de Machado de Assis - português no enem
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A Igreja do Diabo (Conto <strong>de</strong> Histórias sem Data), <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Assis</strong><br />
Análise da obra<br />
A obra machadiana é permeada <strong>de</strong> surpresas e fatos curiosos; não só em suas histórias, como <strong>no</strong>s fatos<br />
que a constituem. Com personagens <strong>de</strong>nsos e "humanamente verda<strong>de</strong>iros", <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> cria uma<br />
narrativa <strong>de</strong> tensão por ser tão perturbadora, <strong>de</strong>ixando <strong>no</strong> leitor aquela sensação <strong>de</strong> asfixia.<br />
Em A Igreja do Diabo, conto dividido em 4 capítulos, o que temos é uma narrativa <strong>de</strong>nsa e,<br />
aparentemente, banal e <strong>de</strong> simples interpretação. Porém, para o leitor atento e bem munido <strong>de</strong> exemplos<br />
referencialmente citados ao longo do texto, a interpretação não se torna tão objetiva assim. Sobretudo, o<br />
mais importante é que se trata <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> apólogo constituído por outros me<strong>no</strong>res; daí o seu caráter<br />
moralizante. Mas o que dá o toque genial ao conto são as inúmeras referências ao longo do texto. Quando<br />
esse fator é atentamente observado percebemos, claramente, os valores da sátira e da paródia constituindo<br />
um pilar que serve <strong>de</strong> base para a criação machadiana, principalmente, nesse texto, on<strong>de</strong> os elementos<br />
carnavalescos são fartamente explorados.<br />
O conto, que integra Histórias sem data, cujos personagens principais são Deus e o Diabo, enfoca <strong>de</strong><br />
forma cômica a relação Deus/religião, homem/razão. Traz à tona a discussão <strong>de</strong> como cada pessoa po<strong>de</strong><br />
exercer a religiosida<strong>de</strong> sem medo <strong>de</strong> viver suas incertezas, ou mesmo <strong>de</strong> duvidar da eficácia da<br />
benevolência do homem. Na discussão o Diabo questiona a hipocrisia religiosa e as práticas<br />
salvacionistas.<br />
A religião está sujeita à crítica ferina do escritor. Neste conto <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> criticou todas as formas<br />
religiosas existentes <strong>no</strong> Brasil, bem como o modo <strong>de</strong> comercializar a fé através das vendas <strong>de</strong> conceito<br />
religioso. Porque todas as religiões ven<strong>de</strong>m uma mesma i<strong>de</strong>ologia, a salvação. Inclusive, com práticas<br />
proibitivas. Na visão <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> a elite brasileira se afasta das práticas diversificadas <strong>de</strong> religiões por<br />
pura hipocrisia e preconceitos.<br />
A verossimilhança apresentada <strong>no</strong> conto é paradoxal, porque não revela, antes <strong>de</strong> tudo, uma gran<strong>de</strong><br />
metáfora. Faz uma brinca<strong>de</strong>ira muito perspicaz com o leitor, usando inúmeros recursos <strong>de</strong> várias fontes,<br />
chegando a ser sufocante. O retrato é cruel e melancólico, mas o resultado é imensamente satisfatório;<br />
sentimo-<strong>no</strong>s <strong>de</strong>vorando <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> e rindo do par carnavalesco <strong>de</strong> Deus e do Diabo.<br />
Este conto foi classificado como sendo uma espécie <strong>de</strong> fábula, marcada pela ironia, mas a rigor, não é,<br />
pois além <strong>de</strong> não constituir uma narrativa curta, os seus protagonistas não são animais irracionais à<br />
maneira <strong>de</strong> La Fontaine que falam <strong>de</strong> um modo integralmente huma<strong>no</strong> e ainda é permeada por diálogos<br />
entre divinda<strong>de</strong>s: Deus e seu anjo renegado, o Diabo. Portanto, extrapola até os limites do fabuloso.<br />
A Igreja do Diabo traz uma série <strong>de</strong> alegorias e símbolos. A literatura machadiana se baseia muito na<br />
simbologia <strong>de</strong> uma forma geral, mas é nesse conto que esse recurso aparece recorrentemente, assim como<br />
o humor trágico e amargo dado o pessimismo com que o autor enxerga a alma humana. Nesse conto,<br />
<strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> exercita a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgamento <strong>de</strong> atos buscando uma verda<strong>de</strong> que se mostra<br />
cruel na máscara do riso.<br />
O esboço huma<strong>no</strong> que o escritor traz nesse conto, mais uma vez, é o do homem facilmente corruptível e<br />
sujeito às influências malignas ou <strong>de</strong> qualquer espécie. Em A Igreja do Diabo, o escritor tece uma outra<br />
"<strong>no</strong>va teoria sobre a alma humana". Essa teoria se dá por meio <strong>de</strong> várias alegorias e mitos. O autor mostra<br />
essa imagem humana refletida num espelho invertido. O que o Diabo propõe é uma doutrina muito
semelhante a <strong>de</strong> Deus, com a única diferença <strong>de</strong> que acaba sendo sua mais profunda negação. O Diabo se<br />
propõe a negar o que reflete; mostrar o contrário.<br />
<strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> conta a história narrada num velho escrito benediti<strong>no</strong> do dia em que o diabo resolveu<br />
fundar uma igreja, a fim <strong>de</strong> concorrer com as diversas religiões. Dizia-se cansado <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sorganizado,<br />
<strong>de</strong> ficar com as circunstanciais sobras das diferentes manifestações <strong>de</strong> fé.<br />
Fundando uma igreja, teria vantagem <strong>de</strong> ser única neste tipo <strong>de</strong> pregação, ao passo que para adorar<br />
<strong>de</strong>uses, havia várias: ―enquanto as outras religiões se combatem e se divi<strong>de</strong>m, a minha será única; (...)<br />
Há muitos modos <strong>de</strong> afirmar: há um só <strong>de</strong> negar tudo‖. O Diabo vai a Deus e comunica sua intenção. Por<br />
meio <strong>de</strong> apólogos e máximas, o Diabo explica a necessida<strong>de</strong> da <strong>no</strong>va instituição, <strong>de</strong>monstrando-a com a<br />
maestria <strong>de</strong> manipulação <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong> estilo, entre eles o uso da ironia a favor <strong>de</strong> jogos lingüísticos na<br />
criação <strong>de</strong> uma linguagem refinada. A visão machadiana do mundo é perseguida pela sombra do<br />
pessimismo, que se revela na <strong>de</strong>scrença da melhora do espírito huma<strong>no</strong>. <strong>Machado</strong> não acredita nas<br />
virtu<strong>de</strong>s humanas. O mundo, na concepção machadiana, é aquele em que o Mau predomina sobre o Bem,<br />
e <strong>no</strong> qual, as virtu<strong>de</strong>s estão submetidas às mazelas.<br />
O "Diabo" <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, mesmo lutando contra o Bem, acaba colaborando com Deus, e por isso<br />
o criador o <strong>de</strong>ixa fundar o seu ministério para recolher os homens que estão perdidos. Para o Mal<br />
personificado <strong>no</strong> conto, o erro é necessário à humanida<strong>de</strong>. O autor afirma que o Diabo comunica ao<br />
Senhor a fundação da Igreja, por "lealda<strong>de</strong>" e para "não ser acusado <strong>de</strong> dissimulação". Os motivos que o<br />
levam à tal empreendimento é o do <strong>de</strong>sejo da organização e da retificação da sua imagem que, segundo<br />
ele, não era como diziam as "velhas beatas" e que, na verda<strong>de</strong>, era "gentil e airoso". Outras vezes, o Diabo<br />
se <strong>de</strong><strong>no</strong>mina o "próprio gênio da Natureza", provocando aqui uma inversão <strong>de</strong> papéis. O Diabo colocouse<br />
<strong>no</strong> patamar <strong>de</strong> Pai <strong>de</strong> Deus. De quem é, afinal, o rei<strong>no</strong> "casual e adventício"?<br />
Imediatamente, <strong>de</strong>sce à terra e começa sua pregação. Defen<strong>de</strong> a inveja, a gula, a preguiça, tudo com<br />
justificativas da história, das letras e das artes. Rapidamente, obtém mais e mais a<strong>de</strong>ptos, tornando-se a<br />
<strong>no</strong>va igreja hegemônica.<br />
Com a imposição <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos dogmas e crenças, o Diabo persua<strong>de</strong> até convencer os homens <strong>de</strong> que o Mal<br />
po<strong>de</strong> ser melhor do que o Bem. Multidões vêm a ele crendo nessa <strong>no</strong>va <strong>de</strong>scoberta, assim como vieram a<br />
Jesus, quando este veio ao mundo como Messias enviado por Deus para salvar a humanida<strong>de</strong>. O Diabo<br />
também usa <strong>de</strong> apólogos e símbolos para exemplificar sua doutrina. Uma <strong>de</strong>ssas alegorias é a das franjas<br />
e mantos <strong>de</strong> algodão ou <strong>de</strong> seda. O que <strong>de</strong>monstra o caráter ambíguo do homem. Mostra, dialeticamente,<br />
a convivência harmônica dos paradoxos que apresentam virtu<strong>de</strong>s boas e más.<br />
Os dogmas do Diabo propagou-se pelo globo, tornando-se conhecidos em muitas línguas. Temos <strong>de</strong>pois,<br />
todavia, estabelecida e difundida a Igreja, o Diabo percebeu baixas entre seus fiéis. Aqui e ali seus<br />
seguidores praticavam, às escondidas, atos <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> restituições <strong>de</strong> roubo, <strong>de</strong> arrependimento.<br />
A idéia <strong>de</strong> que o Diabo, o espírito da confusão, buscava a organização <strong>de</strong> seu rei<strong>no</strong> é interessante. Além<br />
disso, ele queria também a própria missa com muito vinho e pão, mesma alusão direta ao jejum cristão e à<br />
celebração do corpo e sangue <strong>de</strong> Cristo. O Diabo faz referências bíblicas, como a da "tenda <strong>de</strong> Abraão".<br />
Numa aspiração a reunir todos os povos - divididos pelas outras religiões - busca a religião única e<br />
suprema, que terá uma unida<strong>de</strong> fiel e verda<strong>de</strong>ira. Maomé e Lutero aparecem, não como a ameaça da<br />
religião islâmica ou protestante, mas como obstáculo facilmente transponível.<br />
<strong>Machado</strong> mostra a dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caráter em cada um dos preceitos pregados pelo Diabo. Um exemplo é o<br />
do Padre Galiani, que ligado aos enciclopedistas franceses, mesmo sendo religioso levava em
consi<strong>de</strong>ração a utilida<strong>de</strong> e a rarida<strong>de</strong> das coisas: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" - frase que<br />
parece proferida da boca do próprio <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>.<br />
Quando em "A Igreja do Diabo", os homens voltam a praticar as antigas ações é porque aquelas, <strong>de</strong> certa<br />
forma, tinham uma explicação, senão científica, metafísica. Já quando se revoltam contra o Diabo, é<br />
porque este estava impondo-lhes os antigos preceitos <strong>de</strong> obediência, indo contra a liberda<strong>de</strong> e adquirindo<br />
seu direito <strong>de</strong> controle da humanida<strong>de</strong>, sob a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> uma religião, indo contra o direito natural do<br />
homem para seu próprio engran<strong>de</strong>cimento, obtendo maior espaço para suas ações. A estrutura religiosa,<br />
vista <strong>de</strong>sse modo, é muito <strong>de</strong>soladora, explicando o pessimismo <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> diante do mundo.<br />
A volta à prática das antigas virtu<strong>de</strong>s pelos homens atordoa o Diabo. O homem seria tão contraditório que<br />
nada é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo? O homem é um ser inexplicável, só que o mais perturbador e surpreen<strong>de</strong>nte é a<br />
maneira pela qual ele usa o seu tão cotado livre-arbítrio.<br />
Pesquisando a fundo, verificou o Diabo que em todo o mundo já se espalhava tal atitu<strong>de</strong>. Atônico, o<br />
Diabo volta aos céus, sem compreen<strong>de</strong>r o que havia acontecido, e Deus o consola com uma frase<br />
complacente, a propósito <strong>de</strong> uma alegoria:<br />
" - Que queres, tu, meu pobre Diabo? As capas <strong>de</strong> algodão têm agora franjas <strong>de</strong> seda, como as <strong>de</strong> veludo<br />
tiveram franjas <strong>de</strong> algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana."<br />
No conto, Deus está conformado com essa contradição humana, justamente, porque sabe que esse<br />
sentimento <strong>de</strong> confusão parte d'Ele mesmo. Ao mesmo tempo que o Espírito Santo está contra o Espírito<br />
Negador, o pecado po<strong>de</strong> estar a favor do homem, por que, afinal, o que é o pecado, fora dos limites da<br />
religião cristã? O Diabo não propõe nada <strong>de</strong> extraordinário aos seus súditos, somente mais uma<br />
manipulação em forma da liberda<strong>de</strong> tão almejada do pecado. E o homem quer ser livre, por isso, vive se<br />
contradizendo o tempo todo. Porque quando não se está sobre domínio <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us, há a negação <strong>de</strong> todos<br />
os princípios morais; suprime-se toda a diferença entre bom e mau, virtu<strong>de</strong> e vício.<br />
A "contradição humana" aludida <strong>no</strong> texto remete à contradição da religião cristã em eter<strong>no</strong> conflito com a<br />
essência do homem. Se, para a religião, só Deus existe e atua, agindo verda<strong>de</strong>iramente, essa idéia<br />
religiosa contradiz o entendimento e o sentido natural que conce<strong>de</strong> às coisas naturais uma certa<br />
espontaneida<strong>de</strong>; o livre-arbítrio huma<strong>no</strong>. Criam-se dois pólos, um positivo que é Deus, e outro negativo<br />
que é o mundo. Deus só existe, na verda<strong>de</strong>, para explicar o sentido da máquina do universo. O homem,<br />
que é limitado <strong>de</strong> entendimento, revolta-se contra esse po<strong>de</strong>r originalmente divi<strong>no</strong>. A religião cristã vê o<br />
mundo num sentido prático, <strong>de</strong> uma origem mecanicista, como algo que foi criado por Deus. Essa<br />
máquina controlada divinamente leva o homem a crer alegremente numa força <strong>de</strong>sconhecida <strong>de</strong>spertando,<br />
<strong>de</strong>sse modo, a consciência do homem <strong>de</strong> sua nulida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Deus. O homem quer se libertar<br />
contra essas verda<strong>de</strong>s presentes, contestando sua origem.<br />
Trata-se <strong>de</strong> um conto "moralizante" e, em vários pontos, se assemelha a um apólogo. Só que as imagens<br />
<strong>de</strong> que dispõe são elaboradas artisticamente. É <strong>no</strong>tável a influência <strong>de</strong> Rabelais que, inclusive, é citado<br />
numa passagem do texto.<br />
A questão da abordagem do tema religioso sendo explorado parodicamente, remete o conto à Sátira<br />
Menipéia e a Rabelais, pois os símbolos tomados por <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> são mais do que tipos<br />
carnavalescos sem importância, porque em <strong>de</strong>terminado momento, há uma crítica, não da religião, mas da<br />
própria fé humana. É uma crítica psicológica que dá uma realização artística do olhar do escritor sobre a<br />
realida<strong>de</strong> contemporânea.<br />
<strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> prefere transferir aos homens todo o seu ódio e indiferença, porque com toda essa<br />
tirania e hipocrisia não há como acharmos na sua literatura exemplos das virtu<strong>de</strong>s humanas. Tudo se
eduz à malda<strong>de</strong> e ao egoísmo. Dessa forma, o Diabo <strong>no</strong> conto <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que o amor ao próximo era "uma<br />
invenção <strong>de</strong> parasitas" e que este não merecia nada além da indiferença; e em alguns casos, até mesmo o<br />
ódio e o <strong>de</strong>sprezo. O que parece é que <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> encarna o próprio alter ego da figura do Diabo<br />
<strong>no</strong> conto, sendo seu próprio Fausto. Em seus contos, são raros os atos honestos e <strong>no</strong>bres e, se aparecem,<br />
estão sob a máscara do egoísmo, arrastando "as franjas <strong>de</strong> algodão na capa <strong>de</strong> veludo."<br />
A visão pessimista do mundo, <strong>de</strong> acordo com o escritor, que traz os homens à submissão do Diabo <strong>de</strong>pois<br />
do "abando<strong>no</strong>" <strong>de</strong> Deus porque a vida na Terra nada mais é do que <strong>de</strong>silusão e fracasso, na concepção<br />
machadiana. Em A Igreja do Diabo, po<strong>de</strong>-se ver a atualização <strong>de</strong> uma lenda que trata <strong>de</strong> personagens do<br />
imaginário cristão, por outro lado, uma forma velada <strong>de</strong> se expor um mito. <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> se utiliza da<br />
tomada <strong>de</strong> um mito religioso para a <strong>de</strong>monstração do caráter huma<strong>no</strong>.<br />
O que se apresenta aqui é, <strong>no</strong>vamente, a idéia do espelho que acaba por refletir uma imagem<br />
inversamente ao objeto original. Deus e o Diabo, <strong>no</strong> conto, são também muito parecidos: ambos irônicos<br />
e perversos, até sob a máscara da bonda<strong>de</strong>, e muito frios ao calcular todos os meios <strong>de</strong> se controlar e atrair<br />
seus fiéis. Ambos são reflexos da personalida<strong>de</strong> humana e por isso, popularmente, se ouve dizer que há<br />
um anjo e um <strong>de</strong>mônio em cada indivíduo. O Diabo sugere, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua origem bíblica, o mito <strong>de</strong> Ícaro;<br />
aquele que obtém do Pai asas para voar, mas cai nas águas profundas do Ocea<strong>no</strong>, por <strong>de</strong>sejar subir mais<br />
alto do que <strong>de</strong>veria ir.<br />
Quando o Diabo chega ao céu, diz a Deus não vir pelo servo Fausto, mas "por todos os Faustos do século<br />
e dos séculos" (e esse trecho já se trata <strong>de</strong> uma paródia do final da liturgia na missa católica), reporta-<strong>no</strong>s<br />
ao Mefistófeles, do escritor alemão Goethe. O evi<strong>de</strong>nte da obra alemã está na "simpatia" que Deus<br />
<strong>de</strong>monstra a Mefistófeles e que, aliás, é recíproca. Assim como nem em Fausto, <strong>de</strong> Goethe, e nem na<br />
literatura machadiana, as palavras são empregadas gratuitamente, vemos na primeira, o adjetivo alemão<br />
"gern" ("<strong>de</strong> muito bom grado", "prazerosamente") pronunciada por Deus e pelo Diabo. Da mesma<br />
maneira, <strong>no</strong> conto machadia<strong>no</strong>, quando Deus se dirige ao Diabo com "olhos cheios <strong>de</strong> doçura" e este o<br />
chama <strong>de</strong> "mestre", existem provas <strong>de</strong>monstrativas da mútua admiração que se traduz nessa constante<br />
troca <strong>de</strong> elogios das duas partes.<br />
Paradoxalmente, a existência <strong>de</strong> uma simpatia inesperada entre Deus e o Espírito Negador traz o<br />
'inesperado' que é recorrente em <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, <strong>no</strong> entanto só para o leitor atento. Assim,<br />
veladamente, po<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>no</strong>tar significações ainda mais profundas.<br />
O Mefistófeles machadia<strong>no</strong>, como espírito que nega, não se põe contra Deus, e sim, contra a Vida, que é<br />
ingrata. Aqui, existe muito do pessimismo machadia<strong>no</strong>. Assim como Mefistófeles pe<strong>de</strong> a Fausto que pare<br />
"Verwille doch!", numa metáfora para a perdição da alma do outro, não está negando o Criador, mas a<br />
sua criação, a própria Vida.<br />
Em A Igreja do Diabo, o pecado tem seu aspecto positivo. O Diabo expõe o Decálogo num pla<strong>no</strong> inverso.<br />
Mostra que a Lei <strong>de</strong> Deus po<strong>de</strong> ser falha, dando margem a várias interpretações. Nisso, apresenta que o<br />
seu Espírito <strong>de</strong> Negação é suficiente, que a negação é sublime e singular. Com a "carnavalização" <strong>de</strong><br />
doutrinas, milagres, moralida<strong>de</strong>s e mistérios divi<strong>no</strong>s, <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> é que nega tudo. Essas<br />
'blasfêmias' dirigidas a uma divinda<strong>de</strong>, pelo diabo do conto, constituíam um elemento necessário <strong>no</strong>s<br />
cultos cômicos mais antigos, só que essas 'blasfêmias', ao mesmo tempo que <strong>de</strong>gradavam, re<strong>no</strong>vavam;<br />
negando e reiterando. É nesse jogo <strong>de</strong> palavras que <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> cria esse retrato cômico do mundo,<br />
dividido entre a luta do Bem e do Mal. Assim como os vários exemplos <strong>de</strong> personagens machadia<strong>no</strong>s<br />
cindidos entre a eterna dúvida.<br />
A <strong>de</strong>scrição que <strong>Machado</strong> faz do Diabo atribui-lhe uma imagem majestosa: "magnífico e varonil". Nos<br />
próprios gestos, o Diabo tem uma suntuosida<strong>de</strong> superior à divina, segundo a <strong>de</strong>scrição do autor. O Diabo<br />
não apenas conversa com Deus sobre seus pla<strong>no</strong>s, mas o <strong>de</strong>safia. O ódio e a ânsia <strong>de</strong> vingança aparecem
emontando ao episódio bíblico da expulsão <strong>de</strong> Lúcifer, o anjo <strong>de</strong> luz, dos céus por Deus. Os recursos <strong>de</strong><br />
estilo são inúmeros, ornamentando a linguagem <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> e criando um espelho <strong>de</strong> contraste<br />
imenso, mas que em <strong>de</strong>terminado momento se turva já não reproduzindo imagens fiéis.<br />
Quando o Diabo chega aos céus, não entra. Inicia seu discurso retórico na entrada e só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Deus<br />
perguntar-lhe se sabe porque aquele velho ancião foi mandado para os céus, é que o Diabo ironiza<br />
dizendo não saber, aproveitando a oportunida<strong>de</strong> para expor suas idéias. O Diabo se refere ao céu como<br />
uma hospedaria <strong>de</strong> preço alto. Comparando a imagem divina a <strong>de</strong> um negociador. Por meio <strong>de</strong> várias<br />
ironias, o Diabo acaba transferindo a sua veia sarcástica para o autor. Diante do discurso do Diabo,<br />
comparando pessoas <strong>de</strong> boa índole a mantos <strong>de</strong> veludo e os bons atos a franjas <strong>de</strong> seda, o Senhor mostra<br />
dissimulação ao murmurar que se tratam <strong>de</strong> pensamentos <strong>de</strong> um "velho retórico". Enquanto o Diabo sorri<br />
triunfante, Deus parece se submeter "murmurando"; mais um indício <strong>de</strong> papéis inversos.<br />
Deus tenta <strong>de</strong>monstrar que o velho ancião, que acabara <strong>de</strong> chegar ao céu, salvou outras vidas, mesmo sem<br />
nenhum público. Não havia nenhum interesse, não tinham "franjas <strong>de</strong> algodão" <strong>no</strong> ato. O Diabo repele<br />
essa afirmativa com a ironia <strong>de</strong> que a misantropia po<strong>de</strong> ser só uma simulação <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>. As imagens e<br />
os símbolos são inúmeros, sendo todos muito importantes <strong>de</strong>ntro da narrativa.<br />
Ao se tratarem <strong>de</strong> pecados capitais, o Diabo toma exemplos literários a princípio. Justifica a ira <strong>de</strong><br />
Aquiles, como responsável pela Ilíada, e só cometida por ele, por ser fruto do rapto <strong>de</strong> sua escrava,<br />
Briseida, e pela perda do amigo, Pátroclo. A gula encontra justificativa em Rabelais e seus banquetes - o<br />
comer e o beber estão amplamente explorados nesse autor por estarem ligados às festas, à palavra e à<br />
verda<strong>de</strong> alegre. Essas imagens mostram o homem num corpo que interage com o mundo. A imagem dos<br />
banquetes simbolizava a <strong>de</strong>voração dos bens que o homem conseguira por meio <strong>de</strong> seu suor, como manda<br />
a Bíblia; esse triunfo o opõe a Deus. Mesmo o pão e vinho, mencionados anteriormente, representam o<br />
mundo vencido pela luta e trabalho do homem. Trata-se <strong>de</strong> uma imagem i<strong>de</strong>alista sobre a <strong>de</strong>voração do<br />
mundo vencido - há uma certa dose <strong>de</strong> paganismo nessa metáfora da superação <strong>de</strong> Deus. A alusão ao<br />
vinho é muito significativa, por sua vez, trazendo em oposição à serieda<strong>de</strong> do azeite, a liberda<strong>de</strong>: "As<br />
vinhas do Diabo" - sempre com muito exagero.<br />
O Diabo também refere-se ao pão e ao vinho para, como Cristo, dar um exemplo <strong>de</strong> preocupação com o<br />
homem. Na religião, o homem ao se referir a Deus, volta-se para suas necessida<strong>de</strong>s básicas <strong>de</strong><br />
sobrevivência: "O pão <strong>no</strong>sso <strong>de</strong> cada dia, dai-<strong>no</strong>s hoje." O Diabo quer ocupar esse lugar <strong>de</strong> Pai <strong>no</strong> conto.<br />
A Igreja como "hospedaria barata" mostra o acolhimento dos filhos que não tem como pagar as<br />
exigências divinas tão altas.<br />
Quanto à inveja, dá a simples explicação <strong>de</strong> que seria o estímulo à prosperida<strong>de</strong>. Uma gran<strong>de</strong> inversão das<br />
coisas <strong>de</strong> todo o tipo. A venalida<strong>de</strong> foi tão logicamente explicada, que tor<strong>no</strong>u-se "um monumento da<br />
lógica", como exemplifica o conto mostrando sua negação como hipocrisia e contradição. Indo <strong>de</strong>ssa<br />
forma com todos os preceitos divi<strong>no</strong>s, ao passo que distorce o outro; "não se <strong>de</strong>ve amar ao próximo, a não<br />
ser que se tratem <strong>de</strong> mulheres alheias". Também por meio <strong>de</strong> um apólogo, que "foi incluído <strong>no</strong> livro da<br />
sabedoria", o Diabo se assemelha a Cristo, que por meio <strong>de</strong> parábolas ensinava aos homens na Terra:<br />
"Usarei comparações quando falar com eles e explicarei coisas <strong>de</strong>sconhecidas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Criação do<br />
Mundo" (Mateus, 13:34).<br />
É como se o Diabo tivesse percorrendo o mesmo caminho, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Moisés, com o Decálogo, até o Messias,<br />
que "evangelizou" os homens ao fim <strong>de</strong> salvá-los. O apólogo: "Cem pessoas tomam ações <strong>de</strong> um banco,<br />
para operações comuns; mas cada acionista não cuida senão dos seus divi<strong>de</strong>ndos...", po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado<br />
como uma paródia à parábola da ovelha perdida, que prega que se um pastor tiver cem ovelhas e uma se<br />
per<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>ve-se sair para procurá-la <strong>de</strong>ixando as outras. Entretanto, o homem hoje se preocupa,<br />
fundamentalmente, com sua vantagens e lucros, ou seja, <strong>no</strong>s divi<strong>de</strong>ndos que lhe pesarão <strong>de</strong>pois. Po<strong>de</strong> ser<br />
associada também a usura e à mesquinhez, consi<strong>de</strong>rados gran<strong>de</strong>s pecados.
