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A DIVULGAÇÃO E O PULO DO GATO Com o ... - Casa da Ciência

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A <strong>DIVULGAÇÃO</strong> E O <strong>PULO</strong> <strong>DO</strong> <strong>GATO</strong><br />

Ulisses Capozoli*<br />

<strong>Com</strong> o pequeno risco de afugentar leitores mais dogmáticos,<br />

certamente vale a pena considerar, já na abertura deste texto, que a<br />

divulgação científica tem mais proximi<strong>da</strong>de com os contos de fa<strong>da</strong>s<br />

que seria de se esperar à primeira vista.<br />

Essa relação profun<strong>da</strong>, que se estende pela longa noite do tempo,<br />

está relaciona<strong>da</strong> à mitologia, o primeiro esforço humano de<br />

inteligibili<strong>da</strong>de do mundo.<br />

Divulgação científica não é outra coisa senão um esforço de<br />

inteligibili<strong>da</strong>de do mundo que se busca e, ao mesmo tempo, se<br />

compartilha com os demais. Alguém que não sinta em seu íntimo o<br />

que Joseph Campbell chamou de “metáfora de um mistério além <strong>da</strong><br />

compreensão humana”, ao se referir ao mito, evidentemente pode<br />

produzir seus escritos. Mas eles nunca terão vitali<strong>da</strong>de e, por isso mesmo,<br />

não cativarão seus leitores, como fazem os contos de fa<strong>da</strong>s.<br />

Carência de formação, conseqüência de escolas desprepara<strong>da</strong>s,<br />

de disciplinas desencontra<strong>da</strong>s e, especialmente, de uma visão<br />

equivoca<strong>da</strong> do que deve ser o conhecimento, faz com que muita gente,<br />

mesmo na universi<strong>da</strong>de, tenha uma percepção equivoca<strong>da</strong> em relação<br />

à mitologia. Consideram que essa foi uma explicação ingênua para o<br />

mundo, quando o homem ain<strong>da</strong> não havia forjado a ciência e sua mente<br />

era habita<strong>da</strong> por pensamentos mágicos que a racionali<strong>da</strong>de varreu para<br />

o lixo <strong>da</strong> história.<br />

Mais que ingenui<strong>da</strong>de, é um erro pensar dessa forma. Quem faz<br />

esse relato é a história <strong>da</strong> ciência. Daí a importância de os interessados<br />

em divulgação científica construírem uma base sóli<strong>da</strong>, um fun<strong>da</strong>mento<br />

confiável, em história <strong>da</strong> ciência e também em filosofia <strong>da</strong> ciência. Os<br />

exemplos, as justificativas, as explicações, a compreensão mais clara <strong>da</strong>quilo<br />

que está em discussão só são possíveis dentro de uma perspectiva histórica,<br />

o que é uma postura científica. Desnecessário dizer que isso possa excluir<br />

uma boa formação em disciplinas como física, química, biologia etc.<br />

* Presidente <strong>da</strong> Associação Brasileira de Jornalismo Científico e editor <strong>da</strong> Scientific American/Brasil.


122 .<br />

CIÊNCIA E PÚBLICO<br />

Para não deixar a provocação incompleta, em relação aos mitos,<br />

é preciso dizer que a linguagem em que se exprimem é alegórica, como<br />

é a linguagem dos clássicos, incluindo-se aí os livros sagrados. Isso não<br />

leva a pensar que mitologia, ciência e religião sejam a mesma coisa.<br />

Significa apenas que, retirar <strong>da</strong> alegoria interpretações fecha<strong>da</strong>s, sem<br />

possibili<strong>da</strong>de de alternativas, é uma falha grave de discernimento.<br />

