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CORPOS EM FÚRIA: LEVANTE DE MULHERES FAMINTAS NA CIDADE<br />
DA PARAHYBA (1889)<br />
Azemar Dos Santos Soares Júnior<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Paraíba – UFPB<br />
Resumo<br />
Este trabalho tem por objetivo a<strong>na</strong>lisar a participação <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong> em um motim<br />
iniciado em 30 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1889. Eram <strong>mulheres</strong> que acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> seus filhos <strong>de</strong><br />
colo, buscavam por meio do saque ao armazém <strong>da</strong> Diretoria Geral <strong>de</strong> Socorros Públicos<br />
garantir alimento para matar sua fome, como também a <strong>de</strong> seus filhos. Na história do<br />
Império Brasileiro, assim como em outros períodos, a história <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong> foi<br />
silencia<strong>da</strong> por sua posição <strong>de</strong> mulher submissa. Com esse trabalho, buscamos<br />
problematizar a “sublevação <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong>” para enten<strong>de</strong>r a participação ativa <strong>de</strong>ssas<br />
numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que as colocam a margem. Para encaminhar a discussão utilizaremos os<br />
conceitos <strong>de</strong> corpo e <strong>de</strong> gênero <strong>na</strong> intenção <strong>de</strong> percebê-las como perso<strong>na</strong>gens históricos<br />
que protagonizam não ape<strong>na</strong>s a história <strong>de</strong> sua família, seus filhos e maridos, mas<br />
também, capazes <strong>de</strong> se organizarem em movimentos populares para lutar contra a fome.<br />
Tal luta, implica para o período, mesmo <strong>de</strong> forma inconsciente, assegurar o direito<br />
humano <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado ci<strong>da</strong>dão e ci<strong>da</strong>dã. Utilizaremos com fonte uma série <strong>de</strong><br />
notícias vincula<strong>da</strong>s no jor<strong>na</strong>l Gazeta <strong>da</strong> Parahyba, bem como, as correspondências do<br />
governo Provincial.<br />
Introdução<br />
Da História, a mulher é diversas vezes excluí<strong>da</strong>. Ela o é,<br />
inicialmente, <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa, que, passa<strong>da</strong>s as efusões<br />
românticas, constitui-se como ence<strong>na</strong>ção dos acontecimentos<br />
políticos [...] a história ignora a mulher improdutiva [...]<br />
<strong>de</strong>votas ou escan<strong>da</strong>losas, as <strong>mulheres</strong> alimentam as crônicas<br />
<strong>da</strong> ‘peque<strong>na</strong>’ história.<br />
(Michelle Perrot, 2005)<br />
A <strong>de</strong>scrição do espaço e dos homens modificou sua<br />
perspectiva. Os hospitais, as prisões e todos os locais <strong>de</strong><br />
amontoamento confuso <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> monopolizar a análise<br />
olfativa dos observadores. Uma nova curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> convi<strong>da</strong> a<br />
<strong>de</strong>sentocar os odores <strong>da</strong> miséria, a <strong>de</strong>scobrir o fedor do pobre<br />
e <strong>de</strong> sua toca.<br />
(Alain Corbin, 1987)
De acordo com a epígrafe acima cita<strong>da</strong>, sua primeira afirmação logo nos chamou<br />
atenção: “Da História a mulher é diversas vezes excluí<strong>da</strong>s”. A historiadora Michelle<br />
Perrot (2005) postulou existir um silêncio sobre as <strong>mulheres</strong>, em especial pelo fato <strong>de</strong> a<br />
‘profissão <strong>de</strong> historiador’ ser um trabalho <strong>de</strong> homens que escrevem a história no<br />
masculino, ou seja, os campos que eles abor<strong>da</strong>m são justamente os <strong>da</strong> ação do po<strong>de</strong>r<br />
masculino, até mesmo quando se aventuram por novos territórios.<br />
Por outro lado, as fontes utiliza<strong>da</strong>s pelos historiadores (arquivos, documentos<br />