O jogo <strong>de</strong> símbolos <strong>no</strong> conto é primoroso. Porém, a comicida<strong>de</strong> se propõe tragicamente quando, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> seduzidos, os homens voltam a praticar as antigas virtu<strong>de</strong>s e, às escondidas - <strong>de</strong> acordo com os<br />
ensinamentos cristãos, para os homens não praticarem seus <strong>de</strong>veres religiosos em público - sendo assim<br />
recompensados por Deus. Mesmo assim, praticavam as tais boas ações, <strong>de</strong> vez em quando e sozinhos,<br />
fazendo com que seus "mantos <strong>de</strong> algodão" tenham "franjas <strong>de</strong> seda"... O Diabo, inconformado com<br />
atitu<strong>de</strong>s das mais curiosas e surpreen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>parou-se com o gran<strong>de</strong> Mal verda<strong>de</strong>iro; a contradição<br />
humana. Com o trecho: "... o pasmo não lhe <strong>de</strong>u tempo para refletir, comparar e concluir do espetáculo<br />
presente, alguma coisa análoga ao passado", <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> chama a atenção do leitor para a<br />
comparação da conquista inversa <strong>de</strong> Cristo na Terra convertendo os homens para salvá-los. O homem é<br />
pecador, mas Deus procura salvá-los a qualquer custo, olhando só seus bons atos. Segundo as Escrituras<br />
Sagradas, o arrependimento dos pecados garante a salvação.<br />
Dona Guidinha do Poço, <strong>de</strong> Manuel <strong>de</strong> Oliveira Paiva<br />
Obra do autor cearense Manuel <strong>de</strong> Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço resgata elementos da cultura<br />
<strong>no</strong>r<strong>de</strong>stina e porme<strong>no</strong>res da vida interiorana, na história <strong>de</strong> uma mendiga que, <strong>no</strong> final do século XIX, era<br />
alvo <strong>de</strong> piadas nas ruas, por ter sido con<strong>de</strong>nada pela Justiça <strong>de</strong> Quixeramobim pelo assassinato do próprio<br />
marido. A tragédia inclui elementos <strong>de</strong> vingança, prisões e mortes.<br />
É a saga da fazen<strong>de</strong>ira Marica Lessa. Essa via foi <strong>de</strong>vassada pelo historiador Ismael Por<strong>de</strong>us que teve<br />
acesso em cartório <strong>de</strong> Quixeramobim, ao processo em que a po<strong>de</strong>rosa fazen<strong>de</strong>ira Marica Lessa respon<strong>de</strong>u<br />
pelo assassinato <strong>de</strong> seu marido o Cel. Domingos d´Abreu e Vasconcelos por volta <strong>de</strong> 1853. A fazen<strong>de</strong>ira<br />
po<strong>de</strong>rosa amasiou-se com um sobrinho do marido, Senhorinho Pereira, e contratou o executante do crime<br />
contra seu consorte. Descoberta a trama, a <strong>de</strong>sditosa dama foi con<strong>de</strong>nada a muitos a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> prisão, vindo a<br />
cumprir sua pena na ca<strong>de</strong>ia pública <strong>de</strong> Fortaleza. Ao ser solta, semi-enlouquecida e <strong>de</strong>pauperada,<br />
perambulava pelas ruas da capital até quando morreu como indigente. Foi nessa história real que se<br />
baseou Oliveira Paiva para escrever Dona Guidinha do Poço.<br />
É um romance mo<strong>de</strong>lar do realismo brasileiro. Compromissado com a realida<strong>de</strong>, ele mostra uma história<br />
que realmente aconteceu, mudando os <strong>no</strong>mes dos personagens e acrescentando alguns <strong>de</strong>talhes ficcionais<br />
e ilustrativos. Depois há a coragem do autor em introduzir na sua linguagem o rico latifúndio lingüístico<br />
regional. O falar da região aparece como forma <strong>de</strong> trazer não só o homem mas principalmente sua fala<br />
para <strong>de</strong>ntro do enredo. Além disso há outra realida<strong>de</strong> cruciante <strong>no</strong> romance, que ainda hoje se faz presente<br />
na região do semiárido <strong>no</strong>r<strong>de</strong>sti<strong>no</strong> que é a seca.<br />
A seca, pois, e o regionalismo margeiam o tempo todo a saga trágica acontecida na fazenda Poço da<br />
Moita. A linguagem do povo está tão presente que necessária se tor<strong>no</strong>u a elaboração <strong>de</strong> um glossário <strong>no</strong><br />
final do livro. Com cerca <strong>de</strong> quinhentos verbetes esse glossário <strong>de</strong> termos bem <strong>de</strong>monstrativos do falar do<br />
sertão cearense comprova a preocupação do autor em <strong>de</strong>vassar a vida daquela gente sofrida a partir da sua<br />
linguagem. Prova é que a partir da primeira expressão do livro ―De primeiro‖ esse falar já se apresenta.<br />
Depois disso vão se configurando cenas e temperamentos entrevistos sem a crueza naturalista em moda,<br />
mas <strong>de</strong>ixando-os subentendidos como na estética realista.<br />
Dona Guidinha do Poço é, portanto, um romance comprometido com a estética realista, resgata a<br />
linguagem regionalista do centro sul cearense, apresenta uma história <strong>de</strong> paixão e morte que traz,<br />
secundando-a, o fenôme<strong>no</strong> climático da seca, tão marcante na região Nor<strong>de</strong>ste como <strong>no</strong>s romances da<br />
geração <strong>de</strong> 30. Daí que o embrião para o romance <strong>de</strong> seca da segunda fase do <strong>no</strong>sso mo<strong>de</strong>rnismo finca-se,<br />
segundo Alfredo Bosi, em Dona Guidinha do Poço, <strong>de</strong> Oliveira Paiva, Luzia-Homem, <strong>de</strong> Domingos<br />
Olímpio e A fome, <strong>de</strong> Rodolfo Teófilo. Esses três autores cearenses foram testemunhas da gran<strong>de</strong> seca dos<br />
a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1877, 1878 e 1879. Essa temática aliada ao resgate que faz do regionalismo, faz com que se
afirme que nenhum escritor cearense soube trabalhar com tanta felicida<strong>de</strong> a <strong>no</strong>ssa linguagem do povo -<br />
sem <strong>de</strong>sfigurar o conteúdo literário como Oliveira Paiva. Além disso há a técnica narrativa empreendida<br />
pelo escritor quando ele consegue tornar sugestiva qualquer minúcia, valendo-se <strong>de</strong> indicações objetivas<br />
para reforçar indiretamente o sentido da narrativa ou insinuar o caráter <strong>de</strong> um personagem.<br />
Dona Guidinha do Poço, consi<strong>de</strong>rado por José Ramos Tinhorão como um clássico da literatura brasileira.<br />
Obra <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, psicológica e sociológica, vale-se <strong>de</strong> um estilo vivo, on<strong>de</strong> se fun<strong>de</strong>m poesia,<br />
reflexão, senso <strong>de</strong> humor, a presença do falar regional <strong>no</strong>r<strong>de</strong>sti<strong>no</strong>, além do aproveitamento das tradições<br />
orais e das narrativas dos contadores <strong>de</strong> história.<br />
Tempo<br />
Dona Guidinha do Poço passa-se em dois a<strong>no</strong>s, distribuídos ao longo dos 5 Livros: dois meses para o<br />
Livro I (o amor <strong>de</strong>spontando); um mês para o Livro II (o amor se consuma em posse); onze meses para o<br />
Livro III (a paixão cega); <strong>no</strong>vamente um mês para o Livro IV (o drama) e um mês ou mais para o Livro V<br />
(<strong>de</strong>senlace). Um preâmbulo <strong>de</strong> abertura completa a conta.<br />
O tempo cro<strong>no</strong>lógico, convencional e linear, com discretos flash backs, é altamente marcado, em dias,<br />
meses e até, por vezes, horas. Uma precisão, a mais óbvia, é, <strong>no</strong> entanto, insidiosamente escamoteada: o<br />
a<strong>no</strong> dos acontecimentos. Sabe-se que Guida era pequena na seca <strong>de</strong> 25 (―em 25, ela era ainda<br />
peque<strong>no</strong>ta...‖ p. 56) e que tem, <strong>no</strong> momento da narrativa, mais <strong>de</strong> 30 a<strong>no</strong>s. Essa inesperada imprecisão<br />
aponta para um <strong>de</strong>sdobramento temporal entre o enunciado e o narrado: na verda<strong>de</strong>, a história <strong>de</strong> Guida<br />
pertence ao passado, é um ―causo‖, contado em outro momento. Aconteceu, ―foi verda<strong>de</strong>‖ (a prova, as<br />
marcas <strong>de</strong> datas), <strong>no</strong> tempo da história.<br />
Ao tempo cro<strong>no</strong>lógico, exterior e ao tempo psicológico, interior, soma-se um tempo cósmico, cíclico,<br />
marcado pelas estações. Assim o Livro I é o da seca, em março; <strong>no</strong> Livro II vêm as chuvas <strong>de</strong> abril e<br />
maio; o Livro III, o mais extenso, cobre as quatro estações – primavera, verão, outo<strong>no</strong>, inver<strong>no</strong> e<br />
<strong>no</strong>vamente as chuvas; o Livro IV retorna à primavera e o Livro V, ao verão.<br />
Tempo cósmico, que é o tempo real do sertão e também o do mito e que, como as outras dimensões, diluise<br />
<strong>no</strong> final.<br />
Foco narrativo<br />
Em função do tempo, o narrador é a voz que conta um ―causo‖. Jogralcontador, assegura, através <strong>de</strong> sua<br />
narração, o tempo cósmico-simbólico e restaura, <strong>no</strong> jogo <strong>de</strong> corda bamba, o equilíbrio. Narrador sem<br />
rosto, voz discretamente onisciente e onipresente, porque situada em outro tempo: a história contada já<br />
aconteceu. Mas, se algumas pistas são maliciosamente jogadas cá e lá, ele guarda a surpresa do final (que<br />
conhece), mantendo o ouvinte-leitor preso ao narrar.<br />
Narrador popular, oral, que pouco intervém e que tem sua fala própria – e não é <strong>de</strong> espantar que, como<br />
Flaubert, use e abuse do estilo indireto livre.<br />
Alguém conta uma história: o clássico narrador na terceira pessoa vai <strong>no</strong>s narrar o que suce<strong>de</strong>u <strong>no</strong> Poço<br />
da Moita. Vemos na narrativa outras vozes surgirem e vários narradores proliferarem. O narrador <strong>de</strong> Dona<br />
Guidinha é um homem culto, com belo manejo <strong>de</strong> língua, conhecedor do latim e que julga<br />
<strong>de</strong>sabusadamente a socieda<strong>de</strong>.<br />
Enredo<br />
Narra a história da po<strong>de</strong>rosa Margarida Reginaldo <strong>de</strong> Oliveira Barros, dona <strong>de</strong> cinco fazendas, prédios,<br />
gado, prataria e muitos escravos. Mulher bravia e apaixonada, envolve-se com um sobrinho <strong>de</strong> seu
marido, soldado elegante e vaidoso. Este, acusado <strong>de</strong> homicídio, escon<strong>de</strong>-se na casa do tio, que<br />
<strong>de</strong>sconfiado <strong>de</strong> seus amores com a mulher, Dona Guidinha resolve entregá-lo à polícia. Como vingança,<br />
Dona Guidinha, manda um caboclo matar o marido, e, como sempre altaneira, é conduzida a prisão, sob<br />
vaias da população.<br />
Cantiga <strong>de</strong> Esponsais (Conto <strong>de</strong> Histórias sem data), <strong>de</strong> <strong>Machado</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Assis</strong><br />
Cantiga <strong>de</strong> Esponsais, conto <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, tem como tema principal a música, o ato da criação<br />
musical.<br />
É narrado em 3ª pessoa e conta-<strong>no</strong>s a história <strong>de</strong> mestre Romão, músico conhecido <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> janeiro, <strong>no</strong>s<br />
idos <strong>de</strong> 1813. Seu comportamento, <strong>no</strong>rmalmente circunspecto e triste, transformava-se ao reger. Diante da<br />
orquestra, mestre Romão experimentava intensa alegria e satisfação.<br />
Durante toda a vida, o mestre acalentou o sonho <strong>de</strong> ser um gran<strong>de</strong> compositor, contudo faltava-lhe<br />
inspiração, apesar <strong>de</strong> ser exímio executor <strong>de</strong> peças alheia. Logo que casou, aliás, mestre Romão, começou<br />
a composição <strong>de</strong> uma peça - uma cantiga <strong>de</strong> esponsais, a qual, mesmo após a morte precoce da esposa,<br />
permaneceu inacabada.<br />
Depois <strong>de</strong> uma apresentação na Igreja do Carmo, mestre Romão foi para casa, sentindo-se adoentado.<br />
Pediu a pai José, um preto velho com quem morava, que lhe buscasse remédios. De qualquer forma,<br />
mestre Romão pressentia que a sua vida estava <strong>no</strong> fim.<br />
Isso fez com que ele retomasse sua antiga peça, numa ultima tentativa <strong>de</strong> concluí-la. Pediu que<br />
colocassem o cravo na sala do fundo por ser mais arejada. Dali, ele podia ver um jovem casal <strong>no</strong><br />
parapeito da janela <strong>de</strong> uma casa próxima.<br />
Sentou-se ao cravo e tentou repetidas vezes continuar a peça. Seus esforços, porém, foram inúteis.<br />
Desesperado rasgou as partituras. Nesse momento, ele ouviu a moça que, feliz na companhia do marido,<br />
entoava uma música jamais ouvida, inédita, ― justamente e que mestre Romão procurara durante a<strong>no</strong>s sem<br />
achar nunca.‖ Morreu <strong>de</strong>cepcionado nessa mesma <strong>no</strong>ite.<br />
Conto na íntegra<br />
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que<br />
eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; po<strong>de</strong>m imaginar o que<br />
seria uma missa cantada daqueles a<strong>no</strong>s remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristãos,<br />
nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as<br />
mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada Não falo<br />
sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça <strong>de</strong>sse velho<br />
que rege a orquestra com alma e <strong>de</strong>voção.<br />
Chama-se Romão Pires; terá sessenta a<strong>no</strong>s, não me<strong>no</strong>s, nasceu <strong>no</strong> Valongo, ou por esses lados. É bom<br />
músico e bom homem; todos os músicos gostam <strong>de</strong>le. Mestre Romão é o <strong>no</strong>me familiar; e dizer familiar e<br />
público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão" —<br />
equivalia a esta outra forma <strong>de</strong> anúncio, a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois: "Entra em cena o ator João Caeta<strong>no</strong>"; — ou então:<br />
"0 ator Martinho cantará uma <strong>de</strong> suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz <strong>de</strong>licado e<br />
popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos<br />
<strong>no</strong> chão, riso triste, e passo <strong>de</strong>morado? Tudo isso <strong>de</strong>saparecia à frente da orquestra; então a vida<br />
<strong>de</strong>rramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era
outro. Não que a missa fosse <strong>de</strong>le; esta, por exemplo, que ele rege agora <strong>no</strong> Carmo é <strong>de</strong> José Maurício;<br />
mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.<br />
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e <strong>de</strong>ixasse o rosto apenas alumiado da luz<br />
ordinária. Ei-lo que <strong>de</strong>sce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um<br />
lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos<br />
Homens, on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>, com um preto velho, pai José, que é a sua verda<strong>de</strong>ira mãe, e que neste momento<br />
conversa com uma vizinha.<br />
— Mestre Romão lá vem, pai José — disse a vizinha.<br />
- Eh! eh! a<strong>de</strong>us, sinhá, até logo.<br />
Pai José <strong>de</strong>u um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do<br />
costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o me<strong>no</strong>r vestígio <strong>de</strong> mulher, velha ou<br />
moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas. Casa sombria e nua. 0<br />
mais alegre era um cravo, on<strong>de</strong> o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma ca<strong>de</strong>ira, ao<br />
pé, alguns papéis <strong>de</strong> música; nenhuma <strong>de</strong>le...<br />
Ah! se mestre Romão pu<strong>de</strong>sse seria um gran<strong>de</strong> compositor. Parece que há duas sortes <strong>de</strong> vocação, as que<br />
têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e<br />
estéril entre o impulso interior e a ausência <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> comunicação com os homens. Romão era<br />
<strong>de</strong>stas. Tinha a vocação íntima da música; trazia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si muitas óperas e missas, um mundo <strong>de</strong><br />
harmonias <strong>no</strong>vas e originais, que não alcançava exprimir e pôr <strong>no</strong> papel. Esta era a causa única <strong>de</strong> tristeza<br />
<strong>de</strong> mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta<br />
<strong>de</strong> dinheiro, algum <strong>de</strong>sgosto antigo; mas a verda<strong>de</strong> é esta: - a causa da melancolia <strong>de</strong> mestre Romão era<br />
não po<strong>de</strong>r compor, não possuir o meio <strong>de</strong> traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e<br />
não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos<br />
tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.<br />
E, entretanto, se pu<strong>de</strong>sse, acabaria ao me<strong>no</strong>s uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um a<strong>no</strong>s, e morreu com vinte e três, não era<br />
muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. I<strong>de</strong>ou então o canto<br />
esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pô<strong>de</strong> sair. Como um pássaro que acaba <strong>de</strong> ser preso,<br />
e forceja por transpor as pare<strong>de</strong>s da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração<br />
do <strong>no</strong>sso músico, encerrada nele sem po<strong>de</strong>r sair, sem achar uma porta, nada. Algumas <strong>no</strong>tas chegaram a<br />
ligar-se; ele escreveu-as; obra <strong>de</strong> uma folha <strong>de</strong> papel, não mais. Teimou <strong>no</strong> dia seguinte, <strong>de</strong>z dias <strong>de</strong>pois,<br />
vinte vezes durante o tempo <strong>de</strong> casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras <strong>no</strong>tas<br />
conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar <strong>no</strong> papel a sensação <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> extinta.<br />
— Pai José — disse ele ao entrar —, sinto-me hoje adoentado.<br />
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...<br />
— Não; já <strong>de</strong> manhã não estava bom. Vai à botica...<br />
0 boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à <strong>no</strong>ite; <strong>no</strong> dia seguinte mestre Romão não se sentia<br />
melhor. E preciso dizer que ele pa<strong>de</strong>cia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado,<br />
quando viu que o incômodo não ce<strong>de</strong>ra ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.<br />
— Para quê? - disse o mestre. — Isto passa.<br />
0 dia não acabou pior; e a <strong>no</strong>ite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pô<strong>de</strong> dormir duas horas.<br />
A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo <strong>de</strong> palestra; os que entretinham relações<br />
com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um
acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava <strong>no</strong> gamão —<br />
outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.<br />
"Está acabado", pensava ele.<br />
Um dia <strong>de</strong> manhã, cinco <strong>de</strong>pois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na<br />
fisio<strong>no</strong>mia por trás das palavras enganadoras:<br />
— Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...<br />
Em músicas! justamente esta palavra do médico <strong>de</strong>u ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o<br />
escravo, abriu a gaveta on<strong>de</strong> guardava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas <strong>no</strong>tas<br />
arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse<br />
como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que <strong>de</strong>ixasse um pouco <strong>de</strong> alma na terra.<br />
— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...<br />
0 princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem <strong>no</strong> lugar, era a <strong>no</strong>ta<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iramente escrita. Mestre Romão or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava<br />
para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos <strong>de</strong> outra casa dois casadinhos <strong>de</strong><br />
oito dias, <strong>de</strong>bruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com<br />
tristeza.<br />
— Aqueles chegam — disse ele —, eu saio. Comporei ao me<strong>no</strong>s este canto que eles po<strong>de</strong>rão tocar...<br />
Sentou-se ao cravo; reproduziu as <strong>no</strong>tas e chegou ao lá...<br />
— Lá, lá, lá...<br />
Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente. Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré...<br />
ré... Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original , mas enfim alguma<br />
coisa, que não fosse <strong>de</strong> outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as <strong>no</strong>tas,<br />
buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para<br />
completar a ilusão, <strong>de</strong>itava os olhos pela janela para o lados casadinhos. Estes continuavam ali, com as<br />
mãos presas e os braços passados <strong>no</strong>s ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez<br />
<strong>de</strong> olhar para baixo: Mestre Romão, ofegante da moléstia e <strong>de</strong> impaciência, tornava ao cravo; mas a vista<br />
do casal não lhe suprira a inspiração, e as <strong>no</strong>tas seguintes não soavam.<br />
— Lá... lá... lá...<br />
Desesperado, <strong>de</strong>ixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida <strong>no</strong><br />
olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem<br />
sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão<br />
procurara durante a<strong>no</strong>s sem achar nunca. 0 mestre ouviu-a com tristeza, aba<strong>no</strong>u a cabeça, e à <strong>no</strong>ite<br />
expirou.<br />
Pai contra Mãe (Conto), <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong><br />
O conto Pai contra Mãe, <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, publicado em 1906, <strong>no</strong> livro Relíquias da Casa Velha,<br />
insere-se na fase ―madura‖ do autor, <strong>de</strong> características marcadamente Realistas. Ambienta-se <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro do século XIX antes da abolição da escravatura, que serve <strong>de</strong> pa<strong>no</strong> <strong>de</strong> fundo para a narrativa, não<br />
se configurando, porém, como a questão principal. Os aspectos sócio-econômicos das personagens beiram<br />
a miséria, com dificulda<strong>de</strong>s muito gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>pendência e escassez. O pensamento predominante é<br />
maquiavélico e capitalista, com <strong>de</strong>staque para a ―coisificação‖ do ser huma<strong>no</strong>, resumindo os escravos a<br />
mercadorias.
