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Sem título-5 - Nucleo de Humanidades - Ufma

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A ANTROPOGEOGRAFIA DE RAIMUNDO LOPES SOB<br />

INFLUÊNCIA DE EUCLIDES DA CUNHA<br />

Alexandre Fernan<strong>de</strong>s Corrêa *<br />

Resumo: Um breve texto sobre a obra etnogeológica <strong>de</strong> Raimundo Lopes, Memória da<br />

Etnologia no Maranhão e no Brasil. Intelectual maranhense da primeira meta<strong>de</strong> do<br />

século XX, her<strong>de</strong>iro da tradição antropogeográfica <strong>de</strong> Friedrich Ratzel, Emmanuel<br />

Martone, assim como do gran<strong>de</strong> autor brasileiro Eucli<strong>de</strong>s da Cunha.<br />

Palavras-chave: Etnologia Brasileira. Memória etnológica. Antropogeografia<br />

maranhense.<br />

Abstract: A brief essay about Raimundo Lopes’ ethno-geologic work, “The memory of<br />

ethnology in Maranhão and Brazil”. Raimundo Lopes was a scholar from Maranhão of<br />

the beginning of the XX century. Inheritor of the anthropogeographic tradition of Friedrich<br />

Ratzel and Emmanuel Martone, as well as of the great Brazilian author Eucli<strong>de</strong>s da<br />

Cunha.<br />

Keywords: Brazilian ethnology. Ethnologic memory. Regional anthropogeography.<br />

* Professor Adjunto em Antropologia do Departamento <strong>de</strong> Antropologia e Sociologia.<br />

Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coor<strong>de</strong>nador do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />

Patrimônio & Memória. E-mail: alexcorrea@antropologia.com.br<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 19


1. Introdução<br />

O contato com o livro Uma Região Tropical, escrito pelo pesquisador<br />

maranhense Raimundo Lopes, foi um acontecimento marcante na pesquisa que<br />

realizamos sobre o perfil i<strong>de</strong>ológico das concepções <strong>de</strong> patrimônio e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

regional na socieda<strong>de</strong> brasileira. Os capítulos <strong>de</strong>ssa obra pioneira enfocam a<br />

realida<strong>de</strong> geográfica e humana do Estado do Maranhão no início do século XX.<br />

São documentos científicos importantes para a história da etnologia e da geografia<br />

humana no começo do processo <strong>de</strong> industrialização e urbanização do<br />

Brasil. Raimundo Lopes começou a escrever esse livro aos 17 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />

antes <strong>de</strong> embarcar para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> passou a trabalhar e a estudar 1 .<br />

Po<strong>de</strong>mos resumir o projeto <strong>de</strong>sse livro nas palavras <strong>de</strong> Domingos Vieira Filho,<br />

quando nos diz que Raimundo Lopes revelou “as possibilida<strong>de</strong>s econômicas e<br />

humanas da terra maranhense” (Lopes, 1970, p. XI). O que impressiona <strong>de</strong> imediato<br />

é a juventu<strong>de</strong> do autor, que cedo segue a tradição intelectual da elite cultivada<br />

do Maranhão. Raimundo Lopes da Cunha merecia uma atenção maior sobre<br />

seus trabalhos acadêmicos e literários. A verda<strong>de</strong> é que em nossas Universida<strong>de</strong>s<br />

estamos tão preocupados com os últimos lançamentos na Europa e EUA,<br />

que <strong>de</strong>ixamos no ostracismo escritores e pensadores brasileiros originais. O caso<br />

<strong>de</strong> Raimundo Lopes é exemplar, um pesquisador do Museu Nacional, praticamente<br />

esquecido! 2<br />

Os interesses científicos <strong>de</strong>sse autor pioneiro passavam pela arqueologia,<br />

geografia humana e etnologia, empreen<strong>de</strong>ndo importantes investigações<br />

etnográficas na região norte do país. Parece que a influência <strong>de</strong> Roquete-Pinto<br />

foi marcante em sua carreira, especialmente nos trabalhos da Rádio do Ministério<br />

da Educação, quando <strong>de</strong>senvolveu diversos estudos, projetos, idéias e anotações,<br />

que foram organizados pelo irmão Antônio Lopes e <strong>de</strong>ram origem ao livro<br />

Antropogeografia, publicado postumamente em 1956 – anos <strong>de</strong>pois do falecimento<br />

do autor em 1941.<br />

No Rio <strong>de</strong> Janeiro, pesquisando no Museu Nacional, Raimundo Lopes<br />

tentou constituir “uma síntese do Brasil tropical” e a antropologia tornou-se, a<br />

partir daí, ciência central nos seus estudos. Essa obra, que no momento<br />

enfocamos, possui uma particularida<strong>de</strong> interessante; os textos foram revisados<br />

até o fim da vida do autor. Esses trabalhos possuem inequivocamente uma unida<strong>de</strong><br />

temática e <strong>de</strong> abordagem admirável.<br />

Após ter estudado na Escola Politécnica do Rio <strong>de</strong> Janeiro e cursado até<br />

o quarto ano <strong>de</strong> bacharelado em Direito, Raimundo Lopes <strong>de</strong>cidiu <strong>de</strong>dicar-se<br />

exclusivamente à pesquisa. De um modo geral, seus temas favoritos tratavam <strong>de</strong><br />

Etnografia, Etnologia, Arqueologia, História e Sociologia. Nesses estudos o autor<br />

foi fortemente influenciado, e “fascinado”, pela idéia <strong>de</strong> promover e <strong>de</strong>senvolver<br />

a Geografia, especialmente a do Maranhão, estado da fe<strong>de</strong>ração, até então,<br />

praticamente <strong>de</strong>sconhecido nos meios científicos.<br />

Quando ainda estudava em São Luís, Raimundo Lopes sofreu a influência<br />

direta <strong>de</strong> Justo Jansen Ferreira, precursor da geografia maranhense. Ainda<br />

bem jovem, publicou, aos vinte e dois anos, um estudo da geografia do Maranhão<br />