A observação do mundo não é algo ao acaso, ain<strong>da</strong> que do acaso<br />

possam emergir acontecimentos surpreendentes. Mas, nesse caso, um<br />

observador atento saberá enxergar mais e melhor que o desatento. A<br />

diferença está no olhar.<br />

Divulgadores científicos, como observadores do mundo, devem<br />

cui<strong>da</strong>r de sua formação com a dedicação de um atleta que mol<strong>da</strong> seus<br />

músculos. Mas essa dedicação não pode nem deve ser um processo<br />

mecânico, ou seja, um mero ajuntamento de informação. O desafio de<br />

um divulgador é forjar sínteses, tarefa que exige esforço, determinação<br />

e algo que, por um constrangimento injustificável, quase não se diz:<br />

amor ao conhecimento.<br />

Um texto de divulgação pode, ain<strong>da</strong> que alguns possam<br />

surpreender-se, produzir conhecimento primário tanto quanto uma<br />

pesquisa convencional. E isso porque, tanto na divulgação, quanto na<br />

pesquisa, o que está em questão é a interpretação. É a interpretação<br />

que revela o novo e, dessa maneira, reconfigura o mundo.<br />

Uma boa base em história e filosofia <strong>da</strong> ciência é indispensável<br />

não só a divulgadores, mas também a pesquisadores científicos. A<br />

filosofia <strong>da</strong> ciência é fun<strong>da</strong>mental, especialmente para a sustentação de<br />

uma certa “estranheza” do mundo. Só com a atenção desperta um<br />

divulgador pode tocar fundo seus leitores. Dois casos, aparentemente<br />

banais, podem ser considerados como exemplos. O primeiro envolve a<br />

fotossíntese e a respiração.<br />

A fotossíntese faz com que as plantas absorvam dióxido de<br />

carbono e liberem oxigênio, enquanto a respiração deman<strong>da</strong> oxigênio<br />

e libera gás carbônico. São processos interativos para assegurar a vi<strong>da</strong>,<br />

ou que formas de vi<strong>da</strong> inventaram para se assegurar. Não se <strong>da</strong>r conta<br />

de processos surpreendentes como esses, e assim não despertar a atenção<br />

do leitor, é perder de vista o ouro e o diamante depositados no leito<br />

seco do rio, seguindo um curso que só aparentemente faz sentido: o<br />

curso equivocado do reducionismo.<br />

Um segundo exemplo pode ser a observação de chuvas de<br />

meteoros, como foram os Leonídeos em 1998. Chuvas de meteoros,


A <strong>DIVULGAÇÃO</strong> E O <strong>PULO</strong> <strong>DO</strong> <strong>GATO</strong> . 123<br />

na maior parte dos casos, devem-se a uma esteira de restos de cometas<br />

desprendidos pela ação do Sol e que, ao entrarem na atmosfera,<br />

produzem fenômenos especialmente luminosos, em alguns casos<br />

acompanhados de assovios, se os meteoróides que lhes dão origem<br />

tiverem o tamanho de um pedregulho, em vez <strong>da</strong>s dimensões de um<br />

grão de arroz.<br />

Chuvas de meteoros demonstram claramente a eficiência <strong>da</strong><br />

atmosfera em bloquear bólidos originários do espaço exterior, e essa é<br />

uma maneira clara e emocionante de se perceber a cadeia de condições<br />

necessárias à evolução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

É bem ver<strong>da</strong>de que, ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Terra, muitas vezes<br />

corpos vindos do espaço produziram extinções em massa. Há muitas<br />

evidências de que isso ocorreu. A extinção abrupta dos dinossauros, há<br />

65 milhões de anos, aparentemente relaciona<strong>da</strong> ao choque com um<br />

asteróide de 10 quilômetros de diâmetro, é a cena mais familiar evoca<strong>da</strong><br />

por esses encontros catastróficos. To<strong>da</strong>via isso não diminui a eficiência<br />

atmosférica como escudo de proteção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e a observação de uma<br />

rica chuva de meteoros é uma <strong>da</strong>s maneiras mais simples e convincente<br />

de se <strong>da</strong>r conta disso.<br />

Debates envolvendo jornalistas e cientistas, relacionados à<br />

divulgação científica, lamentavelmente, ain<strong>da</strong> hoje, envere<strong>da</strong>m por<br />

muitos becos sem saí<strong>da</strong>. Houve um progresso animador nos últimos<br />

tempos, mas a questão ain<strong>da</strong> está longe de ser bem conduzi<strong>da</strong>.<br />

De um modo geral, os cientistas, que na maior parte dos casos<br />

são pesquisadores científicos, pretendem ter o privilégio do que se<br />

costuma chamar de “tradução <strong>da</strong> ciência para leigos”. <strong>Com</strong> base no<br />

que disse Freud a respeito <strong>da</strong> psicanálise, pode-se argumentar que essa<br />