Fazendo um <strong>de</strong>scortinamento do perfil psicológico das personagens, ele traz à tona o problema do<br />
egoísmo huma<strong>no</strong> e da tibieza <strong>de</strong> caráter que subjuga o discernimento. A socieda<strong>de</strong> hipócrita em que se<br />
ambienta a narrativa é constantemente ironizada pelo narrador que vê em seus mandos e <strong>de</strong>smandos uma<br />
tentativa <strong>de</strong> impor a or<strong>de</strong>m social aos dominados, como se pu<strong>de</strong>sse colocar-lhes uma máscara <strong>de</strong> folha<strong>de</strong>-flandres<br />
para impedir seus excessos. A oposição em que se apresentam as personagens é uma briga <strong>de</strong><br />
iguais que legitima o po<strong>de</strong>r da classe dominante e da qual sai vencedor o mais forte, apesar <strong>de</strong> sua<br />
fraqueza moral e instabilida<strong>de</strong> emocional.<br />
Narrado em 3ª pessoa, é um dos contos em que o autor apresenta a escravidão da maneira mais<br />
impressionante e brutal. A instituição forma uma tela <strong>de</strong> fundo, um elemento do cenário em que se<br />
<strong>de</strong>senrola a trama. Nesse conto a escravidão é o próprio centro da história. Aliás, na primeira linha do<br />
conto, o autor escreve: "A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras<br />
instituições sociais". Quando <strong>Machado</strong> escreveu este conto, a escravidão havia sido abolida há mais <strong>de</strong><br />
uma década e já parecia algo do passado. Como quem não quer nada, <strong>Machado</strong> começou o conto como se<br />
fosse escrever uma anedotinha sobre uma profissão <strong>de</strong>saparecida <strong>de</strong>vido ao progresso. O personagem do<br />
qual ele fala, Cândido, era um caçador <strong>de</strong> escravos fugidos que os capturava para entregá-los aos seus<br />
senhores. Mas ele não andava por montes e vales, vestido <strong>de</strong> botas, capa e chapéu gran<strong>de</strong>, seguido por<br />
cachorros, como os caçadores <strong>de</strong> escravos que trabalhavam para os senhores das zonas rurais. Cândido<br />
trabalhava na cida<strong>de</strong>. Seu território <strong>de</strong> caça eram as ruelas, as espeluncas, os mercados, as saídas das<br />
igrejas, as procissões, as aglomerações do porto.<br />
Para os escravos fugidos <strong>no</strong> meio urba<strong>no</strong>, a melhor coisa a fazer era misturar-se à população negra, livre,<br />
alforriada ou escrava para embaralhar as pistas. Aliás, os anúncios dos jornais da época, fonte<br />
documentária extraordinária para os historiadores, <strong>de</strong>screvem todo tipo <strong>de</strong> subterfúgio usado por escravos<br />
fugidos que buscavam confundir-se com o meio urba<strong>no</strong>. Havia anúncios do gênero: "Um tal escravo, <strong>de</strong><br />
tal tamanho, fugiu, mas ele faz semblante <strong>de</strong> ser livre e é habituado <strong>de</strong> tal parte da cida<strong>de</strong>".<br />
Os senhores e as autorida<strong>de</strong>s, é claro, faziam questão <strong>de</strong> cercar <strong>de</strong> perto a população escrava e <strong>de</strong>cretavam<br />
<strong>no</strong>rmas proibindo todo escravo <strong>de</strong> usar sapatos. Logo, todo negro ou mulato calçado era consi<strong>de</strong>rado a<br />
princípio como sendo livre ou alforriado. Nessas condições, os escravos fugidos que circulavam na cida<strong>de</strong><br />
podiam facilmente obter sapatos para evitarem ser interpelados. Isso aumentava a confusão social fazendo<br />
recair a suspeita sobre todos os negros livres. Essa situação modificou-se após 1850 quando a imigração<br />
<strong>de</strong> proletários portugueses substituiu-se pouco a pouco os escravos <strong>no</strong> mercado urba<strong>no</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Mesmo que <strong>Machado</strong> tivesse escrito seu conto mais tar<strong>de</strong>, após a abolição da escravidão, quando a<br />
população branca, brasileira e imigrada, era mais numerosa, seus leitores guardariam na memória a<br />
lembrança <strong>de</strong>ssa cida<strong>de</strong> negra e escravagista da meta<strong>de</strong> do século XIX.<br />
Os escravos urba<strong>no</strong>s eram alugados. Seus senhores os alugavam a terceiros. Isso conduziu a uma situação<br />
particular na qual o senhor empregador do escravo não era seu senhor proprietário. Senhores confeiteiros,<br />
pa<strong>de</strong>iros, maçons, marceneiros, ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> leilão recrutavam escravos alugados para suas ativida<strong>de</strong>s.<br />
Os senhores proprietários <strong>de</strong> escravos permitiam-lhes o direito <strong>de</strong> guardar uma parte <strong>de</strong> seus ganhos a fim<br />
<strong>de</strong> formar um pecúlio que, eventualmente, permitir-lhes-ia comprar sua própria liberda<strong>de</strong>. Sabe-se que a<br />
proporção <strong>de</strong> escravos que podiam pagar seu próprio preço ao senhor proprietário era muito reduzida.<br />
Entretanto, isso representava a recompensa - o estímulo material - que impelia o escravo a trabalhar ainda<br />
mais, a fornecer rendimentos ao seu senhor proprietário para aumentar suas chances <strong>de</strong> comprar sua<br />
liberda<strong>de</strong>. Na situação já <strong>de</strong>scrita do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em que o escravo trabalhava para ganho <strong>de</strong> um<br />
senhor patrão a fim <strong>de</strong> fornecer uma renda ao seu senhor proprietário, surgia mesmo assim um problema.<br />
Isso acontecia quando o senhor patrão explorava o escravo até o esgotamento e a morte, causando, por<br />
conseqüência, uma perda não compensada por nenhum benefício para o senhor proprietário que perdia o<br />
capital que ele havia investido na compra do cativo. Para cobrir esses riscos, surgiu <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
companhias <strong>de</strong> seguro para segurar a vida dos escravos em benefício <strong>de</strong> seus senhores proprietários.
Eis o contexto social <strong>no</strong> qual se <strong>de</strong>senvolviu as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cândido, caçador <strong>de</strong> escravos fugidos,<br />
personagem central do conto <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>. Como ele fazia para ganhar sua vida na cida<strong>de</strong>? Pela<br />
manhã, lia os jornais <strong>no</strong>s quais havia muitos anúncios <strong>de</strong> escravos fugidos. Como não havia fotos <strong>no</strong>s<br />
jornais da época, as <strong>de</strong>scrições eram muito <strong>de</strong>talhadas, assinalando o sotaque do escravo, suas eventuais<br />
cicatrizes etc., à maneira da polícia francesa da época <strong>no</strong> tocante aos con<strong>de</strong>nados a trabalhos forçados que<br />
haviam fugido. Essa <strong>de</strong>scrição física comportava pontos imprecisos.<br />
Assim, após ter lido os anúncios e ter tomado <strong>no</strong>tas das características dos escravos fugidos que ele<br />
acreditava po<strong>de</strong>r cruzar nas ruas da cida<strong>de</strong>, Cândido saía para caçar. Com auxílio <strong>de</strong> uma corda, ele<br />
atacava a pessoa que julgava correspon<strong>de</strong>r a um anúncio <strong>de</strong>terminado. Antes <strong>de</strong> tornar-se um caçador <strong>de</strong><br />
escravos fugidos, Cândido havia tentado várias profissões sem sucesso. Entretempo, ele havia se casado<br />
com Clara, uma jovem orfã que vivia com sua tia.<br />
O casamento <strong>de</strong> Cândido também po<strong>de</strong> ser visto como algo que merece <strong>de</strong>staque. Apesar <strong>de</strong> ser ele<br />
alguém sem gran<strong>de</strong>s ambições e gostar <strong>de</strong> vida fácil, questiona-se porque se casaria com alguém que não<br />
po<strong>de</strong>ria dar-lhe boa vida? Sendo ela submissa e influenciável, infere-se que Clara legitimaria a vida<br />
medíocre ambicionada por Cândido Neves.<br />
Por não terem meios <strong>de</strong> estabelecerem-se por conta própria, o casal morava na casa da tia. Mas eles<br />
<strong>de</strong>sejavam muito ter um filho e algum tempo <strong>de</strong>pois Clara engravidou. O bebê ia nascer e a tia estava<br />
muito preocupada porque eles não tinham dinheiro, nem profissão fixa, e isso ia trazer problemas.<br />
Finalmente, quando Clara <strong>de</strong>u à luz um meni<strong>no</strong>, a tia a convence a abandonar a criança na Roda dos<br />
enjeitados, isto é, tratava-se <strong>de</strong> um guichê giratório instalado na fachada dos orfanatos; esse dispositivo<br />
permitia aos pais <strong>de</strong>positarem seu filho <strong>no</strong> a<strong>no</strong>nimato e com toda segurança. Isso existia também em Paris<br />
e em várias cida<strong>de</strong>s francesas <strong>no</strong> século XIX. Logo, a idéia <strong>de</strong> abandonar um recém-nascido era dolorosa<br />
mas, em último caso, não era escandalosa.<br />
Após muito hesitar, o pai, cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, pegou o nenê para levá-lo à Roda dos enjeitados do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro. Antes, ele <strong>de</strong>cidiu tentar, ainda uma vez, obter dinheiro para evitar a infelicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o<br />
filho. Retomou os jornais e suas fichas sobre os escravos fugidos. Selecio<strong>no</strong>u então um anúncio que<br />
prometia uma gran<strong>de</strong> recompensa por uma mulata fugida na cida<strong>de</strong>. O texto <strong>de</strong>screvia a aparência da<br />
escrava, os bairros que ela costumava freqüentar e seu <strong>no</strong>me: Arminda. Com o dinheiro da recompensa,<br />
Cândido podia pagar suas dívidas e ter um <strong>de</strong>scanso. Sobretudo, isso permitiria ao casal ficar com o filho.<br />
Após ter relido a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>ssa escrava, ele teve a impressão <strong>de</strong> já tê-la visto em um dos bairros do Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro. No caminho que o levava em direção à Roda, ele <strong>de</strong>cidiu <strong>de</strong>ixar o bebê com um <strong>de</strong> seus<br />
conhecidos para tentar, uma última vez, encontrar a mulata em <strong>de</strong>terminadas ruas da cida<strong>de</strong>. Vai a esse<br />
lugar e eis que ele percebe a pessoa em questão. Ele a seguiu quase certo <strong>de</strong> que se tratava da escrava<br />
fugida <strong>de</strong>scrita <strong>no</strong> anúncio. Chamou-a por seu <strong>no</strong>me: Arminda. Ela virou-se.<br />
Certo <strong>de</strong> que era sua presa, Cândido saltou sobre Arminda. Eles se bateram e ela lhe diz suplicando:<br />
"estou grávida, me solte, eu serei sua escrava". De fato, <strong>no</strong> sistema escravagista, também era uso que os<br />
indivíduos escon<strong>de</strong>ssem e conservassem para seus próprios serviços escravos fugidos pertencentes a<br />
terceiros. Cândido recusou e arrastou-a até a casa <strong>de</strong> seu senhor que morava em um bairro próximo.<br />
<strong>Machado</strong> <strong>de</strong>screveu bem a seqüência da cena e os leitores <strong>de</strong>sse conto publicado em um jornal da época<br />
não tinham nenhuma dificulda<strong>de</strong> para seguir os itinerários.<br />
Na medida em que eles se aproximavam da casa do senhor, Arminda reagiu ainda mais, ela se <strong>de</strong>batia e<br />
termi<strong>no</strong>u por abortar na entrada da casa. O proprietário <strong>de</strong> Arminda chegou e <strong>de</strong>u a recompensa a<br />
Cândido. Esse voltou com o dinheiro e, após um peque<strong>no</strong> suspense, recuperou seu nenê.<br />
Sucintamente, chegando na casa <strong>de</strong>le, viu a tia <strong>de</strong> sua mulher e contou-lhe o que se passou. É interessante
porque aqui a mãe não está presente, é um diálogo em que a mãe não intervém mais, somente a tia. Ele<br />
conta-lhe a história <strong>de</strong> Arminda e <strong>de</strong> seu aborto.<br />
O narrador do texto é um elemento importante para a construção da ironia nesta narrativa. Em terceira<br />
pessoa, como já citado aqui, a sua perspectiva aproxima o leitor do tempo e do espaço através <strong>de</strong> relatos<br />
históricos sobre os fatos que envolviam a escravidão, como na <strong>de</strong>scrição das cruelda<strong>de</strong>s das quais os<br />
escravos eram vítimas. Pareciam ser transformados em coisas, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser huma<strong>no</strong>s. Por exemplo,<br />
quando fugiam ―gran<strong>de</strong> parte era apenas repreendida; havia alguém em casa que servia <strong>de</strong> padrinho, e o<br />
mesmo do<strong>no</strong> não era mau; além disso, o sentimento da proprieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rava a ação, por que dinheiro<br />
também dói‖. O escravo, essa coisa, objeto, mesmo quando fugisse, não po<strong>de</strong>ria sofrer muitos castigos, já<br />
que estes po<strong>de</strong>riam impedi-lo <strong>de</strong> prestar os serviços necessários a seu senhor, inutilizando-o, causando<br />
assim, gran<strong>de</strong> prejuízo.<br />
Quando o narrador comenta ―nem todos gostavam da escravidão‖ e ―nem todos gostavam <strong>de</strong> apanhar<br />
pancadas‖, qual pessoa gostaria <strong>de</strong> viver em completa escravidão, à mercê dos mandos e <strong>de</strong>smandos <strong>de</strong><br />
alguém e, ainda por cima, levar algumas pancadas? Com sua ironia, parece que é ele, quem dá uma<br />
pancada <strong>no</strong> sistema <strong>de</strong> escravatura.<br />
A questão da intertextualida<strong>de</strong> <strong>no</strong>s textos machadia<strong>no</strong>s com outros textos, po<strong>de</strong>-se perceber através do<br />
processo <strong>de</strong> construção da personagem principal, Cândido, que do latim significa ―alvo‖, ―puro‖,<br />
―imaculado‖. Nome que foi gran<strong>de</strong>mente popularizado pelo título <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> Voltaire, sátira ao<br />
otimismo <strong>de</strong> Leibniz, então em voga, que diz que <strong>no</strong>s encontramos <strong>no</strong> melhor dos mundos possíveis. É<br />
pertinente a comparação do Cândido <strong>de</strong> Voltaire e o <strong>de</strong> <strong>Machado</strong>, já que ambos são responsáveis por<br />
ironizar uma idéia vigente ou um sistema: um o otimismo <strong>de</strong>senfreado; e outro, o sistema da escravidão<br />
em que negros são tratados como objetos e não como seres huma<strong>no</strong>s. Po<strong>de</strong>mos dizer que os dois<br />
Cândidos estão longe <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que o mundo em que vivem é o melhor dos mundos possíveis.<br />
O protagonista da obra <strong>de</strong> Voltaire é também chamado Cândido, o otimista, já que atravessa um sem fim<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sventuras e sempre busca encontrar o lado positivo da situação, seguindo os ensinamentos <strong>de</strong> seu<br />
mestre Panglós. O seu caráter é o reflexo <strong>de</strong> sua alma, é sensível, apaziguador e sensato: ―o seu rosto era<br />
o espelho da alma. Era <strong>de</strong> entendimento claro e espírito simples; e foi essa a razão por que lhe <strong>de</strong>ram o<br />
<strong>no</strong>me <strong>de</strong> Cândido. Aqui po<strong>de</strong>-se dizer que resi<strong>de</strong> a ironia do Cândido machadia<strong>no</strong>, pois seu caráter não<br />
revela nenhuma candura, antes pelo contrário mostra-se insensível ao aborto da escrava, é extremamente<br />
<strong>de</strong>suma<strong>no</strong> arrastando-a pelas ruas até a casa do seu senhor, pois o que realmente importa para ele é<br />
conseguir alcançar o seu propósito, que é ficar com o seu filho. O egoísmo é sua marca principal.<br />
A idéia <strong>de</strong> progresso e perfeição na citada obra <strong>de</strong> Voltaire está basicamente ligada ao trabalho: ―quando<br />
o homem foi posto <strong>no</strong> jardim do É<strong>de</strong>n, foi ali posto para trabalhar, ut opereratur eum, o que prova que<br />
não foi criado para repouso‖. Voltaire faz um homem tornar-se perfeito, além <strong>de</strong> dar-lhe melhores<br />
condições <strong>de</strong> vida, ou seja, ninguém é realmente feliz até que comece a trabalhar. Extremamente irônico,<br />
<strong>Machado</strong> constrói um Cândido que tem uma aversão ao trabalho, para ele todo oficio é custoso, além<br />
disso, muitas vezes, quem trabalha não recebe o que merece. Assim seus ―empregos foram <strong>de</strong>ixados<br />
pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> obtidos". Então lhe restou o oficio <strong>de</strong> pegar escravos fugidos, já que este estava<br />
<strong>de</strong>stinado aos inaptos para outros trabalhos, como era o seu caso. Ele, porém, tinha necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
estabilida<strong>de</strong>, e consi<strong>de</strong>rava isso má sorte ou infelicida<strong>de</strong> constante, ao contrário do Cândido <strong>de</strong> Voltaire,<br />
sempre otimista. Este, todavia, <strong>no</strong> fim da obra, aceita que é mais importante a ação sobre a reflexão<br />
filosófica. Melhor que ficar pensando <strong>no</strong>s dramas existenciais é colocar-se a trabalhar, pois só o trabalho<br />
po<strong>de</strong> ser o remédio para muitos males, o que não pensa o Candinho <strong>de</strong> <strong>Machado</strong>.<br />
É conveniente também citar a ironia presente na construção <strong>de</strong> duas personagens do conto. Clara, cujo<br />
<strong>no</strong>me do latim significa ―brilhante‖, ―luzente‖, ―ilustre‖, além da tonalida<strong>de</strong>, seu <strong>no</strong>me é ligado ao brilho<br />
(<strong>de</strong> distinção). Distinção essa não revelada por sua personalida<strong>de</strong> que mesmo em meio à perda <strong>de</strong> seu
filho, não esboça nenhuma reação e é sempre submissa aos <strong>de</strong>smandos da tia. Mônica, a tia, significa só,<br />
sozinha, viúva, o que não acontece <strong>no</strong> texto, pois está, geralmente, perto do casal, abrigando-os,<br />
participando <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões, opinando, não fica sozinha, vive em companhia dos dois.<br />
Para dar verossimilhança aos fatos e reforçar a ironia à escravatura e à diminuição dos seres, o espaço<br />
ambiente, na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, é fundamental, pois sabe-se que os <strong>no</strong>mes das ruas em que se<br />
<strong>de</strong>senrola a ação, são <strong>no</strong>mes reais, e que muitos são os mesmos até hoje. Fato que torna essa narrativa<br />
extremamente passível <strong>de</strong> verossimilhança externa.<br />
<strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> apresenta um pessimismo, cuja fonte está em Schopenhauer, pensador alemão, que<br />
afirmava que a essência do universo é a vonta<strong>de</strong> ou o querer, entida<strong>de</strong> da qual emana a parte verda<strong>de</strong>ira<br />
dos indivíduos. Mas a vonta<strong>de</strong>, tanto em estado cósmico quanto individual, é má, pois provoca a agitação,<br />
o egoísmo, o ciúme. Por isso a personagem principal age como age, coloca a sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar<br />
com o filho acima <strong>de</strong> qualquer outra coisa, por isso é levado a agir com egoísmo, luta corpo a corpo com<br />
a escrava para po<strong>de</strong>r entregá-la a seu senhor, e receber o dinheiro da recompensa, sem ao me<strong>no</strong>s pensar<br />
que po<strong>de</strong>ria agir <strong>de</strong> outra forma para não maltratá-la, já que estava grávida.<br />
Vladimir Propp, em Morfologia do conto maravilhoso, relaciona trinta e uma funções ao estudar,<br />
porme<strong>no</strong>rizadamente, contos populares russos, porém, i<strong>de</strong>ntificam-se algumas <strong>de</strong>stas facilmente neste<br />
conto <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>. Através <strong>de</strong>las po<strong>de</strong>-se perceber como se <strong>de</strong>senrolou a ação da personagem<br />
principal, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um enredo curto, sendo ele um pai que vai lutar para continuar com seu filho, a ironia<br />
aqui consiste em não ser a mãe a responsável por essa luta, já que em <strong>no</strong>ssa concepção, a mãe é mais<br />
ligada ao filho, por isso mais difícil perdê-lo.<br />
Na função "afastamento", po<strong>de</strong>-se salientar a tentativa <strong>de</strong> Candinho em <strong>de</strong>ixar o ócio em que vivia e<br />
apren<strong>de</strong>r um ofício, já que agora estava apaixonado por Clara e queria ter em que trabalhar quando<br />
casasse.<br />
Na função <strong>de</strong>finida como "ardil", o Cândido Neves sofreu com as interferências da Tia Mônica que era<br />
contra o casamento da sobrinha com a <strong>no</strong>ssa personagem e também das amigas <strong>de</strong> Clara que ―tentaram<br />
arredá-la do passo que ia dar‖.<br />
Na função que trata da reação do herói, Candinho ficou muito triste por que agora ele tinha um filho para<br />
sustentar, as dificulda<strong>de</strong>s aumentaram e ele, que agora virara caçador <strong>de</strong> escravos fugitivos, não<br />
conseguia empreitada que lhe ren<strong>de</strong>sse algum dinheiro.<br />
Em outra função, o herói luta para conquistar um objeto, quando a <strong>no</strong>ssa personagem <strong>de</strong>scobriu em suas<br />
<strong>no</strong>tas <strong>de</strong> escravos fugidos o anúncio da fuga <strong>de</strong> uma mulata em que a gratificação subia a cem mil-réis,<br />
achar a escrava seria a salvação, não teria que entregar seu filho à roda <strong>de</strong> enjeitados como queria a tia <strong>de</strong><br />
sua mulher: ―...agora, porém, a vista <strong>no</strong>va da quantia e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la animaram Cândido Neves.<br />
Saiu <strong>de</strong> manhã a ver e indagar...‖.<br />
Po<strong>de</strong>-se salientar também a presença da função <strong>de</strong>finida como "perseguição" quando Cândido, ao ir<br />
entregar seu filho, encontrou por acaso a escrava fugitiva, <strong>de</strong>ixou o filho em uma farmácia e saiu em sua<br />
perseguição: ―atravessou a rua, até o ponto em que pu<strong>de</strong>sse pegar a mulher sem dar alarma‖.<br />
Em outra função, a tarefa é realizada e o herói é reconhecido. A <strong>no</strong>ssa personagem captura a escrava,<br />
entrega-a a seu do<strong>no</strong>, e recebe a recompensa e volta para casa entre lágrimas com seu filho <strong>no</strong>s braços.<br />
Tia Mônica que não queria saber da criança, ouve a explicação e perdoa a volta do peque<strong>no</strong>, uma vez que<br />
ele trazia um bom dinheiro para a subsistência da família.
Tendo em vista os aspectos observados, acredita-se que <strong>Machado</strong> ao construir este conto utilizou<br />
elementos que acetuam o tom irônico <strong>de</strong> suas palavras.<br />
Fontes: Izaura da Silva Cabral, Espéculo, Revista <strong>de</strong> estudos literários, Universidad Complutense <strong>de</strong><br />
Madrid | Denisia Gomes Pimenta, 3º período do curso <strong>de</strong> Letras | Luiz Felipe <strong>de</strong> Alencastro, Professor <strong>de</strong><br />
História do Brasil, Universida<strong>de</strong> Paris IV<br />
Teoria do Medalhão (Conto <strong>de</strong> Papéis avulsos), <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Assis</strong><br />
O conto, Teoria do Medalhão, <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, traz uma análise do comportamento <strong>de</strong> alguns<br />
membros da socieda<strong>de</strong>. Descreve-os <strong>de</strong> maneira extremamente clara, precisa, com um humor recatado,<br />
ironizando-os usando como pa<strong>no</strong> <strong>de</strong> fundo uma conversa "i<strong>no</strong>cente" como a <strong>de</strong> um pai com um filho.<br />
Este conto, um dos mais <strong>de</strong>liciosos libelos do escritor contra a mediocrida<strong>de</strong> intelectual e social, é satírico<br />
por excelência, lembrando a ironia filosófica dos relatos curtos <strong>de</strong> Voltaire. Praticamente sem ação, seu<br />
núcleo temático gira em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> uma exposição <strong>de</strong> idéias cínicas, através do diálogo entre pai e filho.<br />
Teoria do Medalhão <strong>de</strong>senvolve com muita ironia as mesmas questões levantadas pelo conto O Espelho.<br />
O narrador ce<strong>de</strong> seu espaço à reprodução das falas das duas únicas personagens: pai e filho. O tom<br />
terrivelmente irônico da fala do pai revela, obviamente, a <strong>de</strong>núncia feita pelo autor por trás do conto em<br />
relação a uma socieda<strong>de</strong> burguesa medíocre e arrogante, que prega o sucesso a qualquer preço, mesmo à<br />
custa do empobrecimento da vida interior e das relações humanas.<br />
O diálogo familiar acontece numa <strong>no</strong>ite às onze horas, após um jantar comemorativo dos 21 a<strong>no</strong>s do filho.<br />
Quando pai e filho ficam a sós na sala, este aconselha o filho a se tornar um Medalhão, ou seja, um<br />
homem que ao chegar à velhice, tenha adquirido respeito e fama na socieda<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro do século<br />
XIX. Para tanto, será necessário que ele mu<strong>de</strong> seus hábitos e costumes e passe a viver sob uma máscara,<br />
anulando os seus gostos pessoais e suas atitu<strong>de</strong>s. E nisso disserta sobre a necessida<strong>de</strong> do filho <strong>de</strong> sempre<br />
manter-se neutro, usar e abusar <strong>de</strong> palavras sem sentido, conhecer pouco, ter vocabulário limitado etc. Ao<br />
final, é uma bela ironia machadiana sobre como encontram-se os valores da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua época.<br />
Portanto, o medalhão, tipo criado pelo autor neste conto, se caracteriza por aparentar ser o que não é.<br />
Caracteriza-se, sobretudo, por ter, como <strong>no</strong>s medalhões, uma face oculta e sem atrativos, voltada apenas<br />
para o corpo do do<strong>no</strong>, e outra, vistosa, virada para o exterior, para ser vista e admirada, respeitada.<br />
Teoria do medalhão é um dos contos que mostra <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> como um crítico afiado da socieda<strong>de</strong><br />
brasileira <strong>no</strong> que ela tem <strong>de</strong> mais profundo: a mediocrida<strong>de</strong> con<strong>de</strong>corada, a troca <strong>de</strong> favores como motor<br />
básico das relações sociais, a hipocrisia, tudo aquilo que perduraria para além da troca <strong>de</strong> regime. O conto<br />
é uma lição a todo homem que almeja ter prestígio, ser reconhecido pela socieda<strong>de</strong> e que elimina<br />
qualquer expressão da subjetivida<strong>de</strong> em <strong>no</strong>me da absorção ao senso comum, à opinião da maioria.<br />
O conto não tem um narrador. De um lado, a presença <strong>de</strong> um pai que quer projetar seus i<strong>de</strong>ais frustrados<br />
<strong>de</strong> sucesso <strong>no</strong> jovem filho; <strong>de</strong> outro lado, o filho que se sujeita a aceitar passivamente as imposições do<br />
pai, anulando-se.<br />
Os papéis sociais <strong>no</strong> conto machadia<strong>no</strong>, pertencem, num primeiro momento, a um grupo restrito: pai e<br />
filho. As personagens não possuem <strong>no</strong>mes e são, portanto, caracterizadas somente pela posição que<br />
ocupam <strong>no</strong> grupo familiar. Num segundo momento, <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr da narrativa, há a construção <strong>de</strong> um<br />
terceiro papel social, este pertencente a um grupo mais amplo: o Medalhão.