oficiais e/ou administrativos, registros dos parlamentos, periódicos, biografias, etc) são<br />
“produtos <strong>de</strong> homens que tem o monopólio <strong>da</strong> escrita tanto quanto <strong>da</strong> coisa pública”<br />
(PERROT, 2005, p. 198). Ora, se além <strong>de</strong> ser produzi<strong>da</strong> por homens, a história só seja<br />
possível por meio <strong>de</strong> documentos produzidos por estes, estaríamos perdidos. Ficariam<br />
<strong>de</strong> fora <strong>da</strong> história, todos os grupos populares como os camponeses, os trabalhadores, os<br />
escravizados, as <strong>mulheres</strong>, os indíge<strong>na</strong>s, <strong>de</strong>ntre outros.<br />
Rompido o silêncio, todos os grupos sociais ganharam o direito <strong>de</strong> tor<strong>na</strong>rem-se<br />
sujeitos ativos, construtores <strong>de</strong> sua própria história individual, escritores <strong>da</strong>s histórias e<br />
estórias que embalam o cotidiano popular. Esse artigo se propõe a discutir a atuação <strong>de</strong><br />
<strong>mulheres</strong> pobres e <strong>famintas</strong> <strong>na</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Parahyba em 1889. São <strong>mulheres</strong> que <strong>na</strong> luta<br />
pela sobrevivência romperam o silêncio, quebraram as normas e reivindicaram melhores<br />
condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. A partir <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong> subleva<strong>da</strong>s, discutimos as questões<br />
sobre o corpo nos domínios <strong>da</strong> história cultural.<br />
Corpos enfurecidos, corpos esquecidos<br />
Era manhã do dia 2 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1889. Possivelmente, no momento em que o sol<br />
começava a esquentar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Parahyba, chegava às mãos do então presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong><br />
Província, Francisco Luiz <strong>da</strong> Gama Rosa, uma correspondência <strong>da</strong> Directoria Geral <strong>de</strong><br />
Socorros Públicos. O comunicado chamava a atenção para o <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />
<strong>mulheres</strong> concentra<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s portas do armazém <strong>da</strong> Diretoria. A intenção <strong>de</strong>las tor<strong>na</strong>va-se<br />
evi<strong>de</strong>nte: arrombar o armazém e tomar posse dos alforjes <strong>de</strong> farinha ali <strong>de</strong>positados.<br />
Neste dia, não conseguindo tal feito, as <strong>mulheres</strong> permaneceram instala<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s<br />
redon<strong>de</strong>zas do prédio, localizado no Varadouro, à espera do <strong>de</strong>sembarque e conferência
do respectivo guar<strong>da</strong> d’alfân<strong>de</strong>ga <strong>de</strong> duas mil sacas <strong>de</strong> farinha, que, por or<strong>de</strong>m <strong>da</strong><br />
presidência, seriam recolhi<strong>da</strong>s nos <strong>de</strong>pósitos públicos. Os empregados <strong>da</strong> repartição, ao<br />
realizarem o <strong>de</strong>scarregamento, foram surpreendidos pelas <strong>mulheres</strong>, que, <strong>famintas</strong>,<br />
conseguiram tomar doze sacas <strong>de</strong> farinha. Paulino <strong>da</strong> Cunha Souto Maior, então Diretor<br />
Geral <strong>da</strong> repartição, informou que o fato foi presenciado por um <strong>de</strong> seus secretários, e<br />
pessoalmente, encarregou-se relatar. Para evitar mais <strong>da</strong>nos no estoque <strong>de</strong> farinha, esta<br />
diretoria <strong>de</strong>terminou o reembarque dos alforjes que se achavam no cais do Porto do<br />
Capim em número <strong>de</strong> quarenta e cinco 1 .<br />
Apesar do carregamento já encontrar-se protegido e as portas dos galpões <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>pósito fecha<strong>da</strong>s, as <strong>mulheres</strong> continuaram atônitas em frente ao prédio, buscando <strong>de</strong><br />
to<strong>da</strong>s as formas <strong>de</strong>rrubar as portas com as armas que possuíam em mãos: as pedras 2 .<br />
