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Diu: urbanismo, arquitectura militar e arquitectura religiosa

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as de duas águas, bem como pelas janelas e portas de<br />

carepas com provável influência de Goa, tal como a<br />

mobília e a própria tipologia.<br />

O pequeno território da praganá de Nagar-Havelly,<br />

junto a Damão, rico em florestas de teca, sua principal<br />

riqueza, integra um pequeno conjunto de aldeias<br />

maioritariamente hindus e ainda algumas famílias<br />

católicas. As casas resguardam-se do calor sob a sombra<br />

de frondosas e protetoras árvores. Na aldeia de<br />

Nardi, a caminho de Silvassa, ainda predominam as<br />

casas de armação vegetal preenchida com terra e argamassa,<br />

por vezes integrando bosta e/ou palha. Algumas<br />

apresentam forte cor alaranjada, acentuando a sua<br />

presença entre o verde do arvoredo.<br />

Nalguns casos, o alpendre protetor do calor e da<br />

chuva é integralmente construído, talvez numa evo­<br />

lução tipológica recente, ficando apenas a porta central<br />

para acesso. De um modo geral, as coberturas são<br />

cerâmicas de duas águas, e as zonas superiores das<br />

empenas mantêm só a estrutura de madeira para ventilar,<br />

mas protegidas com alas. A organização espacial<br />

mantêm-se idêntica às outras aldeias de Damão.<br />

(VM)<br />

BIBLIOGRAFIA: Brito, R. S., Goa e as praças do Norte, Lisboa, 1966.<br />

Dahanu [Danu] (íNDIA)<br />

ARQUITETURA MILITAR<br />

> FORTE<br />

O pequeno porto de Danu localiza-se na margem<br />

norte da barra do rio com o mesmo nome, cerca de cin­<br />

quenta quilómetros a sul de Damão. A praganá de<br />

Danú, ocupada em 1559 pelos portugueses, era uma<br />

das subdivisões do distrito de Damão. A principal função<br />

da posição costeira era defender as terras envolventes<br />

dos ataques predatórios de piratas. Como tal,<br />

cerca de 1635 resumia-se a uma casa fortificada, protegida<br />

por uma pequena muralha, e ainda um baluarte<br />

saliente com algumas peças de artilharia. Para além da<br />

estrutura defensiva, estava próxima à Igreja de Nossa<br />

Senhora das Angústias, para assistência à pequena<br />

comunidade de cristãos residentes na povoação.<br />

Durante os vários conflitos com os maratas entre 1683<br />

e 1739, existem escassas referências a Danu. Durante<br />

o período marata, a estrutura foi· remodelada e assim<br />

a encontraram os ingleses em 1817. Dessa fase resulta<br />

o essencial da estrutura atual, usada para quartel de<br />

forças da polícia: um perímetro retangular defendido<br />

por quatro redutos nos seus cantos, com várias dependências<br />

e um poço no seu interior. (SM)<br />

<strong>Diu</strong> (íNDIA)<br />

112 . PATR IMÓN IO DE ORIGEM PORTUGUES A N O MUNDO: ARQU ITETURA E URBANISMO<br />

ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E URBANISMO<br />

Em 3 de fevereiro de 1509 travou-se na barra de <strong>Diu</strong>,<br />

em plena costa do reino ou sultanato do Gujarate - ou<br />

de Cambaia, como os portugueses o designavam -<br />

a mais importante batalha naval na história da presença<br />

portuguesa no Oriente, pois abriu-lhes o domínio<br />

do Índico durante tempo suficiente para estabelecerem<br />

o que veio a ser o Estado da Índia. Comandados<br />

pelo vice-rei Francisco de Almeida, os portugueses<br />

destruíram uma frota comandada por Mir Hussein<br />

(Hussein Al Kurdi) e composta por forças do sultanato<br />

mamei ueo do Cairo e Alexandria, mercenários rumes<br />

e efetivos do samorim de Calecute e do sultão de Gujarate,<br />

estes armados por Meliqueaz (Malik Aiyaz),<br />

antigo escravo tártaro que era o governante de <strong>Diu</strong> e,<br />

assim, vassalo daquele sultão. A coligação inimiga, que<br />

há pouco mais de um ano patrulhava o Índico de forma<br />

a contrariar os propósitos portugueses e assim proteger<br />

os interesses mercantis muçulmanos, contava<br />

ainda com o apoio das repúblicas (católicas) adriáticas<br />

de Veneza e Ragusa.<br />

Paradoxalmente, pelo menos para a historiografia<br />

tradicional, esse marco estratégico na história da presença<br />

portuguesa no Oriente tem sido essencialmente<br />

assumido como resultado de uma mera vingança pessoal<br />

do comandante português pela morte do seu filho,<br />

Lourenço de Almeida, um ano antes, no encontro naval<br />

entre as mesmas armadas frente a Chaul, cujo resultado<br />

foi desastroso para os portugueses, asserção essa<br />

que é suportada por factos e fontes credíveis. Na realidade<br />

foi o seu último ato digno de nota enquanto vice­<br />

-rei, aliás produzido em desobediência, pois já recebera<br />

ordens expressas do rei para entregar o governo<br />

a Afonso de Albuquerque. Foi, porém, uma ação coerente<br />

com a estratégia que definira, de mero domínio<br />

dos mares e combate às redes mercantis estrangeiras,<br />

visando substituí-las sem desígnios de soberania sobre<br />

os governos autóctones. Os feitos imediatos de Afonso<br />

de Albuquerque em Goa (1510) e Malaca (1511) não<br />

teriam sido possíveis sem a destruição desta primeira<br />

frota de coligação muçulmana, com um mal disfarçado<br />

apoio das repúblicas mercantis do Adriático.<br />

No estabelecimento e estruturação de uma rede de<br />

portos no índico os oponentes eram, de facto, os<br />

muçulmanos e <strong>Diu</strong> era nisso um porto chave. Situada<br />

no extremo da Península de Katiavar, na confluência<br />

de territórios e de culturas diversas, era central em<br />

relação aos fluxos comerciais entre o Golfo Pérsico, o<br />

Mar Vermelho e todo o Hindustão, com especial destaque<br />

para a sua posição como ponto de acesso aos


Forte (Baluarte<br />

Cavaleiro e a<br />

cidade vistos<br />

da primeira linha<br />

de mura"as)<br />

foto: Nur.c:. Grancho<br />

ricos portos do Golfo de Cambaia. Era ainda importante<br />

a sua fácil articulação náutica com a costa orientai<br />

africana. Excelentes condições natl.ffais coroavam<br />

a sua posição geográfica. Com efeito, <strong>Diu</strong> sendo uma<br />

ilha separada do território continental gujarati por um<br />

canal apenas navegável na entrada oriental, determi­<br />

nou que a urbe e sistema fortificado se desenvolvessem<br />

nesse extremo da ilha, aliás de forma afilada e algo<br />

alcantilada. <strong>Diu</strong> significa "luz':<br />

Apesar da estrondosa vitórial o domínio sobre o<br />

local não foi imediato. Os ensaios de conquista de<br />

Afonso de Albuquerque, em 1513, e de Diogo Lopes de<br />

Sequeira, em 1521, falharam. Pelo meio ficou a autorização,<br />

obtida por Albuquerque em 1514, para a insta­<br />

lação de uma feitorial que funcionou com enorme rendimento<br />

precisamente até àquela última tentativa.<br />

O controlo do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho tardava<br />

e uma instalação mais sólida no litoral hindustânico<br />

de soberania muçulmana foi gradual e apenas assumidamente<br />

pretendida com a governação territorializante<br />

de Nuno da Cunha (1529-1538). Favoreceu-o a<br />

pressão exercida pelo Império Mogol sobre o Gujarate,<br />

que permitiu a ocupação dos territórios de Baçaim em<br />

dezembro de 1534 e, em setembro seguintel a autorização<br />

para uma instalação efetiva em <strong>Diu</strong>, especificamente<br />

através da célere conformação de uma fortaleza<br />

no extremo nascente da ilha. O sultão gujarati, BahadUl<br />

sofrera uma pesada derrota e refugiara-se com a<br />

sua corte em <strong>Diu</strong>, solicitando aos portugueses apoio<br />

para a defesa, pois o ataque mogol era iminente. Tal<br />

como em Baçaim, o comando operacional foi de Martim<br />

Afonso de Sousa.<br />

Por estas razões, os estatutos de cedência de Baçaim<br />

e de <strong>Diu</strong> são muito diversos, e deram origem a situações<br />

urbanas necessariamente muito diferentes.<br />

Do ponto de vista político-administrativo, <strong>Diu</strong> surgiu<br />

como uma espécie de protetorado português de uma<br />

pequena porção do sultanato gujarati, que acabaria por<br />

ir integrando toda a ilha, a sua população el ainda, uma<br />

Ínfima porção do território mais próximo no continente.<br />

O resultado imediato foi uma partilha de poder<br />

entre o rei local, que se manteve soberano sobre o território<br />

continental I e o Estado da 1ndia, que almejava<br />

tutelar a soberania dos mares e o comércio nas portas<br />

do Golfo de Cambaia. Ao invés de outras instalações<br />

como Baçaim ou Goa, à instalação em <strong>Diu</strong> nunca<br />

esteve subjacente qualquer desígnio de controlo e<br />

expansão territorial, de senhorialização e rendimento<br />

fundiário. A instalação era de controlo <strong>militar</strong>, marítimo<br />

e comercial, no que aliás cedo fraquejou, pois os<br />

portugueses nunca lograram controlar o Golfo de<br />

Cambaia - nem mesmo com a ocupação de Damão em<br />

1559 - e os muçulmanos desenvolveram alternativas.<br />

Sob o domínio portuguêsl <strong>Diu</strong> exportava essencialmente<br />

a produção próprial pois do continente pouco<br />

ali passou a afluir.<br />

Porém, o entendimento do sultão sobre o negócio<br />

que fizera era bastante diferente do dos portugueses e<br />

PRovINClA DO NORTE I NORTE DA INDIA' DAMÃO " DIU · 113


<strong>Diu</strong><br />

I. Foruleu de<br />

São Tomo!<br />

2. en. do Capitic<br />

,<br />

3. Poru. e Caos<br />

. Ba.1urte de<br />

SãoJ(ou do:<br />

São M:trtinho)<br />

5. Baluarte de<br />

Santo. Tere»<br />

6. Baluarte de<br />

Santo.lu;a<br />

7. Couraça Grand<br />

ou Balu3J"\e<br />

da Barrn<br />

e. Ba.lume Chato<br />

9, Baluarte de<br />

São TIago<br />

IO,BaJuartede<br />

São FHipe<br />

II.Ba!uarte<br />

CavJIero<br />

(iOJeialmeme<br />

de São Tomo!)<br />

12.Ba.luarte de<br />

São Nicolau<br />

IJ.B.aluarte de<br />

Menagem<br />

(inicialmente<br />

de São TIago)<br />

1.Baluanede<br />

5.10 Domingo<<br />

ou da Madre<br />

",O."<br />

15.Poru. do<br />

primeiro fone<br />

portugutl:s<br />

16,Muralha urbana,<br />

cerca da cid.de<br />

17.PortadoCampc<br />

e Praa do<br />

No..., Bazar<br />

IS.Balu.rtc dos<br />

Excomungados<br />

19.Baluarte do Mar<br />

20,Sitiodaprimt" .. a<br />

M.""<br />

2 I.Capl':Ia de<br />

o Martinho<br />

e (adjacente)<br />

sitiod.'8<br />

da MtSencórdi."l<br />

n.Capebde<br />

São TIago<br />

23.MauU<br />

(gi igreja du<br />

OnzeMV<br />

e colégio jesuita)<br />

H.lgf"elJ de<br />

São Tomé<br />

25, Recolhimento<br />

de Santana<br />

26,Sido do<br />

con...emo dos<br />

Dominicanos<br />

27.lgreia e Convem,<br />

de So Francisco<br />

(actual hospital)<br />

28.Sftio do Hospital<br />

Real e ConventO<br />

de São J050<br />

de Deus<br />

29,s.ítio da Igreja de<br />

Nossa Senhon<br />

d


uma vez afastada, no imediato, a ameaça mogol e formada<br />

a fortaleza, tentou livrar-se dos portugueses, o<br />

que lhe valeu a morte em fevereiro de 1537, ou melhor,<br />

o assassinato, pois tratou-se de um acidente simulado.<br />

Mas de novo se formava uma armada turca e mameluca<br />

a partir do Cairo e ao longo do Suez para dar combate<br />

aos portugueses, sendo <strong>Diu</strong> o objeto concreto e<br />

imediato de ataque. Mais uma vez, estavam coordena­<br />

dos com a resistência local gujarati. Os portugueses<br />

reforçaram o dispositivo defensivo, preparando-se<br />

para um cerco. Coube a António da Silveira comandar<br />

a defesa do cerco, instalado em agosto de 1538. Os gujaratis<br />

ocuparam então a cidade, obrigando os portugue­<br />

ses a confinar-se à fortaleza. A esquadra turca desembarcou<br />

um mês depois. Tudo parecia perdido, mas a<br />

estrutura defensiva aguentou e em 5 de novembro os<br />

turcos levantaram ferro e os gujaratis o cerco.<br />

Em 1546 a história repetiu-se, sendo que desta vez o<br />

ataque apanhou de surpresa as duas centenas de portugueses<br />

colocados em <strong>Diu</strong>. O infernal cerco durou de<br />

21 de abril a 11 de novembro, atravessando!oda a mon­<br />

ção, o que impedia o socorro português, que necessariamente<br />

tinha de chegar por mar. Os sitiantes contaram<br />

com a colaboração de mercenários italianos,<br />

designadamente engenheiros <strong>militar</strong>es, e lograram romper<br />

a cortina defensiva, dando azo a combates corpo a<br />

corpo. De facto, mais uma vez tudo pareceu perdido,<br />

"<br />

mas finda a monção a chegada do vice-rei João de Castro<br />

com reforços resolveu o cerco numa semana. Ambas<br />

as vitórias foram amplamente celebradas e deram ori­<br />

gem a um gradual aumento de soberania portuguesa<br />

sobre a ilha. Por exemplo, em 1554 passaram a arrecadar<br />

todas as receitas da alfândega, em vez do terço ql!\":.!<br />

haviam negociado anteriormente. Claro que a oportunidade<br />

foi determinada por mais um facto local que<br />

gerou uma grande convulsão no Gujarate: a morte do<br />

sultão Mahmud III. De 1570 a 1574 os portugueses intervieram<br />

na muralha urbana, o que significa a assunção<br />

do controlo global da cidade, então e sempre de uma<br />

forma razoavelmente cordata, respeitando princípios de<br />

identidade e liberdade <strong>religiosa</strong> de uma forma sem paralelo<br />

