a trajetória silenciosa de pessoas portadoras do hiv contada pela ...

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18.05.2013 Views

INTRODUÇÃO Inúmeras são as possibilidades de escolhas que surgem durante nossa existência e que nos permitem delinear uma trajetória. Esta perspectiva surgiu em minha vida após 10 anos de formada, quando, ao ingressar, em 1996, no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) 1 como enfermeira coordenadora, passei a vivenciar em meu cotidiano profissional o cenário da Síndrome da Imunodeficiência Humana (AIDS). Nesse ano, a epidemia completava quinze anos após o registro dos primeiros casos da doença, e apesar da ‘bela idade’, que em outra situação seria motivo de grande comemoração, no cenário da AIDS não havia muito que comemorar, pois continuava a se espraiar com toda velocidade no Brasil e no mundo. Nesse momento, o perfil epidemiológico apontava para o incremento da infecção entre as mulheres de forma significativa, que até então não eram consideradas como grupos suscetíveis para a infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) (BASTOS et al., 1995). Desde o início da epidemia da AIDS, julgava-se que o Brasil se depararia exclusivamente com uma epidemia nos moldes ditos ocidentais, ou seja, basicamente restrita aos homossexuais masculinos, hemofílicos 2 e de pessoas que receberam sangue e hemoderivados e, em certa maneira, aos usuários de drogas injetáveis que na maioria são homens. Diferentemente do modelo epidêmico da África Sub- sahariana, que desde o início atingiu duramente uma grande quantidade de mulheres, e continua até hoje (BASTOS et al., 1995). Contudo, o tempo e a trajetória da epidemia encarregaram-se de desmistificar essa primeira avaliação que se mostrou falaciosa, 1 O CTA é um serviço municipal de saúde, ímpar na cidade de Curitiba nas ações de prevenção das DST, do HIV e da AIDS. Realiza a testagem sorológica para o HIV e sífilis acompanhada de aconselhamento, tanto para as pessoas que têm dúvida quanto ao seu status sorológico como para aquelas que vivenciaram situações na vida cotidiana passível de infecção pelo HIV, quais sejam: relação sexual de penetração sem o uso do preservativo e o compartilhamento de equipamentos de injeção no uso de droga injetável (UDI). 2 Hemofilia é uma doença genética hereditária ligada ao cromossoma XY, exclusiva do sexo masculino.

escancarando as desigualdades sociais e de gênero associadas ao sistema de poder que estruturam a vida dos brasileiros, e que acabam determinando como a infecção pelo HIV se espalha em nossa sociedade (PARKER, 1997). Hoje a epidemia da AIDS é fundamentalmente uma doença de grupos humanos – famílias, lares, casais – atingindo sem discriminação homens, mulheres e crianças a despeito do exercício de sua sexualidade, no qual seus impactos sociais e demográficos se ampliam do indivíduo infectado para o grupo, principalmente nos que se deparam com situação de desigualdade social, opressão e estigmatização, afligindo primeiro e, sobretudo os setores da sociedade cujas circunstâncias sociais os colocam em situação de acentuada vulnerabilidade (MANN et al., 1993). Ao me deparar com esse novo horizonte que exigia a busca de novos conhecimentos e sensibilidades, comecei a desvelá-lo recorrendo à literatura, participando de simpósios, congressos, cursos, oficinas de vivências, analisando as informações sobre o perfil das pessoas atendidas no CTA e, sobretudo, atendendo e escutando as pessoas que procuravam o serviço, buscando auxiliá-las na atenção às suas necessidades sentidas. Os conhecimentos adquiridos e as experiências vivenciadas no meu cotidiano começaram a me revelar questões muito importantes; em especial que falar de AIDS não é como falar de uma doença qualquer, pois ao associar prazer, sexo, morte, drogas e contágio traz à tona o indizível, ou seja, questões que se configuram no imaginário social prenhe de contradições e conflitos, encetando nos vários domínios da existência humana, e que por ter tomado tal dimensão acabou ultrapassando em muito as demandas de ordem biomédica. O surgimento da AIDS como fenômeno social e histórico carregou consigo, de maneira assustadora, e que se mantém até hoje, os espectros construídos no imaginário social que, como fios, tecem uma trama de representações e valores simbólicos que expressam o que a sociedade pensa sobre a sexualidade e a morte, o desfiguramento e o enfraquecimento físico, sobre a própria percepção de vulnerabilidade e a sensação de finitude, inexorável ao ser vivente. Na história 2

escancaran<strong>do</strong> as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e <strong>de</strong> gênero associadas ao sistema <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

que estruturam a vida <strong>do</strong>s brasileiros, e que acabam <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> como a infecção<br />

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Hoje a epi<strong>de</strong>mia da AIDS é fundamentalmente uma <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> grupos<br />

humanos – famílias, lares, casais – atingin<strong>do</strong> sem discriminação homens, mulheres e<br />

crianças a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> exercício <strong>de</strong> sua sexualida<strong>de</strong>, no qual seus impactos sociais e<br />

<strong>de</strong>mográficos se ampliam <strong>do</strong> indivíduo infecta<strong>do</strong> para o grupo, principalmente nos que<br />

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afligin<strong>do</strong> primeiro e, sobretu<strong>do</strong> os setores da socieda<strong>de</strong> cujas circunstâncias sociais os<br />

colocam em situação <strong>de</strong> acentuada vulnerabilida<strong>de</strong> (MANN et al., 1993).<br />

Ao me <strong>de</strong>parar com esse novo horizonte que exigia a busca <strong>de</strong> novos<br />

conhecimentos e sensibilida<strong>de</strong>s, comecei a <strong>de</strong>svelá-lo recorren<strong>do</strong> à literatura,<br />

participan<strong>do</strong> <strong>de</strong> simpósios, congressos, cursos, oficinas <strong>de</strong> vivências, analisan<strong>do</strong> as<br />

informações sobre o perfil das <strong>pessoas</strong> atendidas no CTA e, sobretu<strong>do</strong>, aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> e<br />

escutan<strong>do</strong> as <strong>pessoas</strong> que procuravam o serviço, buscan<strong>do</strong> auxiliá-las na atenção<br />

às suas necessida<strong>de</strong>s sentidas.<br />

Os conhecimentos adquiri<strong>do</strong>s e as experiências vivenciadas no meu<br />

cotidiano começaram a me revelar questões muito importantes; em especial que falar<br />

<strong>de</strong> AIDS não é como falar <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>ença qualquer, pois ao associar prazer, sexo,<br />

morte, drogas e contágio traz à tona o indizível, ou seja, questões que se configuram<br />

no imaginário social prenhe <strong>de</strong> contradições e conflitos, encetan<strong>do</strong> nos vários<br />

<strong>do</strong>mínios da existência humana, e que por ter toma<strong>do</strong> tal dimensão acabou<br />

ultrapassan<strong>do</strong> em muito as <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m biomédica.<br />

O surgimento da AIDS como fenômeno social e histórico carregou consigo,<br />

<strong>de</strong> maneira assusta<strong>do</strong>ra, e que se mantém até hoje, os espectros construí<strong>do</strong>s no<br />

imaginário social que, como fios, tecem uma trama <strong>de</strong> representações e valores<br />

simbólicos que expressam o que a socieda<strong>de</strong> pensa sobre a sexualida<strong>de</strong> e a morte,<br />

o <strong>de</strong>sfiguramento e o enfraquecimento físico, sobre a própria percepção <strong>de</strong><br />

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