20<br />

A antropogeografia <strong>de</strong> Raimundo Lopes


no nível dos maiores especialistas da época. A partir <strong>de</strong> estudos <strong>de</strong> campo, <strong>de</strong><br />

fortes traços naturalistas, o autor <strong>de</strong>screveu a vegetação, a fauna, a flora, o litoral,<br />

o relevo, o clima, assim como os costumes, as tradições culturais e étnicas,<br />

e tudo mais que retrata a paisagem humana e natural do seu estado natal e parte<br />

da Amazônia Brasileira.<br />

Seu projeto era <strong>de</strong>finir os quadros físicos em que se <strong>de</strong>senvolveria historicamente<br />

a região, pois o autor consi<strong>de</strong>rava que as <strong>de</strong>terminações dos fatores ecológicos<br />

sobre a cultura do homem eram primordiais. Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rá-lo, nesse<br />

aspecto, um dos precursores da ecologia cultural no País. Observamos nesses<br />

trabalhos uma tentativa clara <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar uma configuração geográfica e humana<br />

típica. Isso implicava para ele no estudo dos processos específicos <strong>de</strong> adaptação<br />

humana à região tropical. De concreto logo percebemos a importância <strong>de</strong>ssa postura<br />

em relação ao problema da adaptação ao clima, quando não vacilou em afirmar<br />

que: “o clima maranhense é essencialmente a transição entre a condição amazônica<br />

e a condição tropical” (I<strong>de</strong>m, p. 44). Seguindo essa <strong>de</strong>finição preliminar,<br />

lançou as suas primeiras críticas ao que chamou <strong>de</strong> o “preconceito dos climas<br />

tropicais” – reflexo <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> pensar ainda muito difundido – até hoje em<br />

dia – em que se acredita que a Amazônia e outras terras tropicais brasileiras são<br />

focos terríveis das chamadas “moléstias tropicais”, consi<strong>de</strong>rando-se que a adaptação<br />

à região seja um grave problema para as comunida<strong>de</strong>s humanas. Ele combateu<br />

esse preconceito seguindo autores como Afrânio Peixoto e Eucli<strong>de</strong>s da Cunha.<br />

Em suas próprias palavras temos: “Realmente, o clima quente e úmido provoca<br />

perdas e predisposições mórbidas, mas o saneamento vence facilmente esses <strong>de</strong>feitos,<br />

propriamente oriundos do regime hidrográfico e biológico” (I<strong>de</strong>m, p. 59).<br />

As <strong>de</strong>terminações geográficas eram implacáveis, contudo os homens podiam agir<br />

e transformar essas <strong>de</strong>terminações pelo “progresso” e pela tecnologia. Essa forma<br />

<strong>de</strong> pensar sintetiza bem o evolucionismo científico do começo do século XX, ao<br />

qual o autor estava intimamente vinculado.<br />

Na nossa pesquisa sobre as concepções i<strong>de</strong>ológicas oficiais do Patrimônio<br />

Cultural Regional, utilizamos o conceito <strong>de</strong> patrimônio na acepção abrangente<br />

<strong>de</strong> sua significação, incluindo a paisagem, os aspectos naturais, históricos, artísticos<br />

e genéticos das socieda<strong>de</strong>s 3 . Por isso, ao nos <strong>de</strong>frontarmos com um texto<br />

com tal riqueza <strong>de</strong> dados, retomamos os termos e noções que eram mais utilizados<br />

pelo autor na caracterização <strong>de</strong> um perfil geográfico e histórico para a região.<br />

Nesse ponto encontramos uma rica reflexão étnica, racial e social sobre o<br />

homem maranhense. O autor não se restringiu a uma leitura geográfica e física<br />

do ambiente regional. Com uma boa leitura dos pensadores sociais da época,<br />

Raimundo Lopes fez verda<strong>de</strong>iras incursões na etnologia regional nortista. No<br />

capítulo chamado O fator racial, fica evi<strong>de</strong>nte essa influência, em especial <strong>de</strong><br />

Roquete-Pinto. Nesse texto, Raimundo Lopes enquadrou o Maranhão na visão<br />

teórica proposta pelo antropólogo carioca, que dividia o Estado em duas regiões:<br />

a) “Zona do Caboclo”, principalmente no interior do estado;<br />

b) “Zona <strong>de</strong> influência prepon<strong>de</strong>rante do branco”, pertencente ao Litoral.<br />

Raimundo Lopes constatou que o Maranhão “é um dos estados em que a<br />

mescla racial é mais intensa, e, por assim dizer, há na maior parte da região<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 21


mistura quase por igual das três raças” (I<strong>de</strong>m, p. 62). Apesar <strong>de</strong> constatar o<br />

gran<strong>de</strong> fenômeno da miscigenação no Brasil e particularmente no Maranhão,<br />

nosso autor não i<strong>de</strong>ntificou o processo chamado <strong>de</strong> sincretismo cultural. A sua<br />

visão estava completamente comprometida com o evolucionismo científico do<br />

começo do século. Ao observar o mundo das religiões afro-brasileiras, Raimundo<br />

Lopes as consi<strong>de</strong>rou apenas como “sobrevivências” do tempo das “crendices” e<br />

“superstições” da África Negra. Assim temos: “No Maranhão, como noutras<br />

terras on<strong>de</strong> o contingente negro foi numeroso, apareceram as confrarias fetichistas<br />

das ‘Pretas Minas’, que se explicam pela conservação dos costumes e<br />

superstições africanas, por um certo número <strong>de</strong> negros vindos em liberda<strong>de</strong>, da<br />

costa da ‘Mina’ (Costa do Ouro e Daomé)” (I<strong>de</strong>m, p. 69).<br />

Num comentário interessante, Raimundo Lopes colocou algumas palavras<br />

sobre o que chamou <strong>de</strong> “curiosa associação”: “Ainda hoje existe, em São<br />

Luis, essa curiosa associação, com as suas estranhas práticas, em que o catolicismo<br />

romano se mistura à usanças e crendices do Continente Negro” (I<strong>de</strong>m, p.<br />