No diálogo estabelecido <strong>no</strong> conto, há a presença das formas <strong>de</strong> tratamento. O pai dirige-se ao filho sempre<br />
utilizando a 2ª pessoa pro<strong>no</strong>minal: tu, te, contigo, teu etc.; o filho, por sua vez, utiliza-se a 3ª pessoa, com<br />
valor <strong>de</strong> 2ª pessoa: vosmecê, lhe, o senhor etc. No primeiro caso, a presença da 2ª pessoa dá um valor <strong>de</strong><br />
proximida<strong>de</strong> ao discurso (ou tentativa <strong>de</strong>), dando um maior sentimento <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>. No segundo caso, o<br />
uso da 3ª pessoa, mostra uma aceitação do discurso pater<strong>no</strong>, como se não houvesse outro meio <strong>de</strong><br />
discussão. É a aceitação pacífica do papel social que cabe ao filho <strong>no</strong> final do século XIX.<br />
Leia o conto na íntegra:<br />
A TEORIA DO MEDALHÃO<br />
- Estás com so<strong>no</strong>?<br />
- Não, senhor.<br />
- Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?<br />
- Onze.<br />
- Saiu o último conviva do <strong>no</strong>sso mo<strong>de</strong>sto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um<br />
a<strong>no</strong>s. Há vinte e um a<strong>no</strong>s, <strong>no</strong> dia 5 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1854, vinhas tu à luz, um pirralho <strong>de</strong> nada, e estás<br />
homem, longos bigo<strong>de</strong>s, alguns namoros...<br />
- Papai...<br />
- Não te ponhas com <strong>de</strong>nguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te<br />
coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um a<strong>no</strong>s, algumas apólices, um diploma, po<strong>de</strong>s entrar<br />
<strong>no</strong> parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, <strong>no</strong> comércio, nas letras ou nas<br />
artes. Há infinitas carreiras diante <strong>de</strong> ti. Vinte e um a<strong>no</strong>s, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do<br />
<strong>no</strong>sso <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar <strong>de</strong> precoces, não foram tudo aos vinte e um a<strong>no</strong>s. Mas<br />
qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu <strong>de</strong>sejo é que te faças gran<strong>de</strong> e ilustre, ou pelo me<strong>no</strong>s<br />
<strong>no</strong>tável, que te levantes acima da obscurida<strong>de</strong> comum. A vida, Janjão, é uma e<strong>no</strong>rme loteria; os prêmios<br />
são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros <strong>de</strong> uma geração é que se amassam as esperanças<br />
<strong>de</strong> outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus<br />
e percalços, glórias e <strong>de</strong>sdouros, e ir por diante.<br />
- Sim, senhor.<br />
- Entretanto, assim como é <strong>de</strong> boa eco<strong>no</strong>mia guardar um pão para a velhice, assim também é <strong>de</strong> boa<br />
prática social acautelar um ofício para a hipótese <strong>de</strong> que os outros falhem, ou não in<strong>de</strong>nizem<br />
suficientemente o esforço da <strong>no</strong>ssa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maiorida<strong>de</strong>.<br />
- Creia que lhe agra<strong>de</strong>ço; mas que ofício, não me dirá?<br />
- Nenhum me parece mais útil e cabido que o <strong>de</strong> medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha<br />
mocida<strong>de</strong>; faltaram-me, porém, as instruções <strong>de</strong> um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo<br />
moral, além das esperanças que <strong>de</strong>posito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e enten<strong>de</strong>. És<br />
moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da ida<strong>de</strong>; não os rejeites, mas mo<strong>de</strong>ra-os<br />
<strong>de</strong> modo que aos quarenta e cinco a<strong>no</strong>s possas entrar francamente <strong>no</strong> regime do aprumo e do compasso. O<br />
sábio que disse: "a gravida<strong>de</strong> é um mistério do corpo", <strong>de</strong>finiu a compostura do medalhão. Não confundas<br />
essa gravida<strong>de</strong> com aquela outra que, embora resida <strong>no</strong> aspecto, é um puro reflexo ou emanação do<br />
espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à ida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> quarenta e cinco a<strong>no</strong>s...<br />
- É verda<strong>de</strong>, por que quarenta e cinco a<strong>no</strong>s?<br />
- Não é, como po<strong>de</strong>s supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data <strong>no</strong>rmal do fenôme<strong>no</strong>.<br />
Geralmente, o verda<strong>de</strong>iro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta a<strong>no</strong>s,<br />
conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os<br />
também <strong>de</strong> quarenta a<strong>no</strong>s, e outros mais precoces, <strong>de</strong> trinta e cinco e <strong>de</strong> trinta; não são, todavia, vulgares.<br />
Não falo dos <strong>de</strong> vinte e cinco a<strong>no</strong>s: esse madrugar é privilégio do gênio.<br />
- Entendo.
- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, <strong>de</strong>ves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres<br />
<strong>de</strong> nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que enten<strong>de</strong>rás bem,<br />
imaginando, por exemplo, um ator <strong>de</strong>fraudado do uso <strong>de</strong> um braço. Ele po<strong>de</strong>, por um milagre <strong>de</strong> artifício,<br />
dissimular o <strong>de</strong>feito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as<br />
idéias; po<strong>de</strong>-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilida<strong>de</strong> é comum,<br />
nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.<br />
- Mas quem lhe diz que eu...<br />
- Tu, meu filho, se me não enga<strong>no</strong>, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso <strong>de</strong>ste<br />
<strong>no</strong>bre ofício. Não me refiro tanto à fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa<br />
esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência <strong>de</strong> idéias, ainda assim po<strong>de</strong> não<br />
passar <strong>de</strong> uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expen<strong>de</strong>r<br />
francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte <strong>de</strong> um colete, das dimensões <strong>de</strong> um chapéu, do<br />
ranger ou calar das botas <strong>no</strong>vas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, po<strong>de</strong>ndo<br />
acontecer que, com a ida<strong>de</strong>, venhas a ser afligido <strong>de</strong> algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o<br />
espírito. As idéias são <strong>de</strong> sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e<br />
precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente <strong>de</strong>licado, distingue o medalhão<br />
completo do medalhão incompleto.<br />
- Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.<br />
- Não é; há um meio; é lançar mão <strong>de</strong> um regime <strong>de</strong>bilitante, ler compêndios <strong>de</strong> retórica, ouvir certos<br />
discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem<br />
<strong>de</strong> acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação,<br />
da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem<br />
repousar, restituem-lhe as forças e a ativida<strong>de</strong> perdidas. O bilhar é excelente.<br />
- Como assim, se também é um exercício corporal?<br />
- Não digo que não, mas há coisas em que a observação <strong>de</strong>smente a teoria. Se te aconselho<br />
excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos<br />
habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas <strong>de</strong> recreio e<br />
parada, é utilíssimo, com a condição <strong>de</strong> não andares <strong>de</strong>sacompanhado, porque a solidão é oficina <strong>de</strong><br />
idéias, e o espírito <strong>de</strong>ixado a si mesmo, embora <strong>no</strong> meio da multidão, po<strong>de</strong> adquirir uma tal ou qual<br />
ativida<strong>de</strong>.<br />
- Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?<br />
- Não faz mal; tens o valente recurso <strong>de</strong> mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se<br />
dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra, razão que me escapa, não<br />
são propícias ao <strong>no</strong>sso fim; e, não obstante, há gran<strong>de</strong> conveniência em entrar por elas, <strong>de</strong> quando em<br />
quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Po<strong>de</strong>s resolver a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um modo simples: vai ali<br />
falar do boato do dia, da anedota da semana, <strong>de</strong> um contrabando, <strong>de</strong> uma calúnia, <strong>de</strong> um cometa, <strong>de</strong><br />
qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas <strong>de</strong><br />
Maza<strong>de</strong>; 75 por cento <strong>de</strong>sses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal<br />
mo<strong>no</strong>tonia é gran<strong>de</strong>mente saudável. Com este regime, durante oito, <strong>de</strong>z, <strong>de</strong>zoito meses - suponhamos dois<br />
a<strong>no</strong>s, - reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobrieda<strong>de</strong>, à disciplina, ao equilíbrio comum.<br />
Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido <strong>no</strong> uso das idéias; há <strong>de</strong> ser naturalmente simples,<br />
tíbio, apoucado, sem <strong>no</strong>tas vermelhas, sem cores <strong>de</strong> clarim... - Isto é o diabo! Não po<strong>de</strong>r adornar o estilo,<br />
<strong>de</strong> quando em quando...<br />
- Po<strong>de</strong>s; po<strong>de</strong>s empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra <strong>de</strong> Lerna, por exemplo, a cabeça <strong>de</strong><br />
Medusa, o tonel das Danai<strong>de</strong>s, as asas <strong>de</strong> Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam<br />
sem <strong>de</strong>sar, quando precisam <strong>de</strong>las. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos<br />
jurídicos, máximas, é <strong>de</strong> bom aviso trazê-los contigo para os discursos <strong>de</strong> sobremesa, <strong>de</strong> felicitação, ou <strong>de</strong><br />
agra<strong>de</strong>cimento. Caveant consules é um excelente fecho <strong>de</strong> artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem<br />
para bellum. Alguns costumam re<strong>no</strong>var o sabor <strong>de</strong> uma citação intercalando-a numa frase <strong>no</strong>va, original e<br />
bela, mas não te aconselho esse artifício: seria <strong>de</strong>snaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso,<br />
porém, que afinal não passa <strong>de</strong> mero ador<strong>no</strong>, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas<br />
consagradas pelos a<strong>no</strong>s, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem <strong>de</strong>
não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relacio<strong>no</strong> agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o<br />
mesmo ofício te irá ensinando os elementos <strong>de</strong>ssa arte difícil <strong>de</strong> pensar o pensado. Quanto à utilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal.<br />
Eis aí uma questão que po<strong>de</strong> aguçar as curiosida<strong>de</strong>s vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma<br />
coleta fastidiosa <strong>de</strong> documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas<br />
possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do<br />
remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime <strong>de</strong> palavras, conceitos, e<br />
<strong>de</strong>svarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das<br />
leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum,<br />
resolve mais <strong>de</strong>pressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito <strong>de</strong> sol.<br />
- Vejo por aí que vosmecê con<strong>de</strong>na toda e qualquer aplicação <strong>de</strong> processos mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s.<br />
- Entendamo-<strong>no</strong>s. Con<strong>de</strong><strong>no</strong> a aplicação, louvo a <strong>de</strong><strong>no</strong>minação. O mesmo direi <strong>de</strong> toda a recente<br />
termi<strong>no</strong>logia científica; <strong>de</strong>ves <strong>de</strong>corá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitu<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>us Térmi<strong>no</strong>, e as ciências sejam obra do movimento huma<strong>no</strong>, como tens <strong>de</strong> ser medalhão mais tar<strong>de</strong>,<br />
convém tomar as armas do teu tempo. E <strong>de</strong> duas uma: - ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta<br />
a<strong>no</strong>s, ou conservar-se-ão <strong>no</strong>vas; <strong>no</strong> primeiro caso, pertencem-te <strong>de</strong> foro próprio; <strong>no</strong> segundo, po<strong>de</strong>s ter a<br />
coquetice <strong>de</strong> as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a que<br />
leis, casos e fenôme<strong>no</strong>s respon<strong>de</strong> toda essa termi<strong>no</strong>logia; porque o método <strong>de</strong> interrogar os próprios<br />
mestres e oficiais da ciência, <strong>no</strong>s seus livros, estudos e memórias, além <strong>de</strong> tedioso e cansativo, traz o<br />
perigo <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cular idéias <strong>no</strong>vas, e é radicalmente falso. Acresce que <strong>no</strong> dia em que viesses a assenhorearte<br />
do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual<br />
comedimento, como a costureira esperta e afreguesada, - que, segundo um poeta clássico, Quanto mais<br />
pa<strong>no</strong> tem, mais poupa o corte, Me<strong>no</strong>s monte alar<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> retalhos; e este fenôme<strong>no</strong>, tratando-se <strong>de</strong> um<br />
medalhão, é que não seria científico.<br />
- Upa! que a profissão é difícil!<br />
- E ainda não chegamos ao cabo.<br />
- Vamos a ele.<br />
- Não te falei ainda dos benefícios da publicida<strong>de</strong>. A publicida<strong>de</strong> é uma dona loureira e senhoril, que tu<br />
<strong>de</strong>ves requestar à força <strong>de</strong> peque<strong>no</strong>s mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem<br />
a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores <strong>de</strong>la<br />
mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio <strong>de</strong>sse ilustre lunático. O verda<strong>de</strong>iro medalhão<br />
tem outra política. Longe <strong>de</strong> inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro<br />
e dá-o aos amigos sob a forma <strong>de</strong> um jantar, cuja <strong>no</strong>tícia não po<strong>de</strong> ser indiferente aos seus concidadãos.<br />
Uma <strong>no</strong>tícia traz outra; cinco, <strong>de</strong>z, vinte vezes põe o teu <strong>no</strong>me ante os olhos do mundo. Comissões ou<br />
<strong>de</strong>putações para felicitar um agraciado, um b<strong>enem</strong>érito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e<br />
assim as irmanda<strong>de</strong>s e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos<br />
<strong>de</strong> certa or<strong>de</strong>m, embora <strong>de</strong> pouca monta, po<strong>de</strong>m ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua<br />
pessoa. Explico-me. Se caíres <strong>de</strong> um carro, sem outro da<strong>no</strong>, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos<br />
quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito <strong>de</strong> recordar um <strong>no</strong>me caro às<br />
afeições gerais. Percebeste?<br />
- Percebi.<br />
- Essa é publicida<strong>de</strong> constante, barata, fácil, <strong>de</strong> todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das<br />
artes, é fora <strong>de</strong> dúvida que o sentimento da família, a amiza<strong>de</strong> pessoal e a estima pública instigam à<br />
reprodução das feições <strong>de</strong> um homem amado ou b<strong>enem</strong>érito. Nada obsta a que sejas objeto <strong>de</strong> uma tal<br />
distinção, principalmente se a sagacida<strong>de</strong> dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso,<br />
não só as regras da mais vulgar poli<strong>de</strong>z mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria <strong>de</strong>sazado impedir<br />
que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o <strong>no</strong>me fica ligado à pessoa; os<br />
que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros,<br />
reconhecerão na compostura das feições o autor <strong>de</strong>ssa obra grave, em que a "alavanca do progresso" e o<br />
"suor do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria. No caso <strong>de</strong> que uma comissão te leve a casa o<br />
retrato, <strong>de</strong>ves agra<strong>de</strong>cer-lhe o obséquio com um discurso cheio <strong>de</strong> gratidão e um copo d'água: é uso<br />
antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou
duas pessoas <strong>de</strong> representação. Mais. Se esse dia é um dia <strong>de</strong> glória ou regozijo, não vejo que possas,<br />
<strong>de</strong>centemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações <strong>de</strong>sses<br />
cidadãos os retiverem <strong>no</strong>utra parte, po<strong>de</strong>s ajudá-los <strong>de</strong> certa maneira, redigindo tu mesmo a <strong>no</strong>tícia da<br />
festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás <strong>de</strong>sculpável, não queiras com a própria mão anexar<br />
ao teu <strong>no</strong>me os qualificativos dig<strong>no</strong>s <strong>de</strong>le, incumbe a <strong>no</strong>tícia a algum amigo ou parente.<br />
- Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.<br />
- Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva a<strong>no</strong>s, paciência, trabalho, e felizes<br />
os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscurida<strong>de</strong>. Mas os que<br />
triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas <strong>de</strong> Jericó ao som das trompas sagradas. Só então<br />
po<strong>de</strong>rás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase <strong>de</strong> ornamento indispensável, <strong>de</strong> figura<br />
obrigada, <strong>de</strong> rótulo. Acabou-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> farejar ocasiões, comissões, irmanda<strong>de</strong>s; elas virão ter<br />
contigo, com o seu ar pesadão e cru <strong>de</strong> substantivos <strong>de</strong>sadjetivados, e tu serás o adjetivo <strong>de</strong>ssas orações<br />
opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o <strong>no</strong>ticioso e suculento dos<br />
relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção i<strong>de</strong>alista e<br />
metafísica. O substantivo é a realida<strong>de</strong> nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.<br />
- E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os <strong>de</strong>ficits da vida?<br />
- Decerto; não fica excluída nenhuma outra ativida<strong>de</strong>.<br />
- Nem política?<br />
- Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Po<strong>de</strong>s pertencer a qualquer<br />
partido, liberal ou conservador, republica<strong>no</strong> ou ultramonta<strong>no</strong>, com a cláusula única <strong>de</strong> não ligar nenhuma<br />
idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilida<strong>de</strong> do scibboleth bíblico.<br />
- Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?<br />
- Po<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>ves; é um modo <strong>de</strong> convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à<br />
escolha: - ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos,<br />
força é confessá-lo, não <strong>de</strong>sdizem daquela chateza <strong>de</strong> bom-tom, própria <strong>de</strong> um medalhão acabado; mas, se<br />
pu<strong>de</strong>res, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente. Supõe que <strong>de</strong>sejas saber por que motivo a 7ª<br />
companhia <strong>de</strong> infantaria foi transferida <strong>de</strong> Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo<br />
ministro da guerra, que te explicará em <strong>de</strong>z minutos as razões <strong>de</strong>sse ato. Não assim a metafísica. Um<br />
discurso <strong>de</strong> metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as<br />
respostas. E <strong>de</strong>pois não obriga a pensar e <strong>de</strong>scobrir. Nesse ramo dos conhecimentos huma<strong>no</strong>s tudo está<br />
achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não<br />
transcendas nunca os limites <strong>de</strong> uma invejável vulgarida<strong>de</strong>.<br />
- Farei o que pu<strong>de</strong>r. Nenhuma imaginação?<br />
- Nenhuma; antes faze correr o boato <strong>de</strong> que um tal dom é ínfimo.<br />
Nenhuma filosofia?<br />
- Entendamo-<strong>no</strong>s: <strong>no</strong> papel e na língua alguma, na realida<strong>de</strong> nada. "Filosofia da história", por exemplo, é<br />
uma locução que <strong>de</strong>ves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não<br />
sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalida<strong>de</strong>, etc., etc.<br />
- Também ao riso?<br />
- Como ao riso?<br />
- Ficar sério, muito sério...<br />
- Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás <strong>de</strong> sofreá-lo nem eliminá-lo; po<strong>de</strong>s brincar e rir<br />
alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave po<strong>de</strong> ter seus momentos <strong>de</strong> expansão<br />
alegre. Somente, - e este ponto é melindroso...<br />
- Diga...<br />
- Somente não <strong>de</strong>ves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio <strong>de</strong> mistérios, inventado<br />
por algum grego da <strong>de</strong>cadência, contraído por Lucia<strong>no</strong>, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos<br />
cépticos e <strong>de</strong>sabusados. Não. Usa antes a chalaça, a <strong>no</strong>ssa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca,<br />
sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas<br />
veias, e arrebentar <strong>de</strong> riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?<br />
- Meia-<strong>no</strong>ite.
- Meia-<strong>no</strong>ite? Entras <strong>no</strong>s teus vinte e dois a<strong>no</strong>s, meu peralta; estás <strong>de</strong>finitivamente maior. Vamos dormir,<br />
que é tar<strong>de</strong>. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa <strong>de</strong>sta <strong>no</strong>ite vale<br />
o Príncipe <strong>de</strong> Machiavelli. Vamos dormir.<br />
Um homem célebre, conto da obra "Várias Histórias", <strong>de</strong><br />
<strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong><br />
Tipicamente machadia<strong>no</strong>, Um Homem Célebre, conto publicado, primeiramente, <strong>no</strong> periódico "A<br />
Estação", em 1883, e, posteriormente, <strong>no</strong> livro Várias Histórias, em 1896, aborda o tema da<br />
incompatibilida<strong>de</strong> entre os i<strong>de</strong>ais e a realida<strong>de</strong>, constituindo, uma quase parábola, a parábola da existência<br />
humana.<br />
Nele, <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong> mais uma vez não se atém somente ao aspecto historicista do Rio <strong>de</strong> Janeiro, na<br />
segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, invadido que foi pela música, ouvida nas ruas, advinda das casas, on<strong>de</strong><br />
havia saraus, ou mesmo assobiada por transeuntes que passeavam nelas.<br />
É a história da frustração <strong>de</strong> um compositor <strong>de</strong> polcas cujo maior <strong>de</strong>sejo era criar obras clássicas. Conto<br />
repleto <strong>de</strong> humor, mostra a cruel ironia do <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>, que persegue o pobre Pestana com as composições<br />
efêmeras <strong>de</strong> gosto popular, imediatamente "consagradas pelo assobio". Morre "bem com os homens e mal<br />
consigo mesmo".<br />
A temática básica <strong>de</strong>sse conto é a oposição entre vocação e ambição. Sua personagem principal, Pestana,<br />
é um famoso compositor <strong>de</strong> polcas, um estilo bastante popular <strong>de</strong> música, conhecido e louvado por todos<br />
que o cercam, mas ele vive um dilema pessoal: o<strong>de</strong>ia suas composições e toda a popularida<strong>de</strong> que elas lhe<br />
proporcionam. Seu gran<strong>de</strong> sonho é produzir música erudita <strong>no</strong> nível dos gran<strong>de</strong>s mestres, como Chopin,<br />
Mozart, Haydn, é ―compor uma peça erudita <strong>de</strong> alta qualida<strong>de</strong>, uma sonata, uma missa, como as que<br />
admira em Beethoven ou Mozart‖. A busca pela perfeição estética marca a trajetória do famoso músico,<br />
que vê todas as alternativas lhe serem negadas <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr da vida: ―Aspira ao ato completo, à obra<br />
total‖. No entanto, eram as polcas, sempre as polcas, que lhe vinham à cabeça durante os momentos <strong>de</strong><br />
composição:<br />
Às vezes, como que ia surgir das profun<strong>de</strong>zas do inconsciente uma aurora <strong>de</strong> idéia; ele corria ao pia<strong>no</strong>,<br />
para aventurá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão, a idéia esvaía-se (...) Então, irritado,<br />
erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a <strong>de</strong>z minutos, ei-lo outra<br />
vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao pia<strong>no</strong> (...) De repente (...) Compunha só teclando ou<br />
escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os<br />
olhos <strong>de</strong> Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, <strong>no</strong>vida<strong>de</strong>, escorriam-lhe da alma como <strong>de</strong> uma fonte<br />
perene. Em pouco tempo estava a polca feita. (ASSIS, 1997, p. 23)<br />
O protagonista do conto é apresentado tal como se encontra intimamente: ‖vexado e aborrecido‖. Já <strong>no</strong><br />
início da obra, <strong>de</strong>para-se com um Pestana incomodado e <strong>de</strong>scontente com a popularida<strong>de</strong> que existe em<br />
tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> suas composições. Quando solicitado para que tocasse uma <strong>de</strong> suas polcas na comemoração do<br />
aniversário da viúva Camargo, percebe a sintonia entre sua música e os convidados, apesar <strong>de</strong> tê-la<br />
publicado apenas vinte dias antes. Frente ao ocorrido, qualquer compositor se sentiria realizado. Pestana,<br />
entretanto, abandona o recinto alegando estar com dor <strong>de</strong> cabeça e fica mais angustiado ainda quando<br />
ouve, nas ruas, uma <strong>de</strong> suas polcas sendo assobiadas. Segundo J. C. Garbuglio, existe uma distinção<br />
muito gran<strong>de</strong> entre o pretendido e o alcançado na vida do compositor: nem mesmo as aclamações por<br />
parte da população facilitam e diminuem a dificulda<strong>de</strong> que há <strong>no</strong> caminho para se ir do anseio à<br />
realização, que é o ―local‖ em que se encontra o músico <strong>no</strong> conto Um Homem Célebre.<br />
Diante <strong>de</strong> tal situação, Pestana sente-se diminuído em suas produções, pois não quer compor apenas para
as massas, quer ser portador <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo que simbolize e represente algo mais elaborado e elevado, que<br />
o transporte para além do seu momento, e não, simplesmente, o consagre na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua existência.<br />
Essa plenitu<strong>de</strong> efêmera representa pouco para o compositor. Sua ambição é a eternida<strong>de</strong>.<br />
O <strong>de</strong>sencontro é o que permeia a vida do protagonista Pestana. Esse problema é fundamental na<br />
formulação e interpretação do homem machadia<strong>no</strong>. ‗Malentendido original‘, ou portador <strong>de</strong> tal atribuição,<br />
ele ganha estatuto centralizador da vida social e individual e se transforma em guia e <strong>de</strong>sgover<strong>no</strong> da<br />
criatura, para fazer do homem vítima e joguete <strong>de</strong> sua tessitura.<br />
O início <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sencontro está na busca da satisfação pessoal, <strong>no</strong> <strong>de</strong>sejo huma<strong>no</strong> <strong>de</strong> realizar algo e nas<br />
interferências e dificulda<strong>de</strong>s que aparecem diante <strong>de</strong>ssa vonta<strong>de</strong>, frustrando sua realização: há um<br />
impasse entre o anseio pessoal e a expressão do que se consegue ou se tenta conseguir. Pesta, o célebre<br />
compositor <strong>de</strong> polcas, vive triste e macambúzio; tem o po<strong>de</strong>r criador e o domínio da língua, mas quer algo<br />
mais. Suas polcas não o conduzem ao encontro da satisfação plena, pois, para ele, representam algo<br />
inferior, que está apenas ligado ao sucesso. Pestana quer compor música erudita, uma forma superior <strong>de</strong><br />
arte, que o leve à imortalida<strong>de</strong>. Sem os clássicos, há falta <strong>de</strong> glória; há, portanto, uma vida diretamente<br />
ligada à tristeza. ―Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?‖ (ASSIS, 1997, p.<br />
23)<br />
Esses <strong>de</strong>sencontros são contradições: contradição entre o parecer e o ser, entre a máscara e o <strong>de</strong>sejo, entre<br />
o que é público e a vida interior. E o protagonista <strong>de</strong> Um Homem Célebre vive, mesmo, envolto em<br />
contradições: é um famoso compositor <strong>de</strong> polcas, mas quer compor música erudita, assim como os<br />
―santos‖ que cultua: Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Shumann etc; <strong>de</strong>seja a glória com a produção <strong>de</strong><br />
algo superior, mas sobrevive das suas polcas; é uma celebrida<strong>de</strong> entre seus compatriotas, mas vive<br />
frustrado perante a sua falta <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> para a tão <strong>de</strong>sejada glória e imortalida<strong>de</strong>.<br />
Tamanha é a obstinação do músico para alcançar sua ambição, que chega até a se casar com uma cantora<br />
lírica tísica, Maria, crendo que, convivendo com ela, finalmente teria a fatídica inspiração. Mas sua<br />
vocação mais uma vez é colocada em segundo pla<strong>no</strong> quando se casa:<br />
O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilida<strong>de</strong> e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente<br />
consi<strong>de</strong>rava-se um arruador <strong>de</strong> horas mortas; tinha as polcas por aventura <strong>de</strong> petimetres. Agora sim, é<br />
que ia engendrar uma família <strong>de</strong> obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas. (ASSIS, 1997, p. 25)<br />
Contudo, ainda que sob o efeito <strong>de</strong> tal estratégia, mais uma vez sua investida ao tão sonhado mundo<br />
erudito cai por terra, pois, nem após a morte <strong>de</strong> sua esposa, quando se propõe a compor um Réquiem para<br />
executar <strong>no</strong> seu primeiro aniversário <strong>de</strong> morte, consegue realizar seu intento. Talvez, Pestana não pu<strong>de</strong>sse<br />
(ou simplesmente não quisesse) <strong>de</strong>sistir; o que se sabe, apenas, é que as lágrimas caídas <strong>de</strong> seus olhos<br />
durante o ocorrido se confundiam entre a dor do marido e a infertilida<strong>de</strong> do compositor.<br />
E é assim que o personagem principal do conto se encontra durante toda a narrativa: confuso, frustrado e<br />
triste. Seu dilema entre ser brasileiro e produzir <strong>de</strong> acordo com as condições sociais internas ou usar uma<br />
imagem já fabricada (e consagrada) pela arte européia coloca-o diante <strong>de</strong> uma glória efêmera, não<br />
i<strong>de</strong>alizada por ele, distanciando-o do reconhecimento eter<strong>no</strong> que, segundo o músico, só seria alcançado se<br />
compusesse seguindo os padrões dos compositores clássicos por ele admirados.<br />
E, em meio a toda essa <strong>de</strong>silusão, aparece ainda o editor, importante peça do conto, que traz consigo uma<br />
carga muito pesada, que é transposta para Pestana: é ele quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> os títulos das polcas, serve-se do<br />
produto totalmente, e controla o sistema, indicando sobre o que e quando o músico <strong>de</strong>ve compor. Suas<br />
escolhas ren<strong>de</strong>m-se às convenções: seu objetivo é a venda fácil, por isso age <strong>de</strong> forma a regular o<br />
mercado, levando Pestana a produzir discorrendo sobre os temas que ele, o editor, acredita serem <strong>de</strong><br />
interesse da população.