é uma postura equivoca<strong>da</strong>. Freud disse mais de uma vez que a psicanálise<br />

não é coisa para médicos, mas para psicanalistas. Isso significa dizer<br />

que divulgação de ciência é coisa para divulgadores científicos, tenham<br />

eles a formação que tiverem, desde que comprometidos com os princípios<br />

científicos. Essa qualificação, comprometimento com princípios<br />

científicos, não é, evidentemente, a garantia que muitos gostariam de<br />

ter. Mas exclui, por exemplo, ativi<strong>da</strong>des como a astrologia.<br />

E aqui temos uma outra dificul<strong>da</strong>de, relaciona<strong>da</strong> não apenas<br />

com a afirmação anterior, mas também à divulgação científica. Ain<strong>da</strong><br />

hoje, não são poucos os que sustentam que psicanálise não é ciência. O<br />

desafio, então, seria explicitar, com to<strong>da</strong> clareza, que diabos, afinal, é a<br />

ciência. E isso é um desafio bem maior do que parece ao primeiro


124 .<br />

CIÊNCIA E PÚBLICO<br />

olhar. A ação à distância a que se referiu Kepler, e que provocou um<br />

certo desdém por parte de Galileu, não se materializou como boa ciência<br />

nas mãos de Isaac Newton sob o nome de gravitação universal?<br />

O que está por trás de questionamentos como esse, na ver<strong>da</strong>de,<br />

é a busca <strong>da</strong> garantia contra o erro. Ao que tudo indica, um esforço<br />

condenado ao insucesso. O fato de os aviões voarem, de os navios<br />

flutuarem e de uma mensagem cruzar o planeta na veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luz,<br />

com certos comandos específicos num computador, tudo baseado em<br />

princípios científicos, não assegura que isso vá ocorrer sempre. Em<br />

alguns momentos, por razões inevitáveis, o esperado não acontece.<br />

Mesmo que ca<strong>da</strong> acidente, especialmente os que envolvem aviões,<br />

costume ser detalha<strong>da</strong>mente investigado para evitar que os erros venham<br />

a se repetir. Mas, de uma ou outra forma, eles sempre se repetem.<br />

Entretanto, também aqui, não devem existir razões para lamento.<br />

O erro pode ser o acerto, ao menos na biologia, particularmente na<br />

seleção natural. Hoje, mais que nunca, existem fortes indícios de que,<br />

não fosse o erro fortuito, não estaríamos aqui, como o leitor deste texto,<br />

refletindo sobre esse aparente paradoxo. Estrelas explodi<strong>da</strong>s a distâncias<br />

enormes, choques galáticos, colisões de corpos bilhões de vezes mais<br />

densos que o chumbo, acontecimentos confinados às profundezas do<br />

espaço-tempo, de alguma forma misteriosa estão presentes em ca<strong>da</strong><br />

acontecimento que tendemos a interpretar como isolados ou<br />

convencionais. E isso só pode ser percebido por uma visão de conjunto,<br />

numa abor<strong>da</strong>gem sistemática, já que o termo holístico, para definir<br />

uma situação como essa, está carregado de certo sentido pejorativo.<br />

Pesquisadores científicos, quase sempre confinados às suas áreas<br />

de investigação, podem ser vítimas dessa atração específica e ter<br />

dificul<strong>da</strong>des em fazer conexões com outras áreas. No passado não foi<br />

sempre assim, mas a enorme especialização trazi<strong>da</strong> pela ciência moderna,<br />

a partir do século XVII, fez com que o conhecimento estanquizado<br />

levasse a um esquartejamento do corpo <strong>da</strong> ciência.<br />

As coisas do mundo estão em conexão e interação constante, o<br />

que fez Heráclito anunciar algo parecido a ninguém subir a mesma<br />

montanha duas vezes ou cruzar mais de uma vez o mesmo rio. Aí está<br />

a presença <strong>da</strong> perturbadora originali<strong>da</strong>de do mundo. Ca<strong>da</strong><br />

acontecimento, qualquer que seja, é absolutamente original e se são<br />

inteligível, com o recurso de um histórico aparente, isso se deve a<br />

outra ocorrência não menos espantosa: a capaci<strong>da</strong>de de interpretação<br />

<strong>da</strong> mente humana.