69). Nesse sentido, para o autor maranhense não existiu um “sincretismo religioso”,<br />

apenas “mistura”. Como um positivista típico, o autor não consi<strong>de</strong>rou<br />

a existência <strong>de</strong> uma “religião” africana ou negra. Para ele essas manifestações<br />

não passavam <strong>de</strong> “crendices” e “usanças”. Contudo, nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />

que a raça negra, introduzida na antiga capitania <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados do século<br />

XVII, <strong>de</strong>senvolveu-se bastante no Maranhão, “on<strong>de</strong> a sua quantida<strong>de</strong> só é proporcionalmente<br />

inferior à que se nota na Bahia e no Rio <strong>de</strong> Janeiro” (I<strong>de</strong>m, p.<br />

69).<br />

2. O torrão maranhense<br />

No capítulo O Torrão Maranhense há uma análise das origens dos grupos<br />

indígenas, dos negros e dos brancos que povoaram o Maranhão. Contém<br />

assim uma interessante viagem histórica sobre a formação humana e social do<br />

Norte do Brasil. Raimundo Lopes <strong>de</strong>dicou uma boa parte <strong>de</strong> seus estudos<br />

etnológicos ao enfoque dos povos chamados <strong>de</strong> Tapuias ou “Jês”.<br />

A palavra tapuio em Tupi era como um tipo <strong>de</strong> xingamento ou <strong>de</strong>preciação<br />

pejorativa, que com o tempo acabou tornando-se o nome com o qual ficaram<br />

reconhecidos os povos <strong>de</strong> tradição do tronco lingüístico Jê. Para o autor,<br />

Tapuio significa, na linguagem do etnocentrismo universal, “bárbaro”. Nessa<br />

linha, com gran<strong>de</strong> precisão e boa informação, Raimundo Lopes interessou-se<br />

sempre mais pela etnologia indígena nortista, constatando uma importante migração<br />

pós-cabralina dos Tupis para a costa maranhense: os Tupinambás da<br />

costa baiana que emigram em boa parte para o norte, até o Maranhão, através do<br />

São Francisco, fugindo à <strong>de</strong>struição com que os ameaçavam os portugueses na<br />

Bahia <strong>de</strong> Todos os Santos e outras capitanias orientais. Foram esses indígenas<br />

que os franceses e portugueses encontraram quando chegaram em São Luís e<br />

foram esses Tupis que passaram a ser “dominados étnica e socialmente” pela<br />

civilização européia.<br />

O que sobressai nesses estudos é que Raimundo Lopes aceitava com<br />

22<br />

A antropogeografia <strong>de</strong> Raimundo Lopes


astante naturalida<strong>de</strong> o que chamava <strong>de</strong> a “dominação da raça branca” sobre as<br />

outras “etnias”. Nesse ponto aparece um problema conceitual que a pesquisa<br />

crítica <strong>de</strong>ve investigar. Não sabemos com clareza, até o momento, como o autor<br />

separava e especificava os significados dos termos “raça” e “etnia”. O uso que<br />

fazia <strong>de</strong>les nos seus textos é ambíguo e sujeito a variações semânticas que nos<br />

impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar um sentido preciso. O que parece se <strong>de</strong>stacar daí é que<br />

o nosso geoetnologista em questão operava com essas noções no plano da i<strong>de</strong>ologia<br />

colonial evolucionista eurocêntrica. Dessa forma, o autor tentou explicar<br />

que o “predomínio” dos “brancos” sobre as outras “raças” e “etnias” explica-se<br />

pela incontestável “superiorida<strong>de</strong> racial e étnica” dos grupos <strong>de</strong> ascendência<br />

européia.<br />

Assim, Raimundo Lopes não conseguiu, <strong>de</strong> modo razoável e convincente,<br />

<strong>de</strong>terminar como que poucos indivíduos “brancos” po<strong>de</strong>riam “predominar”<br />

sobre um gran<strong>de</strong> contingente <strong>de</strong> “negros” e “mulatos”, que somavam mais <strong>de</strong><br />

70% da população. Num momento ele afirmou que isso se dava por razões biológicas<br />

e raciais, num outro ele atribuiu esse “predomínio” à gran<strong>de</strong> migração<br />

“branca” para o litoral, <strong>de</strong>terminando aí sua dominação. O fato é que o autor,<br />

comprometido com a visão colonialista européia, não percebeu que esse “predomínio<br />

da raça” só po<strong>de</strong>ria se dar num sistema escravocrata submetido a uma<br />

ampla re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações internacionais. A socieda<strong>de</strong> brasileira é fruto da dominação<br />

colonial escravocrata, imposta pelas metrópoles européias e não po<strong>de</strong>mos<br />

enten<strong>de</strong>r o complexo das relações étnicas e raciais fora <strong>de</strong>sse contexto mundial.<br />

Raimundo Lopes não questionou os fundamentos da antropologia racial<br />

da época e tão pouco pensou criticamente o fenômeno do colonialismo e a situação<br />

colonial; para ele isso era uma contingência histórica, que <strong>de</strong>veria ser encarada<br />

<strong>de</strong> maneira “científica”. Afinal, é evi<strong>de</strong>nte, para o autor, que o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

tecnológico da civilização européia era mil vezes superior ao das outras<br />

“raças” e “etnias”; isso por si só justificava um empreendimento colonial e<br />

civilizacional para a educação dos grupos incultos e atrasados. É nesses termos<br />

que nos diz:<br />

Des<strong>de</strong> os tempos coloniais cada vez mais se afirma o predomínio, social e<br />

étnico, da raça branca. E esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> absorção não é somente <strong>de</strong>vido à<br />

superiorida<strong>de</strong> mental, moral, econômica, etc., mas ainda aos incessantes afluxos<br />

do elemento europeu. (...) A maior razão do predomínio da raça branca é o<br />

afluxo imigratório. (I<strong>de</strong>m, p. 70)<br />

Raimundo Lopes está aqui <strong>de</strong> acordo com a visão dominante naquele<br />

início <strong>de</strong> século XX e reflete o triunfo do industrialismo do mundo mo<strong>de</strong>rno.<br />