em qualquer outra posição no Hindustão.<br />

Em tudo o que acima se tem vindo a relatar está não<br />

apenas evidente a relevância que os muçulmanos atribuíam<br />

ao local, mas também subjacente o papel determinante<br />

da fortaleza na sua defesa, sendo que a sua<br />

conformação foi dinâmica, evolutiva. Depois do cerco<br />

de 1546 seria submetida a uma reforma radical, pela<br />

introdução de uma nova cava e de baluartes de ore­<br />

lhões, o que, com pequenas aJterações,lhe daria a C011figuração<br />

que ainda hoje exibe, resistindo à ruína. De<br />

tudo isso, bem como do seu interior, daremos melhor<br />

conta na entrada seguinte. Vejamos entretanto algo<br />

116 . PATRIM ÓNIO DE ORIGEM PORTUGU ESA NO MUND O: ARQUITETURA E URBAN IS MO<br />

sobre a cidade em si, sendo que é desde logo imperioso<br />

assinalar o carácter verdadeiramente excepcional e<br />

único, no âmbito do património europeu na Asia, da<br />

fortaleza e da igreja jesuíta, o que é tratado em entradas<br />

específicas.<br />

<strong>Diu</strong> é uma ilhafusiforme, com cerca de quinze quilómetros<br />

no seu eixo maior (este-oeste) e um máximo<br />

de cinco na respectiva meridiana. A ponta continental<br />

do outro lado do canal e da ponte é Gogolá, aldeia sobre<br />

uma restinga de areia com cerca de dois quilómetros<br />

quadrados, que sempre esteve integrada nos domínios<br />

da ilha. Quando os portugueses ali se instalaram existiam<br />

duas pontes que faziam a ligação, mas que o vice­<br />

-rei João de Castro, apesar de as elogiar efusivamente,<br />

mandou destruir para isolar a ilha, aumentando a sua<br />

segurança. Como já acima se disse, a cidade localiza*se<br />

no extremo oriental da ilha e é cingida por uma cintura<br />

de muralhas anteriores à presença portuguesa, que a<br />

envolviam pela frente do canal e terra até ao século XIX.<br />

Da banda do mar, apenas uma enseada necessitou de<br />

fortificação, uma vez que a costa é abrupta, imprópria<br />

para qualquer tipo de desembarque.<br />

Os portugueses introduziram algumas alterações e<br />

reforços na muralha gujarati, designadamente em<br />

1574, mas o essencial manteve-se. Hoje, desse perímetro<br />

geral conserva-se apenas a cortina que atalha a<br />

cidade do resto da ilha. A área muralhada é considerável,<br />

o que faz com que a maior parte não esteja nem<br />

nunca tenha sido ocupada. Por outro lado, confirma o<br />

facto de o núcleo urbano ser anterior ao seu amuralha­<br />

menta. O território delimitado é acidentado, marcado<br />

por alguns morros e barrancos, descendo mais suave­<br />

mente junto à frente para O canal.<br />

A cidade gujaratí - uma medina - desenvolve-se<br />

densa e literalmente contra a muralha, centrada na<br />

Porta do Campo, com distensão para a frente portuária,<br />

hoje em termos de movimento uma sombra de<br />

outros tempos. Na sua estrutura geral não apresenta<br />

de forma sistemática a morfologia habitual das cidades<br />

islâmicas, com adarves e impasses, mas uma<br />

trama viária que, apesar de muíto irregular, flui organicamente<br />

por entre bairros onde aquela estrutura,<br />

de facto, internamente se verifica. Para além da rele­<br />

vante mistura hindu, parece assim óbvia uma intervenção<br />

da administração portuguesa, que ao longo<br />

dos séculos terá impossibilitado um emaranhado viá­<br />

rio a que, cultural e <strong>militar</strong>mente, era avessa, mantendo<br />

circuláveis artérias de atravessamento da<br />

medina islâmica. O mesmo sucedia desde a Recon­<br />

quista cristã na Península Ibérica nos séculos XII a XIII,<br />

sempre que se ocupava uma cidade islamizada, indo*<br />

-se aí bem mais longe nesse processo de reestruturação<br />

morfológica.


