua de costas<br />

volta<strong>da</strong>s para a democracia, ignoran<strong>do</strong> sua<br />

destruição, admitin<strong>do</strong> seu esfacelamento<br />

inclusive, mas não só, através <strong>do</strong> grotesco<br />

desprestigiamento <strong>do</strong> Judiciário, como algo<br />

exótico, fugin<strong>do</strong> às responsabili<strong>da</strong>des que<br />

deveria assumir, aceitan<strong>do</strong> até com compla-<br />

cência argumentos falaciosos e mesquinhos<br />

publica<strong>do</strong>s por uma imprensa canhestra,<br />

comprometi<strong>da</strong> com o discurso oficial na<br />

exata e direta medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> liberação de verbas<br />

palacianas.<br />

Sim, desde situações prosaicas como a<br />

falta de material para procedimentos ordi-<br />

nários no Hospital <strong>do</strong> Câncer, em razão <strong>da</strong><br />

má administração promovi<strong>da</strong> pelas esco-<br />

lhas políticas efetua<strong>da</strong>s em detrimento <strong>da</strong>s<br />

opções técnicas, até as contas CC5 jamais<br />

explica<strong>da</strong>s, tu<strong>do</strong> é difuso neste complexo<br />

cenário de virulenta demagogia, que angus-<br />

tia mais e mais na medi<strong>da</strong> em que observa-<br />

mos, incrédulos, a ausência de um plano de<br />

governo substituí<strong>do</strong>, barbaramente, por um<br />

plano de poder, que se quer justificar pelo<br />

simples exercício desse poder, preferencial-<br />

mente eterno.<br />

O universo ético, agora páli<strong>do</strong> e obs-<br />

curo, transfigurou-se diante <strong>da</strong> imperati-<br />

vi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> deificação merca<strong>do</strong>lógica, cedeu<br />

passo à ideologia redutora, carente <strong>do</strong><br />

enquadramento <strong>do</strong>s fatos a uma teoria <strong>do</strong><br />

conhecimento que sintetize o seu significa-<br />

<strong>do</strong> histórico.<br />

É isso: em nome <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de produzi<strong>da</strong><br />

pela competência midiática em tempos de<br />

relações fugazes e epidérmicas, que no fun-<br />

<strong>do</strong> nunca se satisfazem, estamos permitin<strong>do</strong><br />

que matem a história e, com ela, o direito e<br />

as conquistas <strong>da</strong> civili<strong>da</strong>de.<br />

E esse pós-modernismo confuso nos lega<br />

uma de suas expressões mais cruéis, qual<br />

Buscam fazer<br />

com que<br />

tenhamos<br />

orgulho <strong>da</strong><br />

ignorância e<br />

menosprezo<br />

pelos que se<br />

esforçam e<br />

aprendem.


seja, o nihilismo <strong>do</strong>entio. Na<strong>da</strong> <strong>do</strong> que existe<br />

é bom e deve, portanto, ser substituí<strong>do</strong>.<br />

É bem possível que o filósofo iraniano<br />

Daryush Shayegan tenha razão: o mun<strong>do</strong><br />

caótico em que vivemos é o ponto de con-<br />

vergência de três fenômenos - o desencan-<br />

tamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a destruição <strong>da</strong> razão e<br />

a virtualização. Há, de fato, uma excessiva<br />

veloci<strong>da</strong>de nas coisas. Descartam-se as pes-<br />

soas, esquecen<strong>do</strong>-se que o amor, para ser<br />

amor, tem de ter continui<strong>da</strong>de.<br />

Pois que o apavorante movimento <strong>da</strong>s<br />

privatizações segue inexorável. A educação,<br />

com seus rentáveis colégios e universi<strong>da</strong>-<br />

des particulares, a saúde, com seus planos<br />

e carências, a segurança, que só permite<br />

esteja arma<strong>do</strong> o desprepara<strong>do</strong> vigilante <strong>da</strong>s<br />

empresas especializa<strong>da</strong>s, a previdência, com<br />

a abertura <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> para grandes grupos<br />

internacionais e agora... a justiça... Tu<strong>do</strong> <strong>ao</strong><br />

