a trajetória silenciosa de pessoas portadoras do hiv contada pela ...

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18.05.2013 Views

A imagem da AIDS representada por um corpo ‘vivo podre’ e ‘sujo’ parece colocar em evidência – pela equivalência do significado metafórico da AIDS/ podridão/sujeira – a possibilidade de seu próprio fim, decretado por uma morte obscena. Assim, negam com o intuito de se proteger de uma angústia, além do que podem suportar. Em alusão a essa imagem, cito Sontag (1989, p.18) quando diz que "as roupagens metafóricas que deformam a experiência do paciente (...) tem conseqüências bem reais: elas o inibem, impedindo-os de procurar tratamento bem cedo (...)". Assim sendo, "as metáforas e os mitos podem matar". A negação em relação à doença também surgiu no aspecto ligado à perda da beleza física. Ferreira (2003) lembra-nos que algumas doenças relacionadas com a AIDS são muito debilitantes, e a pessoa pode ficar com seu aspecto físico muito debilitado, além de dependente física, emocional e econômica de outras pessoas. Essa possibilidade, que é real com o avançar da doença, pode ser um fator detonador de angústia, principalmente àquela pessoa que se apresenta saudável, bonita e em pleno vigor físico. Observei que essa situação foi significante para a terceira colaboradora, marcando sua trajetória de vida. Registro o seu depoimento: 119 Quando a C [amiga] descobriu que tinha HIV (...) acompanhei o sofrimento dela. Eu até ia com ela ao médico, porque ela nunca queria ir sozinha, aí eu ia junto para dar uma força. (...) Eu ia com ela na Saúde Pública para ela se consultar e eu via toda aquela gente com cara de AIDS sentada no banco e aquilo era horrível. Aquele corredor era muito frio, ele me assustava muito. Parecia que a morte rondava aquele corredor que todos diziam que era o corredor da morte. Ouvi muitas histórias e vi muita coisa triste. Vi gente que não conseguia nem andar, com a boca e o corpo cheios de ferida. Pareciam umas múmias de tão magros. (colaboradora 3) Nessa ocasião a colaboradora não havia feito o teste anti-HIV e relutava em fazê-lo, temendo o resultado: ...aquela situação me assustava muito e eu só pensava na minha situação porque eu também podia ter AIDS, e evitada pensar em fazer o teste. (colaboradora 3)

Porém, algum tempo depois, resolveu realizar o exame, e foi quando recebeu o diagnóstico positivo para o HIV. Com a palavra a colaboradora: 120 Logo que soube que tinha o HIV fiquei superabalada (...), mas a moça que me entregou o resultado foi atenciosa comigo e me acalmou porque o meu desejo era de naquela hora me jogar da janela. Ela me disse que o HIV não era como antigamente que a doença poderia ser controlada, mas que para isto eu deveria ir ao médico para ele ver como estavam minhas defesas. Aí eu perguntei para onde devia ir e ela me disse que eu poderia acompanhar lá na Saúde Pública. Aí eu gelei, porque me veio à cabeça toda aquela gente que eu via quando ia ao médico com a C. [amiga]. Eu disse, então, que iria pensar, e saí dali meio tonta sem saber o que iria fazer da minha vida. (colaboradora 3) Depois da realização do exame, a colaboradora não voltou para o serviço de saúde ao qual havia sido referendada. Atrevo-me a inferir que, para ela, aquele local de atendimento às pessoas com HIV ou com AIDS acabou assumindo um caráter simbólico, representado pela figura apavorante da AIDS e da morte – "pareciam umas múmias" – contatos que ela não estava preparada para enfrentar. No final da entrevista me disse o quanto se sentia insegura a respeito das escolhas que havia feito para a sua vida, mas que para ela eram as escolhas possíveis: Gostaria de dizer que eu não sei se estou fazendo a coisa certa quando não quero fazer nada para me cuidar, ir ao médico, tomar remédio, e que ninguém saiba, enfim, todas essas coisas. Mas eu estou fazendo aquilo que para mim neste momento é possível. Sei que um dia vou ter que contar para alguém, principalmente quando eu ficar doente, porque nesta hora será impossível esconder, mas até lá eu tenho tempo para pensar o que vou fazer. (colaborador 4) Gostaria de pontuar que no período em que as entrevistas foram realizadas os colaboradores desfrutavam de boa saúde e tinham uma história de infecção recente (no máximo de quatro anos). Isto parece ter feito diferença no aparecimento dos outros estágios citados por Kübler-Ross, uma vez que, segundo Ferreira (2003), o tempo de conhecimento do diagnóstico modifica o nível de aceitação e, portanto, a adaptação à nova situação sorológica. Segue o autor dizendo que "para a ameaça da morte imediata que muitas pessoas sentem, o tempo em que permanecem saudáveis é de grande auxílio, uma