A <strong>DIVULGAÇÃO</strong> E O <strong>PULO</strong> <strong>DO</strong> <strong>GATO</strong> . 125<br />

Críticos mais ácidos podem acrescentar que essa habili<strong>da</strong>de não<br />

é um privilégio humano. Animais domésticos como cães e gatos ensinam<br />

lições diárias a quem se dispuser a observar atentamente seus<br />

comportamentos. É uma observação procedente, mas, aqui, a intenção<br />

é referir-se a padrões mais específicos, claramente associados a humanos,<br />

como ler, escrever e refletir sobre um texto de divulgação científica.<br />

Por tudo isso, uma recomen<strong>da</strong>ção certamente produtiva para<br />

quem deseja envolver-se com divulgação de ciência é iniciar o trabalho<br />

pela própria reeducação. Nesse caso, observar é uma atitude<br />

fun<strong>da</strong>mental. Quanto a escrever, é um ato de exposição constante. Um<br />

texto escrito espalha-se pelo mundo e pode, a qualquer momento, ser<br />

uma prova contundente contra seu próprio autor. Mesmo que se peça<br />

para que eles sejam esquecidos, dificilmente todos os interlocutores<br />

concor<strong>da</strong>rão com essa proposta de alterar o passado. Há um pacto não<br />

discutido, mas assentido de forma natural, para que as coisas sejam<br />

assim. É parte do esforço de inteligibili<strong>da</strong>de do mundo.<br />

A pereni<strong>da</strong>de relativa do texto escrito e, além disso, o fato de<br />

ele ser tornado público, ao alcance, em princípio, de qualquer<br />

interessado e, eventualmente, até mesmo de desinteressados, costuma<br />

provocar uma enorme resistência <strong>da</strong> parte de quem deve escrever. Se há<br />

disponibili<strong>da</strong>de de tempo, essa dificul<strong>da</strong>de pode ser contorna<strong>da</strong>. Mas<br />

se o tempo é escasso, como acontece no jornalismo, as coisas se<br />

complicam um pouco mais.<br />

Existem soluções para a “trava”, o bloqueio para escrever. A<br />

primeira delas é saber por que esse comportamento se manifesta. Uma<br />

outra maneira, na ver<strong>da</strong>de um recurso de emergência, é ligar o piloto<br />

automático e relatar o que vem à mente. <strong>Com</strong> um texto básico<br />

concluído, inicia-se, então, um ver<strong>da</strong>deiro trabalho de marcenaria:<br />

cortar, colar, remen<strong>da</strong>r, polir, lustrar e <strong>da</strong>r um pouco de brilho. Se<br />

divulgação científica está intimamente relaciona<strong>da</strong> aos contos de fa<strong>da</strong>s,<br />

como se defendeu no início deste texto, escrever é, sem dúvi<strong>da</strong>, algo<br />

bem próximo <strong>da</strong> marcenaria.<br />

Geralmente, a história empaca quando não está suficientemente<br />

clara para seu próprio autor, o que não chega a ser um paradoxo. Aí<br />

está um caso para se pensar. <strong>Com</strong>o alguém pode escrever claramente<br />

sobre um assunto que enxerga de maneira obscura? <strong>Ciência</strong> não é,<br />

nunca foi e nem será sinônimo de bom senso. Mas, nesse caso, é o<br />

velho e familiar bom senso que diz tratar-se de um caso impossível.<br />

Não se pode escrever clara e sedutoramente sobre um assunto que não


126 .<br />

CIÊNCIA E PÚBLICO<br />

se compreende, em que não se percebe coerência interna, harmonia.<br />

Ou, para ser mais específico, a presença <strong>da</strong> estética.<br />

Paul Dirac, físico inglês que fez a previsão teórica <strong>da</strong> antimatéria,<br />

o pósitron, elétron positivo, detectado em 1932, disse num escrito<br />

notável, a propósito <strong>da</strong> unificação <strong>da</strong>s forças fun<strong>da</strong>mentais, que um<br />

dos critérios de aceitação de uma teoria deve ser a sua beleza. Mas,<br />

ain<strong>da</strong> aqui, é preciso lembrar que não existem garantias absolutas contra<br />

o erro. Exemplo disso certamente é a teoria do Estado Estacionário,<br />

exposta no pós-guerra por uma equipe de físicos, tendo à frente o<br />

físico-matemático inglês Fred Hoyle.<br />

A teoria do Estado Estacionário sustentava que o Universo sempre<br />

existiu e se as galáxias se expandem, como Hubble observou no final<br />

<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 20, esse movimento era devido à criação contínua de<br />