Três dias antes do recebimento <strong>da</strong> carta pelo Presi<strong>de</strong>nte Gama Rosa, o mesmo<br />
grupo <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong>scia as ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> baixa em busca <strong>de</strong> comi<strong>da</strong>. A fome era tanta<br />
que, <strong>de</strong> acordo com Lenil<strong>de</strong> Duarte Sá, no dia 30 <strong>de</strong> julho, após a tentativa <strong>de</strong> saque no<br />
armazém <strong>da</strong> Diretoria Geral <strong>de</strong> Socorros Públicos, cerca <strong>de</strong><br />
trinta <strong>mulheres</strong>, acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> doze crianças, a maioria <strong>de</strong> peito,<br />
cujo semblante <strong>de</strong> inocência havia sumido para <strong>da</strong>r lugar aos traços<br />
sinistros <strong>da</strong> fome, compareceram ao prédio <strong>da</strong> Gazeta, rogando aos<br />
seus re<strong>da</strong>tores que figurassem como seus interpretes junto ao<br />
presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Província, a fim <strong>de</strong> que medi<strong>da</strong>s fossem toma<strong>da</strong>s,<br />
impedindo-as <strong>de</strong> morrer, como também seus filhos, <strong>de</strong> fome (SÁ,<br />
1999, p. 27).<br />
Foram diversas as investi<strong>da</strong>s realiza<strong>da</strong>s pelo bando <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong> que se<br />
aglomeravam <strong>na</strong> tentativa <strong>de</strong> solucio<strong>na</strong>r o problema <strong>da</strong> fome. Para intimidá-las, o<br />
presi<strong>de</strong>nte rumou para o local <strong>da</strong> agitação acompanhado <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> policial, fato que <strong>de</strong><br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> adiantou, pois a agitação continuou 3 . As <strong>mulheres</strong> não se intimi<strong>da</strong>vam diante <strong>da</strong><br />
representação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. O problema não estava restrito ape<strong>na</strong>s aos prédios públicos,<br />
1 Cf. PARAHYBA DO NORTE. Carta-ofício encaminha<strong>da</strong> ao Presi<strong>de</strong>nte Gama Rosa pelo diretor Paulino<br />
<strong>da</strong> Cunha Souto Maior. Documento n. 587. Diretoria Geral <strong>de</strong> Socorros Públicos. Parahyba, 3 ago. 1989.<br />
Manuscrito. Arquivo Histórico <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Espaço Cultural. Cx. 001. Presi<strong>de</strong>nte Francisco Luiz <strong>da</strong><br />
Gama Rosa.<br />
2 Ibid., p. 1.<br />
3 A sublevação <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong>. Gazeta <strong>da</strong> Parahyba. Parahyba, 03 ago, 1989. p. 01.
mas também ao comércio privado, que se sentia ameaçado, pois, a qualquer momento,<br />
po<strong>de</strong>ria ser atacado.<br />
É sabido que o motivo que levou a origi<strong>na</strong>r a “sublevação <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong> 4 ” foi, sem<br />
dúvi<strong>da</strong>, a fome, a sobrevivência <strong>de</strong>las e <strong>de</strong> seus filhos. Nossa análise não tem por<br />
objetivo enfocar problemas sociais como a fome, mas a forma como o corpo é exposto<br />
nessa agitação. Os documentos sobre o fato não <strong>de</strong>screvem com <strong>de</strong>talhes os<br />
movimentos e ações particulares <strong>de</strong>ssas <strong>mulheres</strong>, <strong>de</strong>ixando para a imagi<strong>na</strong>ção a ação<br />
histórica 5 .<br />
Num bando relativamente numeroso, as <strong>mulheres</strong> seguem pelas ruas em direção<br />
ao Varadouro. A situação <strong>de</strong> pobreza faz com que tais corpos sejam i<strong>de</strong>ntificados com<br />
aqueles que ema<strong>na</strong>m odores e medos, são os associados com os lugares sombrios, sujos,<br />
fechados. Os corpos, em sua maioria, são sujos, talvez não pela idéia <strong>de</strong> imundície, mas<br />
pela falta <strong>de</strong> condições, e, principalmente, por uma escassa conscientização por parte<br />