alcance <strong>da</strong>queles - e só <strong>da</strong>queles - que pude-<br />

rem pagar, num evidente sepultar de direi-<br />

tos prestacionais prometi<strong>do</strong>s pela linhagem<br />

político-populista, que modificam, irreme-<br />

diavelmente, nossa fisionomia cultural.<br />

O fato real é que a própria democracia,<br />

eleito valor supremo de nossa comuni<strong>da</strong>de<br />

civilizacional, para existir, pressupõe a<br />

liber<strong>da</strong>de e a independência <strong>da</strong>s pessoas<br />

e instituições. No estreito contexto desta<br />

palestra, para que isso seja de fato efetivo e<br />

ver<strong>da</strong>deiro, há de se respeitar a autonomia<br />

financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário, conforme<br />

estampa<strong>do</strong> no artigo 99 <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong><br />

República.<br />

Em resumo, as questões que preten<strong>do</strong><br />

trabalhar são estas: 1. Analisan<strong>do</strong> a história<br />

<strong>do</strong>s povos ocidentais, é possível falar-se em<br />

democracia contemporânea sem observar<br />

o princípio <strong>da</strong> separação <strong>do</strong>s poderes? 2. É<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

imprescindível, para tanto, que haja inde-<br />

pendência orçamentária e financeira, a den-<br />

sificar o princípio maior? 3. A autonomia<br />

financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário, portanto,<br />

pode-se incluir dentre as cláusulas pétreas,<br />

protegi<strong>da</strong> de eventuais reformas? 4. Pode<br />

a Lei de Responsabili<strong>da</strong>de Fiscal mitigar,<br />

legitimamente, este princípio, sem trans-<br />

formar o país numa “democracia vazia”<br />

ou promover, ain<strong>da</strong> mais, a hipertrofia <strong>do</strong><br />

Executivo?<br />

Pois bem!<br />

Neste mun<strong>do</strong> pós-moderno, vivemos o di-<br />

lema <strong>da</strong> dissintonia, <strong>da</strong> incompatibili<strong>da</strong>de<br />

estrutural entre os tempos <strong>do</strong> direito e <strong>da</strong><br />

economia, passan<strong>do</strong> a Constituição, repre-<br />

sentação mais digna e exuberante de nossa<br />

leitura <strong>do</strong>s fatos, a partir <strong>da</strong> normatização<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a encarnar uma caricatura desfigu-<br />

ra<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

Também nesta quadra, estamos apren-<br />

den<strong>do</strong> a conviver com fenômenos até então<br />

desconheci<strong>do</strong>s, de difícil “digestão”, como a<br />

desterritorialização <strong>da</strong>s decisões e a despoli-<br />

tização <strong>da</strong> economia, ven<strong>do</strong> nossas decisões<br />

locais serem monitora<strong>da</strong>s por organismos<br />

multilataterais.<br />

A “dinâmica <strong>da</strong> política economiciza-<br />

<strong>da</strong>” produziu a “tragédia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”, <strong>ao</strong><br />

transformá-lo em mero “ator local”.<br />

Numa simplificação singela e não sem<br />

riscos, poderíamos dizer que se “trata-se <strong>do</strong><br />

novo autoritarismo de uma socie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>mi-<br />

na<strong>da</strong> por grupos que não conhecem limites<br />

às suas pretensões e não querem a política<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> limitan<strong>do</strong>-os”. No contexto, “a<br />

panacéia para to<strong>do</strong>s os problemas sociais<br />

passa a ser o desmonte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a desju-<br />