Contudo, e apesar da profunda decadência de <strong>Diu</strong><br />

em relação ao seu passado, ainda hoje se presencia o<br />

carácter artesanal e comercial em souk das principais<br />

ruas da apertada malha urbana gujarati de <strong>Diu</strong>,<br />

mantendo-se na toponímia e na atividade da zona com<br />

mais comércio a presença dos baneanes, a numerosa<br />

etnia dos comerciantes que mantêm a ligação de sempre<br />

à costa oriental (suaili) africana. A verdade é que a<br />

própria arquitetura autóctone, pela extroversão e exuberância<br />

volumétrica e decorativa, também trai o espírito<br />

próprio das cidades islâmicas, o que constitui uma<br />

variante regional, que nada tem de português, e tem<br />

de ser levada em conta na contabilização da especificidade<br />

urbanística de <strong>Diu</strong>. Assinale-se ainda o facto de<br />

a toponímia antiga denunciar o arruamento por tipos<br />

de atividade.<br />

No extremo leste da ilha localiza-se a fortaleza feita<br />

pelo conhecido processo de atalho, ou seja, a construção<br />

de uma muralha que seccionou parte da cidade, a<br />

qual passou a ser reservada como último reduto defensivo.<br />

Foi dentro dela que desde logo se desenvolveu,<br />

com maior identidade, intensidade e densidade, um<br />

núcleo português. Mas a sua área de cerca de quatro<br />

hectares, incluindo os maciços, cava interior e equipa­<br />

mentos civis, religiosos e <strong>militar</strong>es que ocupam três<br />

quartas partes, jamais terá permitido o desenvolvimento<br />

pleno de uma situação urbana, ideia instalada<br />

pela absolutamente equívoca, mas deliciota, representação<br />

iconográfica inserida nas Lendas da India ... de<br />

Gaspar Correia, matéria a que voltaremos na entrada<br />

seguinte. O que hoje verificamos no local e o que surge<br />

representado na demais cartografia e iconografia -<br />

inclusive a algo anterior "Tavoa de Dio" (1539) inserta<br />

no RoteirodeGoaa<strong>Diu</strong> de João de Castro -são a melhor<br />

prova desta asserção. A "Tavoa" mostra-nos a cidade<br />

gujarati correspondendo estrutural e proporcional­<br />

mente ao que ela é, com a mesquita no local da atual,<br />

bem como a muralha de terra, o porto e os estaleiros,<br />

enfim a ribeira. Até o Baluarte do Mar está bem mais<br />

próximo do que hoje é.<br />

Contudo, dentro da fortaleza existiram inicial­<br />

mente "muitas cazas [ ... ], muy nobres e fermozas, de<br />

dous ou três sobrados, onde antiguamente moravão<br />

muitos cazados portuguezes com suas famílias, os<br />

quaes, pella ma vezinhança que lhe fazião os capitães<br />

da fortaleza com seus criados e parentes, largarão as<br />

dHas cazas e se paçarão a viver fora, deixando-as cair<br />

e chegar aquele estado:' É o que relata António Bocarro,<br />

a par com o também muito equívoco desenho de Pedro<br />

Barreto Resende de 1635. Nunca terão ido a <strong>Diu</strong>, até<br />

porque continuamos sem perceber como ali caberiam<br />

essas "muitas" casas, com os respectivos arruamentos,<br />

num escasso hectare. Mas temos a certeza, até porque<br />

ainda há vestígios e cartografia fiável, que para além<br />

da Igreja da Misericórdia (1542) e do respectivo hospital,<br />

ali estiveram a Igreja Matriz de São Tomé (1536), as<br />

capelas de São Martinho (1546) e de São Tiago (1623),<br />

a feitoria e o Paço do Capitão, este junto e controlando<br />

a entrada aberta a um cais sobre o canal, com o Baluarte<br />

do Mar - localmente designado por Panikotha -<br />

em frente. Todas essas estruturas ruíram ou arruinaram­<br />

-se irremediavelmente, em especial ao longo do século<br />

XIX, quando a urbanidade portuguesa se virou definitivamente<br />

para a frente do canal entre a fortaleza e a<br />

ribeira da cidade.<br />

Um pouco recuado, ainda em Quinhentos, erguera­<br />

-se o Hospital dos Pobres, equipamento assistencial de<br />

pendor mais solidário que clínico, que alguma iconografia<br />

coeva representa e do qual se conserva uma<br />

lápide. Entretanto, os equipamentos religiosos católicos<br />

foram surgindo de forma esparsa, mas formando<br />

um arco com centro na fortaleza, delimitando a cidade<br />

preexistente. Disso dá boa conta a fotografia de satélite<br />

anexa, a cartografia antiga e as entradas seguintes que<br />

lhes são específicas. Com eles, bastante casario para<br />

portugueses e cristãos da terra, entretanto destruídos.<br />

Como todos os equipamentos, as igrejas marcam a<br />

paisagem urbana de <strong>Diu</strong> pela sua escala e expressão,<br />

mas também pelo relativo isolamento em que se<br />

encontram, num território urbanisticamente deserto<br />

de uma cidade portuguesa, que se chegou a lançar<br />

entre a nativa e a fortaleza, mas acabou por não resultar.<br />

Não terá sido apenas pela falta de gente, mas essencialmente<br />

por necessidades defensivas posteriores,<br />

uma vez que temos notícias do arrasamento desse<br />

tecido urbano. Segundo o relatório de António Bocarro<br />

e Pedro Barreto Resende, no ano anterior e por ordem<br />

direta do vice-rei, após relatório, já publicado por<br />

Pedro Dias, dos três inspetores ali enviados para determinar<br />

de que obras carecia a fortaleza - e a que Bocarro,<br />

pelos dados meticulosos sobre a fortificação, inegavel­<br />

mente recorreu - foram demolidas cento e trinta e sete<br />

casas "muy nobres e grandes" existentes junto à fortaleza,<br />

por forma a se garantir campo aberto à sua defesa<br />

em caso de ataque. Já na ocasião se procedia ao desmonte<br />

de um outeiro situado entre o Baluarte de São<br />

Domingos ou da Madre de Deus e o convento dominicano<br />

daquela invocação, do qual a Planta daJortaleza<br />

e cidade de <strong>Diu</strong>, levantada por João António Sarmento<br />

em 1783 ]Biblioteca Pública e Municipal do Porto,<br />

C. M.&A., Pasta 24(35)1 tem delimitado o perímetro.<br />

Não se baixava a guarda, nem se poupavam esforços.<br />

Apenas os conventos -franciscanos, jesuítas, dominicanos,<br />

hospitalários - e as igrejas de Nossa Senhora<br />

da Esperança e a paroquial de São Tomé resistiram, apesar<br />

de haver documentos em que, ao longo dos anos,<br />

PRovfNCIA DO NORTE I NORTE DA fNDIA • DIU · 1 17


se dá conta dessa necessidade para todos eles, com<br />

compreensível exceção para a paroquial, um pouco<br />

mais distante, mas alcandorada sobre um outro outeiro.<br />

Na sua Década XIII, António Bocarra relata que António<br />

Pinto da Fonseca, o primeiro provedor-geral das fortificações<br />

da Índia, em meados da década de 1610 ten­<br />

tou impedir a continuação das obras da casa jesuíta, o<br />

que lhe valeu uma oposição feroz. Já os inspetores que<br />

em 1634 ali estiveram não foram da mesma opinião,<br />

considerando apenas como padrastos à fortaleza as<br />

referidas casas e o outeiro.<br />

De facto, as ordens contavam não apenas com o<br />

peso que tinham junto das autoridades, mas essencial­<br />

mente com o argumento de se terem implantado, como<br />

era habitual, algo distanciadas da fortaleza - entre<br />

quatrocentos e seiscentos metros - balizando o crescimento<br />

da cidade portuguesa em formação e a sua fronteira<br />

com o núcleo urbano pré-existente. Assim se<br />

explica o vazio urbano que persiste entre esses edifí­<br />

cios, incluindo os que já desapareceram, e a fortaleza.<br />

Num posto onde a presença portuguesa dependia da<br />

segurança <strong>militar</strong>, era imperativa a esplanada sem<br />

padrastos, requerida por toda a tratadística e prática<br />

da engenharia <strong>militar</strong> moderna.<br />

Coma decadência comercial e, assim, urbana, a nmção<br />

defensiva adquiriu ainda mais relevância. Demolidas<br />

numa idade de decadência económica e gradual<br />

despovoamento do posto, aquelas casas não seriam <br />

substituídas no imediato por um novo bairro noutra<br />

posição. Alguns partiram, outros ocuparam casas deixadas<br />

vagas por muçulmanos na medina. Atendendo<br />

aos dados demográficos fornecidos por diversas fontes,<br />

aquelas cento e trinta e sete casas (Bocarra refere cento<br />

e trinta e cinco) estariam perto do pleno das residências<br />

de portugueses e cristãos da terra, ou seja, com os conjuntos<br />

religiosos eram a cidade portuguesa.<br />

Com efeito, todo o século XVII foi de grandes dificuldades<br />

para <strong>Diu</strong>, com secas, inundações, epidemias, guerras,<br />

pirataria, etc., ao que António Bocarro acrescenta a<br />

tirania dos capitães da praça, que asfixiavam as atividades<br />

económicas com taxas e muita corrupção. Segundo<br />

ele, fora da fortaleza já só então (1635) viviam cinquenta<br />

e nove portugueses. Pelo final daquele século, apenas<br />

viviam em <strong>Diu</strong> cerca de cento e setenta portugueses<br />

(incluindo a guarnição) entre uma população de cerca<br />

de 5.500 pessoas. Número que se manteve até meados<br />

do século xx, com uma crescente diminuiço dos portugueses<br />

até que foram forçados a partir em 1961.<br />

Entre outros testemunhos, o acima referido levan­<br />

tamento de 1783 dá-nos um excelente retrato de toda<br />

essa singular situação urbanística, sendo nele marcante<br />

a linha amarela que atravessa o conjunto urbano<br />

do canal ao mar e, segundo a respectiva legenda,<br />

I 18 . PATRIMÓNIO DE ORIG EM PORTUGUESA NO MUNDO: ARQU ITETURA E URBANISMO<br />

"divide os christoens dos gentillos ' : É a confirmação de<br />

uma separação que não é étnica, mas confessional, já<br />

referida noutras textos deste volume. Mas também<br />

confirma a existência, então apenas em mente, de uma<br />

cidade portuguesa/cristã que entretanto fora demolida,<br />

pois do lado cristão da linha é ralo o casario que<br />

acompanha os já referidos edifícios religiosos, dos<br />

quais metade entretanto também soçobraria - dominicanos,<br />

hospitalários com o seu hospital e Igreja de<br />

Nossa Senhora da Esperança - já apenas por mera<br />

incúria e decréscimo de crentes. O documento só não<br />

é absolutamente correto e expressivo porque representa<br />

o tecido da medina gujarati de uma forma esquemática,<br />

sem os adarves e impasses que a cartografia e<br />

a fotografia aérea/satélite atuais ainda confirmam.<br />

Caso contrário, o contraste morfológico e de densida­<br />

des seria ainda mais evidente.<br />

Pelo que aqui tem vindo a ser reunido, vê-se como<br />

para <strong>Diu</strong> é hoje árduo invocar-se a temática da "cidade<br />

portuguesa" do Primeiro Império. Com as especifici·<br />

dades evidentes em outras na costa ocidental hindustânica,<br />

é difícil vislumbrar-se uma <strong>Diu</strong> de Cima (que<br />

seria a cidade preexistente) versus uma <strong>Diu</strong> de Baixo<br />

(que poderia ter sido, ou efemeramente foi, a tal cidade<br />

intermédia entre aquela e a fortaleza). Por outro lado,<br />

não são conhecidos dados sobre a existência de uma<br />

fidalguia ou senhorialismo portugueses ou de cristãos<br />

da terra, goeses, etc. Seguindo um outro sistema de<br />

prioridades e condicionados por um conjunto de situações<br />

adversas, em <strong>Diu</strong> os portugueses não lograram<br />

preencher os requisitos mínimos do eventual arquétipo<br />

do modo português de fazer cidade, dando-lhe<br />

consistência urbana, demográfica e um quadro social<br />

completo, assim lhe garantindo continuidade.<br />

A questão que resta para uma investigação ainda<br />

por empreender - uma monografia completa de <strong>Diu</strong><br />

elaborada segundo metodologia credível- é a de como,<br />

até que ponto, por onde e como se desenvolveu, por<br />

intervenção administrativa portuguesa posterior, um<br />

tipo diverso de cidade a partir daquela que foi encontrada.<br />

Não uma cidade portuguesa, mas uma cidade<br />

de influência portuguesa, sendo claro que, como veremos<br />

de imediato, o seu carácter atuaI deve muito a<br />

intervenções feitas nas últimas décadas da administração<br />

portuguesa.<br />

Após as razias urbanisticas de Seiscentos, os escassos<br />

portugueses foram· se então recompondo de forma<br />

rala no espaço intermédio entre a fortaleza e a medina,<br />

com uma maior concentração ao longo do canal, sobre<br />

a ribeira e porto. É ali que ainda hoje encontramos o<br />

palácio do governador e um conjunto integrado de<br />

novos equipamentos urbanos, resultado de uma operação<br />

desenvolvida no último quartel de Setecentos,


Praça do<br />

Novo Bazar<br />

Foto: Walter Rossa<br />

reflexo do frustre plano pombalino de "restauração"<br />

do Estado da Índia, empreendido em 1774. São eles,<br />

de este para oeste, entre outros afins: o mercado no<br />

sítio da primitiva alfândega e com uma coluna monumental<br />

servindo simbolicamente de pelourinho datado<br />

de 1799, que substituiu um anterior localizado junto<br />

da fortaleza; o novo cais urbano com a nova alfândega;<br />

e o arsenal com o seu magnífico portal articulando os<br />

respectivos armazéns, o cais privativo e o guindaste<br />

datado de 1782.<br />

Tudo isso implicou o desmantelamnto de parte<br />

considerável da muralha que encerrava a cidade ao<br />

canal, processo que seria concluído no início do século<br />

xx. É uma evolução que já se nota no meio século compreendido<br />

entre o levantamento de 1783 acima referido<br />

e outro, a Planta do Casto o Praça, e Cidade de Dio<br />

de 1833 da autoria de José Aniceto da Silva (Gabinete<br />

de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar<br />

1227 /2A-24A-III). Evolução monumentalizante, aliás<br />

na linha de uma tendência, que nos parece de raiz<br />

gujarati, para a celebração de factos e pessoas através<br />

de monumentos urbanos, obeliscos, colunas, lápides,<br />

patente da iconografia mais antiga até aos dias de hoje<br />

no próprio museu arqueológico montado em 1904 na<br />

Matriz de São Tomé, cuja epigrafia que já foi objeto de<br />

estudos exaustivos.<br />

O domínio britânico da índia pacificara a região e<br />

<strong>Diu</strong> e os portugueses puderam abandonar a fortaleza<br />

e, na medida do possível, urbanizar-se. <strong>Diu</strong> abriu-se<br />

então definitivamente ao continente, com a muralha<br />

na frente para o canal a dar lugar a um passeio em mar­<br />

ginal entre o cais urbano e a fortaleza, passando pelo<br />

mercado e pelo palácio e dotado de um varandim,<br />

estrutura de sabor romântico inovador e então comum<br />

a muitas outras cidades portuguesas. Foi o corolário<br />

de um período em que os portugueses reaproveitaram<br />

muitos elementos das construções entretanto demoli-<br />

das ou arruinadas, para se instalarem ao longo do canal<br />

e junto aos conventos. Surgiriam alguns equipamentos<br />

(escolas, tribunal), e até habitação coletiva para<br />

funcionários.<br />

Particularmente significativa é a abertura em 1857<br />

da Estrada de Torres Novas - designação que homenageia<br />

o governador que a ordenou, António César de<br />

Vasconcelos Correia, conde de Torres Novas (1855-<br />

-1864) - um gesto de estruturação urbana que permitiu<br />

a regulação do novo edificado que a conformou.<br />

É uma autêntica rua direita entre o porto e as igrejas,<br />

embora termine sem remate condigno num pequeno<br />

largo junto ao edifício do tribunal. O seu traçado revela<br />

a intenção de polarizar a efetiva ocupação do território<br />

da cidade portuguesa e, consequentemente, a consolidação<br />

do largo do complexo jesuíta, dito de São<br />

Paulo, como lugar central. Com todas as limitações é,<br />

ainda hoje, o mais expressivo toque ocidental na morfologia<br />

urbana de <strong>Diu</strong>. Mas não é o mais expressivo.<br />

Esse é o insólito esboço de praça que nos surge<br />

quando entramos na cidade pela Porta do Campo. Era<br />

já um espaço urbano na cidade preexistente, mas adquiriu<br />

uma expressão italianizante, clássica, com a construção<br />

nos seus lados norte e este de dois pórticos em<br />

arcaria de pedra lavrada em rústico (bugnato). Tudo<br />

faria crer uma intervenção quinhentista ou seiscentista,<br />

mas não. A sua construção e projeto são sinteticamente<br />

relatados pelo seu autor, Miguel de Noronha de Paiva<br />

Couceiro, quarto conde de Paraty e governador de <strong>Diu</strong><br />

entre 1948 e 1950, a páginas 135-136 do seu livro <strong>Diu</strong> e<br />

eu. O que existia era "um largo, rodeado de muros que<br />

vedavam terrenos particulares" e "os restos de uma<br />

balaustrada barroca encastoando wna pedra de armas<br />

PRovfNCIA DO NORTE I NORTE DA fND IA • DIU · I 19<br />

Correios<br />

Foto: Miguel de<br />

Noronha de Paiva<br />

Couceiro<br />

Palácio do<br />

Governador<br />

Foto: Miguel de<br />

Noronha de Paiva<br />

Couceiro


I<br />

Reais. E wn arco que dava para uma das ruas de acesso."<br />

Ele, que era wn "grande amador de praças - o mais atraente<br />

motivo de wna urbanização quando os arquitectos<br />

o sabem aproveitar" revela que "Estava feito o plano<br />

[com essas preexistências] e eu acordei com todos os<br />

proprietários dos terrenos circundantes que abrissem<br />

os seus muros com lojas, sob o mesmo risco de arcadas<br />

e balaustradas tomado do modelo antigo. E chamou -se­<br />

-lhe Novo Bazar'<br />

Miguel de Paiva Couceiro (1909-1979) foi governador<br />

de <strong>Diu</strong> nos anos em que se concretizou a independência<br />

do Raj, com a separação, violenta e por razões<br />

confessionais, entre Índia e Paquistão. A situação não<br />

podia ser mais difícil, em especial numa possessão por­<br />

tuguesa próxima daquele último país e encastoada em<br />

território de maioria muçulmana. O seu governo de <strong>Diu</strong><br />

foi apenas de dois anos, pois a dinâmica que lhe impôs<br />

e a ação que desenvolveu de aproximação aos indianos<br />

valeu-lhe desentendimentos (e prováveis ciúmes) com<br />

o governador-geraL A imprensa indiana considerava-o<br />

o Mountbatten português, desejando que ascendesse<br />

ao governo da então designada Índia Portuguesa.<br />

Além disso, promoveu consideráveis reformas admi­<br />

nistrativas ' a melhoria das ligações ao exterior e das condições<br />

sanitárias, bem como a instalação de um conjunto<br />

de equipamentos assistenciais (hospital, centro<br />

médico) e culturais, designadamente bibliotecas (Norotom<br />

Mulgi e Revam Bai). Restabeleceu o aprosionamenta<br />

de água potável (abandonado há quarenta anos)<br />

e fundou a primeira estação de rádio do Estado da Índia,<br />

num pequeno edifício modernista junto do aeroporto,<br />

recentemente demolido. Já para a nova estação de cor­<br />

reios, o projeto determinou uma clara gramática neoclássica,<br />

rara nas províncias ultramarinas do Estado<br />

Novo. Mas a sua impressionante ação não se pautou<br />

apenas por um excepcional e modernizante desempenho<br />

diplomático e governativo, pois o seu papel individual<br />

como construtor, de claras opções revivalistas, não<br />

se ficou pela Praça do Novo Bazar, acima referida.<br />

Talvez mais marcante, ainda que hoje de percepção<br />

difícil pela descaracterização e envolvente vegetal,<br />

foi a sua ação de reabilitação do Palácio do Governador<br />

- no fundo uma verdadeira renovação - que também<br />

relata no seu livro e que no jornal Anglo-Lusitano<br />

de 24 de junho de 1950 mereceu a seguinte referência:<br />

"Com fachada do século XVII, encimando os brazões<br />

dos valorosos heróis de <strong>Diu</strong>, Nuno da Cunha, António<br />

da Silveira, D. João de Mascarenhas e D. João de Cas­<br />

tro, todo o mobiliário artistico característico de estilo<br />

indo-português, os interiores e principalmente a 'Sala<br />

de Parva ti; enriquecidos com pedra e madeira lavrada':<br />

Na realidade, Miguel de Paiva Couceiro não só incorporou<br />

inúmeras pedras de armas dispersas por ruínas<br />

120 . PATR IMÓN IO DE OR IGEM PORTUGUES A NO MU NDO: ARQUITETURA E URBANISMO<br />

da cidade, como o encerrou fazendo-o neo-manuelino,<br />

em especial através da lavra de colunas e pedras de<br />

armas em ameias concheadas, arcarias com frisos de<br />

bolas, etc. É uma surpreendente maravilha revivalista,<br />

de óbvia temática colonial, que à primeira vista engana<br />

na cronologia tanto quanto a nova praça. Na sua autenticidade<br />

equívoca, é um dos paços que restam dos<br />

governantes do velho Estado da índia.<br />

Na década que se seguiu, o Estado Novo manteve<br />

uma ação modernizadora, mas travando a sua última<br />

batalha contra a inevitabilidade da integração de <strong>Diu</strong> e<br />

dos demais territórios da então Índia Portuguesa na<br />

Índia. Miguel de Paiva Couceiro travara e perdera só a<br />

sua batalha de sinal oposto. Por fim, em dezembro de<br />

1961, reagindo à invasão das forças armadas indianas,<br />

também ali, em <strong>Diu</strong>, ingloriamente e pela última vez<br />

portugueses lutaram e perderam a vida por algo que não<br />

poderia continuar seu. Prevaleceram marcas múltiplas,<br />

essencialmente de matriz cultural, edifícios e espaços<br />

de cruzamento, uma morfologia urbana única, dados e<br />

fontes históricas abundantes, tudo ainda por estudar<br />

cabalmente. Mas no meio de tudo a maior expressão<br />

advém da componente estratégica e <strong>militar</strong>, pois foi<br />

sempre esse o desígnio e o paradigma para a presença<br />

portuguesa em <strong>Diu</strong>. Por isso o território e a sua vocação<br />

<strong>militar</strong> desenharam e conformaram a cidade, em vez de<br />

ter sido a cidade a modelar o território. (WR, NG)<br />

BIBLIOGRAFIA: Almeida, José Julião do Sacramento, "Igrejas, conventos e<br />

capelas em Dio'; O Oriente Português, n.O 6, Nova Goa, 1936, pp. 67-79;<br />

Antunes, Luís Frederico Dias, "<strong>Diu</strong>, espaços e quotidianos'; Espaços de um<br />

Império: Estudos. Lisboa, 1999, pp. 149-159; Baiâo, António, Itinerários da<br />

india a Portugal por terra, Coimbra, 1923; Boletim do Governo do Estado<br />

da India, n.O 52, Nova Goa, 7 de Julho de 1857; Castro, Fernando de, Cro­<br />

nica do Vice-Rei D. João de Castro, ed. Luís de Albuquerque e Teresa<br />

Cunha Matos, Tomar, 1995; Couceiro, Miguel de Noronha de Paiva, <strong>Diu</strong> e<br />

eu, Lisboa, 1969; Coutinho, Lopo de Sousa, Livro primeiro [-segundo} do<br />

cerco de <strong>Diu</strong> que os turcos poseram àfortaleza de <strong>Diu</strong>, Coimbra, 1556; Dias,<br />

Pedro, "<strong>Diu</strong> em 1634, documentos e notas para um retrato de uma praça<br />

portuguesa no Guzarate'; Arte Indo-Portuguesa, capítulos da história,<br />

Coimbra, 2004, pp. 187-259; Grancho, Nuno, <strong>Diu</strong>: a ilha, a muralha, afor­<br />

taleza e as cidades (prova final de licenciatura apresentada à Universidade<br />

de Coimbra), 2001; Grancho, Nuno, "<strong>Diu</strong>: uma tentativa de cidade'; Orien­<br />

le, Lisboa, 2003, pp. 86-101; Lopes, Nuno Miguel de Pinho, As estruturas<br />

fortificadns de <strong>Diu</strong> (dissertaçâo de mestrado apresentada à Universidade<br />

de Évora), 2010; Moreira, Rafael, "A fortaleza de <strong>Diu</strong> e a <strong>arquitectura</strong> mili­<br />

tar no fndico'; Espaços de um Império: Estudos, Lisboa, 1999, pp. 139-147;<br />

Pereira, A. de Bragança, "Os Portugueses em <strong>Diu</strong>. A Fortaleza'; separata de<br />

O Oriente Português, Bastará, 1938; Rivara, Joaquim Heliodoro da Cunha,<br />

Inscripções de <strong>Diu</strong> trasladadas das próprias emlaneiro de 1859, Nova Goa,<br />

1865; Quadros, Jerónimo, <strong>Diu</strong>: Apontamentos para a sua história e coro­<br />

graphia, Nova Goa, 1899; Quadros, Jerónimo, Catálogo do MuseuArqueo­<br />

lógico de <strong>Diu</strong>, Nova Goa, 1907; Relaçam (Summaria) do que Obraram os<br />

Religiosos da Ordem dos Prégadores na Conuersão das Almas e Prégação<br />

do Sancto Evangelho em todo o Estado da lndia ... , Lisboa, 1649, Biblioteca<br />

Nacional, Cód. 177, pp. 322-370; Rivara, Joaquim Heliodoro da Cunha<br />

Rivara, Inscripcoes de Dio Transladadas das Proprias em Janeiro de 1859,<br />

Nova Goa: Imprensa Nacional, 1865; Summaria R.am do que obrarão os<br />

Religiosos da Ordem dos Pregadores em todo o Estado da India, Goa, 1679,<br />

Manuscritos da Biblioteca Nacional: 348; Teles, Ricardo Michael, "Epigra­<br />

fia de <strong>Diu</strong>'; O Oriente Português, n."'7-9, Bastorá, 1935, pp. 8-70.