Todavia, uma questão aparece; sabemos que o autor viveu até 1941, como se<br />

explica o seu “pré-gilbertianismo” nesses pontos? Cabe uma investigação para<br />

se saber se ele entrou em contato ou não com o livro Casa Gran<strong>de</strong> & Senzala,<br />

publicado em 1933. E como foi seu diálogo (se é que houve) com esses grupos<br />

mais “mo<strong>de</strong>rnistas” das ciências sociais incipientes.<br />

Como se sabe, nesse período Gilberto Freyre produziu sua obra sob alguma<br />

ambivalente influência <strong>de</strong> Franz Boas – antropólogo alemão naturalizado<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 23


norte-americano (e, diga-se <strong>de</strong> passagem, também geógrafo) 4 . Como é sabido,<br />

F. Boas revolucionou aquele velho esquema racial do século XIX, que privilegiava<br />

o biológico e o racial em <strong>de</strong>trimento da análise social e etnológica. Em<br />

suma, parece-nos que Raimundo Lopes aceitava sem restrições críticas aos preceitos<br />

das teorias racistas <strong>de</strong> Con<strong>de</strong> Gobineau e Lombroso 5 .<br />

Entretanto, em muitos aspectos esse autor maranhense po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado<br />

o verda<strong>de</strong>iro Eucli<strong>de</strong>s da Cunha do Maranhão, porém sem “o estilo excepcional<br />

do artista”, como ele mesmo disse em relação ao mestre. Po<strong>de</strong>mos imaginar<br />

o enorme impacto que causou em seu espírito a obra Os Sertões 6 .<br />

Na esteira das influências, ainda encontramos Gonçalves Dias. Esse autor,<br />

conhecido comumente como poeta, no fundo gostaria <strong>de</strong> ser lembrado mais<br />

como um cientista. Ele escreveu muitos trabalhos em etnologia, que estudou em<br />

Coimbra. Mas foi sua poesia que o imortalizou. Nesse caso parece que Raimundo<br />

Lopes tentou realizar, em parte, o sonho <strong>de</strong> Gonçalves Dias, que era o <strong>de</strong> ser<br />

reconhecido como um pesquisador com importantes obras <strong>de</strong> Ciências Sociais<br />

no Brasil 7 .<br />

Raimundo Lopes <strong>de</strong>ixou vários textos. São <strong>título</strong>s diversos que mostram<br />

o leque das preocupações do etnólogo e geógrafo maranhense. Quando <strong>de</strong> volta<br />

ao seu Estado natal, escreveu os textos Os Fortes Coloniais <strong>de</strong> São Luis, O<br />

Ciclo <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência, A Origem da Cida<strong>de</strong> Antiga e As Regiões Brasileiras.<br />

Novamente no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1931, escreveu sucessivamente numerosos<br />

ensaios, que foram organizados <strong>de</strong> 1941 a 1956, pelo seu irmão Antônio Lopes.<br />

Entre muitos textos temos esses <strong>título</strong>s que são os mais significativos para nós<br />

aqui: Ensaio Etnológico sobre o Povo Brasileiro, Os Tupis do Gurupi, Os Índios<br />

e a Paz do Chaco, Goncalves Dias e a Raça Americana, A Natureza e os<br />

Monumentos Culturais, Pesquisa Etnográfica sobre a Pesca Brasileira no<br />

Maranhão, Brasilida<strong>de</strong> e Primitivida<strong>de</strong>, Faixas Culturais dos An<strong>de</strong>s e finalmente<br />

seu último livro: Antropogeografia.<br />

3. A composição étnica do povo maranhense<br />

No que mais nos interessa, no âmbito das preocupações aqui suscitadas,<br />

cabe uma pequena análise da proposta, feita por Raimundo Lopes, <strong>de</strong> uma<br />

tipologia dos grupos humanos que compõem a socieda<strong>de</strong> maranhense. Para uma<br />

visão <strong>de</strong>sse quadro citamos alguns dados interessantes do que o autor chamou<br />

<strong>de</strong> “composição étnica do povo maranhense”, que seria uma amostra em escala<br />

dos “sedimentos étnicos” do Brasil:<br />

A) Portugueses – Quase que exclusivamente comerciantes, não<br />

agricultores. A colonização lusíada foi feita, sobretudo, com ilhéus<br />

açorianos.<br />

B) Franceses – Fundadores da primeira vila em 1612, logo são expulsos.<br />

Têm vindo isoladamente, assim como os italianos; a sua facilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> adaptação é visível.<br />

C) Ingleses – Numericamente insignificantes, mas aparecem na economia<br />

comercial local 8 .<br />

24<br />

A antropogeografia <strong>de</strong> Raimundo Lopes


D) Sírios – também chamados <strong>de</strong> “carcamanos”, a princípio mercador<br />

ambulante, estabiliza-se e começa a elevar-se na esfera comercial.<br />

Gran<strong>de</strong> é a diferença <strong>de</strong> costumes, idéias, línguas, etc., que os separam<br />

<strong>de</strong> nós. O único <strong>de</strong>feito, porém, <strong>de</strong>ssa imigração, é, como na<br />

portuguesa, o exclusivismo comercial, “e não o atraso do sírio, que<br />

não é um bárbaro e que, premido pelo domínio turco, precisa do meio<br />

americano para se <strong>de</strong>senvolver”. Os Sírios do Maranhão são na<br />

maioria “libaneses católicos” da região <strong>de</strong> Zahle. Como é sabido, o<br />

nome “carcamano”, em várias regiões do país, ora é aplicado a<br />

“italianos” ora às populações do Mediterrâneo e do Oriente em geral.<br />

E) Negros – Escravidão no interior e na Capital, principalmente na cultura<br />

da cana-<strong>de</strong>-açúcar. Muitos quilombos, e revoltas com muitos negros<br />

livres, que conseguiam se proteger nas <strong>de</strong>nsas matas do interior.<br />