Nesse sentido, a realização inatingível das composições i<strong>de</strong>alizadas por Pestana dá lugar, como eixo<br />
central do conto, à postura do editor, figura que <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r sobre as produções.<br />
Em Um Homem Célebre, <strong>Machado</strong> adota um viés que <strong>no</strong>s leva para uma sucessão <strong>de</strong> fatos que expõem<br />
alguns problemas: os da arte, os do artista e os da socieda<strong>de</strong> em que este e aquela estão inseridos. Mais<br />
que um problema situado entre a realização e o <strong>de</strong>sejo, Pestana enfrenta uma <strong>de</strong>licada relação entre<br />
produção, público e valorização.<br />
Para não chegar a essa condição marginal, <strong>no</strong>sso protagonista vive em meio a sua ambição, a sua<br />
vocação, a seu editor e a seus compatriotas, ren<strong>de</strong>ndo-se, em seus últimos momentos, a uma força maior<br />
que o atormenta durante toda sua existência: produzir aquilo que parece ser sua vocação e, ainda, <strong>de</strong><br />
acordo com as <strong>de</strong>terminações <strong>de</strong> seu editor. Assim, o narrador <strong>de</strong> <strong>Machado</strong>, nessa que po<strong>de</strong> ser<br />
consi<strong>de</strong>rada uma das mais complexas obras do autor, encerra a apresentação da vida <strong>de</strong> Pestana, fazendo<br />
questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar clara a situação na qual o compositor <strong>de</strong>ixa o mundo: ―bem com os homens e mal<br />
consigo mesmo‖ (ASSIS, 1997, p. 27), <strong>de</strong>stacando o fim do longo percurso percorrido entre o que o<br />
compositor era e o que (inutilmente) <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>u toda sua vida a ser.<br />
O drama <strong>de</strong> Pestana mostra-<strong>no</strong>s a impotência espiritual <strong>de</strong> um homem que, do mais profundo do seu ser,<br />
clama pela re<strong>de</strong>nção, que não é alcançada. O sucesso irrealizável <strong>de</strong> glória culmina com o fracasso íntimo<br />
do compositor que, diante dos entraves sociais explicitados <strong>no</strong> conto, na pessoa do editor, vê sua música<br />
sendo levada para o que é comum, para o que é das massas. A polca é simples, e simplicida<strong>de</strong> é<br />
justamente o que Pestana não quer. Sua vocação é algo que o incomoda e que o frustra, pois sua ambição<br />
sempre falou mais alto e o tocou mais profundamente. Polca é o que é popular e representa o sucesso; um<br />
sucesso transitório para o artista, que resulta em uma vida <strong>de</strong> tristeza e totalmente <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> glória, <strong>de</strong><br />
uma glória que, segundo o protagonista, só seria alcançada com a sua inserção <strong>no</strong> mundo dos clássicos, da<br />
música erudita.<br />
Há uma crítica que ainda é atual: o mercado está mais interessado em obras <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> fácil, que<br />
satisfazem <strong>de</strong> forma imediata e rasteira o gosto do público. Sintomático disso é o fato <strong>de</strong> o editor já ter<br />
títulos prontos para obras que ainda nem existem, aproveitando-se <strong>de</strong> fatos do momento, da moda. Além<br />
disso, há um conflito interessante entre o efêmero (polca) e o eter<strong>no</strong> (música erudita), que po<strong>de</strong> ser<br />
também visto como entre o baixo e o sublime.<br />
Foco narrativo<br />
Ao analisar a obra, po<strong>de</strong>-se facilmente observar que é narrada com uma visão por trás, na qual o narrador,<br />
que não toma parte na história, possui um conhecimento amplo e irrestrito sobre todos os fatos,<br />
<strong>de</strong>screvendo não só o que é visível, como também os pensamentos das personagens e fatos que irão<br />
acontecer posteriormente ao que é apresentado na narrativa. Como exemplo da caracterização <strong>de</strong>sse<br />
narrador, po<strong>de</strong>-se separar o seguinte trecho do texto:<br />
...pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele<br />
dia dos a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>la, cinco <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos<br />
setenta a<strong>no</strong>s em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu <strong>no</strong>s primeiros dias <strong>de</strong> 1876.<br />
(ASSIS, 1988, p. 63)<br />
No entanto, apesar <strong>de</strong> se <strong>no</strong>tar que, ao longo do conto, predomina a expressão <strong>de</strong> um narrador onisciente,<br />
po<strong>de</strong>-se observar também que, em <strong>de</strong>terminados momentos, esse narrador oculta o seu conhecimento,<br />
simulando uma exposição restrita, que apresenta apenas o que é visível. Para isso, joga com o foco da<br />
narração, passando a apresentar e <strong>de</strong>screver fatos e <strong>de</strong>mais personagens através das palavras e<br />
pensamentos <strong>de</strong> uma personagem específica. Cabe esclarecer, <strong>no</strong> entanto, que, apesar <strong>de</strong> parecer não ser
mais o narrador que conta, tal recurso, na verda<strong>de</strong>, é apenas um artifício com o qual o narrador onisciente<br />
aparenta uma focalização interna, ou uma ―visão com‖, com objetivo <strong>de</strong> aproximar um pouco mais a<br />
história <strong>de</strong> quem a lê. Em Um Homem Célebre, Sinhazinha Mota é a personagem mais utilizada pelo<br />
narrador para essa ―falsa‖ mudança <strong>de</strong> foco, valendo-se do seu olhar e das suas palavras para <strong>de</strong>screver<br />
Pestana e sua futura esposa em diversos trechos.<br />
- Ah! o senhor é que é o Pestana? Perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E<br />
logo <strong>de</strong>pois, corrigindo a familiarida<strong>de</strong>: Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor? (ASSIS, 1988, p.<br />
63)<br />
- Casar com quem? Perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe <strong>de</strong>u aquela <strong>no</strong>tícia. - Vai casar<br />
com uma viúva. - Velha? - Vinte e sete a<strong>no</strong>s. - Bonita? - Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele<br />
se enamorou <strong>de</strong>la porque a ouviu cantar na última festa <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Paula. Mas ouvi também<br />
que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale me<strong>no</strong>s: está tísica. (ASSIS, 1988, p.72)<br />
Mesmo oculto, o narrador onisciente ainda está ali, valendo-se das personagens para exercer o ato <strong>de</strong><br />
narrar. O resultado primeiro <strong>de</strong>ssa técnica é o dinamismo que a leitura do conto adquire. E, nesse sentido,<br />
o uso do discurso indireto livre mostra-se a forma mais eficaz <strong>de</strong> aproximação, inserindo, diretamente nas<br />
palavras do narrador, frases ou pensamentos <strong>de</strong> alguma personagem, como acontece <strong>no</strong> exemplo a seguir,<br />
<strong>no</strong> qual o sujeito que narra introduz, <strong>no</strong> meio do seu discurso, pensamentos da Sinhazinha Mota: ―Talvez<br />
a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos <strong>de</strong> so<strong>no</strong>. Que tinha? Ela ia em vinte a<strong>no</strong>s, ele em trinta,<br />
boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida <strong>de</strong> cor‖. (ASSIS, 1988, p. 67)<br />
Quando se observam as formas <strong>de</strong> apresentação e tratamento, po<strong>de</strong>-se perceber que o narrador se vale<br />
tanto <strong>de</strong> cenas quanto <strong>de</strong> sumários em seu processo narrativo, por vezes mostrando o que está<br />
acontecendo, por vezes contando <strong>de</strong> maneira bastante acelerada, resumindo e ocultando diversos<br />
acontecimentos: ―Pestana fez uma careta, mas dissimulou <strong>de</strong>pressa, incli<strong>no</strong>u-se calado, sem gentileza, e<br />
foi para o pia<strong>no</strong>, sem entusiasmo‖ (<strong>Assis</strong>, 1988, p. 64). ―Releu e estudou o Requiem <strong>de</strong>ste autor.<br />
Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar‖ (ASSIS, 1988, p.75).<br />
Ação / Temporalida<strong>de</strong><br />
Os dados temporais, que são diversos ao longo <strong>de</strong> todo o texto, permitem i<strong>de</strong>ntificar claramente quando<br />
se passam as ações: durante o Segundo Império brasileiro, entre os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1871 e 1885, mais<br />
precisamente, entre a publicação da primeira polca <strong>de</strong> Pestana e o falecimento da personagem. Além<br />
disso, é possível também caracterizar a narrativa como posterior, ou seja, feita <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os fatos terem<br />
ocorrido, como se percebe pelo uso dos tempos verbais <strong>no</strong> pretérito: ―Vexado, aborrecido, Pestana<br />
respon<strong>de</strong>u que sim, que era ele‖ (ASSIS, 1988, p. 63).<br />
No entanto, a quebra da or<strong>de</strong>m cro<strong>no</strong>lógica na narrativa é uma das características mais marcantes do<br />
estilo machadia<strong>no</strong>, recurso que po<strong>de</strong> ser percebido facilmente em diversas obras do autor, entre elas, o<br />
conto analisado aqui. Nele, os fatos não são narrados na sua seqüência lógica. Em vez <strong>de</strong> iniciar a<br />
narrativa apresentando o ―início da carreira‖ <strong>de</strong> compositor <strong>de</strong> Pestana, com a publicação da sua primeira<br />
polca, o narrador abre o conto já na época em que o músico experimenta um gran<strong>de</strong> sucesso, com várias<br />
músicas publicadas e muito bem aceitas pelo gosto popular. Primeiro é apresentado o protagonista, sua<br />
intrigante rejeição diante do sucesso popular e a angústia que vive por não conseguir compor nenhuma<br />
peça musical à altura dos gran<strong>de</strong>s compositores clássicos: ―Pestana fez uma careta, mas dissimulou<br />
<strong>de</strong>pressa, incli<strong>no</strong>u-se calado, sem gentileza, e foi para o pia<strong>no</strong>, sem entusiasmo‖. (ASSIS, 1988, p. 64)<br />
A moça dormia ao som da polca, ouvida <strong>de</strong> cor, enquanto o autor <strong>de</strong>sta não cuidava nem da polca nem<br />
da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a <strong>no</strong>ite, rogando aos anjos, em último<br />
caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais? (ASSIS, 1988, p. 67)
Apenas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> introduzir a perturbação, o problema a ser resolvido, é que o narrador revela o passado<br />
do protagonista, os acontecimentos anteriores que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>aram e elucidam a situação apresentada <strong>no</strong><br />
início do conto, apresentação essa feita através <strong>de</strong> uma analepse: ―Veio a questão do título. Pestana,<br />
quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos <strong>de</strong> Sol‖.<br />
(ASSIS, 1988, p. 69)<br />
A anacronia i<strong>de</strong>ntificada nesse trecho tem um alcance <strong>de</strong>terminado, retroce<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> um fato acontecido<br />
em 1875 para um evento ocorrido em 1871. Apesar <strong>de</strong> concentrar sua narração na publicação da primeira<br />
polca <strong>de</strong> Pestana, a amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa figura <strong>de</strong> anacronia abrange quatro a<strong>no</strong>s, chegando, através <strong>de</strong> um<br />
sumário, ao a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1875: ―e a comichão da publicida<strong>de</strong> levou-o a imprimir as duas, com os títulos que<br />
ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante‖. (ASSIS,<br />
1988, p. 70)<br />
Mas a analepse não é o único recurso <strong>de</strong> alteração <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m temporal <strong>de</strong> que se vale o narrador <strong>de</strong> Um<br />
Homem Célebre. Além <strong>de</strong>ssa figura <strong>de</strong> anacronia, a obra também apresenta uma prolepse, <strong>de</strong> alcance<br />
curto, aproximadamente dois meses, e com uma amplitu<strong>de</strong> também restrita, limitada ao fato da morte da<br />
―boa e patusca viúva‖ apresentada pelo narrador: ―Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar<br />
dos setenta a<strong>no</strong>s em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu <strong>no</strong>s primeiros dias <strong>de</strong><br />
1876‖. (ASSIS, 1988, p. 63)<br />
Como foi dito anteriormente, além da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> apresentação dos acontecimentos, outro ponto <strong>de</strong><br />
contraste entre o tempo da história e o tempo do discurso diz respeito à duração, ao ritmo da narrativa. A<br />
própria palavra ―ritmo‖ <strong>de</strong>ixa clara a associação existente entre a condução temporal na narrativa e o<br />
tempo musical, uma proximida<strong>de</strong> que faz com que, nesta obra <strong>de</strong> <strong>Machado</strong>, mais do que um simples<br />
recurso narrativo, o tratamento temporal ganhe significação, permitindo que o discurso, o modo <strong>de</strong> narrar,<br />
esteja extremamente ligado ao tema. O narrador <strong>de</strong>senvolve o ritmo do texto <strong>de</strong> uma maneira ―musical‖,<br />
conduzindo lentamente a narração <strong>de</strong> um período <strong>de</strong> alguns dias em contraponto com a narração sumária<br />
<strong>de</strong> fatos transcorridos <strong>no</strong> intervalo <strong>de</strong> quase <strong>de</strong>z a<strong>no</strong>s. Percebe-se uma diferenciação <strong>no</strong> tratamento<br />
temporal, nitidamente marcada <strong>no</strong> conto, visto que o narrador concentra o uso <strong>de</strong> alongamentos e pausas<br />
<strong>de</strong>scritivas na primeira parte do texto. É interessante observar, <strong>no</strong> uso <strong>de</strong>sses recursos, a sobreposição do<br />
tempo psicológico em relação ao tempo real.<br />
Quando o preto acen<strong>de</strong>u o gás da sala, Pestana sorriu e, <strong>de</strong>ntro d‘alma, cumprimentou uns <strong>de</strong>z retratos<br />
que pendiam da pare<strong>de</strong>. Um só era a óleo, o <strong>de</strong> um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e<br />
música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana (ASSIS, 1988, p. 65-66)<br />
Por outro lado, a partir da meta<strong>de</strong> do texto, <strong>no</strong>ta-se uma quantida<strong>de</strong> significativamente maior <strong>de</strong> sumários<br />
e elipses. Po<strong>de</strong>ndo parecer irrelevantes à primeira vista, as diversas marcações temporais que o narrador<br />
distribui pelo texto exercem um papel fundamental para esse jogo <strong>de</strong> aceleração e retardamento do<br />
discurso. É apenas através <strong>de</strong>las que se po<strong>de</strong> perceber os saltos <strong>de</strong> tempo que, por exemplo, fazem passar<br />
quatro horas em uma única frase, ou mesmo meses entre um parágrafo e outro: ―Duas, três, quatro horas.<br />
Depois das quatro foi dormir‖ (ASSIS, 1988, p. 68), ―Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a<br />
princípio, afrouxou o andar‖ (ASSIS, 1988, p. 75) e ―Correu ainda um a<strong>no</strong>. No princípio <strong>de</strong> 1878,<br />
apareceu-lhe o editor‖ (ASSIS, 1988, p. 76).<br />
Se, por um lado, percebem-se momentos <strong>de</strong> aceleração e retardamento na narrativa, é possível <strong>no</strong>tar<br />
também que, em diversos trechos, o narrador se vale do recurso da cena para tentar aproximar ao máximo<br />
o tempo da história ao da narração, seja através da <strong>de</strong>scrição direta <strong>de</strong> ações das personagens, seja através<br />
da apresentação <strong>de</strong> diálogos: ―Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao pia<strong>no</strong>.<br />
Olhou para o retrato <strong>de</strong> Beethoven, e começou a executar a sonata‖ (ASSIS, 1988, p. 66).
- Lá se vão dois a<strong>no</strong>s, disse este, que <strong>no</strong>s não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor<br />
per<strong>de</strong>u o talento. Que tem feito? - Nada. - Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois a<strong>no</strong>s. Venho<br />
propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na<br />
venda. Depois, acabado o a<strong>no</strong>, po<strong>de</strong> re<strong>no</strong>var. (ASSIS, 1988, p. 76)<br />
Além da or<strong>de</strong>m dos acontecimentos e da duração do tempo na narrativa, a freqüência também é um<br />
artifício bastante empregado nesta obra <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, em especial para <strong>de</strong>monstrar o processo,<br />
geralmente angustiante, pelo qual passava o protagonista todas as vezes que compunha suas polcas.<br />
Às vezes, como que ia surgir das profun<strong>de</strong>zas do inconsciente uma aurora <strong>de</strong> idéia; ele corria ao pia<strong>no</strong>,<br />
para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao<br />
pia<strong>no</strong>, <strong>de</strong>ixava os <strong>de</strong>dos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam <strong>de</strong>les. (ASSIS, 1988, p. 67-<br />
68)<br />
Neste conto observa-se igualmente a importância que o tratamento temporal assume. Observa-se a<br />
semelhança que se estabelece entre a reiterada narração das tentativas <strong>de</strong> Pestana em compor peças<br />
clássicas e as repetições <strong>de</strong> motivos musicais ou leitmotivs. Ressalta-se a forma como <strong>Machado</strong> conduz,<br />
paralelamente à trama principal, ações secundárias que se contrapõem àquela, funcionando como linhas<br />
melódicas que têm a função <strong>de</strong> interromper a condução do motivo central da peça musical. São exemplos<br />
<strong>de</strong>ssas rupturas as ações <strong>de</strong> Sinhazinha Mota e do editor musical <strong>de</strong> Pestana, apresentadas ao longo do<br />
texto para quebrar o ritmo do discurso narrativo.<br />
Por fim, é interessante apontar que, além <strong>de</strong> estar relacionado intimamente com o tema da obra, <strong>no</strong> que se<br />
refere à forma como é conduzido, o tempo, especificamente o histórico, também <strong>de</strong>sempenha um papel<br />
importante na narrativa. Nela, o sucesso das polcas <strong>de</strong> Pestana está, na visão <strong>de</strong> seu editor, intimamente<br />
relacionado à menção que fazem dos acontecimentos do momento. Sendo assim, para cair <strong>no</strong> gosto<br />
popular, os títulos não precisariam ter qualquer relação com as peças, mas sim fazer referência a algum<br />
fato político.<br />
- Mas a primeira polca há <strong>de</strong> ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta o Imperador ao Caxias? Os<br />
liberais foram chamados ao po<strong>de</strong>r; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há <strong>de</strong> chamar-se: Bravos à<br />
Eleição Direta! Não é Política; é um bom título <strong>de</strong> ocasião. (ASSIS, 1988, p. 76)<br />
A ressonância da espacialida<strong>de</strong><br />
Para compor o espaço on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senrolam as ações <strong>de</strong> Um Homem Célebre, o narrador se vale tanto <strong>de</strong><br />
elementos que po<strong>de</strong>m ser apontados como motivos associados, indispensáveis para a história em si,<br />
quanto <strong>de</strong> objetos que po<strong>de</strong>m ser vistos como motivos livres, que têm influência sobre a forma como é<br />
contada e percebida a história. Entre estes últimos, que po<strong>de</strong>m ser chamados também <strong>de</strong> caracterizadores,<br />
o texto apresenta seus dois tipos: heterólogo e homólogo. Como motivo heterólogo, ou seja, aquele que<br />
contradiz uma <strong>de</strong>terminada situação ou traço da personagem, po<strong>de</strong>-se apontar a apresentação da casa <strong>de</strong><br />
Pestana, um lugar cujas características fogem da imagem corriqueira <strong>de</strong> um compositor <strong>de</strong> sucesso, como<br />
Pestana: ―Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se<br />
ele queria cear‖ (ASSIS, 1988, p. 65).<br />
É interessante observar, <strong>no</strong> entanto, que, na medida em que esses motivos caracterizadores se mostram<br />
heterólogos quanto à imagem que via <strong>de</strong> regra se constrói <strong>de</strong> um compositor <strong>de</strong> sucesso, ao serem<br />
analisados como caracterizadores da figura singular <strong>de</strong> Pestana e, nesse caso, <strong>de</strong>frontados com outras<br />
características <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>, passam a ser homólogos da caracterização da personagem.<br />
Por outro lado, como exemplo <strong>de</strong> motivos caracterizadores homólogos, po<strong>de</strong>-se tomar a <strong>de</strong>scrição do<br />
trajeto feito por Pestana quando se dirige aos trilhos do trem para suicidar-se. A caracterização do
ambiente pelo qual ele passa, que apresenta um ―velho matadouro‖, não tem qualquer relevância para a<br />
história, mas é fundamental para o discurso, uma vez que reforça o estado <strong>de</strong> espírito da personagem<br />
naquele momento: ―E ele ia andando, alucinado, mortificado [...] Passou o velho matadouro; ao chegar<br />
à porteira da estrada <strong>de</strong> ferro, teve a idéia <strong>de</strong> ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e<br />
o esmagasse‖ (ASSIS, 1988, p. 74).<br />
Ainda entre os motivos livres, po<strong>de</strong>-se apontar os objetos presentes <strong>no</strong> ambiente <strong>no</strong> qual a personagem<br />
compõe suas peças musicais. Entre os elementos <strong>de</strong>sse espaço, carregados <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> significação,<br />
<strong>de</strong>stacam-se os quadros <strong>de</strong> diversos compositores clássicos pendurados na pare<strong>de</strong>. Mais do que simples<br />
elementos <strong>de</strong>corativos, essas imagens reforçam a caracterização da angústia vivida pelo protagonista ao<br />
tentar, sempre em vão, compor algo à altura dos gênios retratados, figuras que o cobram e o inspiram ao<br />
mesmo tempo. Sem exercer uma influência direta sobre a seqüência das ações da personagem, elas<br />
ajudam a criar a imagem <strong>de</strong> homem ao mesmo tempo pressionado pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser alguém comparável<br />
aos gênios emoldurados na pare<strong>de</strong> e frustrado pelo fato <strong>de</strong> não conseguir criar uma peça do nível das<br />
obras <strong>de</strong> tais compositores.<br />
Os <strong>de</strong>mais retratos eram <strong>de</strong> compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach,<br />
Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e <strong>de</strong> diferente<br />
tamanho, mas postos ali como santos <strong>de</strong> uma igreja. O pia<strong>no</strong> era o altar; o evangelho da <strong>no</strong>ite lá estava<br />
aberto: era uma sonata <strong>de</strong> Beethoven. (ASSIS, 1988, p. 66)<br />
E aí voltaram as náuseas <strong>de</strong> si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a <strong>no</strong>va polca da moda, e juntamente o<br />
esforço <strong>de</strong> compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pu<strong>de</strong>sse<br />
ser enca<strong>de</strong>rnada ente Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair<br />
batizado. (ASSIS, 1988, p. 71)<br />
Quanto aos motivos associados, composicionais <strong>no</strong> que se refere à sua função narrativa, po<strong>de</strong>-se citar o<br />
pia<strong>no</strong> da sala <strong>de</strong> música, ao mesmo tempo instrumento indispensável para Pestana concretizar seu sonho<br />
<strong>de</strong> compor uma peça clássica e objeto sem o qual o protagonista não alcançaria a glória, ou tormento, <strong>de</strong><br />
ser um reconhecido compositor <strong>de</strong> polcas populares.<br />
Por fim, cabe apontar também o interessante uso, por parte do narrador, do recurso da motivação falsa,<br />
personalizado, <strong>no</strong> conto, na figura da Sinhazinha Mota. Sua presença, introduzida já nas primeiras linhas<br />
do texto, leva a supor uma participação mais intensa <strong>no</strong> <strong>de</strong>senrolar dos fatos, talvez até um envolvimento<br />
direto com o próprio protagonista, expectativas, <strong>no</strong> entanto, que são frustradas ao final da narrativa.<br />
A ambientação é muito mais do que a caracterização dos lugares on<strong>de</strong> se dão as ações. Ela <strong>de</strong>sempenha<br />
um papel <strong>de</strong> significação dos mais importantes <strong>no</strong> processo narrativo, seja <strong>de</strong>screvendo ambientes cuja<br />
caracterização <strong>de</strong>sempenha uma função primordial <strong>no</strong> discurso, confirmando ou contrariando a<br />
expectativa <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado evento, ação e característica da personagem, seja trazendo elementos cuja<br />
presença age diretamente sobre suas ações, ou, ainda, aproximando o leitor daquilo que está sendo<br />
narrado, valendo-se, para isso, do jogo das diferentes maneiras <strong>de</strong> apresentar o espaço. Através da análise<br />
<strong>de</strong> Um Homem Célebre foi possível i<strong>de</strong>ntificar todos esses elementos que envolvem o processo <strong>de</strong><br />
ambientação narrativa. E, por mérito das habilida<strong>de</strong>s do narrador machadia<strong>no</strong>, po<strong>de</strong>-se levantar todos os<br />
efeitos que fazem da espacialida<strong>de</strong> uma peça tão importante na construção <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> obra literária.<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
Ao se estudar, em Um Homem Célebre, a focalização, o tempo e o espaço, três importantes componentes<br />
do discurso narrativo, muito mais do que i<strong>de</strong>ntificar os elementos <strong>de</strong>sses processos, po<strong>de</strong>-se levantar sua<br />
importância na narrativa, ou seja, o efeito que as escolhas feitas pelo narrador, sobre esse três aspectos,<br />
surtiram <strong>no</strong> leitor.