dos profissio<strong>na</strong>is <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, ou até mesmo pela inexistência <strong>de</strong> uma repartição <strong>de</strong> higiene<br />
pública. A sujeira dos corpos se juntava com a <strong>da</strong>s ruas.<br />
Sobre a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Parahyba no fi<strong>na</strong>l do século XVIII Lenil<strong>de</strong> Duarte Sá (1999)<br />
afirma que os excrementos animais e humanos passaram cientificamente a entor<strong>na</strong>r o<br />
caldo pavoroso que os miasmas impunham aos viventes. O outro passa a ser visto como<br />
si<strong>na</strong>l <strong>de</strong> perigo pela falta <strong>de</strong> higiene <strong>de</strong> seu corpo, que, pelo mau odor, <strong>de</strong>nuncia ou<br />
prenuncia a doença.<br />
São corpos sujos, doentes, maltratados pela pobreza, malicentos, esquálidos.<br />
Assim eram os corpos armados que <strong>de</strong>sciam as ruas <strong>da</strong> capital para o assalto à Diretoria<br />
Geral <strong>de</strong> Socorros Públicos. A presença <strong>da</strong> imundície era um fato, os corpos eram<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros súditos <strong>da</strong> sujeira, já não exalavam odores agradáveis.<br />
Os homens chegaram para mais um longo dia <strong>de</strong> trabalho. Os barcos já estavam<br />
atracados no porto. O trabalho era árduo. A força utiliza<strong>da</strong> era a braçal. Pesados fardos<br />
4 Nome <strong>da</strong>do pelo jor<strong>na</strong>l Gazeta <strong>da</strong> Parahyba ao movimento que agitou a Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Parahyba durante<br />
quatro dias, <strong>na</strong> busca <strong>de</strong> alimento para matar a fome.<br />
5 A imagi<strong>na</strong>ção é uma característica <strong>da</strong> Nova História Cultural que se distingue <strong>da</strong> História Intelectual,<br />
sugerindo uma ênfase em mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, suposições e sentimentos e não em idéias ou sistema <strong>de</strong><br />
pensamento. Enquanto a História Intelectual é mais séria e precisa, a Nova História Cultural é mais vaga,<br />
contudo, também mais imagi<strong>na</strong>tiva. Ver BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,<br />
2008.
<strong>de</strong> farinha foram conduzidos nos ombros <strong>de</strong>sses homens <strong>da</strong>s embarcações até os<br />
armazéns. Ali <strong>de</strong>positados, começava outra fase do trabalho: empilhar <strong>de</strong> forma or<strong>de</strong>ira<br />
os sacos <strong>de</strong> farinha. O movimento <strong>de</strong> vai e vem se repetia. Contavam-se cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
corpos <strong>na</strong> tarefa <strong>de</strong> transportar dois mil fardos <strong>de</strong> farinha. O calor fora o companheiro<br />
nessa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Os corpos suaram. Os odores começaram a se alastrar.<br />
No último dia do mês <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1889, em que tudo parecia ocorrer como nos<br />
dias anteriores, os trabalhadores do cais foram tomados pelo assalto <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong><br />
<strong>famintas</strong>. De supetão, os homens e seus fardos são atacados à base <strong>de</strong> pau e pedra.<br />
Começa o confronto, que se <strong>de</strong>u diante <strong>da</strong> reação dos trabalhadores ao tentarem proteger<br />
o carregamento, momento em que foram violentamente atacados por pedra<strong>da</strong>s. O<br />
tumulto se generalizou. Os comerciantes e os funcionários públicos fecharam suas<br />
portas. O grupo feminino se dispersou pelas ruas centrais.<br />
Os corpos <strong>de</strong>sses homens são responsáveis por produzir e reproduzir. Assim,<br />
po<strong>de</strong>m estar em comum acordo, ou, simplesmente, tor<strong>na</strong>r-se um inimigo do Estado. E.<br />
P. Thompson enfatizou que, “<strong>de</strong>ixando escapar meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> disputa pela<br />
