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Nas teias da memória : o oficio das rezadeiras e ... - Itaporanga.net

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MULHERES TECENDO A MEMÓRIA:<br />

BENZENDURA E TRADIÇÃO NO OFÍCIO DAS ESTEREIRAS<br />

Ane Luíse Silva Mecenas<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Paraíba – UFPB<br />

Magno Francisco de Jesus Santos<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal de Serjipe – UFS<br />

Resumo<br />

Um segredo perpetuado pela orali<strong>da</strong>de. Mãos ágeis amarrando conhecimento, vozes<br />

trêmulas desabafando os dissabores e saberes transmitidos de geração a geração.<br />

Mulheres anônimas que desafiam a tradição, mantendo o lar com o suor de seu ofício.<br />

Respeito sacralizante sobre a natureza. São as famigera<strong>da</strong>s estereiras, trabalhadoras do<br />

universo rural, que nas horas vagas cumprem a missão de rezar os enfermos <strong>da</strong><br />

locali<strong>da</strong>de. Diante <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de estudos de novos sujeitos <strong>da</strong> história,<br />

consubstancia<strong>da</strong> pela renovação <strong>da</strong> História Cultural, temos objeto de reflexão o<br />

acoplamento de tarefas de duas mulheres do agreste sergipano. Sob a perspectiva<br />

metodológica <strong>da</strong> história oral, temos como propósito analisar a transmissão dos saberes<br />

tradicionais dessas mulheres de Itabaiana, enfatizando a consonância com o liame entre<br />

a arte de fazer esteiras e o ofício <strong>da</strong>s benzeduras. Com esse enfoque torna-se possível<br />

perceber que ativi<strong>da</strong>des do universo religioso se aproximam <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des cotidianas, a<br />

partir <strong>da</strong> cosmovisão sacralizante do entorno sócio-natural. No modo de sentir e<br />

perceber a reali<strong>da</strong>de de nossas personagens há uma inequívoca proximi<strong>da</strong>de entre a<br />

prática <strong>da</strong> benzedura e a produção de esteiras. Portanto, são duas mulheres que buscam<br />

conciliar a arte de fazer com a arte de curar, teci<strong>da</strong>s pela trama <strong>da</strong> <strong>memória</strong>.<br />

Palavras-chave: Memória. Tradição. Mulheres. Orali<strong>da</strong>de.<br />

Introdução<br />

Com dois te botaram, com três Jesus Cristo tira”. Com essas palavras mágicas é<br />

iniciado um dos mais disseminados rituais do catolicismo popular no município de<br />

Itabaiana. Trata-se do ritual <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong>. A prática de curar males humanos por meio<br />

de orações e elementos <strong>da</strong> natureza é de origem remota. Ao longo <strong>da</strong> história diversos<br />

povos de épocas e locali<strong>da</strong>des distintas buscaram o restabelecimento <strong>da</strong> saúde física ou<br />

mental através <strong>da</strong> manipulação de tais práticas.


Em Itabaiana, a origem do ritual <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong> é desconheci<strong>da</strong>, caracterizando o<br />

fato folclórico. A tradição remota é passa<strong>da</strong> oralmente de geração para geração,<br />

propiciando não só a perpetualização dos saberes, como também o enriquecimento do<br />

ritual, devido as contínuas trocas culturais. É provável que na socie<strong>da</strong>de itabaianense de<br />

outrora, o deficitário atendimento médico e espiritual, respectivamente por parte dos<br />

médicos e do clero, tenha contribuído de forma decisiva para a disseminação e<br />

legitimação <strong>da</strong>s práticas dos rezadores. Também contribuiu para a propagação do<br />

fenômeno o forte sentimento de religiosi<strong>da</strong>de associado ao vasto imaginário <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de nos períodos colonial e imperial. De uma forma ou de outra o ritual foi<br />

incorporado pela socie<strong>da</strong>de, passando a ser uma necessi<strong>da</strong>de. Com isso, mesmo nos dias<br />

atuais, caracterizados pela suposta e polêmica “socie<strong>da</strong>de seculariza<strong>da</strong>”, as <strong>rezadeiras</strong><br />

permanecem com suas inaudíveis orações, balançando seus ramos, expurgando os males<br />

que tanto atormentam sua fiel clientela. As <strong>rezadeiras</strong> constituem um fenômeno atual,<br />

intrínseco aos nossos dias e que precisa ser mais bem estu<strong>da</strong>do.<br />

Neste artigo temos o propósito de compreender o referido fenômeno no município<br />

de Itabaiana, nos detendo mais especificamente no âmbito rural. Assim buscaremos<br />

fazer uma discussão sobre as relações de poder presentes no universo simbólico que<br />

circun<strong>da</strong> o ritual. A explanação está dividi<strong>da</strong> em quatro momentos. No primeiro,<br />

abor<strong>da</strong>mos sobre “As <strong>rezadeiras</strong> e o seu mundo”, destacando aspectos dos perfis dos<br />

rezadores e de sua clientela, do mesmo modo que descreveremos o espaço físico e o<br />

imaginário que os circun<strong>da</strong>m, ou seja, o mundo <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong>.<br />

No segundo momento enfocamos a simbologia do ritual, buscando compreender<br />

os principais elementos simbólicos presentes no ato de rezar, nas orações e nos<br />

mecanismos legitimadores de tais orações. Analisamos no terceiro tópico as <strong>rezadeiras</strong><br />

inseri<strong>da</strong>s no campo religioso em Itabaiana considerando os mecanismos de inclusão e<br />

legitimação no campo, as disputas internas pelo melhor posicionamento e acúmulo de<br />

capital simbólico, quase nunca convertido em capital cultural. Por fim, enfocamos os<br />

elementos de controle presentes no ritual, a casa e o corpo como formas passíveis de<br />

manipulação na micro-física do poder.