F) Índios – Distingue a população aborígene em quatro diferentes nações<br />

na América do Sul: Tupi-Guaranis, os Tapuias, os Nu-aruaques, os<br />

Caribas. No Maranhão <strong>de</strong>staque para os grupos Jês - Tapuias: “os<br />

mais atrasados e provavelmente os verda<strong>de</strong>iros autóctones do planalto<br />

brasílico”. Entre eles se <strong>de</strong>stacam os Tembés e os Timbiras. Há ainda<br />

a migração dos Tupinambás da Bahia, que fugindo dos portugueses<br />

alcançaram o litoral do Norte do país. São estes indígenas que<br />

efetivamente, os franceses e portugueses encontraram na Ilha <strong>de</strong> São<br />

Luis, no início da construção e da fundação da cida<strong>de</strong> (I<strong>de</strong>m, 1970,<br />

pp. 69-70).<br />

4. O caráter psicoétnico maranhense<br />

No livro Uma Região Tropical, Raimundo Lopes, numa perspectiva <strong>de</strong><br />

estudos <strong>de</strong> geografia regional, <strong>de</strong>screveu com gran<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> as características<br />

naturais e históricas do Estado do Maranhão. Influenciado principalmente<br />

pelo trabalho realizado por Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, o autor, nestes pequenos<br />

textos, revelou uma socieda<strong>de</strong> complexa e múltipla. Através <strong>de</strong> uma<br />

antropogeografia, ou mesmo uma etnogeografia, esse estudioso começou basicamente<br />

a <strong>de</strong>screver as características climáticas, paisagísticas, relevo, fauna,<br />

flora, tipicamente como agia um geógrafo naturalista. Porém, no <strong>de</strong>correr dos<br />

capítulos, principalmente no texto O Torrão Maranhense, vemos manifestar-se<br />

um pesquisador <strong>de</strong> aguçada percepção histórica, etnológica e sociológica da<br />

realida<strong>de</strong> brasileira. Isso reflete o fato <strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>iramente um representante<br />

da tradição dos estudos em geografia humana e econômica no Brasil, e não se<br />

reduziu a um típico naturalista do século XIX. Nesse ponto, cabe ressaltar que<br />

não se <strong>de</strong>ve con<strong>de</strong>nar i<strong>de</strong>ologicamente Raimundo Lopes ao ostracismo pelo<br />

fato <strong>de</strong> ele ser evolucionista. O preconceito da crítica acaba por privar-nos <strong>de</strong><br />

analisar as vicissitu<strong>de</strong>s regionais do processo <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> um novo<br />

paradigma nas ciências sociais, especialmente no que se refere às noções <strong>de</strong><br />

raça e etnia no País nas décadas <strong>de</strong> vinte e trinta 9 .<br />

O trabalho <strong>de</strong> Raimundo Lopes tem um valor histórico importante, pois<br />

nos <strong>de</strong>ixa ver as variações e nuances regionais que a resistência ao novo<br />

paradigma introduzido por Franz Boas, por via da obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre, sus-<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 25


citou em cada lado. O que não po<strong>de</strong>mos precisar no momento é até aon<strong>de</strong> vai<br />

essa resistência, se é que o seja como tal. Só uma análise nos arquivos da família<br />

e do Museu Nacional é que po<strong>de</strong>rá respon<strong>de</strong>r.<br />

O livro Uma Região Tropical se divi<strong>de</strong> em duas partes, a primeira coloca<br />

mais ênfase nos aspectos físicos da vida em geral numa região tropical. Já na<br />

segunda parte temos propriamente o conhecido O Torrão Maranhense, on<strong>de</strong> o<br />

autor se preocupa mais com “a formação humana”. Depois <strong>de</strong> fazer uma “sinopse<br />

regional” do estado e <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver “as Zonas Maranhenses”, quando chega a<br />

falar <strong>de</strong> uma “paleoetnologia”, temos na sua conclusão tópicos importantes. É o<br />

momento em que aparece a proposta <strong>de</strong> uma geografia histórica, na qual há uma<br />

análise da formação da colônia, procurando i<strong>de</strong>ntificar o processo <strong>de</strong> sedimentação<br />

da história da formação social do estado. Na sua parte final, temos ainda<br />

uma tentativa <strong>de</strong> analisar os “caracteres, tendências e possibilida<strong>de</strong>s” da população,<br />

na qual Raimundo Lopes esboçou alguns tópicos do que chamou <strong>de</strong> “o<br />

caráter psicoétnico maranhense”, inspirado, confessadamente, na gran<strong>de</strong> obra<br />

<strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, Os Sertões.<br />

A importância <strong>de</strong> um texto como esse para a nossa pesquisa é muito<br />

gran<strong>de</strong>. Cabe aqui o <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> pontos significativos das idéias <strong>de</strong>sse autor,<br />

que sintetizam e ilustram muito bem a visão que ainda hoje se tem da população<br />

maranhense. Isto apesar <strong>de</strong> o texto datar <strong>de</strong> 1916! Talvez mesmo por isso esse<br />

trabalho tenha se tornado um objeto privilegiado <strong>de</strong> nossa pesquisa.<br />

Raimundo Lopes apresentou dados <strong>de</strong>mográficos importantes da época<br />

<strong>de</strong> D. João VI, quando do translado da família real para o Brasil. Esses números<br />

revelam uma quantida<strong>de</strong> muito superior <strong>de</strong> negros escravos quando comparados<br />

aos dos brancos livres. Assim, a população maranhense estaria em torno <strong>de</strong><br />

152.634 indivíduos, compondo o seguinte quadro: “Escravos – 84.534; Brancos<br />

– 23.994; Índios – 9.684; Pretos – 87.262 (sendo 9.308 livres); Mulatos –<br />

31.6591.” (I<strong>de</strong>m, p. 192)<br />

Gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter a atenção do leitor na interessante conclusão do<br />

trabalho <strong>de</strong> Raimundo Lopes. Ela apresenta as contradições do argumento do<br />

autor, <strong>de</strong>monstrando suas oscilações conceituais e as pretensões científicas dos<br />

ensaios analisados. Logo no primeiro parágrafo, ele confessa não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>finir<br />

um caráter psicoétnico do maranhense com a mesma precisão <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da<br />