Em primeiro lugar, tratando da focalização onisciente do narrador, percebe-se claramente que, em<br />
conseqüência <strong>de</strong>ssa visão, o leitor mantém-se a uma distância dos fatos narrados. No entanto, se, por um<br />
lado, a leitura é marcada por esse afastamento, por outro, o narrador, habilmente, introduz uma dinâmica<br />
ao texto através do uso <strong>de</strong> discursos diretos e, muitas vezes, disfarçando o seu olhar sob a ótica <strong>de</strong><br />
algumas das personagens.<br />
A forma como é tratada a questão da temporalida<strong>de</strong> também traz conseqüências para a leitura da obra. A<br />
principal <strong>de</strong>las, como foi já apresentado, diz respeito à forte relação que se estabelece entre a condução do<br />
tempo da narrativa e o próprio tema <strong>de</strong>sta. Mas, além disso, percebe-se também que as escolhas feitas<br />
pelo narrador quanto às or<strong>de</strong>ns temporais trazem efeitos sobre aquele que lê, induzindo-o a um<br />
envolvimento maior com os fatos narrados. As alterações seqüenciais acabam por instigar o leitor a tentar<br />
<strong>de</strong>cifrar, por exemplo, por que o sucesso <strong>de</strong> suas polcas perturba tanto o protagonista.<br />
Além disso, percebe-se, afinal, que também o espaço <strong>de</strong>sempenha um importante papel nessa<br />
aproximação da narrativa. Ao mudar, em alguns trechos, a forma <strong>de</strong> apresentação do ambiente <strong>de</strong> franca<br />
para reflexiva, o narrador diminui o distanciamento do leitor. De forma semelhante, buscando uma<br />
participação <strong>de</strong>ste com a construção <strong>de</strong> sentidos, o narrador carrega os elementos espaciais <strong>de</strong><br />
significações, significações essas que só são apreendidas e organizadas <strong>no</strong> contexto ao longo da leitura.<br />
Analisando esses três aspectos da construção <strong>de</strong> uma narrativa, percebe-se que, seja na aproximação do<br />
foco, seja <strong>no</strong> ritmo temporal ou na significação dos elementos espaciais, em cada uma <strong>de</strong>ssas escolhas,<br />
mais do que uma preocupação com o discurso, <strong>Machado</strong> teve o objetivo <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>sse discurso um eco<br />
do tema proposto. Debruçando-se sobre o conto, <strong>no</strong>ta-se com clareza o <strong>de</strong>sejo do autor <strong>de</strong> transformar em<br />
música a história <strong>de</strong> um frustrado compositor <strong>de</strong> polcas. Perfeccionista como era, <strong>Machado</strong> soube usar<br />
todos os recursos narrativos para encontrar a forma perfeita e criar uma obra-prima. É o sonho angustiante<br />
da personagem, realizado com maestria por seu criador.<br />
<strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, neste conto, traçou a marca do tempo, mas levou o leitor, por outro lado, para muito<br />
além da História social, problematizando-a através da divisão do personagem Pestana entre a música<br />
popular e a erudita. Com isso não se está consi<strong>de</strong>rando <strong>no</strong> conto somente a interiorida<strong>de</strong> do personagem,<br />
mas também a exteriorida<strong>de</strong>, na História que se apresenta com a máscara da tranqüilida<strong>de</strong>, apenas<br />
aparente. Dessa maneira são os ―eus‖ do personagem que revelam o tempo tecido <strong>de</strong> várias tensões. Sob o<br />
presente passa um ―mar em fúria‖ que expõe a complexida<strong>de</strong> do tempo carregado <strong>de</strong> outros tempos.<br />
Assim temos o juízo <strong>de</strong> valor da crítica consagrada que eleva as obras canônicas ao altar da fama e do<br />
sucesso, mo<strong>de</strong>los do passado que <strong>de</strong>vem ser seguidos e imitados pelos que almejam se tornarem célebres<br />
estrelas da arte. Obras sagradas que imprensam Pestana, sempre <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> escrever ―uma que fosse<br />
daquelas páginas imortais‖. Por esta razão, o músico persegue <strong>no</strong>ite e dia, dia e <strong>no</strong>ite, com trabalho<br />
incessante, a composição <strong>de</strong> um Notur<strong>no</strong> ou <strong>de</strong> um Réquiem, tornando-se duplamente frustrado pelas<br />
impossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realizar tais criações. Pestana fica, <strong>de</strong>ssa maneira, por fatores <strong>de</strong>terminados pela<br />
Crítica, atrelado a um i<strong>de</strong>al que lhe vem do exterior, que lhe dita o que sejam ―obras sérias, profundas,<br />
inspiradas e trabalhadas‖ (ASSIS, 1998, p. 373) e o que sejam as ―aventuras <strong>de</strong> petimetres‖ (ASSIS,<br />
1998, p.373).<br />
I-Juca Pirama, <strong>de</strong> Gonçalves Dias<br />
Análise da obra<br />
Gonçalves Dias publicou o livro Últimos cantos e <strong>de</strong>ve ter sido escrito entre 1848 e 1851, e na obra se<br />
encontra o poema I – Juca Pirama.
I – Juca Pirama é consi<strong>de</strong>rada pelos críticos como um dos mais elaborados poemas do Romantismo<br />
brasileiro.<br />
O título do poema é tirado da língua tupi e significa, conforme explica o próprio autor, ―o que há <strong>de</strong> ser<br />
morto, e que é dig<strong>no</strong> <strong>de</strong> ser morto.‖ Embora tenha <strong>no</strong>me próprio, ―Juca Pirama‖ não tem nada a ver com o<br />
<strong>no</strong>me do índio aprisionado pelos Timbiras.<br />
Apesar <strong>de</strong> ter uma fama narrativa que configura o gênero épico e um conteúdo dramatizável, predomina<br />
<strong>no</strong> poema o gênero lírico – um lirismo fácil e espontâneo, perpassado das emoções e subjetivida<strong>de</strong> do<br />
poeta. Como é próprio do romantismo, estilo a que está ligado Gonçalves Dias, é um lirismo que brota do<br />
coração e da ―imaginação criadora‖ do poeta e que expressa bem o sentimentalismo romântico. A obra é<br />
indianista e vale ressaltar a musicalida<strong>de</strong> dos versos que é uma característica típica <strong>de</strong> Gonçalves Dias.<br />
O poema I–Juca Pirama <strong>no</strong>s dá uma visão mais próxima do índio, ligado aos seus costumes, i<strong>de</strong>alizado e<br />
moldado ao gosto romântico. O índio integrado <strong>no</strong> ambiente natural, e principalmente a<strong>de</strong>quado a um<br />
sentimento <strong>de</strong> honra, reflete o pensamento oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> honra tão típico das <strong>no</strong>velas <strong>de</strong> cavalaria<br />
medievais - é o caso do texto Rei Arthur e a Távola Redonda. Se os europeus podiam encontrar na Ida<strong>de</strong><br />
Média as origens da nacionalida<strong>de</strong>, o mesmo não aconteceu com os brasileiros. Provavelmente por essa<br />
razão, a volta ao passado, mesclada ao culto do bom selvagem, encontra na figura do indígena o símbolo<br />
exato e a<strong>de</strong>quada para a realização da pesquisa lírica e heróica do passado.<br />
O índio é então re<strong>de</strong>scoberto, embora sua recriação poética dê idéia da re<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> uma raça que<br />
estava adormecida pela tradição e que foi revivida pelo poeta. O i<strong>de</strong>alismo, a et<strong>no</strong>grafia fantasiada , as<br />
situações <strong>de</strong>senvolvidas como episódios da gran<strong>de</strong> gesta heróica e trágica da civilização indígena<br />
brasileira, a qual sofre a <strong>de</strong>gradação do branco conquistador e colonizador, têm na sua forma e na sua<br />
composição reflexos da epopéia. da tragédia clássica e dos romances <strong>de</strong> gesta da Ida<strong>de</strong> Média. Assim o<br />
índio que conhecemos <strong>no</strong>s versos bem elaborados <strong>de</strong> Gonçalves Dias é uma figura poética, um símbolo.<br />
Gonçalves Dias centra I – Juca Pirama num estado <strong>de</strong> coisas que ganham uma e<strong>no</strong>rme importância pela<br />
inevitável transgressão cometida pelo herói, transgressão <strong>de</strong> cunho romanesco (o choro diante da morte)<br />
que quando transposta a literatura gera uma incrível i<strong>de</strong>alização dos estados <strong>de</strong> alma. Como exemplo,<br />
po<strong>de</strong>mos citar as reações causadas pelo "suposto medo da morte". Com isso, o autor transforma a alma<br />
indígena em correlativos dos seus próprios movimentos, sublinhando a afetivida<strong>de</strong> e o choque entre os<br />
afetos: há uma interpenetração <strong>de</strong> afetos (amor,ódio, vingança etc.) que estabelece uma harmonia<br />
romântica entre o ser que está sendo julgado e a sua natureza - a natureza indígena, com a consequente<br />
preferência pelas cenas e momentos que correspon<strong>de</strong>m ao teor das emoções. Daí as avalanches <strong>de</strong> bravura<br />
e <strong>de</strong> louvor à honra e ao caráter.<br />
Foco narrativo<br />
I – Juca – Pirama é narrado em 3ª pessoa por um índio timbira que relata às gerações posteriores as<br />
proezas do guerreiro tupi que lá esteve. A posição do narrador é distante, revelando-se onisciente e<br />
onipresente.<br />
O poema <strong>de</strong>screve, a partir <strong>de</strong> um ―flash-back‖, a estória <strong>de</strong> um índio tupi que, por ser um bravo e<br />
corajoso guerreiro, <strong>de</strong>veria ter sua carne comida numa cerimônia religiosa (antropofagia).<br />
Tempo / Ação / espaço<br />
O autor, através do narrador timbira, não faz menção ao lugar em que <strong>de</strong>corre a ação; sabe-se, entretanto,<br />
que os timbiras viviam <strong>no</strong> interior do Brasil, ao contrário dos Tupis, que se localizavam <strong>no</strong> litoral.
Quanto ao tempo, não há uma indicação explícita, mas percebe-se que é a época da colonização<br />
portuguesa, quando os índios já estavam sendo dizimados pelo branco, como diz, <strong>no</strong> seu canto <strong>de</strong> morte,<br />
o guerreiro Tupi – um triste remanescente ―da tribo pujante/ que agora anda errante‖.<br />
Personagens<br />
I - Juca Pirama - típico herói romantizado, perfeito, sem mácula que <strong>de</strong>sperta bons sentimentos <strong>no</strong><br />
homem burguês leitor.<br />
O velho tupi - simboliza a tradição secular dos índios tupis. É o pai <strong>de</strong> I – Juca Pirama.<br />
Os timbiras - índios ferozes e canibais.<br />
O velho timbira - narrador e personagem ocular da estória.<br />
Temática<br />
O índio a<strong>de</strong>quado a um forte sentimento <strong>de</strong> honra, simboliza a própria força natural do ameríndio, sua alta<br />
cultura acerca <strong>de</strong> seu povo representado <strong>no</strong> modo como este acata o rígido código <strong>de</strong> ética <strong>de</strong> seu povo.<br />
O índio brasileiro é um clone do cavaleiro medieval das <strong>no</strong>velas européias românticas como as <strong>de</strong> Walter<br />
Scott.<br />
Estrutura da obra<br />
A metrificação <strong>de</strong> Gonçalves Dias é bastante original, pois ―me<strong>no</strong>spreza regras <strong>de</strong> mera convenção‖. O<br />
poeta sempre busca a forma i<strong>de</strong>al para cada assunto, a<strong>de</strong>quando bem forma e conteúdo.<br />
Em I – Juca – Pirama, alterna versos longos e curtos, ora para <strong>de</strong>screver (verso lento), ora para dar a<br />
impressão do rufar dos tambores <strong>no</strong> ritual indígena.<br />
O poema <strong>no</strong>s é apresentado em <strong>de</strong>z cantos, organizados em forma <strong>de</strong> composição épico – dramática.<br />
Todos sempre pautam pela apresentação <strong>de</strong> um índio cujo caráter e heroísmo são salientados a cada<br />
instante.<br />
Canto 1 - Apresentação e <strong>de</strong>scrição da tribo dos Timbiras. Como está <strong>de</strong>screvendo o ambiente, o autor<br />
usa um verso mais lento e caudaloso, que é hen<strong>de</strong>cassílabo (onze sílabas). A estrofe é sempre <strong>de</strong> seis<br />
versos (sextilha) e as rimas obe<strong>de</strong>cem ao esquema: AA (paralelas) e BCCB (opostas ou intercaladas).<br />
Canto 2 - Narra a festa canibalística dos timbiras e a aflição do guerreiro tupi que será sacrificado. O<br />
poeta alterna o <strong>de</strong>cassílabo (<strong>de</strong>z sílabas) com o tetrassílabo (quatro sílabas), o que sugere o início do ritual<br />
com o rufar dos tambores. As estrofes são <strong>de</strong> quatro versos (quarteto) e o poeta só rima os tetrassílabos.<br />
Canto 3 - Apresentação do guerreiro tupi – I – Juca Pirama. Sem se preocupar com rimas e estrofação, o<br />
poeta volta a usar o <strong>de</strong>cassílabo (com algumas irregularida<strong>de</strong>s), <strong>no</strong>vamente num ritmo mais lento, que se<br />
casa bem com a apresentação feita do chefe Timbira.<br />
Canto 4 - I - Juca Pirama aprisionado pelos Timbiras <strong>de</strong>clama o seu canto <strong>de</strong> morte e pe<strong>de</strong> ao Timbiras<br />
que <strong>de</strong>ixem-<strong>no</strong> ir para cuidar do pai alquebrado e cego. O verso pentassílabo (cinco sílabas), num ritmo<br />
ligeiro, dá a impressão do rufar dos tambores. As estrofes com exceção da primeira (sextilha), têm oito<br />
versos (oitavas), e as rimas seguem o esquema AAA (paralelas) e BCCB (opostas e intercaladas).<br />
Canto 5 - Ao escutarem o canto <strong>de</strong> morte do guerreiro tupi, os timbiras enten<strong>de</strong>m ser aquilo um ato <strong>de</strong>
covardia e <strong>de</strong>sse modo <strong>de</strong>squalificam-<strong>no</strong> para o sacrifício. Dando a impressão do conflito que se<br />
estabelece e refletindo o diálogo nervoso, entre o chefe Timbira e o índio Tupi, o poeta altera o<br />
<strong>de</strong>cassílabo com versos mais ou me<strong>no</strong>s livres. Não há preocupação nem com estrofes nem com rimas.<br />
Canto 6 - O filho volta ao pai que ao pressentir o cheiro <strong>de</strong> tinta dos timbiras que é específica para o<br />
sacrifício <strong>de</strong>sconfia do filho e ambos partem <strong>no</strong>vamente para a tribo dos timbiras para sanarem ato tão<br />
vergonhoso para o povo tupi. Reproduzindo o diálogo entre pai e filho e também a <strong>de</strong>cepção daquele, o<br />
poeta usa <strong>de</strong>cassílabo juntamente com passagens mais ou me<strong>no</strong>s livres. Não há preocupação com rimas<br />
ou estrofes.<br />
Canto 7 - Sob alegação <strong>de</strong> que os tupis são fracos, o chefe dos timbiras não permite a consumação do<br />
ritual. Num ritmo constante, marcado pelo heptassílabo (sete sílabas), o poeta reproduz a fala segura do<br />
pai humilhado e do chefe Timbira. A estrofação e as rimas são livres.<br />
Canto 8 - O pai envergonhado maldiz o suposto filho covar<strong>de</strong>. Para expressar a maldição proferida pelo<br />
velho pai, num ritmo bem marcado e seguro, o poeta usa o verso eneassílabo (<strong>no</strong>ve sílabas), distribuindoos<br />
em oitavas, com rimas alternadas e paralelas.<br />
Canto 9 - Enraivecido o guerreiro tupi lança o seu grito <strong>de</strong> guerra e <strong>de</strong>rrota a todos valentemente em<br />
<strong>no</strong>me <strong>de</strong> sua honra. Casando-se com o tom narrativo e a reação altiva do índio Tupi, o poeta usa<br />
<strong>no</strong>vamente o <strong>de</strong>cassílabo com estrofação e rimas livres.<br />
Canto 10 - O velho Timbira ( narrador ) ren<strong>de</strong>-se frente ao po<strong>de</strong>r do tupi e diz a célebre frase: "meni<strong>no</strong>s,<br />
eu vi". Alternando o hen<strong>de</strong>cassílabo com pentassílabo, o poeta fecha o poema, <strong>de</strong> forma harmoniosa e<br />
or<strong>de</strong>nada, o que reflete o fim do conflito e a serenida<strong>de</strong> dos espíritos. Casando com essa or<strong>de</strong>m<br />
restabelecida, as estrofes vêm arrumadas em sextilhas e as rimas obe<strong>de</strong>cem ao esquema AA (paralelas) e<br />
BCCB (opostas e intercaladas).<br />
Enredo<br />
O poema narra o drama <strong>de</strong> I-Juca Pirama (aquele que vai morrer), último <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte da tribo tupi, que é<br />
feito prisioneiro <strong>de</strong> uma tribo inimiga. Movido pela amor filial, pois o índio tupi era arrimo <strong>de</strong> seu pai,<br />
velho e cego, I-Juca Pirama, contrariando a ética do índio, implora ao chefe dos timbiras pela sua<br />
libertação. O chefe timbira a conce<strong>de</strong>, não sem antes humilhar o prisioneiro: "Não queremos com carne<br />
vil enfraquecer os fortes." Solto, o prisioneiro reencontra-se com seu pai, que percebe que o filho havia<br />
sido aprisionado e libertado. Indignado, o velho exige que ambos se dirijam à tribo timbira, on<strong>de</strong> o pai<br />
amaldiçoa violentamente o jovem guerreiro que ferido em seus brios, põe-se sozinho a lutar com os<br />
timbiras. Convencido da coragem do tupi, o chefe inimigo po<strong>de</strong>-lhe que pare a luta, reconhecendo sua<br />
barvura. Pai e filho se abraçam - estava preservada a dignida<strong>de</strong> dos tupis.<br />
O Guarani, <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar<br />
Análise da obra<br />
O Guarani - A epopéia da formação da nacionalida<strong>de</strong><br />
Escrito originalmente em folhetim, entre fevereiro e abril <strong>de</strong> 1857, com 54 capítulos, O Guarani teve tal<br />
êxito na edição folhetinesca que, antes do fim do a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1857, foi publicado em livro, com alterações<br />
mínimas em relação ao que fora publicado em jornal.
Mantiveram-se as quatro parte originais: Os Aventureiros, Peri, Os Aimorés e A Catástrofe, com os<br />
capítulos dispostos como saíram do folhetim.<br />
O romance se compõe, em gran<strong>de</strong> parte, <strong>de</strong> personagens e episódios, mas as imagens permanecem na<br />
memória e amarram os fios mais importantes da narrativa. São imagens po<strong>de</strong>rosas, que se impõem<br />
sobretudo por seu caráter plástico. Por isso, a crítica distingue em Alencar um gran<strong>de</strong> escritor, um gran<strong>de</strong><br />
artista da palavra, mas não compartilha do mesmo entusiasmo quando se refere aos seus enredos, à<br />
carpintaria da narrativa, algumas vezes falha (os conhecidos "cochilos" do escritor), e quase sempre<br />
previsível quanto às ações das personagens, lineares ou planas.<br />
A narrativa <strong>de</strong> O Guarani é simples, mas não simplista. Trabalhando habilidosamente as possibilida<strong>de</strong>s e<br />
contradições do romance romântico, vale-se com muita liberda<strong>de</strong> da trama <strong>no</strong>velesca, da coloração épica,<br />
do <strong>de</strong>vaneio lírico, da a<strong>no</strong>tação histórica da efabulação mítica e lendária, do ímpeto i<strong>de</strong>ológico<br />
nacionalista e <strong>de</strong> elevada carga simbólica, tudo isso revestido <strong>de</strong> uma profusão <strong>de</strong> luzes e cores que<br />
inva<strong>de</strong> a pupila do leitor, como se ele estivesse assistindo a um espetáculo grandioso, povoado pelas<br />
forças da natureza e por titãs, absorto pela beleza da cena, mais do que pelos porme<strong>no</strong>res da intriga.<br />
Personagens: Peri: índio valente, corajoso, chefe da nação goitacá, o Guarani.<br />
Ceci (Cecília): moça linda, <strong>de</strong> doces olhos azuis, gênio travesso, mas meiga, suave, sonhadora, her<strong>de</strong>ira<br />
da força moral interior <strong>de</strong> seu pai, D. Antônio Mariz.<br />
Isabel: moça morena, sensual, <strong>de</strong> sorriso provocador; filha bastarda <strong>de</strong> D. Antônio Mariz com uma índia,<br />
oficialmente sobrinha <strong>de</strong>le e prima <strong>de</strong> Ceci.<br />
D. Antônio Mariz: fidalgo <strong>português</strong> da mais pura estirpe.<br />
Dona Lauriana: senhora paulista, <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> cinqüenta a<strong>no</strong>s, magra, forte, <strong>de</strong> cabelos pretos com alguns<br />
fios brancos; um tanto egoísta, soberba, orgulhosa, diferente do marido, D. Antônio Mariz.<br />
D. Diogo Mariz: jovem fidalgo, na ―flor da ida<strong>de</strong>‖, que passa o tempo em caçadas e correrias; tratado<br />
com rigi<strong>de</strong>z pelo pai, D. Antônio Mariz, em <strong>no</strong>me da honra da família.<br />
Loreda<strong>no</strong>: um dos aventureiros da casa do Paquequer; italia<strong>no</strong>, more<strong>no</strong>, alto, musculoso, longa barba<br />
negra, sorriso branco e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso, ganancioso, ambicioso; ex-padre (Frei Ângelo <strong>de</strong> Luca), religioso<br />
traidor <strong>de</strong> sua fé.<br />
Enredo<br />
A ação passa-se na primeira meta<strong>de</strong> do século XVII, iniciando-se em 1604. Por meio do flashback, o<br />
narrador, ao apresentar o fidalgo D. Antônio Mariz, recua até à fundação da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em<br />
1567, por Mem <strong>de</strong> Sá, da qual o pai <strong>de</strong> Ceci teria participado, combatendo os índios inamistosos e os<br />
invasores franceses. Após o <strong>de</strong>sastre <strong>português</strong> nas areias do Marrocos, em Alcácer Quibir, em 1578, e o<br />
subseqüente domínio espanhol, em 1580, D. Antônio Mariz <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>-se a permanecer <strong>no</strong> Brasil, para não<br />
submeter ao gover<strong>no</strong> filipi<strong>no</strong>. Deci<strong>de</strong> estabelecer-se na sesmaria que lhe fora concedida por Mem <strong>de</strong> Sá,<br />
em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Coroa Portuguesa. Em 1593, começa a construir<br />
uma habitação provisória, até que artesãos do rei<strong>no</strong> edificassem e <strong>de</strong>corassem o misto <strong>de</strong> fortaleza, castelo<br />
e vivenda, em que se estabeleceu <strong>de</strong>finitivamente com sua família, cavaleiros, agregados, aventureiros<br />
etc. Assim como o Frei Antão, protagonista das Sextilhas, <strong>de</strong> Gonçalves Dias, D. Antônio quer manter na<br />
Colônia a integrida<strong>de</strong> do Império Português.