As <strong>rezadeiras</strong> e seu mundo<br />

O fenômeno <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong> está incluído no conjunto de práticas denominado<br />

“catolicismo popular”, ou seja, aquelas práticas que são questiona<strong>da</strong>s ou ignora<strong>da</strong>s pelo<br />

clero oficial. Esta divisão estabeleci<strong>da</strong> tem caráter arbitrário, pois devemos levar em<br />

consideração a impossibili<strong>da</strong>de em se definir um limite entre as práticas do catolicismo<br />

oficial e do popular. O limite entre ambas é sempre flexível, provisório, devido ao<br />

incessante processo de circulari<strong>da</strong>de cultural. Seguindo os aportes teóricos de Pierre<br />

Bourdieu, o catolicismo popular e o oficial seriam dois sub-campos pertencentes a um<br />

campo maior e mais abrangente: o campo religioso.<br />

Embora o fenômeno seja mais conhecido como <strong>rezadeiras</strong>, o ritual é exercido<br />

tanto por homens, como por mulheres. Entre os rezadores estu<strong>da</strong>dos, quantitativamente<br />

a diferença foi ínfima, insignificante. Observamos o ritual de treze (13) rezadores, dos<br />

quais seis (06) eram do sexo masculino e sete (07) do feminino. No tocante à faixa<br />

etária, todos os rezadores observados estavam com i<strong>da</strong>de igual ou superior a sessenta<br />

(60) anos, ou seja, o ritual aparenta ser uma ativi<strong>da</strong>de desempenha<strong>da</strong> exclusivamente<br />

por pessoas <strong>da</strong> terceira i<strong>da</strong>de. Outro aspecto comum que pôde ser constatado é em<br />

relação à escolari<strong>da</strong>de. Todos os rezadores são desconhecedores <strong>da</strong>s letras, são<br />

analfabetos. Esse é um <strong>da</strong>do revelador, pois constitui um forte indício explicativo <strong>da</strong>s<br />

formas de transmissão dos saberes e do aspecto mnemônico do ritual preso<br />

exclusivamente à orali<strong>da</strong>de.<br />

Devido a faixa etária relativamente avança<strong>da</strong>, todos os rezadores atualmente estão<br />

aposentados. Mesmo assim, eles continuam desempenhando suas ativi<strong>da</strong>des econômicas<br />

volta<strong>da</strong>s para a agricultura, pecuária e artesanato em palhas. Algumas <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong>,<br />

porém, já desempenharam outra importante função nos povoados de Itabaiana: eram<br />

parteiras. Essa ativi<strong>da</strong>de hoje praticamente não é mais exerci<strong>da</strong> pelas <strong>rezadeiras</strong>. Elas<br />

perderam a legitimi<strong>da</strong>de na execução dos partos.<br />

Em relação à religiosi<strong>da</strong>de, a priore todos os rezadores atestam ser adeptos do<br />

catolicismo, embora a grande maioria não participe assiduamente <strong>da</strong>s celebrações<br />

religiosas. Dos treze sujeitos observados, apenas um tem uma participação mais ativa<br />

nas ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> igreja, sendo considerado pela comuni<strong>da</strong>de um beato.


Como os rezadores pertencem aos segmentos populares, suas moradias são<br />

caracteriza<strong>da</strong>s pela simplici<strong>da</strong>de, pequenas construções de alvenaria e taipa localiza<strong>da</strong>s<br />

nos redutos periféricos que circun<strong>da</strong>m o povoado. Essas construções podem ser vistas<br />

como pequenos espaços sacralizados, portais entre a ordem cósmica sacralizante e a<br />

reali<strong>da</strong>de caótica e profana do cotidiano vivencia<strong>da</strong> pela população. As casas seriam<br />

então, as portas de ligação entre dois mundos totalmente distintos, mas intrinsecamente<br />

interligados por se completarem. No interior <strong>da</strong>s casas podem ser encontrados<br />

elementos que sugerem a sacralização, como os inúmeros quadros e imagens de santos<br />

de devoção. É instigante observar a eleva<strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de desses tipos de representações,<br />

que em muitos casos estão acresci<strong>da</strong>s de várias fitas amarra<strong>da</strong>s. Entre as devoções mais<br />

encontra<strong>da</strong>s podemos destacar a de Senhor dos Passos, Nossa Senhora <strong>da</strong> Conceição,<br />

