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QUANDO A MORTE INVADE A VIDA: MORTE TRÁGICA E ... - anpuh

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nome dessa Cruz de Rufina vem daí. Isso aí era meus avôs, meus tios<br />

mais velhos tudim que contava (...) eles contava a nós. 12<br />

Na continuidade de seu enredo narrativo, ela classifica o evento e o compara<br />

com as circunstâncias vivenciadas na sua infância e juventude:<br />

A morte dela [Rufina] foi uma morte violenta. Antes quando as<br />

pessoas morriam de doença, adoecia, às vezes não tinha condição de<br />

ir ao médico. O médicos daqui era longe. (...) aqui não existia<br />

médico. Bebia chá, tomava chá. As mulheres para ter menino era<br />

sacrifício. As crianças morriam tudo porque morria mulher com<br />

menino e tudo. Quando conseguia nascer, a criança era doente. Aí<br />

dava aqueles problemas. A mulher já depois que o menino nascia, a<br />

mulher dava hemorragia. Aí mandava umas correias de coisas nas<br />

muié: arrochava, rezava, fazia prece, mas sem a medicina né, aí<br />

morria. Em casa mesmo. Aí a família cercava ali. Aí mandava era<br />

João Henrique, que fazia os caixão, João Limeira, fazia os caixão<br />

serrano os paus: xere, xere, xere, serrano, e o fogão. E o defunto na<br />

cama deitado. E o povo fazendo o caixão. E um partia pra comprar<br />

pano pra fazer a roupa pra vestir. Ainda mais passava a noite todiam<br />

rezano, nós tudo cantano ao redor do morto. Quando era no outro dia,<br />

não tinha carro, se juntava umas oitenta pessoas tudo de a cavalo e<br />

botava aquele caixão em cima de uma escada, uma paviola. Aí botava<br />

o caixão em cima, amarava e partia pras Porteiras pra interrar. 13<br />

A reflexão que a narradora teceu ao caracterizar a morte de Rufina como<br />

violenta foi estabelecida, portanto, a partir da comparação que fez com as demais<br />

mortes presentes no cotidiano dos moradores da região. Nesse sentido, fica demonstrado<br />

o elo entre as narrativas que ouvia contar da morte de Rufina e suas experiências vividas<br />

ao presenciar os ritos fúnebres no decorrer da segunda metade do século XX.<br />

Como vimos, alguns elementos foram recordados demonstrando o sentimento<br />

de intimidade fúnebre, o que revela a sensibilidade coletiva para com o momento da<br />

morte. Isso ficou inteligível, entre outras circunstâncias, na passagem sobre a produção<br />

do caixão pelos próprios moradores da região, lembrança emergida a partir da<br />

recordação do fogo que, nos terreiros das residências rurais no interior cearense no<br />

decorrer do século XX, eram acesos nas sentinelas, alumiando os espaços que cercavam<br />

a morada do moribundo. Também toma como referência o som do processo manual de<br />

produção do caixão. Isso nos faz lembrar o trabalho de construção da memória<br />

mortuária, (re)elaborada nesse caso a partir das sensibilidades despertadas no corpo: dos<br />

cheiros, sons e imagens vislumbradas na memória.<br />

12 Narrativa de Maria Anita de Lima Martins, 64 anos, professora e agricultora. Entrevista realizada em<br />

julho de 2007.<br />

13 Idem.

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