a trajetória silenciosa de pessoas portadoras do hiv contada pela ...
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toda e qualquer racionalidade científica a respeito da doença, e se entrega a uma resposta automática, irrefletida e irracional. O contágio é uma crença, apoiada numa predisposição emocional condicionada, de que o contato do doente com seus pertences e pertences de outrem tem a propriedade de transferir para estes suas características. É importante esclarecer que o conceito de contaminação social nada tem a ver com o conceito de transmissão, da epidemiologia. Este se refere a uma probabilidade empiricamente verificável de contração da doença pela transferência do vírus de um doente por via identificada, a pessoa até então sadia (PÁDUA, 1986). Uma vez desencadeado o processo emocional, as pessoas são impulsionadas para uma ação aberta, a qual se manifesta nas condutas de afastamento. Qualquer que seja a intensidade, o afastamento implica um rompimento de padrões de solidariedade dedicados pelo indivíduo ao objeto de contato, seja esta solidariedade voluntária ou institucional. Ocorre que tal solidariedade é indispensável à realização efetiva dos indivíduos, além de fundamental para a própria existência da sociedade. Assim, a dúvida em torno dela e, mais especificamente, o seu rompimento, certamente provoca repercussões de alta destrutividade tanto ao nível do psiquismo das pessoas envolvidas quanto ao nível da coletividade (PÁDUA, 1986, p.25). Segundo a autora, a ruptura da solidariedade produz afastamento imediato que será tanto mais intenso quanto maior for a certeza na identificação do sinal, menor o grau de solidariedade exigida e maior o nível de contágio. A conduta de afastamento produz situações de isolamento para as pessoas identificadas com o sinal, e a intensidade pode ser avaliada pelos seguintes patamares: 1) evitamento: é um afastamento tênue, não declarado, em que se busca esquivar de contatos com a doença/doente/objetos contaminados; 2) discriminação: consiste na negação da igualdade de convivência, implicando a impossibilidade de interação social nas condições desfrutadas por outras pessoas; 3) segregação: inclui a discriminação, consistindo no estabelecimento de limites espaciais para a pessoa segregada, levando-a ao isolamento. O isolamento pode ser formal, determinado por normas sanitárias e jurídicas. Independente dessa formalização, no entanto, a 53
sociedade pode impor limites espaciais ao doente, estendendo-os também àqueles com quem convive e foram, portanto, contaminados (PÁDUA, 1986). Sendo uma postura essencialmente anti-social, a segregação precisa justificar-se perante a própria sociedade para que esta se mantenha como tal. Isto é conseguido através da racionalização, em que o grupo passa a construir explicações com os elementos de plausibilidade necessários para que ela se torne convincente. Surgem afirmações como: "Ele mereceu", "Ele fez por onde". Evidentemente, tais explicações devem se estender aos objetos sociais contaminados, o que dificulta bastante sua sustentação. De qualquer forma, quando a realidade dos fatos não possibilita justificar o afastamento, a fantasia se encarrega de preencher a lacuna e, geralmente é eficaz: os boatos encontram, então terreno fértil para propagação (PÁDUA, 1986, p.25). A segregação está sendo feita ao nível da expulsão do doente e do seu universo contaminado do seio da sociedade, sem que, no entanto, esta defina o espaço a que tem direito. Mais uma vez, aparece aí a conduta automática, irrefletida e invariável, manifestada na cassação do espaço de residência, de trabalho e de estudo, ou seja, seu espaço social. Assim, paralelamente ao direito da sociedade de se defender do contágio, é preciso explicitar também o direito do doente ao espaço físico, ao atendimento médico, a continuar seu percurso com dignidade. Esse reconhecimento do direito do doente não será obtido sem esforço, no entanto, uma vez, que na maioria dos casos, ele faz parte de grupos socialmente discriminados, como os homossexuais, detentos, prostitutas e pobres. Como essas pessoas partilham do mesmo significado em relação à doença, podem já ter internalizado essa discriminação, o que explica a própria auto-exclusão e o sentimento de aceitação desta condição. Termina a autora dizendo que, para que a reação à doença atinja a intensidade observada no caso da AIDS, é preciso que ela represente uma ameaça muito forte aos valores culturais nucleares da sociedade. Em especial à AIDS, estes valores estão ligados a um modelo bastante rígido no qual o indivíduo não pode ser promíscuo, nem homossexual, nem usuário de drogas, enfim não pode transgredir normas e padrões que representam uma ação de proteção a uma estrutura familiar, bem acolhida socialmente (DOMINGUES, 2004). 54
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Sen<strong>do</strong> uma postura essencialmente anti-social, a segregação precisa justificar-se perante<br />
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"Ele mereceu", "Ele fez por on<strong>de</strong>". Evi<strong>de</strong>ntemente, tais explicações <strong>de</strong>vem se esten<strong>de</strong>r<br />
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A segregação está sen<strong>do</strong> feita ao nível da expulsão <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente e <strong>do</strong> seu<br />
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ao atendimento médico, a continuar seu percurso com dignida<strong>de</strong>. Esse reconhecimento<br />
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Termina a autora dizen<strong>do</strong> que, para que a reação à <strong>do</strong>ença atinja a<br />
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promíscuo, nem homossexual, nem usuário <strong>de</strong> drogas, enfim não po<strong>de</strong> transgredir<br />
normas e padrões que representam uma ação <strong>de</strong> proteção a uma estrutura familiar,<br />
bem acolhida socialmente (DOMINGUES, 2004).<br />
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