Nossa Senhora do Bom Parto, Nossa Senhora do Desterro e São Jorge. Todos esses<br />

santos pertencem ao grupo <strong>da</strong>s devoções populares. Além de ser uma valiosa fonte para<br />

o estudo <strong>da</strong>s devoções populares, as imagens são forte indício para o estudo <strong>da</strong>s rezas,<br />

haja vista que há uma proximi<strong>da</strong>de entre os atributos do santo e a benesse almeja<strong>da</strong>.<br />

Contudo, o mundo <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong> não fica restrito aos cômodos de suas moradias.<br />

Elas extrapolam para o universo imaginário. A ritualística <strong>da</strong>s rezas é cerca<strong>da</strong> por<br />

misticismo, len<strong>da</strong>s e superstições. Em muitos casos as <strong>rezadeiras</strong> passam a ser difusoras<br />

<strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s, seja na exposição de relatos de pessoas conheci<strong>da</strong>s ou experiências<br />

vivencia<strong>da</strong>s, seja na tentativa de legitimar suas rezas. São vários os testemunhos <strong>da</strong>s<br />

mais mirabolantes aparições, variando de santos a demônios e seus respectivos agentes.<br />

As len<strong>da</strong>s difundi<strong>da</strong>s pelas <strong>rezadeiras</strong> têm duas funções bem defini<strong>da</strong>s: a primeira,<br />

comum ao universo lendário, é de amedrontar, <strong>da</strong>r o exemplo, testemunhar a punição<br />

dos que ousaram quebrar as regras cotidianas. A segun<strong>da</strong> função está liga<strong>da</strong><br />

intrinsecamente à busca de legitimação <strong>da</strong>s rezas e é um tanto complexa. Trata-se dos<br />

depoimentos sobre a origem <strong>da</strong>s respectivas orações. Na maioria dos casos a origem<br />

está nos primeiros anos do cristianismo, com narrativas sobre Jesus e seus apóstolos. É<br />

o que pode ser observado no seguinte relato:<br />

Quando Jesus an<strong>da</strong>va no mundo pediu rancho numa casa velha a um<br />

casal. Eles iam comer tatu e o homem falou para que a mulher


oferecesse ao velhinho um pe<strong>da</strong>ço de carne e a mulher fez foi<br />

expulsar Jesus de sua casa e foi comer o tatu com o marido. Quando<br />

estava comendo a mulher engasgou-se com um osso do tatu e o<br />

marido foi pedir aju<strong>da</strong> ao homem que sua mulher havia expulsado.<br />

Quando encontrou o homem, que era Jesus e lhe pediu aju<strong>da</strong>, Cristo<br />

falou: osso de tatu suba ou desça; casa velha, esteira rota, bom<br />

homem, má mulher. Tais palavras fizeram com que o engasgo<br />

descesse (MARIETINHA, 2002).<br />

Este relato explicita bem a busca pela legitimação <strong>da</strong>s rezas. O poder de cura <strong>da</strong><br />

oração está no fato dela ter sido possivelmente deixa<strong>da</strong> por Cristo durante suas an<strong>da</strong>nças<br />

pela terra. Mais do que uma lição de moral, com a punição <strong>da</strong> mulher má, avarenta, o<br />

episódio constata que no universo imaginativo <strong>da</strong>s rezas o fun<strong>da</strong>dor do cristianismo não<br />

teria deixado somente a doutrina oficial, mas também as práticas populares. Esta<br />

pequena len<strong>da</strong> representa um caso de releitura <strong>da</strong>s práticas religiosas, uma espécie de<br />

evangelho <strong>da</strong> tradição oral. A origem <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s rezas é vincula<strong>da</strong> aos anos<br />

apostólicos, na qual teriam sido difundi<strong>da</strong>s por Jesus ou por seus seguidores. Esse é o<br />

caso de rezas como Murcha Folha (origem associa<strong>da</strong> a São Paulo e São Pedro) e Sol e<br />

Sereno (atrela<strong>da</strong> a Jesus e São José). Vejamos o discurso construído nesta oração:<br />

Ia Jesus e José em uma grande romaria,<br />

Dizia Jesus a José: vamos<br />

Dizia José a Jesus: não posso<br />

Dizia Jesus a José que ia curar e rezar<br />

De sol e sereno, ponta<strong>da</strong>, resta lua, (...)<br />

(NITA, 2002).<br />

A pequena oração acima cita<strong>da</strong> é reveladora. Com linguagem direta trata os<br />

personagens de forma coloquial, sem as formali<strong>da</strong>des comumente presentes nestas<br />

situações (ausência de termos como Nosso Senhor e São). Além disso, Jesus é<br />

apresentado em uma situação cotidiana comum ao catolicismo popular. Ele aparece em<br />

uma romaria. É nesta ocasião em que o Jesus mais humanizado do que o normal<br />

anuncia a sua missão: rezar e curar. Deste modo, o discurso <strong>da</strong> referente oração<br />

intrinsecamente está afirmando que as <strong>rezadeiras</strong> estão <strong>da</strong>ndo continui<strong>da</strong>de à missão de<br />