219


220<br />

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E<br />

FINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

ridificação.”<br />

Não precisamos destacar os perigos<br />

implica<strong>do</strong>s na destruição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, “na<br />

sua deslegitimação, com a completa ato-<br />

mização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Uma socie<strong>da</strong>de civil<br />

forte necessita de um Esta<strong>do</strong> forte, pois sem<br />

isso não tem como atingir as suas próprias<br />

finali<strong>da</strong>des.”<br />

Com isso, atinge-se e macula-se núcleo<br />

<strong>da</strong> Constituição, tais os direitos fun<strong>da</strong>men-<br />

tais e a própria democracia.<br />

Para contornar os efeitos <strong>do</strong> fenômeno,<br />

agravan<strong>do</strong> a crise <strong>do</strong> constitucionalismo, o<br />

governo utiliza os dispositivos constitucio-<br />

nais de maneira retórica, minimizan<strong>do</strong> com<br />

isso a pressão sobre o sistema político pelo<br />

não cumprimento <strong>da</strong>s promessas que fez e,<br />

assim, engrossa sua legitimação popular,<br />

desfocan<strong>do</strong> como<strong>da</strong>mente a responsabili<strong>da</strong>-<br />

de pelas frustrações causa<strong>da</strong>s.<br />

Assim posto, não é exagero ver caracte-<br />

riza<strong>da</strong>s as democracias atuais pelo desinte-<br />

resse generaliza<strong>do</strong> <strong>da</strong>s pessoas em relação<br />

à política, pela grande influência <strong>do</strong> poder<br />

econômico sobre os processos eleitorais,<br />

pela manipulação <strong>da</strong> opinião pública pelos<br />

meios de comunicação, pela corrupção ge-<br />

neraliza<strong>da</strong> <strong>do</strong>s governos, pela ausência de<br />

fideli<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s governantes <strong>ao</strong>s princípios de<br />

seus parti<strong>do</strong>s e às propostas de campanha,<br />

pela internacionalização <strong>da</strong>s questões que,<br />

ver<strong>da</strong>deiramente, configuram a autodeter-<br />

minação de uma nação.<br />

Esta baixa densi<strong>da</strong>de democrática, para<br />

utilizarmos a expressão de Samir Amim,<br />

acompanha-nos desde sempre. Dizia Rui<br />

Barbosa, no final <strong>do</strong> século XIX, que “(..)<br />

o presidencialismo brasileiro não é senão a<br />

ditadura em esta<strong>do</strong> crônico, a irresponsa-<br />

bili<strong>da</strong>de geral, a irresponsabili<strong>da</strong>de conso-<br />

li<strong>da</strong><strong>da</strong>, a irresponsabili<strong>da</strong>de sistemática <strong>do</strong><br />

Poder Executivo”.<br />

Para ficarmos apenas com nossa reali-<br />

<strong>da</strong>de presente: durante a campanha política<br />

foram sonega<strong>do</strong>s os planos de reforma <strong>da</strong><br />

previdência e tributária e, <strong>ao</strong> mesmo tempo,<br />

tais projetos foram, se não urdi<strong>do</strong>s, <strong>ao</strong> me-<br />

nos chancela<strong>do</strong>s expressamente pelo FMI.<br />

A questão, preciso referir, não se esgota no<br />

malferimento de um ultrapassa<strong>do</strong> modelo<br />

de soberania formal. É muito mais profun-<br />

<strong>da</strong> e perversa, principalmente em países<br />

localiza<strong>do</strong>s na região periférica <strong>do</strong> sistema<br />

decisional, como procurarei demonstrar.<br />

Assim é que desde a Convenção de Fi-<br />

ladélfia, acentuou-se a idéia de que o prin-<br />

cípio político <strong>da</strong> separação <strong>do</strong>s poderes é<br />

essencial para a liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s povos e, pois,<br />

elemento estruturante <strong>da</strong> democracia.<br />

O mesmo se pode asseverar acerca <strong>da</strong><br />

ordem político-constitucional brasileira<br />

inaugura<strong>da</strong> em 1988 que, <strong>ao</strong> elencar a sepa-<br />

ração <strong>do</strong>s poderes como princípio basilar,<br />

cláusula pétrea portanto, veio coroar uma<br />

tradição de quase <strong>do</strong>is séculos.<br />

Observe-se, pois, que assiste inteira<br />

razão <strong>ao</strong> Ministro Carlos Ayres <strong>ao</strong> destacar<br />

que as cláusulas pétreas, introduzi<strong>da</strong>s no<br />

Texto Maior, corporificam a democracia<br />

mesma, sen<strong>do</strong> expressão <strong>da</strong> limitação <strong>do</strong><br />

poder, <strong>da</strong> contenção <strong>do</strong> poder, <strong>da</strong> divisão<br />