discipli<strong>na</strong> <strong>de</strong> horário <strong>na</strong>s fábricas, se a encararmos ape<strong>na</strong>s em termos <strong>de</strong> racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
econômica e <strong>de</strong> heróicos capitães <strong>de</strong> indústrias, antes <strong>de</strong> tudo ela era parte <strong>de</strong> uma<br />
tentativa muito mais ampla <strong>de</strong> gover<strong>na</strong>r as pessoas, através do controle <strong>de</strong> seus corpos”<br />
(THOMPSON, 1967, p. 56-57). Os corpos dóceis controlados pelo Estado, responsáveis<br />
por reproduzir o trabalho sem imposições, questio<strong>na</strong>mentos, enquanto os corpos em<br />
<strong>de</strong>sacordo seriam as <strong>mulheres</strong> subleva<strong>da</strong>s.<br />
Ao abrirmos os jor<strong>na</strong>is <strong>de</strong> época, nos <strong>de</strong>paramos com uma série <strong>de</strong> reportagens,<br />
on<strong>de</strong>, muitas vezes <strong>na</strong>s entrelinhas, percebemos a atuação dos corpos, uns exaltados,<br />
outros indolentes, manipulados. São justamente estes corpos, produto social, cultural e<br />
histórico, que passamos a discutir.<br />
Há algumas déca<strong>da</strong>s atrás, a história do corpo seria um “campo <strong>de</strong> estudo<br />
inconcebível, sendo <strong>de</strong>sti<strong>na</strong><strong>da</strong> no máximo a amadores, ou seja, as raras contribuições<br />
feitas nesse campo antes <strong>de</strong> 1970 eram pouco conheci<strong>da</strong>s ou consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s margi<strong>na</strong>is”<br />
(PORTER, 1992, p. 94). Até pouco tempo a história do corpo era negligencia<strong>da</strong>. Hoje,
esse objeto <strong>de</strong> estudo parece ter recebido sobre si um zoom, possibilitando uma<br />
infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisas nos mais variados enfoques.<br />
De acordo com Roy Porter (1992), o corpo passou, <strong>na</strong> última geração, por um<br />
processo <strong>de</strong>smistificador viabilizado pelas profun<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças culturais, que<br />
subverteram a sua purita<strong>na</strong> e platônica suspeição: a revolução sexual, o capitalismo<br />
consumista, as críticas acumula<strong>da</strong>s pela contra cultura dos anos 1960, quanto pelo<br />
feminismo <strong>de</strong> 1970, e assim por diante. O autor aponta “os componentes clássico e<br />
ju<strong>da</strong>ico-cristão <strong>de</strong> nossa herança cultural como o principal motivo para tal abandono,<br />
uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira visão dualista do homem, entendi<strong>da</strong> como uma aliança muitas vezes<br />
ansiosa <strong>da</strong> mente e do corpo” (PORTER, 1992, p. 292).<br />
Embora o corpo tenha sido <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> lado por um longo período, segundo<br />
Peter Burke, a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1980,<br />
[...] uma corrente ca<strong>da</strong> vez maior <strong>de</strong> estudos concentrou-se nos<br />
corpos masculino e feminino, no corpo como experiência e<br />
como símbolo, nos corpos <strong>de</strong>smembrados, anoréxicos, atléticos,<br />
dissecados, e nos corpos dos santos e dos pecadores. Os<br />
historiadores do corpo já <strong>de</strong>dicaram livros à história <strong>da</strong> limpeza<br />
dos corpos, <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça, dos exercícios, <strong>da</strong> tatuagem, do gesto<br />
(BURKE, 2008, p. 95).<br />
A história <strong>da</strong> medici<strong>na</strong> foi à precursora <strong>da</strong> história do corpo, já que os<br />
historiadores, ao discutirem doenças, por exemplo, tinham como um espaço <strong>de</strong> análise o<br />
corpo, pois é neste que a doença faz mora<strong>da</strong>. Os historiadores <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> literatura,<br />
logo <strong>de</strong>pois, passaram a reivindicar para si o corpo enquanto um campo frutífero, o<br />
mesmo ocorrendo com os antropólogos e sociólogos.<br />
Dessa forma, os historiadores <strong>da</strong> Nova História Cultural, como Mikhail Bakhtin<br />