Cristo, são seguidoras de Jesus assim como os apóstolos foram. Na<strong>da</strong> mais legitimador<br />

do que isso.<br />

Contudo, os mistérios <strong>da</strong>s rezas não ficam restritos à origem <strong>da</strong>s orações. Eles<br />

também estão presentes na transmissão dos saberes. Os saberes são perpetuados


majoritariamente por meio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, principalmente de pai para filho ou de avô para<br />

<strong>net</strong>o. No entanto, em alguns casos, o despertar do rezador para o universo <strong>da</strong> reza ocorre<br />

de forma miraculosa ou mesmo mirabolante. É o caso de um dos rezadores abor<strong>da</strong>dos,<br />

que teria aprendido suas orações por inspiração divina. Diante de uma dificul<strong>da</strong>de<br />

financeira aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> por problemas de saúde o rezador pediu em oração uma benção<br />

de Deus. No dia seguinte teria acor<strong>da</strong>do sabendo <strong>da</strong> reza que levaria a cura. A partir<br />

deste dia, o simples agricultor que nunca tinha rezado tornou-se um dos mais<br />

privilegiados rezadores <strong>da</strong> zona rural itabaianense. O aspecto pitoresco de seu ritual vai<br />

além. O mistério é um ingrediente presente em diferentes momentos como na busca de<br />

água em lugares remotos para preparação <strong>da</strong>s garrafa<strong>da</strong>s e o fato de só lembrar <strong>da</strong>s rezas<br />

no momento do ritual, caso o doente sofra de mal espiritual. Podemos dizer se tratar de<br />

um ver<strong>da</strong>deiro universo místico, cercado de mistérios.<br />

A simbologia do ritual<br />

O ritual <strong>da</strong> reza possui uma rica simbologia. Para poder detectá-la é preciso buscar<br />

nos meandros do ritual os indícios muitas vezes negligenciados, desprezados pelos<br />

olhares frios <strong>da</strong> ciência. Por este motivo a análise não se deteve ao volume de<br />

informações obti<strong>da</strong>s por meio <strong>da</strong>s entrevistas, mas buscou-se ampliar o leque<br />

documental a partir <strong>da</strong> observação minuciosa do fenômeno estu<strong>da</strong>do. Detalhes<br />

reveladores só puderam ser detectados graças à assídua convivência com alguns dos<br />

rezadores. À priore, as rezas podem ser classifica<strong>da</strong>s em três grupos, de acordo com a<br />

sua finali<strong>da</strong>de. São elas: para curar humanos, curar animais e controlar de fenômenos <strong>da</strong><br />

natureza.<br />

As do primeiro grupo são mais populares, destacando-se a de olhado, quebrante,<br />

murcha folha, engasgo, carne quebra<strong>da</strong>, dor de dente, ponta<strong>da</strong>, sol e sereno, dona do<br />

corpo, fogo selvagem, espinhela caí<strong>da</strong>, nervo rendito, cobreiro brabo e ar de congestão<br />

(malva<strong>da</strong>, passageira ou vento mau). O ritual destas rezas é repleto de coibições,<br />

detalhes que buscam no plano simbólico garantir a cura do mal. Tudo inicia com a<br />

escolha do horário. Ca<strong>da</strong> reza possui um horário específico para ser realiza<strong>da</strong>. No


entanto, o ritual nunca deve ocorrer antes <strong>da</strong>s seis e depois <strong>da</strong>s dezoito horas. A<br />

proficiência <strong>da</strong>s rezas durante a noite é quase nula.<br />

Outro detalhe aparentemente irrelevante é a escolha de um elemento <strong>da</strong> natureza<br />

para ser usado durante a reza. A função desse elemento é mediar o exorcismo dos males<br />

atormentadores. Para ca<strong>da</strong> oração existe um elemento natural diferente. Assim, para<br />

olhado usam-se três ramos de vassourinhas; malva<strong>da</strong>, a mesma quanti<strong>da</strong>de de pinhão<br />

roxo; cobreiro brabo e fogo selvagem, caule de mandioca; carne vermelha, barro;<br />

murcha folha, cebola vermelha. Tais elementos possuem funções estratégicas na<br />

realização do ritual, pois representam a abertura para o universo sagrado, o elo entre a<br />

reali<strong>da</strong>de caótica e a ordem cósmica. O que constata essa hipótese é fato de se usar três<br />

ramos. O número três representa, no plano simbólico, a Santíssima Trin<strong>da</strong>de. Ela<br />

também está presente na abertura do ritual, momento no qual o rezador invoca: com<br />

dois te botaram, com três Jesus Cristo tira. Neste caso, dois indica os olhos que<br />

provocaram o olhado, enquanto três reforça a idéia <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de Santa. Entretanto, essa<br />

simples frase tem muito mais a revelar. Ela demonstra o que podemos chamar<br />

provisoriamente de “circulação de energias simbólicas”, tendo em vista que o ritual <strong>da</strong><br />

reza ocorre de forma triangular. De um lado está o rezado, atormentado por algum mal,<br />

seja de natureza física, seja espiritual. No ângulo oposto está o rezador, portador dos<br />

instrumentos de cura (rezas, elementos naturais, chás e fé). Entre eles e ao mesmo<br />

tempo acima dos mesmos, está o elemento natural, sacralizado e representando as forças<br />