átomos de hidrogênio, o elemento mais simples do Universo, por uma<br />

espécie de parto gravitacional.<br />

A teoria do Estado Estacionário, ou <strong>da</strong> Criação Contínua, como<br />

também foi conheci<strong>da</strong>, acabou refuta<strong>da</strong> em 1964 pela cosmologia do<br />

Big Bang, quando observações em rádio, na faixa de microon<strong>da</strong>s,<br />

captaram a chama<strong>da</strong> radiação cósmica de fundo. Esse rádio-ruído que<br />

inun<strong>da</strong> todo o céu é uma forma de eco <strong>da</strong> explosão primordial. Captar<br />

o eco <strong>da</strong> criação do Cosmo é uma façanha que faz do homem uma<br />

criatura particular na Natureza, o que não significa que ele esteja no<br />

centro <strong>da</strong> criação, como sustentou ao longo de séculos a teologia cristã.<br />

<strong>Com</strong>o o Universo, a Natureza também não tem um centro, seja ele<br />

físico ou conceitual.<br />

A beleza <strong>da</strong> teoria do Estado Estacionário foi confronta<strong>da</strong> com<br />

outra beleza, no caso, a cosmologia do Big Bang e, agora, com o apoio<br />

observacional. Prever e buscar apoio observacional como forma de<br />

corroborar a teoria é a regra fun<strong>da</strong>mental no jogo <strong>da</strong> ciência. Por quanto<br />

tempo essa regra vai perdurar é algo que não se pode saber de antemão.<br />

Mas até que ela seja transforma<strong>da</strong>, como já ocorreu no passado, deve<br />

ser obedeci<strong>da</strong> por todos os participantes do jogo.<br />

Anteriormente, referimo-nos à astrologia, como exemplo de<br />

pseudociência. Sem voltar atrás nessa caracterização, é preciso considerar<br />

que a astrologia foi o embrião <strong>da</strong> astronomia, como a alquimia foi o<br />

fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> química. Essa localização histórica certamente permite<br />

uma visão mais abrangente dos acontecimentos.


A <strong>DIVULGAÇÃO</strong> E O <strong>PULO</strong> <strong>DO</strong> <strong>GATO</strong> . 127<br />

Foram astrólogos chineses, encarregados de avisar ao imperador<br />

sobre acontecimentos inesperados no céu, especialmente durante a<br />

gestação de um príncipe, que observaram e registraram a supernova de<br />

1054, uma estrela que explodiu no interior <strong>da</strong> constelação do Touro,<br />

cujos restos formam hoje uma <strong>da</strong>s imagens mais belas do céu. A<br />

nebulosa do Caranguejo, uma massa gigantesca de gases e poeira<br />

deixa<strong>da</strong> pela estrela morta, expandindo-se à veloci<strong>da</strong>de de 7 milhões<br />

de quilômetros por hora, é parte <strong>da</strong> história do futuro. Se a teoria de<br />

evolução estelar estiver correta, um dia esse material voltará a<br />

condensar-se num sol e à sua volta a vi<strong>da</strong> será teci<strong>da</strong> numa conexão<br />

de diferentes fios. Nesse tempo remoto não terá sobrado uma única<br />

pega<strong>da</strong> do homem. Pode parecer literatura, e de alguma forma é, mas<br />

é divulgação científica, incursão na história do futuro.<br />

Os astrólogos chineses que registraram a explosão estelar,<br />

observa<strong>da</strong> durante o dia, tinham boas razões para estar atentos. Se um<br />

acontecimento desse tipo não fosse devi<strong>da</strong>mente observado, seguido<br />

de uma explicação convincente, eles literalmente perdiam suas cabeças.<br />

Na Europa, ao contrário do que ocorreu na China, os astrólogos<br />

viram a estrela faiscando durante o dia. Mas, submetidos à cosmologia<br />

teológica, com base em Aristóteles e na idéia <strong>da</strong> perfeição <strong>da</strong> esfera<br />

celeste, não podiam aceitar a revelação do olhar.<br />

Há menos de 400 anos, quando enxergou pela primeira vez as<br />

irregulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> superfície lunar, Galileu foi repreendido por Clavius,<br />