e Norbert Elias, focalizaram o corpo em seus diversos trabalhos, fazendo com que essa<br />
temática apareça como um novo campo histórico <strong>de</strong> investigação. O primeiro, com a<br />
obra Rabelais and His World, <strong>de</strong> 1971, que apresenta mo<strong>de</strong>los influentes do corpo<br />
encarado como um foco para a resistência e as críticas populares dos significados<br />
oficiais, “buscou linguagens próprias <strong>da</strong> antropologia cultural para a discussão dos<br />
significados simbólicos do corpo” (PORTER, 1992, p. 293). Já em Cultura popular <strong>na</strong>
I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média e no Re<strong>na</strong>scimento, obra publica<strong>da</strong> em 1965, o autor problematiza<br />
conceitos básicos empregados por Rabelais, como car<strong>na</strong>valização, <strong>de</strong>stro<strong>na</strong>r, linguagem<br />
do mercado, realismo grotesco, <strong>de</strong>ntre outros. Neste trabalho sobre o car<strong>na</strong>val e os<br />
rituais <strong>de</strong> <strong>de</strong>ssacralização, o autor busca enten<strong>de</strong>r como a expressão <strong>de</strong> muitas vozes<br />
diferentes, masculi<strong>na</strong>s e femini<strong>na</strong>s, altas e baixas, e os gestos corporais apresentam o<br />
corpo. A história escrita por Mikhail Bakhtin sugere uma “explicação mais profun<strong>da</strong><br />
sobre a discussão <strong>de</strong> corpo, suas obras têm muito a dizer sobre os corpos grotescos e,<br />
especialmente, sobre o que o autor <strong>de</strong>screveu como o estrato do inferior” (BURKE,<br />
2008, p. 71).<br />
Norbert Elias, em O processo civilizador (1994), lançado em 1939, abor<strong>da</strong> a<br />
pressão social pelo autocontrole, on<strong>de</strong> as fronteiras entre a vergonha e a repugnância<br />
foram se estreitando <strong>de</strong> forma gradual nos séculos XVII E XVIII, excluindo <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong> educa<strong>da</strong> um número ca<strong>da</strong> vez maior <strong>de</strong> comportamento. É sem dúvi<strong>da</strong>s uma<br />
obra <strong>de</strong> temática gestual, enfatizando a corte e a mesa <strong>de</strong> jantar. Estes estudos po<strong>de</strong>m<br />
ser <strong>de</strong>scritos como uma tentativa <strong>de</strong> reivindicar outros territórios para a história. No<br />
caso do Norbert Elias, o gesto é um exemplo claro <strong>de</strong>sses novos espaços.<br />
Percebemos <strong>na</strong> análise <strong>de</strong> O processo civilizador (1994) que o corpo se<br />
comunica por meio <strong>da</strong> gestuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>s atitu<strong>de</strong>s, que <strong>de</strong>nunciam em que momento<br />
histórico ele foi realizado, assim, também, a indumentária que cobre o corpo possui<br />
gran<strong>de</strong> valor <strong>de</strong> comunicação. Na história que versa sobre o autocontrole <strong>de</strong> Norbert<br />
Elias observamos <strong>de</strong> forma implícita, se não explícita, uma preocupação com o corpo.<br />
Faz-se importante mencio<strong>na</strong>r outro trabalho no campo dos gestos corporais, é o<br />
caso do estudo sobre o gesto <strong>na</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média realizado por Jacques Le Goff e Jean-<br />
Clau<strong>de</strong> Schimitt. Este último, <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> um corpus documental, composto por uma<br />
série <strong>de</strong> textos e imagens, viabilizou a reconstrução<br />
[...] <strong>de</strong> gestos religiosos, como rezar, os gestos feu<strong>da</strong>is, como<br />
armar um cavaleiro ou prestar home<strong>na</strong>gem a um senhor; ele<br />
argumenta que rezar com as mãos postas (e não com os braços<br />
abertos) e também se ajoelhar para rezar eram transferências<br />
para o domínio religioso do gesto feu<strong>da</strong>l <strong>de</strong> home<strong>na</strong>gem,<br />
ajoelhar-se diante d senhor e colocar as mãos entre as <strong>de</strong>le<br />
(BURKE, 2008, p. 95).