Fosso entre<br />

as dWlS linhas<br />

fortificadas<br />

Fete: Walter Re';a<br />

ARQUITETURA MILITAR<br />

Além de escassos elementos pontuais - os fortins<br />

situados em Brancavará (1774), Monacavará, Naroá<br />

(1744) e Gogalá - o impressionante sistema fortificado<br />

de <strong>Diu</strong> é composto essencialmente por três ele­<br />

mentos: a cerca gujarati preexistente, que encerra a<br />

área urbana da cidade do resto da ilha; o Baluarte do<br />

Mar - ou Panikotha - um forte plantado no meio da<br />

entrada navegável do canal que separa a ilha do continente;<br />

e a fortaleza erguida no extremo nascente da<br />

ilha. Impressionante não apenas pela expressão e<br />

dimensão, mas por deter um conjunto de características<br />

inusitadas e por se ter preservado o suficiente para<br />

ainda se ter uma boa percepção de que como foi pensado,<br />

executado e utilizado.<br />

A muralha urbana preexistente cercava a cidade<br />

pelo lado de terra e do canal, sendo que do lado do mar<br />

apenas uma enseada necessitou da construção de dois<br />

baluartes (sendo um o dos Excomungados) e cortinas,<br />

pois o resto da costa era alcantilada e, assim, impossível<br />

para o desembarque. De tudo isso resta apenas o<br />

longo tramo que se estende do canal ao mar. Sofreu<br />

diversas intervenções portuguesas, muito em especial<br />

a reforma empreendida entre 1570 e 1574 que nela ficou<br />

epigrafada e deu lugar a que muitos tudo considerassem<br />

português. Não foram, contudo, ref mas estrutu-<br />

rais, que lhe tenham alterado a expressão, sendo particularmente<br />

marcante a abertura de duas portas além<br />

da única até então existente. Uma terceira seria aberta<br />

mais tarde. Na porta primitiva, a do Campo, foi introduzido<br />

um aparelho decorativo que a cristianizou.<br />

Pese embora a sua marcante presença atual, é no<br />

entanto necessário fazer um esforço para imaginar a<br />

sua totalidade na origem, para o que a "Tavoa de Dia';<br />

inserida no Roteiro de Goa a <strong>Diu</strong> de João de Castro dos<br />

primeiros meses de 1539, será o melhor ponto de partida,<br />

mas à qual é necessário juntar, pela clareza do<br />

traçado planimétrico, os conhecidos levantamentos<br />

gerais da cidade de 1783 e 1833 (> entrada anterior).<br />

A expressão global era claramente medieval, com<br />

dezoito torres indiferenciadamente quadradas e semicirculares<br />

e, segundo o Livro das Cidades e Fortalezas ...<br />

(1582) e a referida cartografia, teve uma cava inundável<br />

trinchada em rocha. Os panos são altos, com planos<br />

jorrantes até meia altura, e a Porta do Campo tem<br />

um sistema decorativo de clara inspiração gujarate.<br />

O Baluarte do Mar já existia à data da instalação<br />

<strong>militar</strong> portuguesa em <strong>Diu</strong>. Foi, aliás, o primeiro posto<br />

cedido pelo sultão aos portugueses, o qual funcionou<br />

então como alojamento das chefias. Porém, com exceção<br />

para o seu perímetro alongado, a sua feição atual<br />

deve a expressão a diversas intervenções posteriores<br />

ainda por apurar, estudar e estabelecer. É muito provável<br />

que a parte que se mantém mais próxima da versão<br />

original corresponda ao corpo mais largo e arredondado,<br />

situado a este, tendo a estrutura mais regular e<br />

alongada, que o prolonga para oeste - uma couraça -<br />

sofrido mais alterações, a mais determinante em 1587.<br />

Na articulação entre os dois está hoje um torreão - aliás<br />

encimado por um farol - que poderá muito bem ser<br />

uma reminiscência da torre de base quadrada claramente<br />

representada no desenho de João de Castro<br />

acima referido e também por ele detalhadamente des­<br />

Crita no respectivo texto. No fundo, assume a silhueta<br />

de um navio de guerra fundeado no meio da entrada<br />

no canal, bem frente ao cais de acesso à fortaleza e ao<br />

seu antigo centro de comando: a Casa do Capitão, pelo<br />

que não só protegia a entrada do canal e a cidade, mas<br />

também o ponto mais sensível da fortaleza.<br />

Tinha, aliás, uma outra articulação defensiva com<br />

a fortaleza, a qual é bem descrita por Fernão Lopes de<br />

Castanheda (1552-1561): <strong>Diu</strong> "da banda da terra tinha<br />

hü baluarte fundado nagoa, de que atravessava hüa<br />

cadea de ferro muyto grossa aos muros da cidade, que<br />

se levantavam e abaixavam com cabrestãte e cõ ella se<br />

çarrava ho porto de maneyra que as náos questauã<br />

detro ficauão muito seguras e pão podião entrar nele<br />

outros estrangeyros sem lhe abayxarem a cadea." Uma<br />

forte estacada de madeira sobre um molhe artificial<br />

PROvfNCIA DO NORTE I NORTE DA fNDIA' DIU · 121


preexistente, desenvolvidos entre o Baluarte do Mar e<br />

a Península de Gogolá, resolviam o problema do acesso<br />

pelo lado norte do mesmo, dispositivo reforçado pelo<br />

baluarte redondo que os portugueses cedo - em 1538 -<br />

ali ergueram, depois de terem arrasado uma muralha<br />

preexistente.<br />

A construção da muralha urbana e do Panikotha<br />

devem*se, muito provavelmente, à iniciativa de Meliqueaz<br />

(Malik Aiyaz), o governante de <strong>Diu</strong> à data dos<br />

assédios e da ocupação portuguesa, pois como relatou<br />

João de Barros na Década Segunda da sua Ásia "era<br />

homem experto, e prudente, com sua industria a fez<br />

tão celebre, per trato de mercadoria, que alem do que<br />

cada hum anno pagava a El*Rey de tributo, se fez um<br />

riquissimo homem, com que fortaleceo e nobreceo a<br />

Cidade de muros, torres, e baluartes principalmente<br />

depois que nós entramos na Índia:'<br />

Porém, o que fez a diferença para o verdadeira*<br />

mente excepcional do sistema defensivo da cidade de<br />

<strong>Diu</strong> não foram essas obras gujaratis, mas a fortaleza<br />

que os portugueses começaram a erguer em 1535 no<br />

extremo oriental da ilha e da cidade. Existia ali um dis*<br />

positivo do sistema defensivo instalado sob o comando<br />

de Meliqueaz. Gaspar Correia refere uma "torre da<br />

barra, que está defronte do baluarte do mar': Em nossa<br />

opinião, o que surge representado no desenho de João<br />

de Barros e cuja construção não é referida por nenhum<br />

dos cronistas, já lá estaria quando os portugteses se<br />

lançaram na formação - pois assim não foi uma,construção<br />

integral - da fortaleza. Tal consiste, precisa*<br />

mente, num dispositivo de terraços e cais - uma espécie<br />

de dois baluartes que, na sua algo confusa descrição<br />

de 1539, João de Castro cataloga como couraças e lajes<br />

- articulados por uma alta torre do lado do canal frente<br />

ao Baluarte do Mar. Por ali, num sistema que contro*<br />

lava a entrada da barra, teria, segundo Lopo de Sousa<br />

Coutinho, funcionado entre 1514 e 1521 a primeira feitoria<br />

portuguesa. Como veremos, todo esse sistema foi<br />

reformado pelos portugueses em meados da década<br />

de 1540, dando-lhe a configuração que ainda hoje<br />

apresenta.<br />

O processo histórico que levou à instalação portu­<br />

guesa em <strong>Diu</strong> ficou já atrás minimamente esclarecido:<br />

as fontes, a cartografia e iconografia e os trabalhos<br />

dados à estampa sobre esta fortaleza são muitos e prolixos.<br />

A epigrafia é particularmente relevante para a<br />

datação e responsabilização pelas ações, fazendo com<br />

que na realidade este conjunto edificado conte a sua<br />

própria história. Tudo isso facilita o conhecimento,<br />

mas dificulta a seleção do que de essencial aqui é impe*<br />

rativo registar, até porque, independentemente de<br />

apresentarmos mais alguns contributos, continua por<br />

apurar de forma cabal a correspondência entre o exis*<br />

122 . PATRIMÓNIO DE ORIGEM PORTUGUESA NO MUN DO: ARQ UITETURA E URBANISMO<br />

tente e as fases da sua concretização, para o que con*<br />

tribui mormente a alteração de designação sofrida<br />

pelos baluartes ao longo dos tempos. Optámos por<br />

registar a informação suficiente para se perceber como<br />

é que, de uma forma geral, o sistema se conformou<br />

- o que ocorreu no século XVI - deixando de lado os<br />

detalhes respeitantes aos seus ajustes desde então.<br />

Essa ponta da ilha tem, como a cidade, um solo<br />

rochoso, que se eleva numa plataforma sobre a linha<br />

de água do mar e do canal. A configuração triangular<br />

ditou a forma da fortaleza, tal como a evolução da arte<br />

de fortificar ditou a sua expressão, a qual deve muito<br />

da sua especificidade ao facto de ter evoluído mais por<br />

adição que por substituição, renovação ou reforma.<br />

Mas também é devedora do facto de as cortinas exte*<br />

riores terem prolongado a falésia, que por sua vez tam*<br />

bém foi adossada, de modo a que umas e outras se<br />

tenham fundido funcional, construtiva e paisagistica*<br />

mente. No fundo, muita da imponência do sistema<br />

deve*se ao acentuar da escarpa construída pela escarpa<br />

natural, o que é particularmente evidente nos dois<br />

fossos que artificialmente ligaram o canal ao mar, iso*<br />

lando o conjunto de terra e servindo de pedreira à<br />

obra.<br />

Uma vez feito o acordo com o sultão, em setembro<br />

de 1535 Martim Afonso de Sousa - o negociador e<br />

comandante português no terreno, ainda que o pró*<br />

prio governador, Nuno da Cunha, também ali tenha<br />

estado - ordenou a abertura de uma cava ligando o<br />

canal ao mar, fazendo assim uma ilha artificial no<br />

extremo da Ilha de <strong>Diu</strong>. Foi uma tarefa árdua, que<br />

implicou a escavação de um fosso em rocha numa pro*<br />

fundidade superior ao habitual, pois a altura da super*<br />

fície do terreno em relação a um nível inundável em<br />

qualquer maré em alguns pontos chega aos oito<br />

metros. Como veremos, seria repetida pouco mais de<br />

uma década depois. No mês seguinte marcou*se a for*<br />

taleza, cuja construção teve início formal no dia de<br />

Baluarte de<br />

São Filipe<br />

Foto: Walter Rem


São Tomé, 21 de dezembro, com o lançamento da primeira<br />

pedra do baluarte com essa designação pelo<br />

próprio Nuno da Cunha. Com o tempo, passaria a ser<br />

a designação do conjunto e da igreja matra, enquanto<br />

o baluarte passava a ser designado como Cavaleiro,<br />

por ser o mais proeminente do conjunto. O processo<br />

foi descrito por alguns autores, entre os quais Lopo de<br />

Sousa Coutinho no Livro primeiro [e segundo] do [l.']<br />

cerco de <strong>Diu</strong> que os turcos poseram à fortaleza de <strong>Diu</strong><br />