O espaço é o planalto fluminense, a Serra dos Órgãos, às margens do rio Paquequer, afluente do rio<br />
Paraíba. A ação principia e termina tendo o cenário o Paquequer; imagem primeira - primordial, plena e<br />
pura - que se associa à figura nuclear do protagonista, Peri: "filho(s) indômito(s) <strong>de</strong>sta pátria <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong>", mas também "vassalo(s) e tributário(s)": o índio, <strong>de</strong> sua "senhora", Cecília Mariz; o rio,<br />
"<strong>de</strong>sse rei das águas", o Paraíba.<br />
D. Antônio Mariz, fidalgo da mais pura estirpe, leva adiante <strong>no</strong> Brasil uma colonização <strong>de</strong>ntro do mais<br />
rigoroso espírito <strong>de</strong> obediência à sua pátria. Sua casa forte, às margens do rio Paquequer, edificada como<br />
verda<strong>de</strong>iro castelo medieval, abriga, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um código cavaleiresco semelhante à suserania e<br />
vassalagem medievais, ilustres portugueses, afinados ao mesmo espírito patriótico e colonizador. Entre<br />
esses cavaleiros e fidalgos insinuam-se aventureiros, mercenários em busca <strong>de</strong> ouro e prata, li<strong>de</strong>rados por<br />
Loreda<strong>no</strong> (ex-frei Ângelo di Lucca), que assassinara um homem <strong>de</strong>sarmado para obter o mapa das<br />
famosas minas <strong>de</strong> prata. Valendo-se da ingênua cordialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> D. Antônio Mariz, Loreda<strong>no</strong> trama a<br />
<strong>de</strong>struição da <strong>no</strong>bre família do fidalgo e <strong>de</strong> seus ilustres agregados. Trama também o rapto <strong>de</strong> Cecília,<br />
filha <strong>de</strong> D. Antônio. Mas os pla<strong>no</strong>s <strong>de</strong> Loreda<strong>no</strong> esbarram na vigilância constante <strong>de</strong> Peri, índio da tribo<br />
dos goitacás, que, tendo salvo Cecília <strong>de</strong> uma avalanche <strong>de</strong> pedras, obteve a mais alta gratidão <strong>de</strong> D.<br />
Antônio Mariz e a amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cecília, que o trata como a um irmão.<br />
A narrativa inicia seus momentos épicos logo após o inci<strong>de</strong>nte em que Diogo, filho <strong>de</strong> D. Antônio,<br />
inadvertidamente, mata uma indiazinha aimoré, durante uma caçada. Indignados, os aimorés procuram<br />
vingança: surpreendidos por Peri, enquanto espreitavam o banho <strong>de</strong> Ceci, para logo após assassiná-la,<br />
dois aimorés caem transpassados por certeiras flechas; o fato é relatado à tribo aimoré por uma índia que<br />
conseguira ver o ocorrido. A luta que irá se travar não diminui a ambição <strong>de</strong> Loreda<strong>no</strong>, que continua a<br />
tramar a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> todos os que não o acompanhem. pela bravura <strong>de</strong>monstrada do homem <strong>português</strong>,<br />
têm importância ainda duas personagens: Álvaro, jovem enamorado <strong>de</strong> Ceci e não retribuído nesse amor,<br />
senão numa fraterna simpatia; Aires Gomes, espécie <strong>de</strong> comandante <strong>de</strong> armas, leal <strong>de</strong>fensor da casa <strong>de</strong> D.<br />
Antônio. Durante todos os momentos da luta, Peri, vigilante, não <strong>de</strong>sgruda dos passos <strong>de</strong> Loreda<strong>no</strong>,<br />
frustrando todas as suas tentativas <strong>de</strong> traição ou <strong>de</strong> rapto <strong>de</strong> Ceci. Muito mais numerosos, os aimorés vão<br />
ganhando a luta passa a passo. Num momento dos mais heróicos, Peri, conhecendo que estavam quase<br />
perdidos, tenta uma solução tipicamente indígena: tomando vene<strong>no</strong>, pois sabe que os aimorés são<br />
antropófagos, <strong>de</strong>sce as montanha e vai lutar "in loco" contra os aimorés: sabe que, morrendo, seria sua<br />
carne <strong>de</strong>vorada pelos antropófagos e aí estaria a salvação da casa <strong>de</strong> D. Antônio: eles morreriam, pois seu<br />
organismo já estaria todo envenenado. Depois <strong>de</strong> encarniçada luta, na qual morreram muitos inimigos,<br />
Peri é subjugado e, já sem forças, espera, armado, o sacrifício que lhe irão imprimir. Álvaro (a esta altura<br />
enamorado <strong>de</strong> Isabel, irmã adotiva <strong>de</strong> Cecília) consegue heroicamente salvar Peri. Peri volta e diz a Ceci<br />
que havia tomado vene<strong>no</strong>. Ante o <strong>de</strong>sespero da moça com essa revelação, Peri volta à floresta em busca<br />
<strong>de</strong> um antídoto, espécie <strong>de</strong> erva que neutraliza o po<strong>de</strong>r letal do vene<strong>no</strong>. De volta, traz o cadáver <strong>de</strong><br />
Álvaro, morto em combate com os aimorés. Dá-se então o momento trágico da narrativa: Isabel,<br />
inconformada com a <strong>de</strong>sgraça ocorrida ao amado, suicida-se sobre seu corpo.<br />
Loreda<strong>no</strong> continua agindo. Crendo-se completamente seguro, trama agora a morte <strong>de</strong> D. Antônio e parte<br />
para a ação. Quando me<strong>no</strong>s supõe, é preso e con<strong>de</strong>nado a morrer na fogueira, como traidor. O cerco dos<br />
selvagens é cada vez maior. Peri, a pedido do pai <strong>de</strong> Cecília, se faz cristão, única maneira possível para<br />
que D. Antônio concordasse na fuga dos dois, os únicos que se po<strong>de</strong>riam salvar. Descendo por uma corda<br />
através do abismo, carregando Cecília entorpecida pelo vinho que o pai lhe <strong>de</strong>ra para que dormisse, Peri<br />
consegue afinal chegar ao rio Paquequer. Numa frágil ca<strong>no</strong>a vai <strong>de</strong>scendo o rio abaixo, até que ouve o<br />
gran<strong>de</strong> estampido provocado por D. Antônio, que, vendo entrarem os aimorés em sua fortaleza, ateia fogo<br />
aos barris <strong>de</strong> pólvora, <strong>de</strong>struindo índios e portugueses. Testemunhas únicas do ocorrido, Peri e Ceci<br />
caminham agora por uma natureza revolta em águas, enfrentando a fúria dos elementos da tempesta<strong>de</strong>.<br />
Cecília acorda e Peri relata-lhe o sucedido. Transtornada, a moça se vê sozinha <strong>no</strong> mundo. Prefere não<br />
mais voltar ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, para on<strong>de</strong> iria. Prefere ficar com Peri, morando nas selvas. A tempesta<strong>de</strong>
faz as águas subirem ainda mais. por segurança, Peri sobe ao alto <strong>de</strong> uma palmeira, protegendo fielmente<br />
a moça. Como as águas fossem subindo perigosamente, Peri, com força <strong>de</strong>scomunal, arranca a palmeira<br />
do solo, improvisando uma ca<strong>no</strong>a. O romance termina com a palmeira per<strong>de</strong>ndo-se <strong>no</strong> horizonte, não sem<br />
antes Alencar ter sugerido, nas últimas linhas do romance, uma bela união amorosa, semente <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
brotaria mais tar<strong>de</strong> a raça brasileira...<br />
"O hálito ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Peri bafejou-lhe a face. Fez-se <strong>no</strong> semblante da virgem um ninho <strong>de</strong> castos rubores<br />
e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas <strong>de</strong> um beijo soltando o vôo.<br />
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se <strong>no</strong> horizonte..."<br />
As partes estruturais da narrativa - As quatro partes do romance compõem três que po<strong>de</strong>m ser<br />
i<strong>de</strong>ntificados com a distribuição ortodoxa da narrativa em: princípio, clímax e <strong>de</strong>sfecho.<br />
Cenário - A Natureza e a Cultura - Suserania e Vassalagem<br />
O 1º movimento introduz o cenário e as personagens e caracteriza-se pela ausência <strong>de</strong> conflitos, pela<br />
harmonia entre o pólo da Natureza e pólo da Cultura, entre sujeitos e objetos. Há coor<strong>de</strong>nação,<br />
complementação e harmonia. Descreve-se seqüencialmente um cenário <strong>de</strong> montanhas e rios <strong>no</strong> interior<br />
fluminense, os aspectos exteriores do "castelo / fortaleza / casa" <strong>de</strong> D. Antônio Mariz, e, logo a seguir, os<br />
interiores da construção, enfatizando uma antropomorfização da natureza e uma naturalização do homem,<br />
<strong>de</strong> forma que nessas três <strong>de</strong>scrições o natural e o cultural constituam um cenário edênico, paradisíaco, <strong>no</strong><br />
qual a natureza é a casa do homem, a casa é uma extensão da natureza e o homem opera a união das duas.<br />
Assim, a escada <strong>de</strong> lajedo é construída meta<strong>de</strong> pela natureza e meta<strong>de</strong> pela arte‖, pois nessa paisagem a<br />
―indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar os meios <strong>de</strong> segurança e<br />
<strong>de</strong>fesa". A integração é completa: "havia uma coisa que chamaremos jardim, e <strong>de</strong> fato era uma imitação<br />
graciosa <strong>de</strong> toda a natureza, rica, vigorosa e explêndida, que o vista abraçava do alto do rochedo"; <strong>no</strong>s<br />
aposentos <strong>de</strong> Ceci "parecia que a natureza havia se feito menina", e seu quarto, <strong>de</strong>corado com aves,<br />
animais e pedras preciosas, é apresentado como ―ninho da i<strong>no</strong>cência" ou "como a atmosfera do paraíso<br />
que uma fada habitava".<br />
Exemplos <strong>de</strong>ssa integração harmônica entre natureza e cultura po<strong>de</strong>m ser fartarnente rastreados até o<br />
capitulo VIII. Esse clima edênico, paradisíaco está sugerido <strong>no</strong> brasão da família Mariz, <strong>no</strong> qual os três<br />
rei<strong>no</strong>s, o vegetal, o mineral e o animal, estão enlaçados, numa clara simbologia ou, ainda, quando na<br />
<strong>de</strong>scrição da missa rezada por D. Antônio diante <strong>de</strong> sua Família, a natureza é tomada como uma catedral<br />
aberta, imagem ao gosto da mais genuína tradição romântica: Chateaubriand, Lamartine, Garrett,<br />
Alexandre Hercula<strong>no</strong>, Gonçalves Dias, para ficarmos <strong>no</strong>s exemplos mais próximos da tradição romântica<br />
luso-brasileira. Nessa missa, não apenas o homem, mas ―a natureza se ajoelha aos pés do Criador para<br />
murmurar a prece da <strong>no</strong>ite!, "uma prece meio cristã, meio selvagem", vale dizer, uma oração que integra<br />
o cultural ao natural.<br />
A i<strong>de</strong>ologia romântico medieval que embasa O Guarani toma a composição piramidal da socieda<strong>de</strong>,<br />
dividida em "senhor" e "servos", em "susera<strong>no</strong>" e "vassalos", e em "sobera<strong>no</strong>" e "súdito", como princípio<br />
natural da or<strong>de</strong>m e da paz. D. Antônio Mariz exerce em seus domínios o direito natural, conforme<br />
concebido na Ida<strong>de</strong> Média, a partir da Suma Teológica, <strong>de</strong> Santo Tomás <strong>de</strong> Aqui<strong>no</strong>. O chefe praticava<br />
tanto a lei natural quanto a lei humana. Para Santo Tomás <strong>de</strong> Aqui<strong>no</strong>, a lei natural é o ato da razão e<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, que prescreve a observância da origem moral, proíbe a violação e que se manifesta às<br />
criaturas na luz natural da razão; e a lei humana é um preceito da razão or<strong>de</strong>nado para o bem da<br />
socieda<strong>de</strong>, emanado da autorida<strong>de</strong> competente e por ela promulgado (Suma Teológica, XCIV, 1 e XCVI,<br />
4). D. Antônio Mariz tipifica o exercício das duas leis, como um senhor feudal que associa o po<strong>de</strong>r<br />
huma<strong>no</strong> e espiritual, sendo guerreiro e sacerdote ao mesmo tempo: "Assim vivia, e <strong>no</strong> meio do sertão,
<strong>de</strong>sconhecida e ig<strong>no</strong>rada, essa pequena comunhão <strong>de</strong> homens, governando-se com as suas leis, com seus<br />
usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo habito<br />
da obediência e por essa superiorida<strong>de</strong> moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.<br />
A i<strong>de</strong>ologia romântico-medieval que ilustramos até aqui com exemplos do romance é justificada por uma<br />
espécie <strong>de</strong> ―mo<strong>de</strong>lo natural‖ que envolve o cenário e as personagens <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira página. Aí, como já<br />
referido, a <strong>de</strong>scrição entre o rio Paquequer e o Paraíba é assim <strong>de</strong>scrita: "dir-se- ia que vassalo e<br />
tributário <strong>de</strong>sse rei das águas, o peque<strong>no</strong> rio, altivo e sobranceiro com os rochedos, curva-se<br />
humil<strong>de</strong>mente aos pés do susera<strong>no</strong>. Per<strong>de</strong> então a beleza selvática: suas ondas são calmas e serenas<br />
como as <strong>de</strong> um lago, e não se revoltam contra os barcos e as ca<strong>no</strong>as que resvalam sobre elas: escravo<br />
submisso sofre o látego do senhor."<br />
Essa <strong>de</strong>scrição inicial vale como índice não só da estrutura feudal <strong>de</strong>ntro da socieda<strong>de</strong> chefiada por D.<br />
Antônio, mas também da situação inicial <strong>de</strong> Peri diante <strong>de</strong> Ceci. O índio guarani (goitacá) chama a fidalga<br />
portuguesa <strong>de</strong> Iara, que significa Senhora, e aparece referenciado várias vezes como escravo submisso,<br />
diante da mulher que ele adora com fervor religioso, como um <strong>de</strong>voto diante <strong>de</strong> Nossa Senhora, ela<br />
Virgem Maria, <strong>de</strong> que já ouvira falar na educação mariana dos jesuítas, com a qual teve um ligeiro<br />
contato. Ao final, senhora e escravo serão <strong>de</strong>scritos como irmã e irmão, sugerindo uma integração total<br />
dos elementos, <strong>de</strong> acordo, com a i<strong>de</strong>ologia do autor, que agora vai afirmar a supremacia da Natureza<br />
sobre a Cultura, pois só com a integração total na natureza po<strong>de</strong>ria haver paz.<br />
Conflitos - Natureza e Cultura - Os bons e os maus<br />
O 2º Movimento é o em que os conflitos começam a se <strong>de</strong>linear, as personagens vão entrando em choque<br />
até a quase <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> todos eles.<br />
O código dramático, a ação conflitual instaura-se quando elementos conflitantes começam a emergir<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um clima harmonioso que marca o início do romance e que ocultava os conflitos latentes entre<br />
o natural e o cultural e as oposições internas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada conjunto.<br />
Assim, há dois eixos fundamentais e, em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>sdobram-se todas as relações conflituais:<br />
1º - Natureza x Cultura<br />
2º - Os Bons x Os Maus<br />
Formam-se assim quatro subconjuntos:<br />
1. Os bons da natureza - Peri e os índios da tribo goitacá, pertencente à nação guarani, dóceis, <strong>no</strong>bres,<br />
leais, tomados <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma perspectiva sempre positiva.<br />
2. Os maus da natureza - os índios aimorés, antropófagos, <strong>de</strong>scritos com "fisio<strong>no</strong>mias sinistras, nas quais<br />
as braveza, ig<strong>no</strong>rância e os instintos carniceiros tinham quase <strong>de</strong> todo apagado o cunho da raça<br />
humana".<br />
3. Os bons da cultura - D. Antônio Mariz, sua família, especilamente Cecília e, pouco abaixo, Diogo, o<br />
filho <strong>de</strong>sastrado; D. Lauriana, a esposa paulista orgulhosa, preconceituosa; Isabel, a suposta filha natural<br />
do fidalgo com uma índia, que ele não perfilhou, mas assumiu discretamente como filha adotiva. Seguemse<br />
o cavalheiro Álvaro, corajoso, cortês, <strong>de</strong>ntro do mais restrito figuri<strong>no</strong> das <strong>no</strong>velas medievais e o<br />
escu<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> D. Antônio, Aires Gomes, espécie <strong>de</strong> chefe-<strong>de</strong>-armas do fidalgo.<br />
4. Os maus da cultura - capitaneados pelo vilão, assassi<strong>no</strong> e traidor Loreda<strong>no</strong>, ex-frei Ãngelo di Lucca,<br />
que <strong>de</strong> posse do roteiro das minas <strong>de</strong> prata <strong>de</strong>scobertas por Ribeiro Dias, <strong>no</strong> interior da Bahia, preten<strong>de</strong><br />
ven<strong>de</strong>r o seu segredo ao Rei <strong>de</strong> Espanha, enriquecer e, ainda, <strong>de</strong>struir D. Antônio Mariz e sua família,
aptar e possuir sexualmente, pela força, se necessário, a casta filha loira <strong>de</strong> olhos azuis do fidalgo.<br />
Seguem-se-lhe os <strong>de</strong>mais aventureiros: Rui Soeiro e Bento Simões, entre os mais ativos.<br />
Os elementos negativos e positivos da cultura e da natureza acabam polarizando-se em relações<br />
opositivas, regidas por um sentido geral <strong>de</strong> simetria, cuja bilateralida<strong>de</strong> vai compondo módulos narrativos<br />
que mantêm uma perfeita proporcionalida<strong>de</strong>.<br />
A partir do segundo capítulo, Alencar começa a <strong>de</strong>sdobrar os sujeitos em pares opostos, repetindo um<br />
modo dual <strong>de</strong> oposição, seja segundo a raça, a moral, a nacionalida<strong>de</strong>, a religião, os costumes e os<br />
sentimentos.<br />
D. Antônio Mariz, fidalgo <strong>português</strong>, e sua esposa, D. Lauriana, paulista, não fidalga.<br />
Cecília, filha legítima, loira <strong>de</strong> olhos azuis, e sua irmã por adoção, Isabel, filha natural "dos amores do<br />
fidalgo por uma índia", morena <strong>de</strong> cabelos e olhos escuros.<br />
Álvaro, cavalheiro gentil, <strong>de</strong> fala cortês e bem cuidada, preten<strong>de</strong>nte à mão <strong>de</strong> Cecília, Loreda<strong>no</strong>, bandido<br />
e assassi<strong>no</strong>, <strong>de</strong> fala italianada, recheada <strong>de</strong> lugares-comuns, que preten<strong>de</strong> raptar Cecília e <strong>de</strong>struir seu pai.<br />
Álvaro e Loreda<strong>no</strong> - O mocinho e o Bandido<br />
Personagens antagônicos, esse antagonismo é referenciado pela própria natureza que os envolve. No<br />
primeiro lance do capítulo III, os encontramos caminhando paralelamente, junto ao rio Paraíba, numa<br />
conversa também paralela, em diálogo que não se entrelaça, e mais parece um duelo verbal:<br />
"Uma <strong>de</strong>ssas ocasiões, em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos, um<br />
moço <strong>de</strong> vinte e oito a<strong>no</strong>s, bem parecido, e que marchava à frente do troço, governando o seu cavalo com<br />
muito garbo e gentileza, quebrou o silêncio geral.<br />
De maneira concisa, a <strong>de</strong>scrição começa a talhar a personagem que exerce a função <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> na<br />
tropa, ressaltando as qualida<strong>de</strong>s positivas na aparência e na maneira <strong>no</strong>bre como domina a sua montaria.<br />
A gentileza do exercício do mando emerge com a frase alegre <strong>de</strong> Álvaro:<br />
"— Vamos, rapazes! disse ele alegremente aos caminheiros; um pouco <strong>de</strong> diligência, e chegaremos com<br />
cedo. Restam-<strong>no</strong>s apenas umas quatro léguas!"<br />
A voz do cavalheiro abre um diálogo tenso, através do qual Alencar, também hábil dramaturgo, constrói<br />
pela alternância das falas as personalida<strong>de</strong>s antagônicas <strong>de</strong> Álvaro e <strong>de</strong> Loreda<strong>no</strong>, <strong>de</strong>finindo seus<br />
sentimentos e perfis morais: o bom-mocismo do primeiro e a mordacida<strong>de</strong> do segundo:<br />
"Um dos ban<strong>de</strong>iristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas à cavalgadura e, avançando algumas<br />
braças, colocou-se ao lado do moço.<br />
— Ao que parece, ten<strong>de</strong>s pressa <strong>de</strong> chegar, Sr. Álvaro <strong>de</strong> Sá? disse ele com um ligeiro acento italia<strong>no</strong>, e<br />
um meio sorriso cuja expressão <strong>de</strong> ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita.<br />
— Decerto, Sr. Loreda<strong>no</strong>: nada é mais natural a quem viaja, do que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> chegar.<br />
— Não digo o contrário; mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja, do que poupar<br />
os seus animais.<br />
— Que quereis dizer com isto, Sr. Loreda<strong>no</strong>? perguntou Álvaro com um movimento <strong>de</strong> enfado.<br />
— Quero dizer, sr. cavalheiro, respon<strong>de</strong>u o italia<strong>no</strong> em tom <strong>de</strong> mofa e medindo com os olhos a altura do<br />
sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas.<br />
Álvaro corou.
— Não vejo em que isto vos cause reparo; a alguma hora havíamos chegar; e melhor é que seja <strong>de</strong> dia,<br />
do que <strong>de</strong> <strong>no</strong>ite.<br />
— Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia! replicou o italia<strong>no</strong> <strong>no</strong><br />
mesmo tom.<br />
Um <strong>no</strong>vo rubor assomou às faces <strong>de</strong> Álvaro, que não pô<strong>de</strong> disfarçar o seu enleio; mas, recobrando o<br />
<strong>de</strong>sembaraço, soltou uma risada, e respon<strong>de</strong>u:<br />
— Ora, Deus, Sr. Loreda<strong>no</strong>; estais aí a falar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; à fé <strong>de</strong><br />
cavalheiro que não vos entendo.<br />
— Assim <strong>de</strong>ve ser. Diz a escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir.<br />
— Oh! temos anexim! Aposto que apren<strong>de</strong>stes isto agora em São Sebastião; foi alguma velha beata, ou<br />
algum licenciado em Câ<strong>no</strong>nes que vos ensi<strong>no</strong>u? disse o cavalheiro gracejando.<br />
— Nem um nem outro, sr. cavalheiro, foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores, que por sinal também me<br />
mostrou custoso brocados e lindas arrecadas <strong>de</strong> perólas, bem próprias para o mimo <strong>de</strong> um gentil<br />
cavalheiro à sua dama.<br />
Álvaro enrubesceu pela terceira vez.<br />
..........................................................................<br />
— Excelente. Ve<strong>de</strong>, vós, tenho visto coisas que se passam diante dos outros, e que nionguém percebe,<br />
porque não se quer dar ao trabalho <strong>de</strong> olhar como eu: disse o italia<strong>no</strong> com o seu ar <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong><br />
fingida.<br />
— Contai-<strong>no</strong>s isto, há <strong>de</strong> ser curioso.<br />
— Ao contrário, é o mais natural possível: um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia <strong>de</strong><br />
<strong>no</strong>ite às luz das estrelas... Po<strong>de</strong> haver coisa mais simples?<br />
Álvaro empali<strong>de</strong>ceu eu <strong>de</strong>sta vez.<br />
— Sabeis uma coisa, Sr. Loreda<strong>no</strong>?<br />
— Saberei, cavalheiro, se me fizer<strong>de</strong>s a honra <strong>de</strong> dizer.<br />
— está me parecendo que a vossa habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais<br />
nem me<strong>no</strong>s do que o ofício <strong>de</strong> espião.<br />
Álvaro intervém com afirmações diretas e recusa-se a conversar "com meias palavras", apresentando sua<br />
opção pela franqueza, seu apreço à verda<strong>de</strong> e sua prática obediente e leal a Dom Antônio Mariz. Este é<br />
evocado para <strong>de</strong>marcar o universo do bem e para construir e legitimar autorida<strong>de</strong> do jovem sobre a tropa.<br />
Assim, ao enfrentar as insinuações <strong>de</strong> Loreda<strong>no</strong> com recursos próprios à fidalguia, Álvaro revela não<br />
dispor <strong>de</strong> armas a<strong>de</strong>quadas para tratar com a baixeza. Com esses traços, o narrador <strong>de</strong>senha o moço<br />
virtuoso que habita o rei<strong>no</strong> da i<strong>no</strong>cência e <strong>de</strong>ste extrai um amor casto, trazendo mais um fio para o tecido<br />
romanesco. O moço sente-se surpreendido, pois seu interlocutor alu<strong>de</strong> a um sentimento que ele julgava<br />
oculto. O traço ingênuo da personagem manifesta-se <strong>no</strong> seu constrangimento não só por titubear para<br />
respon<strong>de</strong>r ao tropeiro, mas sobretudo pelas a<strong>no</strong>tações do narrador ao registrar que o moço três vezes<br />
enrubesce e finalmente empali<strong>de</strong>ce.<br />
Desta forma, Alencar põe em cena um preposto do Dom Antônio Mariz que conquista essa condição por<br />
sua conduta <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> e generosida<strong>de</strong>. A narrativa confirmará o caráter virtuoso e ingênuo <strong>de</strong> Álvaro<br />
provendo para ele ações que lhe permitam explicitar suas qualida<strong>de</strong>s. O moço que apanha a flor e suspira<br />
será reencontrado quando <strong>de</strong>posita um presente na janela <strong>de</strong> Ceci ou quando a ela dirige a palavra <strong>de</strong><br />
maneira tímida e respeitosa. A lealda<strong>de</strong> ao fidalgo será reiterada quando se compromete a casar-se com<br />
sua filha, renunciando a realizar sua paixão por Isabel, ou ainda por atirar-se à morte numa batalha. Tudo<br />
se dá como convém a um cavalheiro a quem o narrador não <strong>de</strong>stina a princesa ou a um jovem a quem<br />
Alencar não atribuiu participação <strong>de</strong>cisiva ao processo <strong>de</strong> configuração do país.<br />
A esta figura contrapõe-se Loreda<strong>no</strong>. Suas intervenções <strong>no</strong> diálogo são construídas por dois recursos<br />
fundamentais: a frase formulada <strong>de</strong> modo alusivo e o tom irônico. Consi<strong>de</strong>rando apenas sua fala, o leitor<br />
já percebe que falta gran<strong>de</strong>za a este homem para enfrentar a situação <strong>de</strong> conflito, pois ele opta pelas
"meias palavras" e revela que seus conhecimentos sobre Álvaro <strong>de</strong>correm da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> espreita. Mas<br />
fundamental para dar a esta personagem o talhe <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> vilão são os comentários do narrador:<br />
"Decididamente o sarcástico italia<strong>no</strong>, com o seu espírito mordaz, achava meio <strong>de</strong> ligar a todas as<br />
perguntas do moço uma alusão que o incomodava; e isto <strong>no</strong> tom mais natural do mundo.<br />
.........................................................................<br />
Nestas condições, o italia<strong>no</strong> lançava sobre ele um olhar a fundo, cheio <strong>de</strong> malícia e ironia; <strong>de</strong>pois<br />
continuava a assobiar entre <strong>de</strong>ntes uma cançoneta <strong>de</strong> condottiere, <strong>de</strong> quem ele apresentava o verda<strong>de</strong>iro<br />
tipo.<br />
Um rosto more<strong>no</strong>, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso fazia brilhar a<br />
alvura <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>ntes; olhos vivos, a fronte larga, <strong>de</strong>scoberta pela chapéu <strong>de</strong>sabado que caía sobre o<br />
ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa eram os principais traços <strong>de</strong>ste<br />
aventureiro.<br />
Ele é pródigo em adjetivos para qualificar o tropeiro como encarnação do vício e revela as paixões vis<br />
que lhe dão a estatura <strong>de</strong> agente do mundo <strong>de</strong>moníaco tão necessário para viabilizar o conflito da estória<br />
romanesca. A voz narrativa intercala-se com as frases <strong>de</strong> Loreda<strong>no</strong> e <strong>de</strong>screve seu comportamento,<br />
realizando um movimento eficaz para anunciar que ele se constitui pela frau<strong>de</strong>. O narrador segue <strong>de</strong> perto<br />
a personagem e indica-lhe o modo <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r pautado por disfarces e saudações. Assim, o leitor vê que<br />
"a expressão <strong>de</strong> ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita"; que "o sarcástico italia<strong>no</strong>, com seu<br />
espírito mordaz", <strong>de</strong>stilava sua malícia "<strong>no</strong> tom mais natural do mundo"; <strong>no</strong> tom mais natural do mundo";<br />
que se apresenta "com uma ingenuida<strong>de</strong> simulada".<br />
Cecília e Isabel - A Loira e a Morena — A "Mulher-Anjo" e a "Mulher-Demônio"<br />
O narrador retoma o mesmo recurso do contraste que utilizou para caracterizar Álvaro e Loreda<strong>no</strong>; a<br />
virgem loira é <strong>de</strong>scrita em um longo trecho, que integra a roupa, a moral, a fisio<strong>no</strong>mia e o ambiente para<br />
em que imagens elevadas, <strong>de</strong> nítido gosto romântico, compor a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ceci, aproximada das<br />
flores, dos pássaros e da idéia <strong>de</strong> inefável, gracioso, infantil e angelical.<br />
Isabel tem sua beleza caracterizada como "o tipo brasileiro", revestido <strong>de</strong> langui<strong>de</strong>z, malícia, indolência e<br />
vivacida<strong>de</strong>, um tipo bem mais terre<strong>no</strong>, com seus traços huma<strong>no</strong>s mais vincados, os "cabelos pretos", os<br />
"lábios <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosos", em três parágrafos curtos e precisos:<br />
Era um tipo inteiramente diferente do <strong>de</strong> Cecília; era o tipo brasileiro em toda sua graça e formosura,<br />
com o encantador contraste <strong>de</strong> langui<strong>de</strong>z e malícia, <strong>de</strong> indolência e vivacida<strong>de</strong>.<br />
Os olhos gran<strong>de</strong>s e negros, o rosto more<strong>no</strong> e rosado, cabelos pretos, lábios <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosos, sorriso<br />
provocador, davam a este rosto um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução irresistível.<br />
Ela parou em face <strong>de</strong> Cecília meio <strong>de</strong>itada sobre a re<strong>de</strong>, e não po<strong>de</strong> furtar-se à admiração que lhe<br />
inspirava essa beleza <strong>de</strong>licada, <strong>de</strong> contor<strong>no</strong>s tão suaves; e uma sombra imperceptível, talvez <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>speito, passou pelo seu rosto mas esvaeceu-se logo.<br />
A imagem sensual enfatiza o "po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução irresistível", capaz não só <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar sentimentos<br />
indig<strong>no</strong>s, mas <strong>de</strong> portá-los também, como a insinuada sombra <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito pela beleza e "superiorida<strong>de</strong>"<br />
<strong>de</strong> Ceci.