Diversos outros trabalhos também se empenharam em pesquisar o corpo 6 , não só<br />
<strong>na</strong> história, mas também em várias outras discipli<strong>na</strong>s. O próprio Roy Poter, ao<br />
discutir a história do corpo, afirma que a “rápi<strong>da</strong> ascensão do interesse pela temática foi<br />
encoraja<strong>da</strong> pela dissemi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> aids e pela vulgarização do corpo mo<strong>de</strong>rno nos anos<br />
1980” (POTER, 1992, p. 292).<br />
Durante to<strong>da</strong> a história <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong>, elas foram silencia<strong>da</strong>s. O po<strong>de</strong>r expresso<br />
pelos homens, sempre fizeram com que elas se calassem. Civilizá-las, era no máximo<br />
ensiná-las a ler, escrever e se calar. Porém, apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong> forma <strong>de</strong> repressão imposta,<br />
elas pareceram não se calar. Sobre a cultura <strong>de</strong> fazer as <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong> calarem, Michelle<br />
Perrot afirma que essa prática<br />
[...] cobre o povo como uma carapaça isolante e protetora ao<br />
mesmo tempo. Disso<strong>na</strong>nte em relação ao discurso do progresso,<br />
ela é perigosa não somente por ser sempre suscetível <strong>de</strong><br />
alimentar uma resistência, mas ain<strong>da</strong> por manter <strong>na</strong> dissidência<br />
um povo selvagem, escondido dos olhos do po<strong>de</strong>r. Daí a<br />
irritação que se manifesta ca<strong>da</strong> vez mais contra o ‘atraso’ <strong>da</strong>s<br />
do<strong>na</strong>s-<strong>de</strong>-casa e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> educá-las (PERROT, 2005, p.<br />
219).<br />
Na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Parahyba <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong> insurgentes a resistência é visualiza<strong>da</strong> não<br />
ape<strong>na</strong>s como um combate restrito a uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> corporal - a fome - mas também<br />
uma luta por direitos, uma luta por liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, uma luta contra a exploração<br />
dos po<strong>de</strong>res públicos. Em 1889, a voz <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong> explo<strong>de</strong> nos túmulos radicais do<br />
fi<strong>na</strong>l do século XIX: “Quem é o Presi<strong>de</strong>nte? Apareça que queremos falar. Se não há<br />
Presi<strong>de</strong>nte diga” (SÁ, 1999, P. 95).<br />
As <strong>mulheres</strong> são observa<strong>da</strong>s, olha<strong>da</strong>s. Ganham um espaço que para o período<br />
pertencia exclusivamente ao público masculino. Ali elas não seriam admiti<strong>da</strong>s,<br />
excluí<strong>da</strong>s. Foi ali, no cais do Varadouro, que as <strong>mulheres</strong> gritaram, reclamaram,<br />
6 Outros estudos sobre a história do corpo também <strong>de</strong>safiam suposições tradicio<strong>na</strong>is, é o caso do livro <strong>de</strong><br />
Peter Brawn The Bady and Society (1988), que ajudou a solapar a visão convencio<strong>na</strong>l do ódio cristão ao<br />
corpo. O mesmo foi feito por Holy Feast and Holy Fast (1987), <strong>de</strong> Caroline Bynum, como exemplo <strong>de</strong><br />
história <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong>, mas igualmente importante por sua discussão sobre o corpo e o alimento como<br />
meio <strong>de</strong> comunicação.