(1556), a quem passamos a palavra, pois é bem mais<br />

claro do que lograríamos ser:<br />

"Lãçouse hu pano de muro da costa do mar a hu<br />

alto q se ali faz, & sobre eIle se fundou hu grande &fermoso<br />

Baluarte redõdo entulhado, o ql tinha noveta palmos<br />

e diâmetro: & fezse pouco mais alto q o outro<br />

muro: & pos se lhe nome São Tome, por ser começado<br />

em seu dia. E dali se estende o outra vez ho muro<br />

dereyto ao rio: & antes q chegasse a agua tres ou quatro<br />

lanças acabou, fazedo outro grã Baluarte, q tinha<br />

sessenta palmos e diâmetro, & pos se lhe nome o de<br />

Santiago [depois Baluarte de Menagem]: & antre estes<br />

dous baluartes, junto deste menor, ficou a porta da fortaleza<br />

cõsua couraça, de rosto pera a cidade. Foy o<br />

muro de grossura de. xxvij. & xviij. Pees: & de alto vinte<br />

&. xxij a fora peyturil & ameas: cõ sua cava: a qual vinha<br />

acabar de fenecer a meo rosto do Baluarte menor, q<br />

està ao rio. Assi q ametade do dito Baluarte ficou sem<br />

cava, porq o sitio abayxa ali tãto, q casi fica no andar<br />

do rio. E assi mais ficou sem cava toda aqUa parte q cae<br />

sobre o rio, des o dito Baluarte até a feytoria velha. No<br />

qual espaço o dito rio nã chega ao muro senã de aguas<br />

vivas. E todo o outro tepo fica duas lanças ou mais afastado.<br />

E neste espaço q digo, pouco distante do dito<br />

Baluarte menor, se fizera as casas pera os capitães da<br />

dita fortaleza. As quaes nã acuparam todo o dito espaço<br />

[ ... ]. O chão que acupa a dita fortaleza é em figura trianguiar.<br />

Em o meyo della avia hu gram cavouco, no qual<br />

depois e tepo de António da Silveyra ser capitão, se fez<br />

hua grã cisterna:'<br />

O que nos surge na "Tavoa de Dia" corresponde a<br />

essa primeira versão da fortaleza - que, como vimos,<br />

integrava estruturas preexistentes - tudo ainda com<br />

uma feição marcadamente medieval e sem ocupar o<br />

extremo do triângulo, uma ponta baixa, mas rochosa,<br />

que entrava na água, onde mais tarde veio a ser feita a<br />

Couraça Grande com o seu baluarte. Foi a estrutura<br />

acima descrita por Lopo de Sousa Coutinho, com muros<br />

com cerca de nove metros de espessura, que resistiu ao<br />

cerco de agosto a novembro de 1538, que a deixou em<br />

muito mau estado, o que fez com que não pudesse ser<br />

aceite como solução definitiva, embora lá permaneça,<br />

inclusive com a primitiva Porta de Terra, hoje servindo<br />

apenas de acesso à ponte que atravessa o fosso inicial,<br />

que também veio a ficar no interior do sistema.<br />

No miolo, frente ao local onde esteve a Matriz de São<br />

Tomé (erguida logo em 1536) e junto ao barranco que<br />

ocupa uma área considerável do espaço disponível e<br />

pelo qual se fazia o caminho até aquela porta, lá está<br />

PRovlNCIA DO NORTE I NOR TE DA INDIA • DIU , 123<br />

Baluarte do Mar<br />

ou Panikotha<br />

Foto: Walter Rossa


a cisterna feita por António da Silveira "que levava<br />

cinco mil pipas dagoa, muy bem lavrado edifício:' Em<br />

1635, António Bocarra referiu vinte e quatro mil, pelo<br />

que será uma outra. Aliás, a cartografia mais recente<br />

denuncia a existência de várias cisternas.<br />

Após esse primeiro cerco, sob o comando do novo<br />

capitão de <strong>Diu</strong>, Manuel de Sousa de Sepúlveda, procedeu-se<br />

à reconstrução do dispositivo inicial, alargando­<br />

-se para o dobro o respectivo fosso. Mas não só, poís foi<br />

revisto o sistema de defesa e acesso por terra e mar - a<br />

entrada da barra - através da construção de um complexo<br />

dispositivo na frente para o canal, que pouco<br />

aproveitou as plataformas gujaratis que já serviam o<br />

Paço do Capitão e a feitoria. Foram então erguidos os<br />

baluartes de São Jorge (1542) e Santa Teresa (1544) a<br />

entrada sobre a meia-laranja, a couraça, as portas, o<br />

cais, a ponte sobre a cava, etc. Hoje o mais interessante<br />

de toda a resultante é que, com algumas modificações,<br />

se mantém, pois a sua reforma escassos anos depois foi<br />

feita através da introdução de uma nova linha avançada<br />

para oeste, com nova cava e desta feita abaluartada,<br />

compondo ambas um sistema com tanto de inexpugnável<br />

quanto de monumentalmente fantástico.<br />

O facto de ter resistido mal ao cerco de 1546, tornou<br />

evidente e urgente partir para uma solução diversa,<br />

atualizada. Desde 1538 o conjunto reformara-se dentro<br />

daquilo que os portugueses estavam a fazer um pouco<br />

«<br />

por todo o lado, mas com especial escopo experimental<br />

no Norte de Áfriea, procurando soluções para o surgimento<br />

e evolução célere da artilharia, a famosa pas­<br />

sagem da neuro- à pirobalístiea. A resposta teria que ser<br />

segundo o que veio a ser designado por sistema abaluartado,<br />

caracterizado por estruturas avançadas de<br />

frente angular aguda e não circular. Como em Marrocos,<br />

os baluartes redondos e quadrados até então erguidos<br />

em <strong>Diu</strong> davam mau resultado. As obras gizadas por<br />

capitães e mestres-pedreiros teriam de ser substituídas<br />

pelas de engenheiros <strong>militar</strong>es, o que corresponde a<br />

uma complexa mudança de paradigma, aqui impossível<br />

de caracterizar, mas que foi sumariamente abordada<br />

no texto de enquadramento do início do volume. A ciên­<br />

cia e tecnologia eram de base italiana, mas os portugueses<br />

foram precoces na sua posta em prática e desenvolvimento.<br />

Mazagão (1541) fora a primeira experiência,<br />

logo seguida de Ceuta (1541-1544) e <strong>Diu</strong> (1547).<br />

Foi Francisco Pires - um desses mestres-pedreiros<br />

de transição para engenheiro, com" tirocínio nas reali­<br />

zações marroquinas, mais precisamente em Ceuta -<br />

quem conduziu as obras ordenadas em 1547 por João<br />

de Castro, que também tivera papel determinante<br />

naquele processo. É a este que passamos a palavra,<br />

transcrevendo parte do relato, com o seu quê de exagero<br />

(publicado por António Baião em 1923), que<br />

124 PATRIMÓNIO DE ORIGEM PORTUGUESA NO MUND O: ARQU IT ETURA E URBANISM O<br />

aquele vice-rei enviou a D. João III: "As obras que fizerão<br />

sobre a fortaleza parecem mais que de humanas;<br />

porque o proprio capitão, e moradores della me não<br />

sabião dizer onde estavão os baluartes, e por onde corrião<br />

os muros, e o lugar, onde jazia a cava: tamanhas<br />

montanhas de pedra tinhão lansado em todas estas<br />

partes, de maneira, que parecia impossivel, e hum tra<br />

balho incomportavel poder tirar esta pedra e terra, e<br />

tornar a erguer a fortaleza palo luguar, por onde pri­<br />

meiro estava. Polo que me foi forçado fazella de novo<br />

per fõra da cava; assi porque se pudesse fazer neste<br />

verão, como por ser por esta parte mais forte; por caso<br />

de hus oiteiros altos, onde os baluartes caem. O que<br />

me dera muito trabalho, senão acertara de vir do reino<br />

Francisco Pires; porque não há offieial, que saiba nada.<br />

E por esta rezão me cwnpre têllo que este verão, e não<br />

no mandar a Moçambique. A maneira de que faço a<br />

fortaleza he polia debuxo de Ceyta. Parece-me, que<br />

espantara a muito a gente desta terra, mayormente<br />

depois que se fizer hua cava per fóra do muro novo;<br />

porque então ficaraa Dyo com duas cavas, e duas muralhas,<br />

remedeando se os muros velhos de maneira, que<br />

fiquem em terraplenos sobre a cava antigua."<br />

<strong>Diu</strong> seguiu, de facto, o modelo de Ceuta e para isso<br />

seria fundamental a abertura em 1550 do novo fosso<br />

por onde ainda hoje entra a água do mar ao canal.<br />

A nova linha defensiva surgiu na frente da primeira,<br />

com três possantes baluartes: o de São Nicolau ao<br />

meio, com dois, São Filipe e São Domingos (ou da<br />

Madre de Deus), nos extremos. Em Ceuta são apenas<br />

dois. Tudo porque havia urgência e para a renovação<br />

da linha anterior seria necessário desentulhar o que<br />

resultara do pesado cerco, o que foi sendo feito posteriormente.<br />

Por isso temos duas linhas e dois fossos<br />

paralelos, que são um relato explícito da extraordinária<br />

evolução da engenharia <strong>militar</strong> entre as fases arcaica<br />

e moderna da era da piro balística. É uma situação tão<br />

insólita que levou o cuidadoso Gaspar Correia a publicar<br />

com as suas Lendas da Índia - finalizadas por volta<br />

de 1550 - um desenho que funde ambas as linhas<br />

numa, representando ainda todos os baluartes como<br />

redondos. Estivera em <strong>Diu</strong> antes, mas não poderia ter<br />

representado o que não vira ali, nem em parte alguma.<br />

Também por isso o não relata. Importava enviar uma<br />

imagem ao rei, que em 1546 expressamente o pedira<br />

para as principais fortalezas.<br />

O que hoje ali vemos tem, obviamente, um enorme<br />

conjunto de modificações introduzidas nos séculos<br />

seguintes, em especial em Seiscentos, período em que<br />

o sistema abaluartado, a par com a evolução da arti<br />

lharia, sofreu um enorme desenvolvimento. Por isso<br />

em 1634 o viee-rei Miguel de Noronha, 4.° conde de<br />

Unhares, enviou a <strong>Diu</strong> uma equipa de três inspetores,


encarregues de elaborar um relatório sobre o que era<br />

necessário fazer-se para tornar a fortaleza inexpugnável.<br />

O relatório - já publicado por Pedro Dias e que por<br />

certo serviu de base à descrição de <strong>Diu</strong> que António<br />

Bocarra fez na sua obra Livro das Plantas de todas .. .<br />

do ano seguinte - propôs de facto uma série de medidas,<br />

entre as quais a radical demolição de cento e trinta<br />

e sete casas e a remoção do outeiro situado entre o convento<br />

e o Baluarte de São Domingos, ações já suficientemente<br />

caracterizadas na entrada anterior e com as<br />

quais se formou a esplanada da fortaleza, que assim<br />

deixou de ter padrastos. Também propôs obras de<br />

monta no dispositivo já existente, de que destacamos,<br />

entre outras, precisamente a reforma, concluída em<br />

1639, ao Baluarte de São Domingos, da qual resultou<br />

a sua possante configuração atual.<br />

Não sabemos com precisão a data da execução da<br />

Couraça Grande ou Baluarte da Barra - a generosa plataforma<br />

sobre a ponta da ilha - mas na sua DécadaXIlJ<br />

António Bocarra relata que foi da traça de António<br />

Pinto da Fonseca, provedor-geral das fortificações da<br />

índia, que por ali andou em meados da década de 1610,<br />

dando início ao processo de planificação da esplanada,<br />

matéria já referenciada na entrada antecedente. Aquele<br />

relatório de 1634 dá-a como destruída, carecendo de<br />

rápida reparação, o que terá sido cumprido, pois a<br />

construção dos baluartes que a montante a defendem<br />

tem datas conhecidas: Santa Teresa sobrff.o canal em<br />

1652, e Santa Luzia a meio, sobre a dita couraça, em<br />

1650. Pelas décadas de 1630 a 1650, o apuramento do<br />

sistema estava ao rubro, porque ao rubro estava o<br />

potencial assédio mogol, do qual a fortaleza foi sempre<br />

o único e eficaz elemento dissuasor.<br />

As obras de reforma, manutenção e melhoramen­<br />

tos da fortaleza não parariam, nem os relatórios sobre<br />

a ruína, que dada a ainda opulência do existente, hoje<br />

se nos afiguram exagerados. Com efeito, o que ruiu,<br />

por vezes até ao desaparecimento, foram as construções<br />

civis e <strong>religiosa</strong>s. Os baluartes, as cortinas, as couraças<br />

e as cavas continuam a postos, irradiando a<br />

memória do mais resistente e impressionante conjunto<br />

edificado português no Oriente. (WR, NG)<br />

ARQUITETURA REL IGIOSA<br />

No texto de enquadramento de <strong>Diu</strong> ficou assinalada<br />

a relevância que os edifícios religiosos tiveram para o<br />

lançamento e marcação do que se pretendeu que fosse<br />

a cidade portuguesa a instalar entre a fortaleza e a<br />

cidade gujarati preexistente. Nos textos relativos aos<br />

conjuntos franciscano e jesuíta que se seguem<br />

caracterizam-se os exemplares mais relevantes, sendo<br />

o último surpreendente e único na sua estrutura com-<br />

positiva e esfuziante decorativismo, na realidade, um<br />

dos mais importantes itens neste volume. Impõe-se,<br />

contudo, uma referência aos demais ainda existentes,<br />

começando por deixar claro que, apesar da exiguidade<br />

do território e da presença demográfica portuguesa, a<br />

arquitetura católica de <strong>Diu</strong> - de origem portuguesa,<br />

por conseguinte - não se restringe ao conjunto urbano,<br />

pois não podemos deixar de registar a existência da<br />

Igreja de Nossa Senhora de Fudam.<br />

A exiguidade da comunidade católica acabou por<br />

impor um relativamente baixo número de exemplares,<br />

mais ainda o desaparecimento na segunda metade do<br />

século XIX de alguns, de que se destacam, fora da fortaleza,<br />

a Igreja de Nossa Senhora da Esperança e as<br />

casas de São Domingos e de São João de Deus, esta com<br />

o Hospital Real, que tinha a cargo. Da igreja dominicana<br />

da Madre de Deus guarda-se uma representação<br />

numa gravura que dá conta de um edifício modesto<br />

mas interessante, com uma torre sineira rematando a<br />

capela-mar.<br />

Compreensivelmente, a evangelização foi sempre<br />

mais difícil e menos bem sucedida em territórios de<br />

predominância islâmica, mesmo quando a tolerância<br />

se logrou instalar, como é o caso de <strong>Diu</strong>. Com o fim da<br />

soberania portuguesa em 1961 e, assim, com a saída<br />

dos já poucos portugueses que ali permaneciam em<br />

serviço, essa comunidade está reduzida a um número<br />

PROV[NCIA DO NORTE I NORTE DA INOIA ' DIU · 125<br />

Igreja de<br />

São Tomé<br />

Foto: Nuno Gnncho


Igreja de<br />

Nossa Senhora<br />

de Fudam<br />

Foto: Walter R.ossa<br />

ínfimo, o que leva a que apenas um dos conjuntos, São<br />

Paulo, mantenha o culto religioso como paroquial e a<br />

sua escola, aliás frequentada por crianças e adolescentes<br />

de diversas confissões, tendo as demais sido adaptadas<br />

a outros usos.<br />

Além dos edifícios franciscano e jesuíta, dentro da<br />

cidade apenas existem a Matriz de São Tomé e o Recolhimento<br />

de Santana, este sem especial relevância his­<br />

tórica ou arquitetónica. A primeira Igreja de São Tomé,<br />

erguida dentro da fortaleza em 1536 por iniciativa do<br />

governador Nuno da Cunha, desapareceu. Dela relata<br />

Gaspar Correia nas Lendas da lndia que era "posta no<br />

alto, muy forte, que d'eIla se podia tirar artelharia, se<br />

comprisse: os muros de vinte pés de largo, os cubelos<br />

abertos por dentro, moçiços até o primeiro andar<br />

d'artelharia, e descobertos, argamassados, muy fortes,<br />

que em cima tinhão outra artilharia':<br />

Ali por perto, também as capelas de São Martinho<br />

(fundada em 1548 para celebrar a vitória de 1546) e São<br />

Tiago (1623, sobre uma ermida das primeiras décadas)<br />

erguidas no interior da fortaleza soçobraram, o mesmo<br />

sucedendo com a Misericórdia, erguida em 1542 e desmoronada<br />

em 1825. De tudo isso restam apenas ruínas<br />

que não permitem a sua caracterização significativa,<br />

com exceção para São Tiago, que mantém intacta<br />

toda a volumetria, incluindo a bordadura superior de<br />

pináculos, mas sem a abóbada de canhão que cobria<br />

a desenvolta nave única e cujo extradors8 estaria<br />

exposto. Com a capela-mor à altura da nave, apresenta­<br />

-se ainda com a escala de uma igreja, não de uma<br />

capela. Como se encontra axialmente na continuidade<br />

do baluarte do mesmo nome e com um dos alçados<br />

laterais sobre a cortina da muralha que desce até ao<br />

oceano, a entrada é feita lateralmente através de um<br />

portal efusivamente decorado em baixo relevo, do qual<br />

se destaca num grande medalhão a figura de São Tiago<br />

cavaleiro.<br />

126 . PATRIMÓNIO DE ORIGEM POR.TUGUESA NO MUNDO: ARQUITETURA E URBANISM O<br />

A Igreja de São Tomé foí constnúda extra-muros em<br />

1598 por ordem do arcebispo Frei Aleixo de Menezes,<br />

devendo funcionar como paroquial da cidade. Implantada<br />

sobre uma colina isolada, com a capela-mororientadaa<br />

poente (como todas as igrejas de <strong>Diu</strong>), tem afrontaria<br />

virada ao mar, impondo-se como .0 elemento<br />

edificado de maior impacto paisagístico da cidade,<br />

depois da fortaleza} claro. Impõe-se pela escala das suas<br />

duas torres da frontaria, rematadas por uma estrutura<br />

decorativa que contrasta com a fachada da nave, quase<br />

sem ornamentação. São uma espécie de estelas de<br />

sineira, prolongamentos do paramento fronteiro de<br />

cada uma das torres, funcionando como simulação de<br />

remate em calote esférica, falsa por conseguinte.<br />

É particularmente relevante o facto de a cobertura<br />

da nave denunciar no exterior a abóbada, com um<br />

extradorso visível e cintado, todo ele caiado. É uma<br />

solução que, além de São Tiago, faz lembrar igrejas que<br />

se encontram no Coromandel, designadamente as<br />

ligadas aos locais de martírio e sepultamento do orago,<br />

São Tomé, em Meliapor (Madras), embora aqui o lançamento<br />

vertical seja muito superior, longe do atarracamento<br />

daqueles modelos. Mas na realidade é uma<br />

solução que se encontra em todas as igrejas existentes<br />

em <strong>Diu</strong> e que, por certo, encontrará justificação e origem<br />

mais óbvia em tradições construtivas e expressivas<br />

locais. Por exemplo, as coberturas em telha são<br />

quase inexistentes, imperando as coberturas em terraço.<br />

Volumetricamente, a Igreja de São Tomé surge assim<br />

como uma arca, apenas ultrapassada pelas torres e por<br />

uma coluna de claro sabor islâmico, que irrompe a meio<br />

da frontaria sobre o arco, aliás igual às que rematam as<br />

torres. Para quem se aproxima da ilha por leste, sobrepõe­<br />

-se à fortaleza como uma espécie de remate e farol de<br />

uma alvura conspícua. O interior é absolutamente despojado,<br />

para o que contribui o facto de já não ter culto.<br />

Funciona desde 1904 como museu arqueológico, onde<br />

estão recolhidos múltiplos elementos arquitetónicos e<br />

lápides de edifícios relevantes que têm vindo a desapa­<br />

recer na cidade.<br />

Também como paroquial foi erguida a Igreja de<br />

Nossa Senhora de Fudam, aldeia situada a meio da<br />

costa marítima da ilha. Não logramos encontrar qualquer<br />

informação sobre o edifício, o que só pode ser<br />

falha nossa, pois dada a sua escala e expressão por<br />

certo deixou registos documentais da sua fundação,<br />

não podendo ter deixado de chamar a atenção de<br />

quem se interessa por estas matérias. Pela sua gramática<br />

e composição terá sido erguida no século XVII.<br />

A fachada tem uma expressão peculiar, pois encontra­<br />

-se dividida em três partes sensivelmente iguais, sendo<br />

que a fachada da nave, de estrutura retabular, ocupa o


espaço equivalente ao de cada uma das torres, bem<br />

lançadas, mas rematadas de forma demasiado contida,<br />

desproporcionada em relação ao todo. Remate que,<br />

aliás, repete a solução dos congéneres da Igreja de São<br />

Tomé da cidade. É muito interessante o contraste da<br />

expressão simultaneamente chã e imponente das torres<br />

com a singeleza decorativa e a expressão algo esmagada<br />

do corpo central, para o que contribui o facto de<br />

em altura se desenvolver em apenas cerca de dois terços<br />

do lançamento das torres.<br />

No seu conjunto, a arquitetura <strong>religiosa</strong> de <strong>Diu</strong> não<br />