<strong>da</strong> Santíssima Trin<strong>da</strong>de. Então o ritual pode ser assim observado:<br />

Elemento Natural<br />

Rezador Rezado<br />

O triângulo acima revela os nuances <strong>da</strong> circulação de energias simbólicas. Ao<br />

iniciar o ritual, o rezador exerce seu poder diretamente sobre o rezado. Ao mesmo<br />

tempo, o elemento age sobre o rezado na exorcização do mal. Este acaba sendo


absorvido pelo elemento natural, que como conseqüência acaba murchando. Para que<br />

ocorra exorcização plenamente é preciso que o elemento esteja em estado “puro”, ou<br />

seja, sem ter sido benzido ou possuir sementes. Caso ele contenha alguma impureza, o<br />

mal exorcizado pode passar diretamente para o rezador, sendo afetado com os sintomas<br />

retirados do rezado. Nesta situação, o elemento natural pode ser visto como o<br />

intermediador na circulação de energias simbólicas. Mas afinal, o que é a circulação de<br />

energias simbólicas?<br />

Circulação de energias simbólicas é um conceito em formação e pode ser<br />

entendido como a troca recíproca de energias. É a transferência ininterrupta de energias<br />

entre rezador, rezado e os elementos naturais. As energias simbólicas podem ser vistas<br />

como forças simbólicas que podem ser transmiti<strong>da</strong>s ou expurga<strong>da</strong>s. Em síntese, energias<br />

simbólicas são tanto os males que atormentam os rezados, como as forças exorcizadoras<br />

usa<strong>da</strong>s pelo rezador durante o ritual.<br />

Outro grupo de rezas existente no municio de Itabaiana é o de cura de animais. A<br />

existência desse tipo de oração pode ser visto como uma evidência do modo de vi<strong>da</strong> do<br />

homem do campo, voltado para as ativi<strong>da</strong>des agropastoris. As principais rezas para<br />

animais conheci<strong>da</strong>s em Itabaiana são a de cura de pasto, bicheira (também chama<strong>da</strong> de<br />

palavra ou bicheira de rastro) e reza de gato (consiste apenas em cruzar a vassoura em<br />

forma de cruz por três vezes, pelo fato do gato ser visto como animal amaldiçoado). É<br />

proeminente o fato de poucos rezadores executarem o ritual de cura de animais e mesmo<br />

quando realiza, restringe-se a reza do gato e, no máximo, a bicheira de rastro. A cura de<br />

pasto é um ritual escasso no município serrano, correndo sérios riscos de ser extinto.<br />

Um dos possíveis motivos <strong>da</strong> exclusão deste ritual do certame de orações dos<br />

rezadores itabaianenses está na nomenclatura <strong>da</strong> reza. O fato de ser chama<strong>da</strong> por cura de<br />

pasto faz com que a reza seja atrela<strong>da</strong> à outra categoria de religiosi<strong>da</strong>de popular, a dos<br />

curadores. Rezadores e curadores disputam a mesma parcela <strong>da</strong> clientela e isso faz com<br />

um grupo busque distanciar-se do outro.<br />

Esta evidência é plausível, mas não é suficiente para explicar o progressivo<br />

desaparecimento de uma prática religiosa, pois estaríamos sendo reducionistas. Não<br />

devemos esquecer que a reza de cura de pasto integra o grupo <strong>da</strong>s orações sigilosas. Isto


pode está contribuindo para o desaparecimento desta prática ritualística. De fato, a<br />

deficiência na transmissão dos saberes é um dos principais motivos do desaparecimento<br />

de certas práticas populares. Também não podemos negar o contexto ao qual está<br />

inserido o ritual. A cura de pasto pode está desaparecendo simplesmente pela falta de<br />

uma clientela. Sem cliente, a prática morre. Com efeito, a cura de pasto em Itabaiana<br />

pode está fa<strong>da</strong><strong>da</strong> ao fim.<br />

A mesma coisa ocorreu com as rezas do terceiro e último grupo de rezas. Até<br />

meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970 havia uma série de orações que objetivavam controlar os<br />

fenômenos <strong>da</strong> natureza. Tais práticas desapareceram do cotidiano religioso do<br />

município. Rezas para apagar fogo, parar rio cheio e parar trovão foram excluí<strong>da</strong>s do<br />

plantel de orações. Podemos cogitar inúmeras hipóteses para compreender a situação em<br />

que algumas rezas permanecem enquanto outras perecem. Mais uma vez as respostas<br />

são múltiplas e complementares. Apresentamos apenas três hipóteses: na primeira<br />

relacionamos com a dinâmica social, a socie<strong>da</strong>de transforma-se e mu<strong>da</strong> os seus anseios.<br />