<strong>do</strong> poder e, finalmente, <strong>da</strong> participação <strong>do</strong><br />

povo no poder.<br />

Dessa forma, defender as cláusulas<br />

pétreas, defender a separação <strong>do</strong>s poderes é<br />

defender a integri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> democracia bra-<br />

sileira.<br />

Verifiquemos, agora, a segun<strong>da</strong> questão<br />

proposta, isto é, se se afigura imprescin-<br />

dível, para tanto, que haja independência<br />

Defender as<br />

cláusulas<br />

pétreas,<br />

defender a<br />

separação<br />

<strong>do</strong>s poderes<br />

é defender a<br />

integri<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

democracia<br />

brasileira.


orçamentária e financeira, a densificar o<br />

princípio maior.<br />

Simplifiquemos as coisas e desde já res-<br />

pon<strong>da</strong>mos: o Poder Judiciário sobrevive e se<br />

justifica em razão de sua independência, <strong>da</strong><br />

autonomia de suas decisões. Existe, <strong>ao</strong> fim<br />

<strong>da</strong>s contas, segun<strong>do</strong> a moderna <strong>do</strong>utrina,<br />

não para fiscalizar a implementação efetiva<br />

<strong>do</strong> programa constitucional, mas para con-<br />

trolar a violação de direitos fun<strong>da</strong>mentais<br />

pelas maiores eventuais. O Judiciário é<br />

considera<strong>do</strong>, como visto agora acima, um<br />

guardião desse grande momento em que se<br />

forja a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nação.<br />

Quan<strong>do</strong> o Presidente <strong>da</strong> República pede<br />

e reforma <strong>do</strong> Judiciário, acusan<strong>do</strong> o Poder<br />

de possuir “caixas pretas”, no fun<strong>do</strong> o que<br />

faz “é agir como interlocutor <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>”,<br />

que quer o Judiciário “barato” e que não<br />

atrapalhe os negócios priva<strong>do</strong>s, a livre nego-<br />

ciação, principalmente <strong>do</strong> poderoso sistema<br />

financeiro. Se, para tanto, for necessário,<br />

como parece, desmoralizar os Juízes, paci-<br />

ência. “Para o merca<strong>do</strong>, a questão <strong>da</strong> justiça<br />

é uma questão absolutamente secundária.”<br />

O que devemos reafirmar, à exaustão,<br />

é que “sem a mediação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a econo-<br />

mia se torna uma espoliação organiza<strong>da</strong>,<br />

não mais permitin<strong>do</strong> que o Esta<strong>do</strong> tome<br />

decisões de merca<strong>do</strong>, mas ele (o merca<strong>do</strong>) a<br />

tomar decisões de Esta<strong>do</strong>.”<br />

Numa palavra: o Judiciário transfor-<br />

mou-se no superego de uma socie<strong>da</strong>de<br />

profun<strong>da</strong>mente transtorna<strong>da</strong> pela nova eco-<br />

nomia de merca<strong>do</strong> transnacional e deve, <strong>ao</strong><br />

mesmo tempo e, até para<strong>do</strong>xalmente, pro-<br />

mover as conquistas materiais e as vanta-<br />

gens advin<strong>da</strong>s com a mais flui<strong>da</strong> circulação<br />

<strong>do</strong>s fatores de produção mas, igualmente,<br />

superar <strong>ao</strong> menos a vulgata <strong>da</strong> economia<br />

CIDADANIA E JUSTIÇA<br />

ultra-liberal e <strong>da</strong>r <strong>ao</strong> conceito de moderni-<br />