astrônomo e matemático nomeado pelo papa para a reforma do<br />

calendário. Negando o testemunho do olhar, Clavius garantiu a Galileu<br />

que a Lua é recoberta por uma esfera translúci<strong>da</strong> que a faz tão lisa e<br />

esférica quanto uma enorme bola de bilhar.<br />

Não há razão consistente para supor que erros semelhantes<br />

tenham sido superados, o que faz com que previsões equivoca<strong>da</strong>s<br />

continuem sendo feitas. Mesmo que se originem de inteligências<br />

brilhantes, como é o caso de Lorde Kelvin, um dos mais notáveis físicos<br />

ingleses, no final do século XIX. Às vésperas do desenvolvimento <strong>da</strong><br />

mecânica quântica e <strong>da</strong> relativi<strong>da</strong>de, Lorde Kelvin, conhecido pela escala<br />

que leva seu nome, previu que, na física, não havia mais na<strong>da</strong> de<br />

importante a ser conhecido.<br />

Mais que acertos, que eventualmente podem se revelar erros, os<br />

reconhecidos erros indicam que a ciência é uma criação humana. Uma


128 .<br />

CIÊNCIA E PÚBLICO<br />

visão idealista, no sentido pejorativo desse termo algo controvertido,<br />

propõe uma natureza supra-humana para a ciência, o que, certamente,<br />

é uma perigosa cila<strong>da</strong> para um divulgador. Mais de uma vez, Einstein<br />

reafirmou em seus escritos que a ciência é um dos grandes tesouros <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de, mas mesmo esse tesouro tem um brilho esmaecido frente<br />

ao grande desconhecido.<br />

Quanto a escrever, é sempre um ato de criação. No caso dos<br />

jornalistas, são os primeiros a não reconhecer essa condição. Gabriel<br />

García Marquez, num depoimento recente, fez, como poucos, um<br />

reconhecimento do jornalismo como uma forma de literatura, o que,<br />

evidentemente, inclui a divulgação científica. Conectar essas duas<br />

pontas, ou seja, interpretar o texto de divulgação científica como uma<br />

forma de literatura, no entanto, talvez seja um desafio precoce numa<br />

socie<strong>da</strong>de sem tradição científica como o Brasil. O problema, nesse<br />

caso, não é de mérito, mas de método.<br />

<strong>Com</strong>o a ciência iniciou-se aqui? A resposta a essa pergunta inclui<br />

um débito de gratidão a Napoleão Bonaparte. Pressiona<strong>da</strong> pela invasão<br />

napoleônica, a Corte portuguesa fugiu para o Brasil, em 1808, e, aqui,<br />

criou a Imprensa Régia, com a preocupação primeira de coletar impostos<br />

e assegurar sua sobrevivência. Só secun<strong>da</strong>riamente, em seu tempo ocioso,<br />

as prensas produziram livros. Antes de 1808, era proibido publicar<br />

livros e jornais no Brasil e, <strong>da</strong> mesma maneira, fazer investigações<br />

científicas. Humboldt, em sua viagem pela América do Sul, foi taxado<br />

de “agitador” e impedido de entrar em terras brasileiras, ain<strong>da</strong> que,<br />

posteriormente, seu posicionamento favorável ao Brasil num litígio de<br />

fronteira lhe tenha valido a mais alta condecoração do Império.<br />

A ciência começou tardia no Brasil e teve, em segui<strong>da</strong>, uma<br />

forte influência do positivismo de Auguste <strong>Com</strong>te, especialmente nas<br />

escolas militares. Uma parcela dos historiadores <strong>da</strong> ciência sustenta<br />

que o positivismo foi importante para a formação de escolas de<br />

engenharia. O que não se considera é que as restrições conceituais do<br />

positivismo (<strong>Com</strong>te argumentava que a visão do organismo basea<strong>da</strong><br />

em células levaria a ciência ao anarquismo) contribuíram para uma<br />

restrição epistemológica que nunca foi devi<strong>da</strong>mente avalia<strong>da</strong> e por isso<br />

mesmo seu legado negativo continua desconhecido.<br />

<strong>Com</strong>te teve poucos, mas combativos, críticos no Brasil, caso do<br />

engenheiro e professor pernambucano Luiz Freire (1896-1963).<br />

Segundo Freire, <strong>Com</strong>te, querendo disciplinar a ciência e a filosofia,