O controle de fenômenos naturais pode ter deixado de ser uma necessi<strong>da</strong>de inerente à<br />

população itabaianense.<br />

A segun<strong>da</strong> enfatiza a questão do sigilo. As rezas eram vistas como detentoras de<br />

um elevado poder simbólico e por este motivo não podiam ser transmiti<strong>da</strong>s<br />

aleatoriamente. O conhecimento destas rezas estava restrito a poucos rezadores, aqueles<br />

vistos como os “mais sabidos”. Sabemos que os saberes populares são transmitidos de<br />

geração para geração por meio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de. Neste sentido, o segredo característico de<br />

certas orações torna-se um empecilho a sua continui<strong>da</strong>de. Esta constatação é<br />

razoavelmente plausível.<br />

No entanto, existe outra possibili<strong>da</strong>de explicativa mais perspicaz. É muito<br />

provável que as rezas para controlar os fenômenos <strong>da</strong> natureza tenham perdido sua<br />

legitimi<strong>da</strong>de. O descrédito <strong>da</strong>s orações constitui um forte indício do seu<br />

desaparecimento. As crenças e cultos só permanecem enquanto possuem alguma<br />

relevância, um significado. Com isso, a ineficácia ou simplesmente a ausência <strong>da</strong><br />

necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s rezas pôde ter provocado a redução <strong>da</strong> clientela, com o conseqüente fim<br />

do ritual.


As <strong>rezadeiras</strong> e o campo religioso de Itabaiana.<br />

As <strong>rezadeiras</strong> apresentam uma peculiari<strong>da</strong>de, por estarem inseri<strong>da</strong>s em dois<br />

campos distintos: o religioso e o <strong>da</strong> saúde. Nos dois campos elas ain<strong>da</strong> detêm certa<br />

relevância, capital simbólico acumulado, apesar de enfrentarem a concorrência, que<br />

vem usando mecanismos progressivamente para fechar seus campos. Neste estudo,<br />

enfocaremos apenas as nuanças <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong> no campo religioso no município de<br />

Itabaiana.<br />

Campo religioso pode ser entendido como o espaço de forças onde se enfrentam o<br />

corpo de agentes altamente especializados (os sacerdotes), os leigos e o profeta<br />

enquanto encarnação típica do agente inovador e revolucionário que expressa, mediante<br />

um novo discurso e por uma nova prática, os interesses e reivindicações de<br />

determinados grupos sociais (BOURDIEU, 1989). Neste sentido enfocaremos no<br />

momento apenas alguns aspectos <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong> no referido campo e o<br />

acúmulo de capital simbólico.<br />

Ao analisarmos o ritual <strong>da</strong>s rezas podemos perceber diversos aspectos que buscam<br />

legitimar as referi<strong>da</strong>s práticas. Um desses mecanismos de legitimação é o mito de<br />

origem <strong>da</strong>s rezas, quase sempre associa<strong>da</strong> ao tempo bíblico. Deste modo, assim como o<br />

catolicismo oficial, as <strong>rezadeiras</strong> também seriam herdeiras de primeira linhagem <strong>da</strong><br />

tradição religiosa deixa<strong>da</strong> por Cristo, ou seja, seriam discípulos e discípulas<br />

divulgadoras <strong>da</strong>s palavras do Salvador. Talvez mais do que isso, se levarmos em<br />

consideração que além de estarem difundindo a tradição deixa<strong>da</strong> por Jesus, as <strong>rezadeiras</strong><br />

seguem os passos do mesmo, propiciando curas. Devemos esclarecer que tais curas são<br />

associa<strong>da</strong>s às palavras mágicas deixa<strong>da</strong>s por Cristo e não às <strong>rezadeiras</strong>, que seriam<br />

apenas intermediadoras <strong>da</strong> ação divina sobre os homens. Deste modo, observamos que<br />

as <strong>rezadeiras</strong> explicam a origem de suas orações buscando remetê-las ao tempo bíblico,<br />

mesclando personagens sagrados com populares do cotidiano.<br />

Outro mecanismo legitimador <strong>da</strong>s referi<strong>da</strong>s práticas ocorre com o segredo. O ritual<br />

é permeado pela mística e mistério. A começar pela transmissão dos saberes. Nem to<strong>da</strong>s<br />

as orações são transmiti<strong>da</strong>s aleatoriamente, pois as rezas ti<strong>da</strong>s como “mais fortes” ficam


estritas a poucos rezadores, os detentores de maior capital simbólico. Quanto mais<br />

orações forem do conhecimento do rezador, maior será o seu prestígio na comuni<strong>da</strong>de.<br />

Entre as orações mais poderosas estão a do vento mau e dona do corpo, que são<br />

conheci<strong>da</strong>s por parcos rezadores. Mesmo os detém este conhecimento nem sempre estão<br />

aptos ou aceitam rezar, alegando o risco de absorverem o mal expurgado. O mistério<br />

não restringe apenas à transmissão dos saberes, ocorre também na reali<strong>da</strong>de ritualística<br />

dos rezadores, com a preparação sigilosa de chás e banhos. Além de reforçar a eficácia<br />

do ritual, esses elementos complementares despertam a mística, pois a água destina<strong>da</strong> à<br />

preparação destas infusões em alguns casos é retira<strong>da</strong> de locais específicos, de poços ou<br />

rios sacralizados. Assim, a eficácia <strong>da</strong>s infusões depende de quem e do modo como<br />

prepara e principalmente, <strong>da</strong> origem do material.<br />

Podemos refletir a questão do segredo por um ângulo diferenciado. Levando-se<br />