Cunha, que fixou <strong>de</strong> maneira brilhante o caráter do jagunço. Essa dificulda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>via-se ao fato <strong>de</strong> que no Maranhão havia “um tipo mais vago e mais complexo”<br />

que o tipo regional do jagunço <strong>de</strong> Canudos. Além disso, o autor confessava<br />

não ter o talento artístico do mestre <strong>de</strong> Os Sertões.<br />

De uma maneira geral, Raimundo Lopes, na tentativa <strong>de</strong> esboço <strong>de</strong> uma<br />

“psicoetnologia”, apresentou vários tipos maranhenses regionais. Para ele não<br />

havia só um tipo geral ou uma homogeneida<strong>de</strong> étnica, como vimos acima, quando<br />

<strong>de</strong>screveu os diferentes grupos étnicos que compunham a socieda<strong>de</strong><br />

maranhense. Para ele existiam vários tipos regionais, que são caracterizados no<br />

texto com muitos termos, sempre carregados <strong>de</strong> etnocentrismo colonial. São<br />

eles mais especificamente:<br />

a) Pescador ribeirinho, indolente, reflexo quase fiel do selvagem;<br />

b) Vaqueiro dos campos baixos, mais empreen<strong>de</strong>dor, aventuroso;<br />

26<br />

A antropogeografia <strong>de</strong> Raimundo Lopes


c) Lavrador ru<strong>de</strong>, sóbrio;<br />

d) Sertanejo do Chapadão, ambicioso e ru<strong>de</strong>.<br />

e) “Sanluisense”, morador da capital do Estado (I<strong>de</strong>m, pp. 195-7).<br />

No caso do sertanejo, Raimundo Lopes aponta ainda o seguinte: “Este<br />

diverge profundamente dos outros, conserva-se indiferente, como produto lídimo<br />

da elaboração étnica interior, cujo impulso principal veio do São Francisco, do<br />

Sul” (I<strong>de</strong>m, p. 195). Esse <strong>de</strong>poimento vem corroborar diversos testemunhos<br />

locais sobre a diferença e singularida<strong>de</strong> específica do homem dos sertões<br />

maranhenses que pouco ou quase nada se assemelharia ao ludovicense. Não é<br />

raro escutarmos ainda hoje na cida<strong>de</strong> pessoas oriundas <strong>de</strong>ssas regiões que dizem<br />

nunca ter visto, por exemplo, “Bumba-Bois”, “Tambor <strong>de</strong> Crioula”, “Tambor<br />

<strong>de</strong> Mina”, que são as atuais expressões culturais emblemáticas do Maranhão,<br />

mas que são manifestações típicas do Litoral e da Baixada.<br />

Seguindo a classificação do autor, temos ainda o “sanluisense”. Esse<br />

tipo é “burguês, avesso à violência, grave, com um pouco <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> mole do<br />

mulato, encarreirado na rotina funcionalista e comercial” (I<strong>de</strong>m, p. 195). Num<br />

tom que nos parece um tanto provocativo e, por vezes, <strong>de</strong> crítica severa, Raimundo<br />

Lopes i<strong>de</strong>ntificou, na atitu<strong>de</strong> histórica do povo <strong>de</strong> São Luís, o reflexo <strong>de</strong> seu<br />

“caráter” e “personalida<strong>de</strong> cultural”! Isto nos <strong>de</strong>ixa um tanto perplexos, pois se<br />

no início do texto colocou que há uma dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> caracterizar um “caráter<br />

psicoétnico do maranhense”, o autor aqui fez uma generalização <strong>de</strong> “um tipo<br />

médio” do “sanluisense” que nos faz acreditar que ele consi<strong>de</strong>rava que havia<br />

uma homogeneida<strong>de</strong> maior na população da Ilha do que no interior do estado. O<br />

que é bastante discutível, como po<strong>de</strong> ser observado no quadro anterior. Num<br />

tipo <strong>de</strong> análise que nos lembra os clássicos da Antropologia e Sociologia Brasileira,<br />

como o também maranhense Nina Rodrigues, ou Oliveira Viana, Fernando<br />

<strong>de</strong> Azevedo, e muitos outros, Raimundo Lopes tentou, através da caracterização<br />

<strong>de</strong> “um tipo médio”, construir um mo<strong>de</strong>lo e uma configuração particular do<br />

ludovicense – mais do que do cidadão do interior do estado –, todavia, ele sempre<br />

falou <strong>de</strong> um “caráter maranhense” mais geral, quase telúrico. É uma contradição<br />

que o autor não <strong>de</strong>u atenção, mas que, no entanto, não lhe era estranha,<br />

pois, no início do ensaio, ele mesmo havia salientado as limitações <strong>de</strong> tal empreendimento<br />

científico. Isto o levou a escrever sobre os “vícios”, “as belas qualida<strong>de</strong>s”<br />

ou “as excelências da gente” do Maranhão, com forte presença <strong>de</strong> um<br />

psicologismo ingênuo e caricatural.<br />

Além <strong>de</strong> escrever sobre os <strong>de</strong>feitos e qualida<strong>de</strong>s do caráter do maranhense,<br />

Raimundo Lopes reproduziu os mitos <strong>de</strong> fundação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> regional.<br />

Entre os mitos mais difundidos, encontramos o da “Athenas Brasileira”, com<br />

seus vultos literários, e o da dicção especial, com sotaque “gracioso e colorido”<br />

do melhor português falado no Brasil. Aqui se vê que estes símbolos têm uma<br />

distância histórica bem alargada.<br />

A História tem um papel fundamental para o autor. Por isso, ele só via a<br />

consolidação <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro “caráter maranhense” no futuro. A natureza psicológica<br />

<strong>de</strong>sses traços culturais é historicamente <strong>de</strong>terminada, e para o autor,<br />

como faltava o que chamou <strong>de</strong> uma “coesão dinâmica” e uma “unida<strong>de</strong> ativa”<br />

no Maranhão <strong>de</strong> sua época, seria no futuro que a integração <strong>de</strong> todos os tipos<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 27


humanos (étnicos) constituintes do Estado configurariam um tipo mais uniforme<br />

e homogêneo, ou como ele afirmou: “tipos regionais disciplinados e <strong>de</strong>senvolvidos”<br />