A <strong>DIVULGAÇÃO</strong> E O <strong>PULO</strong> <strong>DO</strong> <strong>GATO</strong> . 129<br />

(...) cai, lamentavelmente, em pólo oposto, negando ao pensamento<br />

o direito que lhe é intrínseco de interrogar, de sempre interrogar, sem<br />

que isto possa reconhecer limites traçados por nenhuma doutrina,<br />

por mais genial que seja o seu arauto. 1<br />

Interessante observar, em Raízes do Brasil, o clássico de Sérgio<br />

Buarque de Hollan<strong>da</strong>, as influências do positivismo para avaliar se essa<br />

abor<strong>da</strong>gem não influenciou a divulgação científica aqui. Na reali<strong>da</strong>de,<br />

esse é um território que, aparentemente, continua inexplorado. Uma<br />

monografia de mestrado, ou mesmo uma tese de doutorado, certamente<br />

traria interessantes contribuições nessa área. O que se pode deduzir é<br />

que a forma de conceber a ciência está intimamente associa<strong>da</strong> à forma<br />

de divulgá-la. Assim, se a concepção de ciência é estreita, a exposição<br />

dela, sob a forma de divulgação, também levará essa marca.<br />

Aparentemente, surgem <strong>da</strong>í dificul<strong>da</strong>des como a construção de<br />

metáforas e analogias, recursos indispensáveis na divulgação científica.<br />

Uma parcela significativa de pesquisadores científicos ain<strong>da</strong> hoje adota<br />

uma postura supera<strong>da</strong>, expressa na idéia de que “jornalistas distorcem<br />

o que dizem os cientistas”. <strong>Com</strong>o já se falou anteriormente, houve um<br />

avanço significativo na relação cientista/jornalista nos últimos tempos.<br />

Uma <strong>da</strong>s razões disso foi a melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do jornalismo<br />

científico. A outra foi a consciência de que a divulgação é uma forma<br />

de satisfação à socie<strong>da</strong>de, que, com seus impostos, financia a pesquisa.<br />

Entretanto as dificul<strong>da</strong>des ain<strong>da</strong> não foram inteiramente removi<strong>da</strong>s. E<br />

uma delas envolve metáforas e analogias.<br />

É preciso reconhecer que, por razões que vão <strong>da</strong> estatística à<br />

psicanálise e refletem como um espelho a natureza humana, alguns<br />

jornalistas não são tão honestos em relação ao trabalho que fazem quanto<br />

deveriam ser. Mas a exceção vale também para pesquisadores científicos<br />

ou qualquer outra categoria profissional.<br />

Quanto a críticas de pesquisadores científicos envolvendo<br />

metáforas e analogias, no sentido de distorcer uma pretensa objetivi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> ciência, a ver<strong>da</strong>de é que essas acusações mal dissimulam o que se<br />

pode chamar de analfabetismo científico, uma incapaci<strong>da</strong>de de se <strong>da</strong>r<br />

conta <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> completa impossibili<strong>da</strong>de de<br />

fazê-la “disciplina<strong>da</strong>”, como queria <strong>Com</strong>te.<br />

1 FREIRE, Luiz apud MOTA e ALBUQUERQUE, Ivone Freire <strong>da</strong>; HAMBURGUER, Amelia. Registros de<br />

interações de Luiz Freire (Recife, 1896-1963) com o contexto francês de idéias. A ciência nas relações<br />

Brasil-França (1850-1950). São Paulo: Edusp/Fapesp, 1996. pp. 205-228.


130 .<br />

CIÊNCIA E PÚBLICO<br />

<strong>Com</strong>o um divulgador científico, jornalista ou pesquisador<br />

científico, pode traduzir aos seus leitores uma situação como a natureza<br />

dupla <strong>da</strong> luz, algo que colocou em cantos opostos do tablado homens<br />

do porte de Newton e Huygens? Um físico pode se <strong>da</strong>r conta com<br />

alguma facili<strong>da</strong>de dessa situação exótica, mas um leitor desavisado não<br />

terá como experimentar a mesma sensação, a menos que o divulgador<br />

faça uso <strong>da</strong> analogia.<br />

Mas a que tipo de analogia recorrer?<br />

A melhor delas é a que está ao inteiro alcance do leitor. Qualquer<br />

um sabe que se uma pessoa é baixa, não pode ser alta. Que se um<br />

sujeito é careca, não pode ser cabeludo e que se um outro é gordo, não<br />

pode, evidentemente, ser magro. A questão é que, no caso <strong>da</strong> natureza<br />

dupla <strong>da</strong> luz, por analogia, o sujeito é alto e baixo, ao mesmo tempo.<br />