<strong>da</strong>de um significa<strong>do</strong> mais abrangente <strong>do</strong><br />

que a patética “merca<strong>do</strong>rização” <strong>da</strong>s coisas<br />

e <strong>do</strong>s seres. Enfim, <strong>ao</strong> direito cabe “limitar<br />

o poder econômico, pois que, sem essa limi-<br />

tação, não há como impedir os fenômenos<br />

correlatos <strong>da</strong> concentração de ren<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />

exclusão social.”<br />

Sem o Judiciário livre e altivo, portanto,<br />

“as liber<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>mentais não passam de<br />

ornamento gráfico na tessitura formal <strong>do</strong>s<br />

dispositivos constitucionais”.<br />

Num mun<strong>do</strong> singulariza<strong>do</strong> pela con-<br />

tundência <strong>do</strong>s fatores econômicos, é lícito<br />

intuir que sem um orçamento próprio,<br />

confecciona<strong>do</strong> conjuntamente pelos Poderes<br />

e geri<strong>do</strong> pelo próprio Judiciário, será ele<br />

transforma<strong>do</strong> numa filial, num departa-<br />

mento <strong>do</strong> Poder Executivo.<br />

Portanto, o que se verifica é que o sub-<br />

princípio <strong>da</strong> autonomia financeira <strong>do</strong> Judi-<br />

ciário densifica e materializa outro princí-<br />

pio maior, elenca<strong>do</strong> como cláusula pétrea: a<br />

separação <strong>do</strong>s poderes.<br />

Não há dúvi<strong>da</strong>s, portanto, que a in-<br />

tangibili<strong>da</strong>de, a imutabili<strong>da</strong>de que marca<br />

o princípio sobranceiro <strong>da</strong> separação <strong>do</strong>s<br />

poderes também se aplica, sem embargo, à<br />

autonomia financeira <strong>do</strong> Poder Judiciário.<br />

Nenhuma lei complementar, tal a de<br />

responsabili<strong>da</strong>de fiscal pode, sequer tangen-<br />

cialmente, sombrear os princípios-síntese<br />

<strong>da</strong> República brasileira. Quan<strong>do</strong> houver<br />

colidência, será ela sempre resolvi<strong>da</strong> a favor<br />

<strong>da</strong> norma constitucional que define e densi-<br />

fica a separação <strong>do</strong>s poderes.<br />

E é exatamente por isso que o artigo<br />

99 <strong>da</strong> Carta <strong>da</strong> República deve ser leva<strong>do</strong><br />

a efeito por to<strong>do</strong>s os Tribunais, exigin<strong>do</strong> a<br />

participação concreta na formulação <strong>da</strong>s po-<br />

221


222<br />

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E<br />

FINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL<br />

líticas públicas dentre as quais se destacam,<br />

à obvie<strong>da</strong>de, a justiça e a segurança.<br />

Cabe <strong>ao</strong>s próprios Juízes, e a mais nin-<br />

guém, fazer cumprir a máxima de Hegel<br />

retoma<strong>da</strong>, de certa forma, por Chersterton,<br />

de que a ver<strong>da</strong>deira reali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem é<br />

a sua ação, e que a palavra que não procura<br />

tornar-se ação... é palavra inútil.<br />

Despeço-me <strong>do</strong>s eminentes colegas, agra-<br />

decen<strong>do</strong> a paciência e educação com que me<br />

toleraram, trazen<strong>do</strong> como mensagem final a<br />

sempre lúci<strong>da</strong> percepção de Ruy Barbosa:<br />

“A Constituição está em destroços e o que nos<br />

ameaça agora é, com a última ruína de nos-<br />

sas liber<strong>da</strong>des, a per<strong>da</strong> total de nós mesmos.<br />

Não é a Constituição que se acha em perigo;<br />

é a pátria, o Brasil, a nossa integri<strong>da</strong>de, a<br />

nossa coletivi<strong>da</strong>de, tu<strong>do</strong> o que somos, tu<strong>do</strong><br />

o que éramos, tu<strong>do</strong> o que aspiramos a ser, a<br />

nossa existência mesma nos seus elementos<br />

morais, em to<strong>da</strong>s as condições de sua reali<strong>da</strong>-<br />

de, de seu valor, de sua atuali<strong>da</strong>de e de seu<br />

futuro, <strong>da</strong> sua duração e <strong>da</strong> sua força, <strong>do</strong> seu<br />

empréstimo e <strong>do</strong> seu futuro.”<br />

Muito obriga<strong>do</strong>.<br />

Romano José Enzweiler<br />

Juiz de Direito


R E V I S TA D A

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