(I<strong>de</strong>m, p. 197). O Maranhão contava com uma “socieda<strong>de</strong> a que falta<br />

toda unida<strong>de</strong> étnica”, porém com o “progresso” e a “reeducação” da população,<br />

uma maior integração dos tipos seria possível e, <strong>de</strong>sse modo, “nosso grupo histórico<br />

contribuirá assim para a obra grandiosa da unificação real e <strong>de</strong>finitiva do<br />

país”. Essas são as bases do que chamou <strong>de</strong> a “Geografia do Futuro”.<br />

Cabe aqui um comentário sobre essa visão interessante do autor. De uma<br />

maneira geral, ele oscilou num discurso <strong>de</strong> forte tendência naturalista e<br />

psicologista, mas conseguiu perceber muito bem a dimensão histórica do processo<br />

que analisava. Porém, a sua consciência histórica era povoada por elementos<br />

colonialistas e europeucêntricos, com um imaginário fundado na lógica<br />

cultural dominante. Entre outras coisas, o autor lamentava muitíssimo o pouco<br />

afluxo da migração européia no Maranhão, o que constitui uma <strong>de</strong>clarada simpatia<br />

com a tese do “branqueamento” do Brasil, que seria uma das soluções para<br />

o Estado do Maranhão se <strong>de</strong>senvolver, segundo acreditavam as elites dominantes<br />

(o que acaba acontecendo, só que <strong>de</strong>ssa vez com a imigração sírio-libanesa:<br />

um grupo <strong>de</strong> imigrantes do Oriente Médio com <strong>de</strong>stacada presença na política e<br />

economia do Maranhão e da Amazônia 10 ). Seguindo este raciocínio, Raimundo<br />

Lopes se filia à mesma corrente <strong>de</strong> Sílvio Romero que, sob forte influência das<br />

teses arianistas, propunha uma política migratória <strong>de</strong> populações brancas européias<br />

para o País.<br />

5. Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Finalizando este artigo, que não tem pretensões <strong>de</strong> esgotar a análise sobre<br />

a obra <strong>de</strong> Raimundo Lopes, fica <strong>de</strong>sta investigação crítica a confirmação da<br />

existência <strong>de</strong> um forte colonialismo acadêmico que imperava no Brasil do final<br />

do século XIX e no começo do século XX. O positivismo estreito, conservador<br />

e cientificista marcou, e ainda marca, profundamente a reflexão sobre o que são<br />

a cultura brasileira e a maranhense. É preciso que a teoria crítica se volte para a<br />

análise <strong>de</strong>sses autores esquecidos, que transmitem a herança <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong><br />

pensar que ainda vigora, em muitos aspectos, nos estudos universitários atuais e<br />

na i<strong>de</strong>ologia ainda dominante. Como escreveu Ernest Gellner: “Las personas<br />

que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ñan la história filosófica son los esclavos <strong>de</strong> pensadores difuntos y <strong>de</strong><br />

teorias no sometidas a análisis” (GELLNER, 1992, p. 14).<br />

Tem-se a ilusão <strong>de</strong> que os fundamentos epistemológicos evolucionistas<br />

já teriam sido ultrapassados e <strong>de</strong>saparecidos do horizonte científico brasileiro.<br />

Isso é um gran<strong>de</strong> engano. É preciso aprofundar nossos estudos, resgatando a<br />

memória acadêmica e renovando nossas reflexões com bases concretas, numa<br />

análise histórica e epistemológica bem fundamentada. Através da história da<br />

etnologia brasileira 11 , po<strong>de</strong>mos resgatar princípios e propor novas visões, nos<br />

livrando do empirismo a-histórico em que hoje se vê mergulhada a etnografia<br />

nos nossos cursos universitários.<br />

28<br />

A antropogeografia <strong>de</strong> Raimundo Lopes


Notas:<br />

1 A obra Torrão Maranhense foi publicada em 1916, mas foi objeto <strong>de</strong> revisão até o fim<br />

da vida do autor. Em segunda edição, <strong>de</strong>vidamente ampliada, ganhou o <strong>título</strong> <strong>de</strong> Uma<br />

Região Tropical, refletindo muito bem as preocupações do autor com caráter transicional<br />

do Maranhão, expresso também em outra obra <strong>de</strong> Raimundo Lopes, Entre a Amazônia<br />

e o Sertão.<br />

2 Digno <strong>de</strong> referência são os seguintes trabalhos: Santos Belfort, “Pororoca<br />

Historiográfica: contribuição <strong>de</strong> Raimundo Lopes à Geografia do Maranhão”,<br />

monografia do curso <strong>de</strong> graduação em Geografia da UFMA; Manoel <strong>de</strong> Jesus Barros<br />

Martins, “Rachaduras Solarescas e Epigonismos Provinciais”; e, Wagner Cabral da<br />

Costa, “Ruínas Ver<strong>de</strong>s”, ambas são dissertações <strong>de</strong> mestrado em História, que possuem<br />

trechos sobre os estudos <strong>de</strong> Raimundo Lopes.<br />

3 Projeto <strong>de</strong> Pesquisa: Políticas do Patrimônio e da Memória em São Luís. Departamento<br />

<strong>de</strong> Sociologia e Antropologia da UFMA.<br />

4 Luiz C. Lima (2000) chama atenção para o que <strong>de</strong>signou <strong>de</strong> um reiterado “contrasenso”<br />

na obra <strong>de</strong> G. Freyre: “Ao insistir na divergência entre a interpretação gilbertiana<br />

e o culturalismo <strong>de</strong> Boas, nosso propósito é menos o <strong>de</strong> criticar o entendimento que<br />

Freyre tinha <strong>de</strong> sua própria contribuição do que assinalar o espanto ante seu melhor<br />

exame textual”.<br />

5 Para uma excelente análise da influência <strong>de</strong>stas idéias “raciológicas” na elite intelectual<br />

e política no Brasil, ver o texto <strong>de</strong> Roberto Damatta: a Fábula das Três Raças, ou o<br />