A imagem da AIDS representada por um corpo ‘vivo podre’ e ‘sujo’ parece<br />

colocar em evidência – <strong>pela</strong> equivalência <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> metafórico da AIDS/<br />

podridão/sujeira – a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu próprio fim, <strong>de</strong>creta<strong>do</strong> por uma morte<br />

obscena. Assim, negam com o intuito <strong>de</strong> se proteger <strong>de</strong> uma angústia, além <strong>do</strong> que<br />

po<strong>de</strong>m suportar. Em alusão a essa imagem, cito Sontag (1989, p.18) quan<strong>do</strong> diz que<br />

"as roupagens metafóricas que <strong>de</strong>formam a experiência <strong>do</strong> paciente (...) tem<br />

conseqüências bem reais: elas o inibem, impedin<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> procurar tratamento bem<br />

ce<strong>do</strong> (...)". Assim sen<strong>do</strong>, "as metáforas e os mitos po<strong>de</strong>m matar".<br />

A negação em relação à <strong>do</strong>ença também surgiu no aspecto liga<strong>do</strong> à perda<br />

da beleza física. Ferreira (2003) lembra-nos que algumas <strong>do</strong>enças relacionadas com<br />

a AIDS são muito <strong>de</strong>bilitantes, e a pessoa po<strong>de</strong> ficar com seu aspecto físico muito<br />

<strong>de</strong>bilita<strong>do</strong>, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte física, emocional e econômica <strong>de</strong> outras <strong>pessoas</strong>.<br />

Essa possibilida<strong>de</strong>, que é real com o avançar da <strong>do</strong>ença, po<strong>de</strong> ser um fator<br />

<strong>de</strong>tona<strong>do</strong>r <strong>de</strong> angústia, principalmente àquela pessoa que se apresenta saudável,<br />

bonita e em pleno vigor físico.<br />

Observei que essa situação foi significante para a terceira colabora<strong>do</strong>ra,<br />

marcan<strong>do</strong> sua <strong>trajetória</strong> <strong>de</strong> vida. Registro o seu <strong>de</strong>poimento:<br />

119<br />

Quan<strong>do</strong> a C [amiga] <strong>de</strong>scobriu que tinha HIV (...) acompanhei o sofrimento <strong>de</strong>la.<br />

Eu até ia com ela ao médico, porque ela nunca queria ir sozinha, aí eu ia junto<br />

para dar uma força. (...) Eu ia com ela na Saú<strong>de</strong> Pública para ela se consultar e<br />

eu via toda aquela gente com cara <strong>de</strong> AIDS sentada no banco e aquilo era<br />

horrível. Aquele corre<strong>do</strong>r era muito frio, ele me assustava muito. Parecia que a<br />

morte rondava aquele corre<strong>do</strong>r que to<strong>do</strong>s diziam que era o corre<strong>do</strong>r da morte.<br />

Ouvi muitas histórias e vi muita coisa triste. Vi gente que não conseguia nem<br />

andar, com a boca e o corpo cheios <strong>de</strong> ferida. Pareciam umas múmias <strong>de</strong> tão<br />

magros. (colabora<strong>do</strong>ra 3)<br />

Nessa ocasião a colabora<strong>do</strong>ra não havia feito o teste anti-HIV e relutava<br />

em fazê-lo, temen<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong>:<br />

...aquela situação me assustava muito e eu só pensava na minha situação porque<br />

eu também podia ter AIDS, e evitada pensar em fazer o teste. (colabora<strong>do</strong>ra 3)

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