E também careca e cabeludo, além de, estranhamente, gordo e magro.<br />

É preciso alguma habili<strong>da</strong>de com as analogias. Porém elas são<br />

indispensáveis no ofício <strong>da</strong> divulgação.<br />

<strong>Com</strong>o explicar que uma câmara de bolha, instrumento<br />

fun<strong>da</strong>mental na física de altas energias, pode identificar as características<br />

de uma partícula? Esse também é um caso em que as analogias e<br />

metáforas mais complexas, por melhor intenciona<strong>da</strong>s, tendem apenas<br />

a complicar a percepção. A melhor alternativa, também aqui, é recorrer<br />

a uma imagem simples, como a descrição de uma pessoa a partir <strong>da</strong><br />

observação de sua sombra.<br />

Certamente é um pouco embaraçoso entrar nesse terreno, mas<br />

não pode haver impedimentos maiores para que isso não ocorra. A<br />

ver<strong>da</strong>de é que boa parte <strong>da</strong>s críticas e agressões envolvendo divulgação<br />

atende pelo nome de “inveja” e “ciúme”. O que não significa que to<strong>da</strong><br />

crítica seja infun<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Muitos pesquisadores não aceitam bem a idéia de que alguém,<br />

não necessariamente diplomado em determina<strong>da</strong> área, o que não<br />

significa que se trate de um ignorante, no sentido de desinformado,<br />

aborde temas científicos com clareza e correção. É aí que se revela a<br />

importância <strong>da</strong> boa formação intelectual. Num caso como esse, tanto<br />

o crítico quanto o criticado deveriam ler o que escreveu sobre ciência<br />

e conhecimento o criador <strong>da</strong> semiótica, Charles Sanders Pierce. O<br />

crítico aprenderia que a ciência é mais vasta e admirável que ele<br />

aprendeu até então. O criticado reforçaria sua autoconfiança,


A <strong>DIVULGAÇÃO</strong> E O <strong>PULO</strong> <strong>DO</strong> <strong>GATO</strong> . 131<br />

quali<strong>da</strong>de indispensável para corroborar observações como as de Luiz<br />

Freire: “interrogar, sempre interrogar, sem que a isto possa reconhecer<br />

limites traçados por nenhuma doutrina, por mais genial que seja o<br />

seu arauto”. 2<br />

Para concluir este pequeno conjunto de idéias expostas, um<br />

divulgador deve, a todo custo, evitar expressões desgasta<strong>da</strong>s, de mau<br />

gosto ou simplesmente equivoca<strong>da</strong>s. Elas irritam um leitor mais<br />

exigente e fazem com que o texto perca credibili<strong>da</strong>de. É o caso de<br />

expressões como tal situação “vai bem, obrigado”, ou o famoso “resta<br />

saber”, de amplo uso entre locutores esportivos. É preciso, ain<strong>da</strong>, separar<br />

claramente “negou” do “desmentiu”. Muita gente, envolvi<strong>da</strong> com<br />

falcatruas comprova<strong>da</strong>s, pode negar uma infini<strong>da</strong>de de coisas, mas<br />

dificilmente poderia desmenti-las.<br />

O universo <strong>da</strong> divulgação científica é tão amplo quanto o<br />

Cosmo, em última instância, sua razão de ser. Estas considerações têm<br />

o objetivo de encorajar iniciantes e partilhar experiências com quem já<br />

fez um trajeto. Mas é preciso dizer que só a experiência pessoal, o<br />

envolvimento com o trabalho, ensina o “pulo do gato”. O pulo que o<br />

gato não ensina ao rato, nem aos outros gatos. Porque essa é a arte<br />

pessoal de ca<strong>da</strong> gato.<br />

2 FREIRE, Luiz apud MOTA e ALBUQUERQUE, Ivone Freire <strong>da</strong>; HAMBURGUER, Amelia. op. cit.

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