dispõe de exemplares suficientes para se poder fazer<br />

uma apreciação de conjunto, estabelecendo relações<br />

e determinando especificidades, como a das coberturas<br />

das naves em abóbada de canhão aparente. Merece,<br />

contudo, que se faça a reflexão da sua inserção no con­<br />

texto da arquitetura <strong>religiosa</strong> portuguesa/católica da<br />

Província do Norte do Estado da Índia, o que por razões<br />

de estrutura e vocação desta obra aqui não pode acontecer.<br />

(WR, NG)<br />

> COLÉGIO DO EspíRITO SANTO E IGREJA<br />

DE NOSSA SENHORA DA CONCEiÇÃO<br />

OU DE SÃO PAULO<br />

o documento escrito mais fidedigno sobre este edi­<br />

fício foi visto por Cunha Rivara em janeiro de 1859: uma<br />

inscrição pintada '1no corpo de uma janella tapada" na<br />

igreja: "Aos 7 de Abril de 1601 no sabbe.do antes da<br />

Dominga de Passione o Governadordesta Praça Duarte<br />

de Mello com o Reverendo Padre Viga rio da Vara<br />

Manoel Fernandes lançarão a primeira pedra na<br />

Capella desta igreja que delineou o Padre Gaspar Soares<br />

da Companhia de Jesus, e pera lembrança se fez<br />

este padrão no anno de 1710':<br />

Recolhendo esta informação e outras publicadas<br />

em Goa nos séculos XIX e xx, o padre Catão escreveu<br />

que a igreja e o colégio foram construídos entre 1601 e<br />

1606, que a igreja foi "reedificada" em 1807, "melho­<br />

rada em 1873 e lageada em 1888':<br />

Deste modo podemos assumir que a igreja e o colégio<br />

dos jesuítas em <strong>Diu</strong> foram construídos entre 1601<br />

e 1606, data indicada pelo padre Catão sem nota de<br />

fonte; que o arquiteto da igreja foi o padre Gaspar Soares<br />

(fundador - e traçador? - em 1606 do colégio da<br />

Companhia em Rachai, Goa, como sabemos pela crónica<br />

de Francisco de Sousa); que em 1710, por razões<br />

desconhecidas, alguém resoh:-eu fazer recordar a obra<br />

e o seu fundador fazendo colocar uma inscrição numa<br />

das janelas da igreja; que houve obras de teor indiscriminado<br />

na igreja e/ou no colégio em 1807 e 1873; e que<br />

a igreja foi pavimentada de novo em 1888.<br />

É possível, todavia, avançar uma hipótese sobre a<br />

obra que terá ocorrido em 1807.<br />

o edifício do antigo colégio - hoje ocupado por<br />

vários programas paroquiais - encosta-se ao flanco<br />

norte da igreja. É um quadrilátero regular articulado<br />

por um claustro quadrado com seis tramas por lado no<br />

piso térreo. A fachada principal do colégio, paralela à<br />

da igreja, está separada desta pelo espaço ocupado<br />

pela escada que dá acesso ao piso superior do claustro,<br />

uma escada de tipo espanhol, de lanços abertos<br />

subindo numa caixa quadrada, sustentados por pilares,<br />

aparentemente a única deste tipo existente na<br />

antiga Índia portuguesa. Esta escada exprime-se no<br />

exterior por um tramo como que escavado a toda<br />

a altura da fachada e rasgado por janelas quadradas.<br />

O resto da fachada é absolutamente invulgar para um<br />

edifício colegial dos séculos XVI, XVII ou XVlll: a nível<br />

do piso superior abre-se uma arcaria de tipo loggia,<br />

constituída por onze arcos separados por pilares, terminando<br />

na esquina do edifício sem marcação do<br />

cunhal.<br />

A fachada onde se abre esta loggia e o conjunto de<br />

portas e janelas colocadas irregularmente no piso térreo<br />

parecem ter sido acrescentados ao quadrilátero do<br />

colégio, porque as divisões a que correspondem duplicam<br />

outras servidas diretamente pelas galerias do<br />

claustro. É como se tivesse sido anteposta uma cortina<br />

ou fatia nova à face nascente do colégio.<br />

Uma panorâmica executada pelo engenheiro <strong>militar</strong><br />

José Aniceto da Silva em 1833, atualmente no<br />

Arquivo Histórico Ultramarino, representa a fachada<br />

como a vemos hoje. Contudo, uma vista de <strong>Diu</strong> a partir<br />

da fortaleza publicada pelo editor Arthus Bertrand<br />

reproduzindo uma litografia de Eugene Ciceri - tam­<br />

bém no Arquivo Histórico Ultramarino - mostra uma<br />

fachada de seis janelas retangulares em cima sobre seis<br />

portas em baixo, aparentemente separadas por pilastras,<br />

composição habitual em alçados da era clássica.<br />

PRovlNCIA DO NORTE I NORTE DA INDIA ' DIU · 1 27<br />

Igreja de<br />

Nossa Senhora<br />

da Conceição<br />

Foto: Nuno Grancn


o artista cujo nome vem impresso na gravura é<br />

Eug/me Ciceri (l813-1890), um pintor francês de paisagens,<br />

classificado por vezes como orientalista por ter<br />

feito representações do Norte de África, mas de quem<br />

nâo se sabe ter ido à Índia. O pai, Pierre-luc-Charles<br />

Ciceri (1782-1868) era também pintor, cenógrafo e<br />

especializava-se em panorâmicas de tipo diorama e<br />

ciclorama, como uma outra de <strong>Diu</strong> que existe com o<br />

nome do seu filho no já referido arquivo. É possível<br />

levantar a hipótese de que em casa dos Ciceri existissem<br />

representações de <strong>Diu</strong>, que estes artistas decidiram<br />

transpor para litografia e fazer gravar em data e<br />

circunstâncias desconhecidas. A vista de Ciceri mos­<br />

traria portanto o colégio fundado pelos jesuítas como<br />

era antes de 1833, a data da panorâmica de Aniceto da<br />

Silva.<br />

Aceitando-se como boa esta hipótese, seria 1807 a<br />

data possível para a obra que substituiu a frente nascente<br />

do edifício colegial por aquela que existe hoje.<br />

1807 é o ano no qual se diz que a igreja foi reedificada.<br />

Na igreja propriamente dita, atual Matriz de <strong>Diu</strong>,<br />

não parece ter havido alterações importantes desde<br />

os anos iniciais de Seiscentos, quando o padre Gaspar<br />

Soares a traçou e foi construída. É um dos mais importantes<br />

edifícios da arquitetura indo-portuguesa, uma<br />

das mais notáveis igrejas da Ásia e da arquitetura cristã<br />

fora da Europa.<br />

Trata-se de uma igreja de nave única, oberta de<br />

abóbada de canhão articulada por largos caixotões.<br />

A capeia-mar, bastante mais baixa que a nave, tem o<br />

mesmo tipo de cobertura. A nave é antecedida por um<br />

nártex interior sob coro alto e tem, no piso térreo, em<br />

cada lado, cinco nichos semicirculares cobertos com<br />

meias cúpulas de concha, abrigando portas e janelas.<br />

Em cima correm galerias com arcos onde se abrem<br />

portas.<br />

A importância excepcional da igreja não resulta só<br />

da sua evidente beleza, mas do facto de ser a mais antiga<br />

que se conhece no mundo de influência portuguesa,<br />

com alçados laterais articulados por capelas semicirculares.<br />

Não sabemos se terá sido a primeira deste tipo<br />

a ser construída, se a mais antiga que sobreviveu, se<br />

terão existido outras, talvez em Goa, entretanto desaparecidas.<br />

Certo é ter sido construída, na mesma época,<br />

apenas a Igreja do Espírito Santo de Margão, também<br />

jesuíta. Este tipo de planta é praticamente inédito fora<br />

da índia antigamente portuguesa, tendo existido em<br />

raros lugares europeus Ce somente em épocas anteriores).<br />

Corresponde a uma ideia de Sebastião Serlio, por<br />

ele publicada em 1547.<br />

A igreja e o antigo colégio situam-se num dos lugares<br />

territorialmente mais importantes da parte oriental<br />

de <strong>Diu</strong>, ou seja, da área urbanizada da ilha. A fachada<br />

128 . PATRIMÓNIO DE ORIG EM PORTUGUES A N O MUNDO: ARQUITETURA E URBANISM O<br />

principal enfrenta o caminho que vem da fortaleza a<br />

nascente. Este caminho entra no terreiro da igreja e<br />

passa ao longo da sua fachada sul, seguindo para a<br />

povoação guzerate a poente. O edifício articula, por­<br />

tanto, a fortaleza, a povoação católica - que, a julgar<br />

pela planta de Aniceto da Silva, se situava primordialmente<br />

a sul, com uma rua orientada para a fachada lateral<br />

da igreja - e a passagem para a povoação guzerate.<br />

É por isso que o arquiteto traçou, tanto na fachada principal<br />

da igreja como na fachada lateral sul, composições<br />

arquitetónicas e ornamentais altamente elaboradas<br />

e eloquentes, que constituem outra razão para<br />

considerarmos a igreja wn monumento excepcional.<br />

A fachada principal é uma variação sobre o tema<br />

da fachada do Bom Jesus de Goa, terminada precisamente<br />

na altura em que tinha início a obra de <strong>Diu</strong>.<br />

Paradoxalmente, porém, os jesuítas optaram em <strong>Diu</strong><br />

por uma fachada mais italiana e clássica em matéria<br />

de proporção e ordens, mas menos europeia em matéria<br />

de expressão ornamental. A fachada tem três ordens<br />

apenas na secção central, contra as quatro de Goa, permitindo<br />

assim adotar proporções mais conformes à<br />

tratadística europeia. A ordem inferior é constituída<br />

por pares de colunas soltas e as superiores por pares<br />

de pilastras, uma composição menos variada mas mais<br />

clara do que a de Goa. Os capitéis são todos compósitos,<br />

mas o friso da ordem inferior é dórico. Já as largas<br />

pilastras-contraforte de ângulo que enquadram a<br />

fachada e desempenham o mesmo papel que as (muito<br />

mais sóbrias) pilastras de laterite do Bom Jesus pertencem<br />

a uma ordem original, entre o jónico e o compósito<br />

de folhas de palma. Esta ordem, talvez entendida<br />

como ática, prolonga-se na fachada lateral sul. O topo<br />

da fachada é também uma variação sobre temas do<br />

Bom Jesus: a voluta-chacra, o frontão reta, o óculo<br />

redondo com cartelas flamengas. Todos os temas ornamentais<br />

são de escultura mais simplificada que aqueles<br />

que aparecem em Goa, e surge um tema novo nas<br />

ombreiras das janelas do primeiro piso: os termos­<br />

-atlantes.<br />

Não sevê um único motivo não europeu, antes tudo<br />

parece ter provindo de desenhos italianos ou flamengos,<br />

mas a escultura simplificada e o tratamento com<br />

cal branca fazem a fachada parecer menos europeia<br />

que as composições do mesmo tipo que vemos nas<br />

igrejas da Companhia em Goa e em Baçaim construídas<br />

na mesma época.<br />

Na fachada lateral, vigorosamente articulada por<br />

pilares separando os tramos, o arquiteto fez alternar<br />

janelas retangulares e óculos no piso de cima. Um elegante<br />

soco servindo de banco percorre a base da<br />

fachada. No topo, corre uma balaustrada entre pináculos<br />

esféricos. (PVG)