apedrejaram, resistiram. Não eram <strong>mulheres</strong> sindicalistas, eram <strong>mulheres</strong> <strong>famintas</strong> com<br />
crianças <strong>de</strong> colo, roupas rasga<strong>da</strong>s, corpos quase <strong>de</strong>snudos.<br />
Ao observar a “sublevação <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong>” Lenil<strong>de</strong> Duarte Sá (1999), afirma que<br />
elas teriam agido a mando <strong>de</strong> grupos políticos. É certo que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> vivia os<br />
preparativos para as eleições, porém, se houve a participação <strong>de</strong> políticos <strong>na</strong> atuação <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulheres</strong> <strong>famintas</strong>, achamos pouco provável. No entanto, a autora levanta a hipótese <strong>de</strong><br />
que “aproveitando-se <strong>da</strong> guerra intesti<strong>na</strong> do Partido Liberal, e usando <strong>de</strong> má fé, um<br />
membro do partido conservador, ousou-se passar por um liberal, tentando assim,<br />
<strong>de</strong>sestabilizar o governo Gama Rosa” (SÁ, 1999, p. 96).<br />
Embora <strong>levante</strong>-se tal hipótese, reafirmamos achar improvável a cooptação dos<br />
políticos sejam eles conservadores ou liberais sobre as <strong>mulheres</strong> insurgentes. Seria o<br />
mesmo que afirmar a ausência <strong>de</strong> lutas por direitos por parte <strong>da</strong>s <strong>mulheres</strong>, tor<strong>na</strong>ndo-as<br />
passivas as imposições dos políticos locais. Seria o mesmo que acreditar, <strong>na</strong><br />
impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse grupo popular em resistir diante <strong>da</strong> coerção dos po<strong>de</strong>res públicos.<br />
O corpo feminino é sem dúvi<strong>da</strong>, um centro <strong>de</strong> relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, on<strong>de</strong> sua<br />
aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, sua maneira <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r, <strong>de</strong><br />
olhar, <strong>de</strong> falar e <strong>de</strong> rir são objetos <strong>de</strong> suspeita. Durante pouco tempo atrás, o corpo <strong>da</strong>s<br />
<strong>mulheres</strong> pareciam não lhes pertencer. Em alguns casos isolados, esses corpos se<br />
rebelavam, como <strong>na</strong> sublevação <strong>de</strong> <strong>mulheres</strong>, afora, tais corpos estariam presos a<br />
diversas formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
Nas famílias, por exemplo, a mulher pertence a seu marido, que com virili<strong>da</strong><strong>de</strong> a<br />
toma, logo <strong>de</strong>pois, passam a pertencer aos filhos que as absorvem. Durante o século<br />
XIX, NN público an<strong>da</strong>m recobertas, no privado são absorvi<strong>da</strong>s pelo po<strong>de</strong>r dos filhos e<br />
maridos. Mesmo subjuga<strong>da</strong>s, sem direito a vez e voz, os corpos femininos se exaltavam<br />
<strong>na</strong> luta por direitos. Assim foi composto o movimento popular. Embora não fossem<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>dãs, lutavam contra a fome, um problema que não atingia ape<strong>na</strong>s o<br />
público feminino, mas quem em alguns momentos os homens silenciavam <strong>na</strong> vergonha<br />
<strong>de</strong> agir.<br />
Referências
SÁ, Lenil<strong>de</strong> Duarte. Parahyba: uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> entre miasmas e micróbios – O serviço <strong>de</strong><br />
higiene pública, 1895 a 1918. Ribeirão Preto, 1999, 291 p. Tese (Doutorado em<br />
Enfermagem), Escola <strong>de</strong> Enfermagem <strong>de</strong> Ribeirão Preto, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2008.<br />
CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos <strong>de</strong>zoito e<br />
<strong>de</strong>zenove. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1987.<br />
DEL PRIORE, Mary. Histórias do cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001.<br />
PERROT, Michelle. As <strong>mulheres</strong> ou os silêncios <strong>da</strong> história. São Paulo: Edusc, 2005.<br />
PORTER, Roy. História do Corpo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita <strong>da</strong> história:<br />
novas perspectivas. São Paulo: Editora <strong>da</strong> Unesp, 1992.<br />
NORBERT, Elias. O processo civilizador: uma história dos costumes. v. 1. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Jorge Zahar, 1994.<br />
THOMPSON. E. P.. Time, work-Discipline and Industrial Capitalism. Past and Present.<br />
1967, p. 56-57.<br />
Periódico:<br />
Gazeta <strong>da</strong> Paraíba (1889)<br />
Documentos manuscritos:<br />
PARAHYBA DO NORTE. Carta-ofício encaminha<strong>da</strong> ao Presi<strong>de</strong>nte Gama Rosa pelo diretor<br />
Paulino <strong>da</strong> Cunha Souto Maior. Documento n. 587. Diretoria Geral <strong>de</strong> Socorros Públicos.<br />
Parahyba, 3 ago. 1989. Manuscrito. Arquivo Histórico <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Espaço Cultural. Cx. 001.<br />
Presi<strong>de</strong>nte Francisco Luiz <strong>da</strong> Gama Rosa.