em consideração que as <strong>rezadeiras</strong> estão inseri<strong>da</strong>s no mesmo campo, é relevante<br />

lembrarmos que elas estão disputando entre si um melhor posicionamento no interior<br />

deste campo. Assim como os demais setores sociais, as <strong>rezadeiras</strong> não estão em<br />

pari<strong>da</strong>de de condições no interior do campo religioso. Existem sujeitos como maior<br />

capital simbólico e outros com menor nível de capital. O acúmulo de capital simbólico<br />

se dá de diferentes formas, estratégias distintas. Nesta corri<strong>da</strong>, as mulheres parecem<br />

partir em desvantagem. Mesmo o ritual sendo executado majoritariamente pelo sexo<br />

feminino, o prestígio dos rezadores do sexo oposto é superior. Prova disso é a maior<br />

parte <strong>da</strong>s rezas perigosas são realiza<strong>da</strong>s somente por homens. É claro que existem<br />

exceções, mas via de regra, as mulheres <strong>rezadeiras</strong> são procuras principalmente para as<br />

rezas mais simples, como olhados e quebrantes.<br />

A eficácia <strong>da</strong>s orações, o sexo do rezador e as rezas que este possui em seu<br />

repertório são alguns dos elementos legitimadores, propiciadores de acúmulo de capital<br />

simbólico. É importante frisar um aspecto peculiar <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong>, que é o fato deste<br />

capital simbólico quase nunca ser convertido em capital econômico. Na pesquisa de<br />

campo não encontramos nenhum caso em que há pagamento direto pela execução do<br />

ritual. O que encontramos foram os “agrados”, pequenas retribuições em forma de<br />

alimentos e, em menor proporção, tecidos para uso domestico.


A casa e o corpo como instrumentos de poder<br />

Na busca pela eficácia <strong>da</strong> cura, nenhum elemento do ritual dos rezadores pode ser<br />

negligenciado. O horário, os materiais de cura, a casa e até mesmo o corpo dos<br />

rezadores passam a ser relevantes instrumentos no ritual. Assim, tais aspectos passam a<br />

ser passíveis de manipulação e controle. As restrições, assim como o segredo,<br />

perpassam todo o ritual de cura. Para se tornar possível a compreensão desse universo<br />

simbólico, torna-se eminente a necessi<strong>da</strong>de de pe<strong>net</strong>rar nos mistérios do ritual, buscar<br />

romper com os segredos e tabus que o cercam. Com isso, precisamos apresentar como<br />

se o controle a manipulação <strong>da</strong>s diferentes facetas que perpassam o ritual.<br />

O horário é um dos principais alvos do controle vigente no ritual de cura dos<br />

rezadores. As coibições estão presentes em praticamente to<strong>da</strong>s as rezas. O rezador mais<br />

atento é capaz de dicernir onde e quando deve iniciar o ritual de exorcismo dos males<br />

atormentadores. As palavras mágicas pronuncia<strong>da</strong>s em sussurros, não podem ser<br />

executa<strong>da</strong>s a qualquer momento, sob pena de perder o poder de eficácia. Torna-se<br />

necessário então buscar um horário em que a sacrali<strong>da</strong>de esteja latente. É por esse<br />

motivo que as orações mais sigilosas ou que causam maior constrangimento são<br />

executa<strong>da</strong>s em horários mais específicos, principalmente as seis e dezoito horas. É a<br />

hora sacra por excelência, por ser o momento do terço, <strong>da</strong> ave-maria. Pela mesma<br />

motivação, deve-se evitar os horários em que o mal circula com maior intensi<strong>da</strong>de.<br />

Dessa forma, rezar no decorrer <strong>da</strong> noite ou ao meio dia reduz, no plano simbólico,<br />

drasticamente a eficácia de cura. Nesta perspectiva, o rezador que conhecer os segredos<br />

dos horários mais propensos à cura será detentor de maior poder, será guardião do<br />

segredo, ou seja, mais legitimado no campo.<br />

A casa também é passível de manipulação. O ritual não deve ser efetivado em<br />

qualquer ambiente. Para aumentar a eficácia simbólica o rezador deve buscar locais em<br />

que não hajam muitas pessoas circulando. Além disso, deve-se evitar que os curiosos<br />

fiquem sob os arcos e portas <strong>da</strong> casa, pois podem afetar a circulação de energias<br />

simbólicas. Mas por que os arcos e portas? Qual a simbologia desses elementos<br />

arquitetônicos? Uma resposta plausível é o fato deles representarem a passagem, o


portal entre dois cômodos passa a ligar, no plano simbólico, a ligação entre dois<br />

mundos, duas reali<strong>da</strong>des. Na comunicação entre o sagrado e o profano na busca pela<br />

cura do rezado, torna-se necessário afastar os olhares curiosos, que tanto podem impedir<br />

a eficiência <strong>da</strong> circulação de energias simbólicas, como também podem quebrar com o<br />

segredo ritualístico.<br />

Mas ain<strong>da</strong> tem outro alvo do controle no ritual <strong>da</strong>s rezas: é o corpo. Na reza o<br />

corpo passa a ser útil e inteligível, ou seja, objeto de poder. Entre os rezadores de<br />