Cruzeiro e<br />

Igreja de<br />

São Francisco<br />

Foto: WaJter RO$sa<br />

> CONVENTO E IGREJA DE SÃO FRANCISCO<br />

A fundação de um convento em <strong>Diu</strong> era um projeto<br />

dos franciscanos desde a década de 1530, mas só se<br />

concretizou em 1592 ou 1593, quando os franciscanos<br />

recoletos da Custódia da Madre de Deus, muito ativos<br />

na Província do Norte, conseguiram fundar a casa por<br />

mão de Frei António dos Reis, com o empenhamento<br />

ativo do governador da praça, Pedro de Anaia. O título<br />

de fundação foi Nossa Senhora da Porciúncula, ou dos<br />

Anjos. Os títulos de Nossa Senhora da Conceição ou<br />

São Francisco de Assis são recentes.<br />

No tempo em que Frei Paulo da Trindade escreveu<br />

a crónica dos franciscanos no Oriente, a década de<br />

1630, moravam no convento de <strong>Diu</strong> entre doze a<br />

quinze frades. O convento serve hoje de hospital, e as<br />

dependências conventuais estão muito maltratadas.<br />

A planta de <strong>Diu</strong>, traçada em 1833 por Aniceto da Silva,<br />

mostra o conjunto como ainda se encontra hoje no<br />

essencial: a igreja vira a fachada principal a sul e tem<br />

o convento a poente, articulado em volta de um claustro.<br />

Um segundo claustro, mais pequeno, a norte do<br />

primeiro, com uma banda edificada a poente, indi­<br />

ciava o começo da expansão do convento, que acabou<br />

por não se verificar.<br />

Situado numa pendente suave a sul, o conjunto<br />

eleva-se numa plataforma que é nobilitada por um<br />

adro acessível por uma grande escadaria em L, que dá<br />

•<br />

acesso as duas fachadas da igreja: a lateral, a nascente,<br />

e a frontal, a suL O cruzeiro assinala o canto do adro,<br />

onde hoje cresce também uma grande árvore.<br />

A fachada lateral da igreja é tão importante como a<br />

fachada frontal, porque está voltada ao caminho que<br />

vem da fortaleza e da povoação cristã. Articula-se em<br />

seis tramas separados por contrafortes rematados a<br />

pináculos esféricos. No terceiro tramo a contar da<br />

fachada abre-se uma porta.<br />

A fachada frontal é antecedida por uma galilé de<br />

três arcos, tema que pode ter sido característico da cultura<br />

projetual dos franciscanos na Índia, embora<br />

tenham vindo até nós muito poucos casos: no norte, a<br />

igreja conventual de Baçaim, São João Batista de Taná<br />

(a julgar por fotografias antigas), Mahim de Bombaim<br />

(de acordo com uma gravura inglesa); em Goa: Nerul,<br />

Parrá. É provável que outras galilés isentas tenham sido<br />

incorporadas no corpo das igrejas, com o acrescento<br />

de coros altos (Pomburpa, Penha de França).<br />

Apresentava uma galilé deste tipo a igreja-mãe da<br />

Custódia da Madre de Deus na Índia, a famosa igreja<br />

do Convento da Madre de Deus de Daugim, demolida<br />

no século XIX e conhecida apenas por uma gravura<br />

publicada por Lopes Mendes. Esta gravura mostra também<br />

que a existência na igreja de <strong>Diu</strong> de um adro acessível<br />

através de uma escadaria em L pode ter sido inspirada<br />

pela desaparecida igreja de Daugim (Goa).<br />

A igreja de <strong>Diu</strong> é de nave única, coberta por abó·<br />

bada de canhão sem telhado exterior, como é hábito<br />

neste território. A capela-mor, mais baixa, tem uma<br />

abóbada do mesmo tipo, mas decorada de caixotões.<br />

Em época posterior à da construção inicial, talvez no<br />

início do século XVIII, os cantos da nave do lado da<br />

cabeceira foram chanfrados por duas capelas em forma<br />

de nichos semicirculares cobertos por meias cúpulas<br />

concheadas, à maneira da igreja dos jesuítas.<br />

O elemento mais notável do convento é a torre, localizada<br />

ao lado da capela-mar à maneira franciscana.<br />

Tem dois pisos de altura e, como remate, wna cúpula<br />

com lanternim. Vê-se de muito longe em <strong>Diu</strong>. A perspectiva<br />

desenhada por Aniceto da Silva mostra-a com<br />

quatro pisos abertos por janelas, além do zimbório, mas<br />

pode ter-se tratado de exagero expressivo. (PVG)<br />

EQUI PAMENTOS E INFRAESTRUTURAS<br />

> ESCOLAS<br />

A instrução primária no território de <strong>Diu</strong> estava<br />

dividida entre escolas de língua portuguesa e escolas<br />

de gujarati. Ko final do século XIX existiam quatro escolas<br />

de português: duas situavam-se na cidade, no antigo<br />

Convento de São Paulo e no Recolhimento de Santana;<br />

duas fora da cidade, em Vanakbara e outra em Goghla,<br />

ambas sem instalações próprias.<br />

Em contrapartida, como a população não-católica<br />

do te.rritório era mais afluente e maioritária (cerca de<br />

98% em 1899) foram as escolas de gujarati que ganharam<br />

relevo arquitetónico. Destacam-se três construções<br />

deste tipo, todas na cidade de <strong>Diu</strong>.<br />

A primeira estrutura, a Escola Régia de Guzerate,<br />

foi edificada em 1895 por iniciativa de Probudás Virchande,<br />

comerciante em Moçambique, e localiza -se<br />

PRovíNCIA DO NORTE I NORTE DA íNDIA' DIU · 129


cerca de duzentos e cinquenta metros a sudoeste do<br />

Mercado da Alfândega. É um ediffcio de dimensões<br />

modestas, que reflete a influência dos bangalós da<br />

administração britânica no subcontinente Indiano.<br />

Rodeado por uma varanda parti cada, a sobriedade da<br />

sua traça e a importância dada às aberturas e ventila<br />

ção revela a orientação higienista da época. Atualmente<br />

ainda é uma instituição de ensino.<br />

A segunda escola foi aberta em 1927 e destinava­<br />

-se ao sexo feminino. Recebeu o nome da sua fundadora,<br />

Pani Bai, mulher de Bhagvandas Laxmichand,<br />

cujo nome figura sobre a entrada principal. Localizado<br />

a cerca de quatrocentos metros a oeste da Igreja de<br />

São Paulo de <strong>Diu</strong>, o edifício pode ter resultado da<br />

reconversão de uma estrutura mais antiga. Apresenta<br />

uma morfologia retangular alongada e desenvolve-se<br />

em dois pisos. A fachada principal articula-se através<br />

de tramas separados por pilastras, destacando-se a<br />

zona central, com o acesso principal no piso térreo e<br />

provida de uma varanda saliente no piso superior. Esta<br />

varanda sofreu uma intervenção em 2008. Em redor<br />

da entrada existem vários relevos e motivos decorativos,<br />

pintados em tons vivos. No resto da fachada<br />

abrem-se janelas em arco, sendo as de baixo igualmente<br />

decoradas com esculturas e relevos figurativos,<br />

referentes à religião hindu. A rematar o volume, existe<br />

uma balaustrada, elemento comum à maioria das edificações<br />

em <strong>Diu</strong>.<br />

<br />

o terceiro edifício, construído cerca de 1931, está<br />

igualmente associado à ação filantrópica de Pani Bai,<br />

sendo também conhecido por este nome. Na porta<br />

principal figura o nome de Amradal Jamnugás, provável<br />

benfeitor da construção. Situa-se duzentos e cinquenta<br />

metros a leste da porta principal da linha amuralhada<br />

da cidade. O edifício, de forma retangular,<br />

afasta-se da rua através de um pequeno jardim para o<br />

qual se abre através de uma colunata. A cobertura é<br />

plana e rematada por uma balaustrada. As fachadas<br />

apresentam profusa decoração, que sobrevém nos elementos<br />

estruturais, onde figuram motivos vegetais e<br />

geométricos de origem indiana. (ASF, SM)<br />

> MERCADO<br />

\ 30 . ?ATf'I.\M6N\O DE ORIGEM PORTUGUESA NO 1'1UNDO: ARQUlTETURA E URBANISMO<br />

Desde o início do século XIX exjstiam no local imediatamente<br />

a sul do cais da alfândega de <strong>Diu</strong> um mercado<br />

e uma praça, onde se encontrava o pelourinho,<br />

que tem inscrita a data de 1770. A entrada neste espaço<br />

era feita através de dois arcos: o da Porta de Mar e o da<br />

Terra.<br />

Segundo Miguel de Paiva Couceiro, governador de<br />

<strong>Diu</strong> entre 1948 e 1950, o largo estava rodeado de muros<br />

que vedavam terrenos particulares, e as estruturas antigas<br />

encontravam-se em ruínas. Com o acordo dos proprietários,<br />

foram derrubados os muros e construído<br />

um novo mercado, seguindo o desenho das antigas<br />

arcadas e balaustradas. O Novo Bazar, como era cha-<br />

Estola Pani Bai<br />

foto: Viclor Mestre


Mercado<br />

Foto: NurlO Grançho<br />

mado na época, terá ficado concluído pouco depois da<br />

saída do governador.<br />

a Mercado organiza-se em dois espaços complementares:<br />

praça, onde os comerciantes montam os<br />

seus pontos de venda livremente, e edifício, que<br />

encerra o espaço da praça para o lado do mar, onde se<br />

organizam por debaixo das arcadas em bancadas que<br />

se abriam para o exterior.<br />

O edifício tem acrescentos para o lado da praça e,<br />

recentemente, as arcadas do lado do mar foram encerradas<br />

com uma grelha que o tornou mais compacto e<br />

alterou substancialmente o seu modo e:e funcionar.<br />

Apesar de estas alterações terem complicado a leitura<br />

das relações que a estrutura original criava entre a<br />

cidade e o mar, continua a ser possível constatar ter<br />

sido uma das obras arquitetónicas mais interessantes<br />

do ultimo período de governação portuguesa em <strong>Diu</strong>.<br />

(ASP, SM)<br />

> TRIBUNAL<br />

a Tribunal da Comarca de <strong>Diu</strong> funcionou no antigo<br />

Convento de São Paulo até à reconstrução da casa de<br />

Luiz José, próxima da Alfândega, em 1866. Desde então,<br />

esse edifício passou a albergar os Paços da Câmara, a<br />

Conservatória e o Tribunal. Em data incerta dos inícios<br />

do século xx, o Tribunal foi transferido para novo local,<br />

na Rua do Conde de Torres Novas. Ali esteve até 1961,<br />

numa estrutura de aparência residencial defronte de<br />

um pequeno largo.<br />

a edifício, de formaretangular, apresenta a fachada<br />

principal no topo nascente, voltado para o largo nascente.<br />

Por aí se acede ao primeiro piso sobreelevado<br />

através de uma escadaria. Nova escada conduz ao piso<br />

superior, onde funcionavam os gabinetes do magistrado<br />

e do procurador. Na fachada norte, contígua à<br />

rua, rasgam-se diversas janelas de sacada, não existindo<br />

qualquer porta. Uma fotografia de 1955 revela<br />

várias diferenças face ao edifício atual, nomeadamente<br />

a supressão da platibanda e o redesenhar das<br />

caixilharias. No lado poente existe uma pequena cisterna,<br />

presentemente atulhada de lixo.<br />

A construção tem uma abordagem semelhante aos<br />

edifícios públicos que seconstrllÍam em Goa, com muitas<br />

afinidades com a arquitetura doméstica. (ASF, SM)<br />

HABITAÇÃO<br />

A cidade histórica de <strong>Diu</strong> mantém uma estável unidade<br />

urbanística que a caracteriza desde praticamente<br />

o seu assentamento, apesar de o núcleo inicial em<br />

redor dos templos católicos e edifícios administrativos<br />

se encontrar algo fragilizado pela descaracterização,<br />

ruína de alguns edifícios fundadores e, sobretudo, pela<br />

galopante urbanização de novos bairros incaracterísticos,<br />

"invasores" de territórios outrora expostos à paisagem<br />

de uma cidade europeia e agora em risco de<br />

"dessacralização':<br />

Alguns núcleos ou bairros permanecem contudo<br />

estáveis, embora também aí se tenha iniciado a substituição<br />

de edifícios de reconhecida qualidade arquitetónica,<br />

identitária desta cidade, por outros desqua­<br />

lificadores da unidade urbana.<br />

A casa torreada, associada a volume(s) com pátios<br />

e açoteias, será sem dúvida a tipologia eleita, porventura<br />

a que melhor expressa a arquitetura vernacular<br />

deste lugar de encontro de culturas e de sínteses, entretanto<br />

aqui apuradas e também difundidas. Métodos,<br />

tecnologias de construção e sobretudo modos de habitar<br />

associados à expressão da casa configuram uma<br />

identidade própria a esta tipologia fortemente marcada<br />

pelo islão, ainda que o hinduísmo tenha também<br />

uma ancestral e pujante presença na cidade, havendo<br />

assim influências mútuas.<br />

A casa torreada identifica-se pela elevação sobre os<br />

demais de um volume de base quadrangular, ainda<br />

que, numa fase posterior, por associação de novos<br />

compartimentos, também surja longitudinal. A proximidade<br />

entre casas desta tipologia na unidade de quarteirão<br />

constitui um dos aspectos mafs relevantes na<br />

expressão urbana. Por vezes circulamos por labirínticas<br />

vielas que terminam frequentemente em becos,<br />

rodeados de torreões. Apenas dois núcleos urbanos<br />

distintos integram esta tipologia, respetivamente junto<br />

ao Mercado e antigo Largo da Alfândega, constituindo<br />

o núcleo de casas de famílias abastadas, e o núcleo de<br />

casas de menor dimensão e condição social junto à<br />

porta poente.<br />

Estas casas-torre, da tradição dos portos mediterrânicos,<br />

ganharam o título de "avista-navios" nas ilhas<br />

atlânticas e nalguns portos portugueses; em <strong>Diu</strong> estão<br />

PRovfNCIA DO NORTE I NORTE DA fNDIA • DIU 13 1


2<br />

também relacionadas com a vida marítima, funcionando<br />

como indispensáveis mirantes de mar.<br />

No bairro antigo, junto ao mercado, anda persistem<br />

algumas importantes casas-torre como a da familia<br />

Bhasuber Grina Parsiwada, exemplo perfeito da<br />

casa aristocrática hindu de <strong>Diu</strong>. A espacialidade<br />

encontra-se devidamente hierarquizada a partir da<br />

sala de entrada, onde se recebem as visitas resguardando<br />

a intimidade da casa numa sucessão de espaços.<br />

No piso térreo, o(s) pátio(s) regula(m) parte dessa<br />

hierarquização, principalmente as atividades domésticas,<br />

permitindo ainda a ventilação dos compartimentos,<br />

sendo um destes, ainda não há muitos anos,<br />

para alojamento da vaca (que fornecia leite fresco).<br />

O torreão constitui, na continuidade do átrio, o núcleo<br />

nobre da casa, e nesse sentido tanto as paredes como<br />

os tetos, principalmente as imponentes vigas de<br />

madeira, acolhem delicadas e coloridas pinturas<br />

decorativas. A maior curiosidade destes torreões será<br />

o piso intercalar, com 1,10 metros de pé-direito entre<br />

a sala do piso térreo e o quarto do dono da casa, para<br />

guardaras cereais. Funciona como sequeiro com ventilação<br />

transversal, garantida através de frestas protegidas<br />

com rede, e por se encontrar sobrelevado do<br />

plano da rua, ficando assim também protegido dos<br />

roedores e de outras pragas. As escadas "esculturais"<br />

desenvolvem-se com altos e estreitos deiTaus até<br />

alcançarem o alçapão de piso. Um último degrau, de<br />

canto, com a dimensão de um pé, assinala o patamar<br />

do quarto "mirante'<br />

As açoteias, utilizadas para secar especiarias e<br />

outros produtos, recolhem também as águas pluviais,<br />

comunicando entre si por orifícios junto ao pavimento,<br />

apesar dos muretes elevados por unidade.<br />

Estas casas são elevadas em alvenaria de pedra branca<br />

calcária e os pisos constituídos por grandes vigas de<br />

madeira onde assentam placas da mesma pedra argamassada<br />

e por vezes ladrilhada. A porta da rua, como<br />

algumas do interior, é engradada, formando favos quadrangulares<br />

delicadamente lavrados, recebendo a<br />

porta da rua pequenos pingentes em latão. No exterior,<br />

destacam-se os baldaquinos ou molduras superiores,<br />

repletos de composições profusamente lavradas<br />

com temas hinduístas; curiosamente alguns<br />

exemplos, construídos em meados do século xx, integram<br />

temas art nouveau reinterpretados. Estas portas,<br />

tal como outros aspectos desta tipologia com e sem<br />

torre, transferiram-se para a Ilha de Moçambique,<br />

onde se instalou uma importante colónia de famílias<br />

provenientes de <strong>Diu</strong>.<br />

A casa-torre de <strong>Diu</strong> terá ainda uma identidade fundadora<br />

difusa europeia, presente em alguns exemplos<br />

observados, nomeadamente na casa integrada no<br />

1.32 · PATR IMÓNIO DE ORIGEM PORTUGUESA o MUNDO: ARQ UITE TURA E URB ANISM O<br />

convento quinhentista de Santana, e no Fortim de<br />

Patelwadi. Em ambos os casos, a torre organiza a construção<br />

em termos defensivos, localizando-se em elevações<br />

de nítida vigiJânda sobre o território. No caso<br />

conventual, a sua localização estará articulada com a<br />

própria fortaleza da cidade, como ponto de observação<br />

privilegiado sobre o vasto oceano, contra a possibilidade<br />

de um ataque corsário.<br />

Outro tipo marcante é o das casas hindus com forte<br />

influência da art nouveau europeia, que representam<br />

uma parte significativa da atual identidade arquitetónica<br />

e histórica de <strong>Diu</strong>, formada no século xx. Da miscigenação<br />

cultural e respectiva estabilização de uma<br />

certa gramática formal terá surgido um período fulgurante,<br />

cuja presença física quase exclusivamente se<br />

localiza no Bairro da Porta, a poente da cidade. Casas<br />

de dois e três pisos apresentam varandas e alpendres<br />

profusamente decorados com frisos, balaústres e relevos<br />

figurativos, abstratizantes e realistas, além de elementos<br />

de composição oriental/hindu. Pátios com<br />

arcadas de colunas e Hntéis exuberantemente decorados,<br />

balcões autonomizados de delicada filigrana<br />

dependuram-se nas fachadas e elegantes alpendres<br />

com beirais rematados por lambrequins de madeira.<br />

Interiormente, estas casas mantêm a tradição tipológica,<br />

quase sempre com pátio, ainda que tenham assimilado<br />

discretamente algumas nuances espaciais,<br />

principalmente ao nível da drculação horizontal e vertical.<br />

As salas e salões apresentam-se profusamente<br />

decorados, fundindo a arte moderna com a tradicional<br />

arte oriental, onde o mobiliário procura acompanhar<br />

a expressão arquitetónica.<br />

As portas neste bairro atingem detalhes excecio­<br />

nais: por um lado mantêm a solidez de uma fortaleza,<br />

mas por outro acolhem delicados rendilhados decorativos,<br />

tanto na caracterização das madeiras como<br />

nas molduras alpendradas. As cores exuberantes<br />

combinam-se num caprichoso jogo de tonalidades,<br />

acentuando a presença da casa no plano da rua. Estas<br />

casas pertencem a ricas famílias de comerciantes,<br />

atualmente a viver em Bombaim, encontrando-se<br />

quase praticamente encerradas desde a integração de<br />

<strong>Diu</strong> na União Indiana.<br />

Esta arquitetura vernacular combina diversas fontes,<br />

provavelmente de forma empírica e por vezes ingénua;<br />

contudo, imprimiu uma nova matriz identitária a<br />

este lugar, ao reinventar a ancestral arquitetura urbana<br />

local numa perspectiva de modernização da lingua­<br />

gem formal, na introdução de novas escalas e harmonias,<br />

impondo ainda uma revisão tipológica, atuando<br />

como catalisador de um novo e derradeiro tempo de<br />

mudança sociocultural. (VM)


