Instituto AMMA - Psique & Negritude - Imprensa Oficial
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ENTRE O MATO E A UNIVERSIDADE<br />
Nasci em Ribeirão Preto, porque meu pai, em<br />
inícios dos anos cinqüenta, mudou-se para lá<br />
e participou da fundação da Faculdade de<br />
Medicina. A Faculdade foi construída sobre o<br />
terreno de uma fazenda doada à<br />
Universidade de São Paulo, Fazenda Monte<br />
Alegre. Ele e os outros professores contaram<br />
com residência no próprio campus universitário.<br />
Havia casas em volta do prédio principal<br />
reservadas aos professores e suas famílias.<br />
Ao lado da minha casa havia um pomar.<br />
Do outro lado, sem muros separando, as<br />
casas dos vizinhos. Por todo canto, havia traços<br />
fortes do ambiente universitário: estudantes,<br />
professores, o movimento de um<br />
campus. Minha experiência de infância conjugou<br />
mato, universidade e convivência com<br />
gente ligada ao trabalho, trabalhadores muito<br />
modestos, o jardineiro, o lixeiro, a lavadeira.<br />
Eu tinha um amigo, Afonsinho: era filho da<br />
lavadeira e do jardineiro que trabalhavam<br />
para vários professores. Tomei café com leite<br />
e pão com manteiga na casa da Sueli e do<br />
Fernando, os pais do Afonsinho; joguei bolas<br />
de gude e estilingue no quintal. Convivi com<br />
pessoas pobres, visitei a modéstia e a casa<br />
deles, fui recebido por eles, tudo ainda sem<br />
aquele sentimento demais pesado das desigualdades<br />
de classe e das barreiras. O sentimento<br />
havia, era amargo mas fraco. Os<br />
pobres são naturais com as crianças, são<br />
francos como não podem ser com seus<br />
patrões. E crianças passam por porteiras<br />
muito naturalmente. Depois, franquear porteiras<br />
vai depender de luta: o segredo é que a<br />
luta não dependa de esforço, mas do desejo e<br />
seja natural.<br />
PSICOLOGIA SOCIAL<br />
Minha profissão é praticar, pesquisar e ensinar<br />
psicologia social. Mesmo quando ocupado<br />
com psicanálise, o que também escolhi<br />
com entusiasmo, sou um psicólogo social. O<br />
pensamento sempre me pareceu um amigo.<br />
Falando mais concretamente: prezo muito os<br />
professores e os livros, sempre encareci professores<br />
e livros como parceiros. Muito<br />
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importantes, decisivos. Foi tanto amá-los e<br />
me tornei um professor também, um professor<br />
menor. Vim para São Paulo com dez anos<br />
de idade, em 1970. Foi só depois que minha<br />
profissão se definiu. Em meados da década<br />
de setenta, apareceu clandestinamente na<br />
escola – e representou para mim um fato<br />
muito importante de politização – um texto<br />
assinado por bispos da Conferência Nacional<br />
dos Bispos do Brasil (CNBB). Este texto<br />
denunciava torturas e mortes no campo, provocadas<br />
por conflitos de terras. Lembro que<br />
esta leitura descortinou, para mim, um<br />
mundo, uma realidade de violência que<br />
nunca eu tinha sentido até o fim. Já tinha<br />
certamente sentido a violência, mas nunca<br />
tinha sentido politicamente a violência, nunca<br />
havia sentido a violência como coisa que a<br />
gente pode juntos contrariar.<br />
Chegava a consciência da dominação, a consciência<br />
da violência que parte não da natureza<br />
mas da história. A violência alimentada<br />
não por forças do ar ou da água, forças do<br />
fogo ou da terra, mas a violência alimentada<br />
pela força humana. Não a fúria das ventanias,<br />
das tempestades e das enchentes, não a violência<br />
dos incêndios, dos terremotos ou das<br />
feras, mas a violência muitas vezes furiosa<br />
das forças sociais, a violência dos grupos, as<br />
pessoas associadas por interesse, a força das<br />
classes dominantes e a força da subserviência,<br />
a força da servidão voluntária. É a violência<br />
que juntos praticamos e que juntos podemos<br />
contrariar.<br />
Com o passar do tempo, tornei-me uma pessoa<br />
ligada a pessoas que, por sua vez, eram<br />
ligadas a comunidades eclesiais de base. Eram<br />
moradores da Vila Joanisa. A influência dessa<br />
gente foi tão forte que não tive dúvida de<br />
querer o meu trabalho comprometido com<br />
aquelas pessoas e comprometido com causas<br />
e lutas populares. Não tive dúvida de que me<br />
encaminharia para alguma área de ciências<br />
políticas e sociais. Apesar disso, curiosamente,<br />
não fui diretamente para a sociologia ou para<br />
a história. Fui para a psicologia. A preocupação<br />
política me movia muito; ao mesmo<br />
tempo, o sentido da política era para mim a<br />
defesa de gente. Para cientistas políticos e<br />
cientistas sociais haverá de ser assim: mas,<br />
para mim, eu talvez tivesse perdido este sentido<br />
se não tivesse me tornado um psicólogo.