Problema, do Racismo à Brasileira (1990).<br />

6 Como escreveu Fernando <strong>de</strong> Azevedo: “(...) tendo à frente Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, com a<br />

sua visão genial da terra e da gente, e Roquete Pinto, que volta da expedição Rondon<br />

com uma obra, <strong>de</strong> alto sentido geográfico e etnológico, <strong>de</strong>senrola-se, nos diversos setores<br />

do vasto domínio dos estudos geográficos e geológicos brasileiros, uma teoria <strong>de</strong><br />

pesquisadores, como um Raimundo Lopes, na geo-arqueologia, pelos estudos das<br />

estearias e dos sambaquis (...) – [um dos] pioneiros da geografia mo<strong>de</strong>rna no Brasil, –<br />

[que] se bate[u] pela renovação dos métodos do ensino geográfico” (1971, pp. 415-6).<br />

7 “Da comissão brasileira organizada em 1857, para a exploração das províncias do<br />

norte, fazia parte Gonçalves Dias que recebeu a incumbência <strong>de</strong> estudar os índios do<br />

Amazonas. O gran<strong>de</strong> poeta do índio – e o nosso maior poeta – que era também um<br />

indianista <strong>de</strong> merecimento incontestável, autor do Dicionário <strong>de</strong> Língua Tupi<br />

(LEIPZIG,1856), coligiu em dois anos um abundante material etnográfico que se<br />

recolheu ao Museu Nacional, disperso e sem classificação. Os recentes estudos <strong>de</strong><br />

Raimundo Lopes, completados graças à documentação reunida por Nogueira da Silva,<br />

lograram restaurar e classificar, em gran<strong>de</strong> parte, essa valiosa coleção que, esquecido o<br />

relatório que a discrimina (vol. da Exposição <strong>de</strong> 1861), permanecia fragmentada e<br />

dispersa, e com suas estampas sem a<strong>de</strong>quada interpretação” (AZEVEDO, 1971, p.<br />

420).<br />

8 Sobre este grupo Domingos Vieira Filho diz o seguinte, quando se refere à Praia Gran<strong>de</strong>:<br />

“(...) a vida do famoso bairro comercial <strong>de</strong> São Luis, dominado pelos negociantes<br />

portugueses e ingleses, estes últimos predominando na rua da Estrela, que lhe fica<br />

fronteira” (VIEIRA FILHO, 1978, p. 07). Cabe ainda ressaltar a lembrança do Cemitério<br />

dos Ingleses que ficava na altura da rua das Cajazeiras e que foi <strong>de</strong>rrubado para o<br />

alargamento da pista.<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 29


9 Em Pernambuco, temos a obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre; no Rio <strong>de</strong> Janeiro, os trabalhos <strong>de</strong><br />

Roquette-Pinto; em São Paulo a presença <strong>de</strong> Lévi-Strauss e as iniciativas <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> com a Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Etnografia e Folclore.<br />

10 Fica aqui sugerida esta tese que certamente merece maior discussão e aprofundamento,<br />

a saber: teriam os sírios-libaneses solucionado o projeto das elites regionais <strong>de</strong> branquear<br />

o Maranhão?<br />

11 Como escreveu Fernando <strong>de</strong> Azevedo: “A escola brasileira <strong>de</strong> etnologia, cujas<br />

tradições remontam a Alexandre Ferreira, Gonçalves Dias, e Couto <strong>de</strong> Magalhães, e a<br />

quem vinham trazendo, através <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um século, a sua colaboração Martyius, von<br />

<strong>de</strong>n Stein (1899), Schmidt, e, já no século XX, Colbacchini, Herbert Baldus e Kurt<br />

Nimuendaju, – o maior <strong>de</strong> todos, toma novo impulso com Roquete Pinto, nos seus<br />

estudos sobre os parecis e nambiquaras, e Heloísa Tôrres, com as suas investigações<br />

sobre a cerâmica marajoara, para entrar numa fase <strong>de</strong> interpretação e <strong>de</strong> análise das<br />

estruturas <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s primitivas, em que se <strong>de</strong>stacaram dois etnólogos estrangeiros,<br />

Kurt Nimuendaju, com suas notáveis monografias sobre os canelas orientais<br />

(Ramkökamekra) e Levy-Strauss, com suas páginas magistrais, publicadas em 1937 na<br />

Revista do Arquivo Municipal [SP], sobre os bororos da região setentrional <strong>de</strong> Mato<br />

Grosso” (1971, p. 421).<br />

Referências:<br />

AZEVEDO, Fernando <strong>de</strong>. A cultura brasileira. São Paulo: EDUSP. 1971.<br />

CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s da. Os sertões. São Paulo: Cultrix/MEC. 1975.<br />

DAMATTA, Roberto. Relativizando. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco. 1990.<br />

FREYRE, Gilberto. Casa gran<strong>de</strong> & senzala. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nacional. 1933.<br />

GELLNER, Ernest. El arado, la espada y el libro. México DF: FCE, 1992.<br />

LIMA. Luiz Costa. In, Elogio do congraçamento: Ca<strong>de</strong>rno Mais! Folha <strong>de</strong> São<br />

Paulo, 17 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2000.<br />

LOPES, Antônio. Alcantara. Rio <strong>de</strong> Janeiro: MEC. 1957.<br />

LOPES, Raimundo. Gonçalves Dias e a raça americana. São Luís. S/D.<br />

___. O torrão maranhense. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jornal do Comércio. 1916.<br />

___. Uma região tropical. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Seleta. 1970.<br />

MARANHÃO. Secretaria <strong>de</strong> Estado da Cultura. Casa <strong>de</strong> Cultura Josué Montello.<br />

Fontes <strong>de</strong> pesquisa para a história do Maranhão. São Luís, 1992.<br />

ROQUETTE-PINTO, E. Ensaios <strong>de</strong> etnologia brasileira. Col. Brasiliana.<br />

Brasília: Nacional. 1978.<br />

30<br />

A antropogeografia <strong>de</strong> Raimundo Lopes

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