Cajaíba, o controle recai com maior força sobre o corpo feminino. A mulher se torna<br />

passível de manipulação e, ao mesmo tempo, permanece presa ao olhar vigilante <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de. Assim, “o corpo que manipula, se modela, se treina, que obedece, se<br />

torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 1995, p.125).<br />

O corpo feminino é mol<strong>da</strong>do em suas ações. Para se tornar rezador é preciso ter<br />

movimentos específicos, manipular ramos segundo as exigências do corpo. To<strong>da</strong>via, no<br />

caso <strong>da</strong>s mulheres, o poder de eficácia simbólica de cura está atrelado a outro aspecto<br />

relevante: a menstruação. As mulheres em i<strong>da</strong>de fértil geralmente não são prestigia<strong>da</strong>s<br />

como <strong>rezadeiras</strong>. O fluxo menstrual limita o poder de cura. Deste modo, se a menor<br />

pausa representa o fim <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong>de feminina, para a rezadeira é o sinal de que o seu<br />

poder está fortalecido, igualando-se com os homens em relação ao poder de cura.<br />

Simbolicamente, a decadência do corpo eleva o poder do espírito.<br />

Com isso, podemos dizer que o ritual dos rezadores constituiu um complexo<br />

conjunto de ações punitivas e vigilantes, sob o pretexto de assegurar a eficácia de cura.<br />

A casa, o corpo são controlados e vigiados, manipulados minuciosamente com o<br />

propósito <strong>da</strong> cura. Portanto, constituem uma micro-física do poder.<br />

Um último olhar...<br />

As <strong>rezadeiras</strong> em Itabaiana permanecem. Mesmo sofrendo as sanções impostas<br />

pelo campo religioso e <strong>da</strong> saúde, elas continuam sendo uma <strong>da</strong>s primeiras alternativas<br />

na busca pela saúde ou por um conselho. São elas que estão mais próximas de sua<br />

clientela e disponíveis quase sempre. É difícil para o olhar frio <strong>da</strong> academia<br />

compreender a permanência desta prática em nossa socie<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong> vez mais laica.


Podemos enxergar as <strong>rezadeiras</strong> enquanto permanência de passado não tão<br />

distante, mas também como uma releitura, ressignificação deste passado para o nosso<br />

tempo, a nova reali<strong>da</strong>de envolvente. Se o ritual <strong>da</strong>s <strong>rezadeiras</strong> permanece é porque a<br />

socie<strong>da</strong>de continua necessitando dele. Se o ritual de hoje é destoante do de outrora é<br />

porque o tempo mudou, os anseios <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de mu<strong>da</strong>ram.<br />

As rezas executa<strong>da</strong>s possuem uma relevância ain<strong>da</strong> não descoberta pelos olhares<br />

de nossos historiadores. Elas podem ser vistas como fontes relevantes para o estudo de<br />

nossa socie<strong>da</strong>de, crenças, imaginário e cotidiano. As vozes presentes nos sussurros<br />

rezados têm muito a nos dizer, por serem oriun<strong>da</strong>s de diferentes épocas. Trata-se de um<br />

eco que une diferentes períodos, passado e presente. O próprio ritual já pode ser visto<br />

como um discurso, com linguagem própria e que tem muito a revelar. Por fim, ao<br />

pronunciar as palavras mágicas “com dois te botaram, com três Jesus Cristo tira”,<br />

podemos observar aspectos que vão além de rezas e galhos, são os sujeitos históricos<br />

inseridos em campo, detentoras de complexo universo simbólico, <strong>da</strong> eficácia de cura, de<br />

poder.<br />

Referência Bibliográfica<br />

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa/ Rio de janeiro: Difel/ Bertrand Brasil,<br />

1989.<br />

BRUSCHINI, Cristina; PINTO, Céli Regime (orgs). Tempo e Lugares de Gênero. São<br />

Paulo; FCC: Ed. 34, 2001.<br />

BURKE, Peter. Cultura Popular na I<strong>da</strong>de Moderna. Trad. Denise Bottmann. São<br />

Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1989.<br />

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: essência <strong>da</strong>s religiões. Lisboa: LBL<br />

Enciclopédia, s/d.<br />

FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina (orgs). Usos e abusos <strong>da</strong> história<br />

oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996.<br />

FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. Trad. Raquel Ramalhete.<br />

Petrópolis: Vozes, 2002.


LEON, Adriano de. “Santos, feiticeiras e doutores: religião, magia tecnologia no<br />

imaginário camponês. In: Saeculum: Revista de História, n° 2. João Pessoa: Editora <strong>da</strong><br />

UFPB, 1996. p.125-121.<br />

MOREIRA, Neiva Marinho; WOLLF, Jussara Nair. “Entre águas, galhos e rosários:<br />

práticas e experiência <strong>da</strong>s mulheres benzedeiras em Xaxim. In: Cadernos do CEOM.<br />

Ano 14. n° 13. Chapecó: Argos, 2001. p.157-182.<br />

RODRIGUES, Núbia Bento. O sofredor sou eu: antropologia de concepções de saúde,<br />

doença e construção pessoal. Salvador: UFBA, 1995.

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