Bairro da<br />

Associação<br />

do Momepio<br />

da Polícia do<br />

Estado da índia<br />

fOIO; Viclor Mestre<br />

> BAIRRO DA ASSOCIAÇÃO DO MONTEPIO<br />

DA POLíciA DO ESTADO DA íNDIA<br />

Nos últimos anos da existência do Estado da Índia,<br />

houve alguma preocupação em melhorar as condições<br />

domésticas das populações menos favorecidas. No território<br />

de <strong>Diu</strong> subsistem dois exemplos das intervenções<br />

disso resultantes.<br />

O Bairro da Associação do Montepio da Polícia do<br />

Estado da Índia situa-se muito perto do antigo con­<br />

vento franciscano da cidade. No contexto do território,<br />

as suas características revelam-nos uma arquitetura<br />

modernista marcada pela métrica, rept:!tição e ritmo<br />

de uma fachada-grelha abstrata, interceptada longitudinalmente<br />

por uma galeria em consola, terminando<br />

nos topos com duas elegantes escadas, destacadas das<br />

empenas.<br />

Pelo menos formalmente, este bairro faz parte de<br />

um conjunto de outras intervenções de habitação económica<br />

para funcionários do Estado, como será o caso<br />

do Bairro São Francisco Xavier, em Pangim, onde um<br />

dos blocos também recorre ao tema da grelhagem quadrangular<br />

na fachada principal, embora de forma mais<br />

modesta. Todo o conjunto aposta na repetição de<br />

módulos (fogos), que se associam e sobrepõem formando<br />

dois pisos, em unidades de pares de grelhagens<br />

de modo a deixar vazios de idêntica dimensão entre<br />

novos agrupamentos que marcam as entradas.<br />

Verifica-se uma grande coerência entre tipologia e<br />

expressão arquitetónica, que procura levar ao limite a<br />

otimização do espaço útil interior, resolvendo de forma<br />

ímpar o recato entre vizinhos no espaço privado exteriar,<br />

resguardado por detrás das grelhas. Esse espaço é<br />

acessível por galeria, no caso do piso superior, e longi­<br />

tudinalmente no recuo do passeio no piso térreo. No<br />

fogo, a organização do espaço comum reduz a área de<br />

circulação ao mínimo, resguardando a intimidade da<br />

casa através de uma subtil parede de transição entre o<br />

espaço de receber, comer e estar. A tardoz localiza-se<br />

a zona de águas, onde a pequena cozinha integra uma<br />

zona de lavagem de roupa e banho, enquanto o sanitário<br />

se individualiza.<br />

Este bairro constitui uma experiência exemplar no<br />

contexto dos conjuntos habitacionais projetados e<br />

construídos no século xx nos territórios de influência<br />

portuguesa, pela capacidade de fundir princípios do<br />

modernismo internacional ao clima local e às exigen­<br />

tes imposições programáticas e económicas e, ainda,<br />

aos aspectos fundamentais da culturalocal, tornando-o<br />

numa obra de elevada qualidade, caracterizada pelo<br />

rigoroso cumprimento da sua função social e pelo<br />

universalismo cultural da expressão arquitetónica.<br />

(ASF, SM, VM)<br />

> BAIRRO DOS PESCADORES DE BRANCAVARA<br />

O Bairro dos Pescadores de Brancavara (Vanakbara),<br />

situa-se no extremo oeste da Ilha de <strong>Diu</strong>. Esta<br />

povoação desenvolveu-se a partir de uma comunidade<br />

de pescadores, vindo a tornar-se o terceiro núcleo<br />

populacional do território, após a cidade de Dit,l e<br />

Gogolá. Par volta de 1630, edificou-se a Igreja de Santo<br />

André, e em 1774 houve necessidade de construir nova<br />

fortificação para defender a povoação.<br />

Construído nos derradeiros anos da presença portuguesa,<br />

localiza-se a oeste da igreja, elemento agregador<br />

da comunidade. A organização urbana linear<br />

resulta da associação da casa mínima, que introduz<br />

uma escala e expressão arquitetónica contidas. Res­<br />

ponde assim ao enquadramento sacio cultural da<br />

comunidade que lhe está na origem, bem como às limitações<br />

económicas do projeto. A singular unidade<br />

urbana do Bairro dos Pescadores resulta das ruas dispostas<br />

paralelamente à praia, próximas do areal,<br />

acedendo-se ao mar por travessas perpendiculares<br />

onde todo o bairro flui, tendo de permeio uma terra<br />

comum utilizada como zona de despejo e seca de peixe.<br />

PROV(NCIA DO NORTE I NORTE DA INDIA ' DIU · 133<br />

Bairro dos<br />

Pescadores<br />

de Brancavara<br />

Foto: Victor Mestrt


Uma estrutura palafítica elementar com passadeiras<br />

de madeira avança sobre o mar para acesso e amarração<br />

dos barcos. Contudo, é em terra que a vida social<br />

ligada à lida do mar decorre, nas ruas enquanto natural<br />

prolongamento das pequenas e estreitas casas, recolhidas<br />

num alpendre que protege do clima e aconchega<br />

a ínfima entrada, que constitui um discreto sinal de<br />

composição repetido ao longo dos planos de fachada.<br />

Este bairro remete-nos para o pioneiro bairro<br />

modernista dos pescadores de Olhão, no sul de Portugal,<br />

do arquiteto Carlos Ramos. Encontramos semelhanças<br />

na unidade e composição urbana, com um<br />

certo espírito modernista, e também nalguns apontamentos<br />

como as escadas nos topos das ruas para acesso<br />

às aço teias, apesar de as casas maioritariamente terem<br />

cobertura de duas águas.<br />

As paredes das casas do Bairro de Brancavara são<br />

elevadas recorrendo à tecnologia tradicional, em blocos<br />

de pedra de areia trabalhados à mão, argamassados,<br />

rebocados e caiados de branco. Pontualmente<br />

observam-se cores fortes de pigmentos. As coberturas<br />

são em armação de madeira protegida por telhas cerâmicas<br />

e abatidas, formando uma única cobertura que<br />

acentua a horizontalidade do conjunto. Do alto do adro<br />

da Igreja Matriz observa-se a dimensão e a organiza­<br />

ção urbana do bairro, integrado numa orografia marítima<br />

específica e autonomizado da urbanidade dis-<br />

•<br />

persa de Brancavara. (ASF, SM, VM)<br />

BIBLIOGRAFIA: A Jornada Continua (30/12/59 a 39/12/60) 2 anos de Go­<br />

verno do Estado da tndia do Sr. General Manuel A. Vassalo e Si/lia, Goa,<br />

1960, pp. 276-277, 311-313.<br />

ARQUITETURA RURAL<br />

> A CASA TRADICIONAL<br />

A planície domina praticamente todo o território,<br />

quer na ilha, quer na pequena porção do continente<br />

que até 1961 esteve sob dominação portuguesa. Nessas<br />

grandes extensões de terreno aberto a escassez de<br />

água faz-se sentir, devido à porosidade do solo, de tom<br />

amarelado, resultante da desagregação dos calcareni­<br />

tos oolíticos, pelo que os poços são a alternativa na<br />

obtenção de água para rega, tornando extremamente<br />

difícil a agricultura. Nalgumas localidades observam­<br />

-se grandes eiras circulares e respectivas debulhas.<br />

Pequenas matas de diferentes espécies cercam os<br />

campos e aí se acolhem as aldeias ou pequenos aglo­<br />

merados.<br />

As palmeiras Garli e outras espécies bordejam<br />

grandes extensões dunares, interrompidas pontualmente<br />

por salinas. Os núcleos mais significativos,<br />

como PÓ drama, Bunxivará, Brancavará e Gogolá,<br />

desenvolveram-se enquanto estruturas urbanas irre-<br />

1 34 PA TRIMÓNIO DE ORIGEM PORTUGUESA NO MUNDO: ARQU ITETUR.A E URBANISMO<br />

guiares, destacando-se nalgumas delas a igreja, o respectivo<br />

adro e o acesso enquanto elementos estruturantes;<br />

nalguns casos terão constituído um tímido<br />

núcleo embrionário de uma organização administrativa,<br />

onde a igreja desempenhava uma função determinante<br />

na coesão social, destacando-se das demais<br />

Fudam e Brancavará.<br />

As tipologias rurais são predominantemente de<br />

piso térreo, com alpendre ao correr da fachada, por<br />

vezes parcialmente ocupado com a adição de um compartimento<br />

num dos lados. Genericamente, as coberturas<br />

são de duas águas, proporcionando em algumas<br />

o aproveitamento do desvão para arrumas diversos,<br />

através de um improvisado estrado de varas e pranchas<br />

que se apoiam em esteios e frechais de madeira, formando<br />

o suporte da armação principal.<br />

No caso das aldeias de Malála e Nagoá, as casas<br />

agrupam-se encostadas entre si, formando planos de<br />

ruas muito estreitos para proteção solar e da chuva da<br />

monção. São os alpendres fronteiros que permitem<br />

maior desafogo e consequentemente um lugar de convívio<br />

entre familiares, saudação e conversação entre<br />

vizinhos. Um singelo muro de alvenaria corrido} paralelo<br />

à fachada, não só delimita o espaço exterior coberto<br />

privado como serve de banco e de suporte das colunas<br />

em alvenaria rebocada, ou em toros de madeira. As<br />

casas são elementares na sua estrutura tipológica: praticamente<br />

são divididas entre a zona de confecção, ou<br />

seja, a cozinha sempre com fogo de chão em pequena<br />

elevação formando uma fornalha e respectiva área de<br />

comer em redor} tendo no lado oposto uma zona dividida<br />

por um tabique rebocado. Nesta área guardam­<br />

-se haveres diversos, como roupa, recipientes com pro­<br />

dutos da terra, etc. Em ambos os espaços se observam<br />

camas de estrado de corda tensionada entre travessas,<br />

formando um quadro com pés de madeira. Em algumas<br />

casas e apenas sobre a zona oposta à cozinha,<br />

Casa tradicional<br />

Foto: Victor Mestre


o estrado superior, quando totalmente compacto, permite<br />

a sua utilização, através de um alçapão, para arrumas<br />

mais valiosos e pontualmente para dormir.<br />

Nas aldeias de Patelwadi e Buchiwadi, as casas de<br />

dois pisos destacam-se das demais pelas varandas corridas<br />

em madeira. Nesta como nas outras aldeias, as<br />

atividades artesanais mantêm uma importante linhagem<br />

de família de artesãos, com destaque para os carpinteiros.<br />

Nas casas de sobrado, a escada é interior em<br />

madeira e a compartimentação mantém-se elementar.<br />

O piso sobradado é composto por vigas de madeira<br />

colocadas no sentido da menor dimensão, recebendo<br />

pranchas de forro ou placas de cantaria argamassada<br />

sobre o vigamento, como nas casas da cidade de <strong>Diu</strong>.<br />

As coberturas são de duas águas e porvezes rasgam­<br />

-se vãos nas empenas em ambas as tipologias, respectivamente<br />

de piso térreo e sobradadas. A elevação das<br />

paredes exteriores e interiores, quando estruturais, é<br />

feita em alvenaria de pedra calcária local, que se prepara<br />

com instrumentos de corte manual, como sucede<br />

em Goa com a laterite, seguindo ancestrais bitolas.<br />

As argamassas tradicionais de areia e cal estão atualmente<br />

a ser substituídas pelo cimento, mantendo-se<br />

contudo as tintas de pigmento misturadas na cal de<br />

cores fortes, ainda que o branco predomine.<br />

Acasa linear modesta de empena com porta e duas<br />

águas, em acentuado desaparecimento, constituirá o<br />

testemunho de uma tipologia primitiva'tlssociada às<br />

hortas, aos campos da lavoura e respectivas eiras.<br />

Extremamente baixa, esta casa mais parece um abrigo<br />

temporário, ou um celeiro como os de Goa em laterite;<br />

no entanto, até há bem pouco tempo constituía uma<br />

prolífera tipologia, que com grande probabilidade terá<br />

sido o modelo básico das tipologias elementares. Na<br />

aldeia de Patelwadi, observamos esta pequena construção<br />

localizada fora do núcleo e junto do mesmo,<br />

onde a porta da fachada de empena curiosamente<br />

transita para a fachada lateral, proporcionando um<br />

pé-direito mais favorável, em virtude da necessidade<br />

de altear os frechais laterais. Ainda na mesma aldeia<br />

observamos o que parece ser a continuidade da inova­<br />

ção da mesma casa, em termos de escala, proporção e<br />

compartimentação, com a introdução de um simplificado<br />

alpendre.<br />

O território de <strong>Diu</strong> engloba ainda a península e a<br />

aldeia de Gogolá, densamente povoada, com o núcleo<br />

fundador junto ao arco da aldeia sobrepujado por uma<br />

casa-torre, e o cruzeiro, símbolo do cristianismo neste<br />

lugar. A maioria das casas é de piso térreo com cobertura<br />

de duas águas, ainda que na zona central tenha<br />

dois e três pisos, algumas com varandas e outras com<br />

açoteias. (VM)<br />

BIBLIOGRAFIA: Brito, R. S., Goa eas praças do Norte, Lisboa, 1966.<br />

Dongri [Dongrim] (íNDIA)<br />

ARQUITETURA REL IGIOSA<br />

> IGREJA DE NOSSA SENHORA DE BELÉM<br />

Esplendidamente localizada num sítio ainda intocado<br />

pela urbanização de Salcete, a fachada virada a<br />

norte, ao largo do rio de Baçaim, com a antiga cidade<br />

escondida pelo coqueiral e a bruma na outra margem<br />

a noroeste, a Igreja de Nossa Senhora de Belém de<br />

Dongri mantém provavelmente o perímetro murário,<br />

O tipo arquitetónico, O terreiro onde se localiza e a<br />

situação relativamente ao povoado com que terá sido<br />

fundada pelos jesuítas cerca de 1613. Esta data, apensa<br />

à fachada já no século xx, corresponde à colocação<br />

do primeiro pároco, Francisco de Azevedo, SJ.<br />

A igreja é de nave única coberta de telhado e capela­<br />

-mar com abóbada ou teta liso de canhão, rebocado}<br />

mas é natural que seja ou tenha sido abóbada, a julgar<br />

pela presença exterior de contrafortes. A fachada apresenta<br />

três tramos, três portas em arco, sendo a central<br />

a maior, e duas sineiras a que correspondem mais dois<br />

tramas muito estreitos.<br />

O argumento essencial a favor de que o perímetro<br />

murário da igreja seja ainda primo-seiscentista é a<br />

forma interior de algumas janelas: redesenhadas<br />

modernamente de forma gótica, mantiveram o característico<br />

recorte em asa de cesto que encontramos por<br />

toda a parte no norte e, aqui e ali, em Goa ou Kerala,<br />

em edifícios de Quinhentos ou Seiscentos. Em 1902 foi<br />

feita e cronografada com esta data a obra da escada<br />

que, a sul, por detrás da sineira do mesmo lado, dá<br />

acesso exterior ao coro alto sobre a entrada.<br />

PRoviNC1A DO NORTE I NORTE DA IND1A • DIU " DONGRI . 135<br />

Igreja de<br />

Nossa Senhora<br />

de Belém<br />

(pormenor)<br />

Foto: AceNO BOB.<br />

UClOAAQ

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