Alencar colhe a mestiça em situação <strong>de</strong> precário equilíbrio entre a marginalização, imposta a ela pela<br />
dona da casa, e a integração a família, sugerida <strong>no</strong>s cuidados discretos do fidalgo a ela dispensados e<br />
claramente explicitada por Ceci, quando esta lhe propõe tratá-la por irmã. O favor, travestido <strong>de</strong> afeto,<br />
revela-se <strong>no</strong> testamento <strong>de</strong> Dom Antônio Mariz. A condição <strong>de</strong> filha natural po<strong>de</strong> ser tolerada na casa,<br />
mas o acesso ao <strong>no</strong>me da família lhe é vedado. Ela não po<strong>de</strong> sonhar com o príncipe encantado ao seduzir<br />
Álvaro, transformando o compromisso do moço com Ceci em obrigação e não mais ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção,<br />
Isabel conquista o direito <strong>de</strong> encontrá-lo <strong>no</strong> céu, longe das <strong>no</strong>rmas e dos corpos.<br />
A morte como expiação dos pecados dos amantes e os arquétipos românticos da mulher-anjo e da mulher<strong>de</strong>mônio<br />
dois elementos modulares da narrativa folhetinesca, que Alencar cumpriu à risca.<br />
Na longa caracterização <strong>de</strong> Cecília que se vai ler, o narrador esmera-se nas comparações sugestivas,<br />
mobilizando recursos para traduzir a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver precisamente tanta graça e beleza:<br />
diminutivos, adjetivos, expressões como "pareciam", "uma espécie <strong>de</strong>", "um quer que seja <strong>de</strong>", e<br />
comparações que aproximam a graça ao peque<strong>no</strong> e <strong>de</strong>licado, e a suavida<strong>de</strong> ao ingênuo e simples. As cores<br />
predominantes, branco e azul, mesclam-se ao louro e rosa.<br />
Fusão <strong>de</strong> fada, menina e mulher, a ambigüida<strong>de</strong> aparece entre atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> menina e <strong>de</strong>vaneios <strong>de</strong> moça.<br />
À langui<strong>de</strong>z do corpo motivada pelo encantamento amoroso vivido <strong>no</strong> sonho segue-se a criança<br />
contrariada a bater o "pezinho", porque em vez <strong>de</strong> "lindo cavalheiro" via um "selvagem". A imagem<br />
onírica perturba o corpo da menina imprimindo nele movimento <strong>de</strong> mulher, que leva a personagem a<br />
aparecer ‗"toda trêmula", "com o seio palpitante substituindo o contentamento pela tristeza. Ela mesma,<br />
usando a mediação da contrarieda<strong>de</strong>, localiza a origem da melancolia na distância entre cavalheiro e<br />
selvagem. Já <strong>de</strong>sperta, ela confessa seu sentimentoo a Isabel e esta também o vincula ao índio, mas<br />
através <strong>de</strong> outras mediações. As diferenças na interpretação da tristeza reapresentam, sob outro ângulo, a<br />
oposição entre a loura e a morena, contrapondo a i<strong>no</strong>cência <strong>de</strong> um sonho <strong>de</strong> amor impossível, <strong>de</strong> "algum<br />
<strong>de</strong>sses mitos <strong>de</strong> um coração <strong>de</strong> moça" à experiência cotidiana <strong>de</strong> lsabel, que vive na escala intermediária<br />
entre o branco, que domina e o selvagem escravizado.<br />
A apresentação das duas personagens se dá através do emprego <strong>de</strong> diferentes procedimentos para<br />
<strong>de</strong>screver cada urna <strong>de</strong>las e da justaposição <strong>de</strong> uma cena <strong>de</strong> diálogo à narração <strong>de</strong> um sonho. Esta<br />
montagem <strong>de</strong>ve alertar o leitor para tentar reconhecer a elaboração particular que Alencar dá ao câ<strong>no</strong>n<br />
romântico <strong>de</strong> contrapor a loura casta à morena <strong>de</strong>moníaca.<br />
Concluindo, O Guarani é inegavelmente belo, válido como obra <strong>de</strong> arte. A narrativa parte do lendário,<br />
mas segue uma racionalização gradual, com ações rigorosamente distribuídas por capítulos que levam a<br />
uma concepção harmônica da história e à consonância com os manifestos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> afirmação do jovem<br />
país.<br />
A Moreninha, <strong>de</strong> Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo<br />
Análise da obra<br />
A Moreninha é um dos principais romances brasileiros e seu autor, ao lado <strong>de</strong> Manuel Antonio <strong>de</strong><br />
Almeida, José <strong>de</strong> Alencar, <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>, Aluísio Azevedo e outros (poucos) é um dos mais<br />
importantes autores da língua portuguesa. Este livro, centrado <strong>no</strong> romance entre Augusto e Carolina, é um<br />
dos pilares <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa literatura. Numa época on<strong>de</strong> a cultura era totalmente voltada para a Europa, A<br />
Moreninha é uma das primeiras e magníficas tentativas <strong>de</strong> fazer literatura brasileira, observando usos e
costumes do Brasil do Segundo Império, retratando o cotidia<strong>no</strong> da vida brasileira em meados do século<br />
passado. Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo (1820-1881) era médico, mas jamais exerceu a profissão, tendo<br />
<strong>de</strong>dicado sua vida à literatura, à imprensa e ao teatro. A obra retrata as características do movimento<br />
literário a que pertence à medida que possui espírito romântico (final feliz), <strong>no</strong>stalgia medievalista<br />
(indianismo), i<strong>de</strong>alismo, culto à natureza, cristianismo (Festa <strong>de</strong> San‘t Ana), sentimentalismo, linguagem<br />
popular e liberda<strong>de</strong> criadora. Retrata também uma realida<strong>de</strong> fantasiada presente <strong>no</strong> autor.<br />
Tempo / Espaço / Ação<br />
O tipo <strong>de</strong> ambiente predominante é físico. Foram encontradas algumas <strong>de</strong>scrições interessantes, a que<br />
mais <strong>no</strong>s agradou foi: "A Ilha <strong>de</strong>... é tão pitoresca como pequena. A casa da avó <strong>de</strong> Filipe ocupa<br />
exatamente o centro <strong>de</strong>la. A avenida por on<strong>de</strong> iam os estudantes a divi<strong>de</strong> em duas meta<strong>de</strong>s, das quais a<br />
que fica à esquerda <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>sembarca, está simetricamente coberta <strong>de</strong> belos arvoredos, estimáveis, ou<br />
pelo aspecto curioso que oferecem. A que fica à mão direita é mais <strong>no</strong>tável ainda; fechada do lado do mar<br />
por uma longa fila <strong>de</strong> rochedos e <strong>no</strong> interior da ilha por negras gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ferro, está adornada <strong>de</strong> mil<br />
flores, sempre brilhantes e viçosas, graças à eterna primavera <strong>de</strong>sta <strong>no</strong>ssa boa Terra <strong>de</strong> Santa Cruz."<br />
A seqüência narrativa e a ação dos personagens se dão em tempo linear - trinta dias. Os eventos narrados<br />
<strong>de</strong>senrolam-se durante os trinta dias pelos quais a aposta era válida. A aposta foi feita em 20 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />
1844, uma segunda-feira, e termina <strong>no</strong> dia do pedido <strong>de</strong> casamento, 20 <strong>de</strong> agosto do mesmo a<strong>no</strong>.<br />
Existe um recuo ao passado. Quando a história se inicia, Augusto está <strong>no</strong> quinto a<strong>no</strong> <strong>de</strong> Medicina e<br />
conquistara, entre os amigos, a fama <strong>de</strong> inconstante. Nos capítulos VII e VIII, o autor conta-<strong>no</strong>s a origem<br />
da instabilida<strong>de</strong> amorosa do herói. Tudo começara há oito a<strong>no</strong>s, quando Augusto contava 13, e Carolina 7<br />
a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />
Foco narrativo<br />
O narrador, na verda<strong>de</strong>, é Augusto, pois per<strong>de</strong>u a aposta feita com Filipe; mas é narrado na 3ª pessoa, por<br />
um narrador onisciente. Aqui e ali, ele se intromete um pouco na história, bancando o moralista.<br />
A importância para a obra e a repercussão <strong>no</strong> leitor é que a utilização <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> narrador causa o<br />
aprofundamento psicológico das personagens, o que não ocorreria se o narrador não fosse onisciente ou<br />
em 1ª pessoa. A seqüência narrativa e a ação dos personagens se dão em tempo cro<strong>no</strong>lógico pois ocorrem<br />
em três semanas e meia.<br />
Temática / Crítica social<br />
O tema da obra é a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao amor <strong>de</strong> infância.<br />
Como crítica social vemos o casamento, pois, na época o ajuste matrimonial era feito pelos pais dos<br />
jovens. A união dos filhos ganhava, pois, co<strong>no</strong>tações <strong>de</strong> negócio indissolúvel, tratado com a serieda<strong>de</strong> dos<br />
adultos pensantes, conseqüência clara do amor arrebatador dos jovens; vemos também referência à<br />
escravidão embora sem gran<strong>de</strong> relevo. Mas há, em A Moreninha, referência ao trabalho escravo e aos<br />
castigos corporais a que os negros eram submetidos.<br />
Personagens<br />
As personagens mais importantes são Augusto e Carolina. A personagem que mais chama atenção é<br />
Augusto que era um estudante <strong>de</strong> medicina alegre, jovial e inconstante em seus amores. O autor lhe<br />
confere complexida<strong>de</strong> já que <strong>no</strong> início da história o personagem é <strong>de</strong>scrito <strong>de</strong> uma forma e <strong>no</strong> final <strong>de</strong>la é<br />
<strong>de</strong>scrito <strong>de</strong> outra.
A personagem central é D.Carolina, menina <strong>de</strong> quatorze a<strong>no</strong>s, possuía cabelos negros, olhos escuros, era<br />
travessa, inteligente, astuta e persistente na obtenção <strong>de</strong> seus intentos.<br />
Enredo<br />
O enredo apresenta unida<strong>de</strong> e organicida<strong>de</strong> pois a história possui início, meio e fim. O clímax do enredo<br />
ocorre quando D.Carolina revela a Augusto, ao <strong>de</strong>ixar cair um breve contendo um camafeu, que é a<br />
mulher a quem ele tinha prometido se casar na sua infância. O <strong>de</strong>sfecho dá-se <strong>no</strong> final da história.<br />
Augusto, Leopoldo e Fabrício estavam conversando, quando Filipe chegou e os convidou para passar um<br />
fim <strong>de</strong> semana na casa <strong>de</strong> sua avó que ficava na Ilha <strong>de</strong> Paquetá. Todos ficaram empolgados, me<strong>no</strong>s<br />
Augusto. Filipe comentou a respeito <strong>de</strong> suas primas e <strong>de</strong> sua irmã, que provavelmente estariam na ilha.<br />
Foi quando surgiu uma discussão que <strong>de</strong>u origem a um aposta; Filipe <strong>de</strong>safiou Augusto dizendo que se<br />
ele não se apaixonasse por uma das moças ali presentes, <strong>no</strong> prazo <strong>de</strong> um mês, seria obrigado a escrever<br />
um romance sobre sua história.<br />
Passaram-se quatro dias, Augusto recebeu uma carta, que lhe foi entregue por seu empregado Rafael, a<br />
mando <strong>de</strong> Fabrício. A carta dizia que o namoro <strong>de</strong> Fabrício com D.Joaninha não estava indo muito bem,<br />
pois ela era muito exigente. Ela fazia-lhe pedidos absurdos como escrever quatro cartas por semana ,<br />
passar quatro vazes ao dia em frente à sua casa e <strong>no</strong>s bailes ele teria que usar um lenço amarrado em seu<br />
pescoço , da mesma cor da fita rosa presa a seus cabelos. Terminando a leitura, Augusto começou a rir<br />
porque era ele quem sempre aconselhava Fabrício em seus namoros.<br />
Na manhã <strong>de</strong> sábado, chegou à ilha e encontrou seus amigos, que estavam a sua espera. Entrando na<br />
casa, se dirigiu à sala e se apresentou, em seguida foi procurar um lugar para sentar-se perto das moças.<br />
Foi então que ele se <strong>de</strong>parou com D.Violante, que lhe ofereceu um assento. Ela falou por várias horas<br />
sobre suas doenças, e perguntou o que ele achava. Augusto já irritado <strong>de</strong> ouvir tantas reclamações, disse<br />
que ela sofria apenas <strong>de</strong> hemorróidas. D.Violante se irritou, afirmando que os médicos da atualida<strong>de</strong> não<br />
sabem o que falam.<br />
Fabrício chegou interrompendo a conversa e chamou Augusto para um diálogo em particular. Os dois<br />
começaram a discutir sobre a carta, pois Augusto disse que não pretendia ajudá-lo em seu namoro com<br />
D.Joaninha. Fabrício então <strong>de</strong>clarou guerra a Augusto.<br />
Logo após a discussão, chegou Filipe chamando-os para o jantar. Na mesa, após todos terem se servido,<br />
Fabrício começou a falar em tom alto, dizendo que Augusto era inconstante <strong>no</strong> amor. Ele, por sua vez,<br />
não respon<strong>de</strong>u as provocações, mas, na tentativa <strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, acabou agravando ainda mais a sua<br />
situação perante todos.<br />
Após o jantar, foram todos passear <strong>no</strong> jardim e Augusto foi isolado por todas as moças. Apenas D.Ana<br />
aceitou passear com ele. Augusto quis dar explicações à D.Ana, mas preferiu ir a um lugar mais<br />
reservado. Ela sugeriu então que fossem até uma gruta, on<strong>de</strong> sentaram num banco <strong>de</strong> relva.<br />
Começaram a conversar e Augusto contou sobre seus antigos amores e entre eles do mais especial, que<br />
foi aos treze a<strong>no</strong>s, quando viajando com seus pais conheceu uma linda garotinha <strong>de</strong> oito a<strong>no</strong>s, com quem<br />
brincou muito na praia, quando um pobre meni<strong>no</strong> pediu-lhes ajuda. Eles foram levados a uma cabana<br />
on<strong>de</strong> estava um velho moribundo a beira da morte. Sua mulher e seus filhos estavam chorando. As<br />
crianças comovidas <strong>de</strong>ram todo o dinheiro que possuíam à mulher do pobre velho. O velho agra<strong>de</strong>ceu e<br />
pediu <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les um objeto <strong>de</strong> valor. O meni<strong>no</strong> <strong>de</strong>u-lhe um camafeu <strong>de</strong> ouro que foi envolvido<br />
numa fita ver<strong>de</strong> e a menina <strong>de</strong>u-lhe um botão <strong>de</strong> esmeralda que foi envolvido numa fita branca,<br />
transformando-os em breves. O camafeu ficou com a menina e a esmeralda com o meni<strong>no</strong>.
Depois trocados os breves, o velho os abençoou e disse que <strong>no</strong> futuro eles se reconheceriam pelos breves<br />
e se casariam. Foram embora e a menina saiu correndo <strong>de</strong> encontro a seus pais sem ter revelado o seu<br />
<strong>no</strong>me, e a partir daquele momento nunca mais se viram. Acabada a história Augusto levantou-se para<br />
tomar água. Ao pegar um copo <strong>de</strong> prata foi interrompido por D.Ana que resolveu lhe contar a história da<br />
gruta, que era a lenda <strong>de</strong> uma moça que se apaixonara por um índio que não a amava e <strong>de</strong> tanto ela<br />
chorar, <strong>de</strong>u origem a uma fonte, cuja água era encantada. Disse também que quem bebesse daquela água<br />
teria o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> adivinhar os sentimentos alheios e não sairia da ilha sem se apaixonar por alguém.<br />
D.Ana explicou também que a moça cantava uma canção muito bela, quando <strong>de</strong> repente eles escutaram<br />
uma linda voz. Augusto perguntou a D.Ana <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha aquela melodia e ela explicou que era Carolina<br />
que cantava sobre a pedra <strong>de</strong> gruta e ele ficou encantado.<br />
Logo após o passeio, foram todos até a sala para tomar café e a Moreninha <strong>de</strong>rramou o café <strong>de</strong> Fabrício<br />
sobre Augusto. Ele foi se trocar <strong>no</strong> gabinete masculi<strong>no</strong> quando Filipe entrou e sugeriu que ele fosse se<br />
trocar <strong>no</strong> gabinete femini<strong>no</strong>, para que pu<strong>de</strong>sse ver como era.<br />
Augusto aceitou e enquanto se trocava, ouviu vozes das moças que iam em direção ao gabinete. Ficou<br />
apavorado, pegou rapidamente as roupas e se enfiou <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma cama. As moça entraram, sentaramse<br />
e começaram a conversar sobre assuntos particulares. O rapaz ouviu toda a conversa e quase não<br />
resistiu ao ver as pernas bem torneadas <strong>de</strong> Gabriela na sua frente. De repente ouviram um grito e Joaninha<br />
disse que a voz parecia com a <strong>de</strong> sua prima D.Carolina. Todos saíram correndo para ver o que estava<br />
acontecendo e Augusto aproveitou para terminar <strong>de</strong> se trocar e saiu do gabinete para ver a causa daquele<br />
grito.<br />
O grito era da Moreninha que viu sua ama D. Paula caída <strong>no</strong> chão, <strong>de</strong>vido a alguns goles <strong>de</strong> vinho que<br />
tomou junto do alemão Kleberc. D.Carolina não queria acreditar que sua ama estivesse bêbada e<br />
levaram-na para o quarto. A Moreninha estava <strong>de</strong>sesperada quando Augusto, Filipe, Leopoldo e Fabrício<br />
entraram <strong>no</strong> quarto e percebendo a embriaguez da velha senhora começaram a dar diagnósticos absurdos.<br />
D.Carolina só acreditou em Augusto e não aceitou o verda<strong>de</strong>iro motivo do mau estar <strong>de</strong> sua ama. Todos<br />
saíram do quarto e se dirigiram até o salão <strong>de</strong> jogos. Augusto foi conversar com D.Ana e perguntou sobre<br />
o para<strong>de</strong>iro da Moreninha. D.Ana disse que ela estava <strong>no</strong> quarto cuidando <strong>de</strong> sua ama. Augusto foi até até<br />
o aposento e chegando na porta viu uma cena inesquecível; ela lavava com suas <strong>de</strong>licadas mãos os pés <strong>de</strong><br />
sua ama e ele comovido se ofereceu para ajudá-la. Depois disso Augusto sugeriu que a <strong>de</strong>ixasse repousar<br />
pois <strong>no</strong> dia seguinte estaria bem.<br />
D.Carolina foi se trocar para em seguida ir ao Sarau, colocou um vestido muito bonito mas fora dos<br />
padrões <strong>no</strong>rmais, pois mostrava parte <strong>de</strong> suas pernas. Todos queriam dançar com ela e Fabrício pediu-lhe<br />
a terceira dança, mas a garota mentiu dizendo que iria dançar com Augusto. Ele por sua vez dançou com<br />
todas as moças e jurou-lhes amor eter<strong>no</strong>, inclusive para a Moreninha. No fim da festa Augusto encontrou<br />
um bilhete que estava em seu paletó, dizendo para ir à gruta <strong>no</strong> horário marcado e logo após encontrou<br />
outro <strong>no</strong> qual dizia que aquilo era uma armadilha.<br />
No dia seguinte, Augusto foi até a gruta <strong>no</strong> horário marcado e encontrou as quatro jovens e antes que elas<br />
pu<strong>de</strong>ssem falar, foram surpreendidas pelo rapaz que contou cada uma o que ouvira <strong>no</strong> gabinete. As moças<br />
ficaram revoltadas e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> irem embora Augusto foi surpreendido pela Moreninha que começou a<br />
contar a conversa <strong>de</strong>le com D.Ana. Mas primeiro ela tomou um copo da fonte e foi por este motivo que<br />
Augusto ficou mais impressionado pois lembrou-se da lenda da fonte encantada, e logo <strong>de</strong>pois do susto,<br />
<strong>de</strong>clarou-se a ela.<br />
Depois <strong>de</strong> acabadas as comemorações, as pessoas voltaram para suas casas. Augusto não se cansava <strong>de</strong><br />
contar sobre D.Carolina para Leopoldo, que sempre dizia que aquilo era amor. Os rapazes acharam<br />
conveniente visitar D.Ana, Augusto se encarregou <strong>de</strong>ssa tarefa <strong>no</strong> domingo.
D. Ana foi recebê-lo e contou-lhe que D.Carolina estava triste até saber se sua vinda para a ilha. Durante<br />
o almoço Augusto viu um lenço na mão <strong>de</strong> D.Carolina e adivinhou que ela o tinha bordado e após muita<br />
conversa D.Carolina resolveu ensiná-lo a bordar.<br />
Depois do almoço, Filipe e Augusto foram jogar baralho, quando ouviram o chamado da Moreninha para<br />
a primeira aula <strong>de</strong> bordado. A lição acabou ao meio dia e Augusto achou pru<strong>de</strong>nte ir embora, <strong>de</strong>spediu-se<br />
<strong>de</strong> todos e combi<strong>no</strong>u com D.Carolina, que <strong>no</strong> domingo seguinte voltaria e traria o lenço já terminado.<br />
No domingo seguinte, Augusto voltou até a ilha e levou o lenço totalmente pronto, para que sua mestra<br />
pu<strong>de</strong>sse o ver, ela não acreditou que ele fizera um trabalho tão bem feito e começou a chorar, dizendo<br />
que ele tinha outra mestra. Augusto tentou explicar-se <strong>de</strong> todas as maneiras possíveis, e disse que o lenço<br />
fora comprado <strong>de</strong> uma velha senhora.<br />
Depois <strong>de</strong> muita insistência a Moreninha aceitou a situação, pois D.Ana disse-lhe que sua atitu<strong>de</strong> era<br />
infantil.<br />
Depois do inci<strong>de</strong>nte Augusto chamou a Moreninha para um passeio e percebeu que ela estava um pouco<br />
nervosa, foi então, que ele perguntou-lhe se havia um amor em sua vida, ela respon<strong>de</strong>u com a mesma<br />
pergunta e Augusto disse que o gran<strong>de</strong> amor <strong>de</strong> sua vida era ela. A Moreninha ficou imóvel e disse que o<br />
seu amor po<strong>de</strong>ria ser ele.<br />
Augusto voltou para sua casa e foi proibido <strong>de</strong> voltar à ilha por seu pai pois seus estudos estavam sendo<br />
prejudicados. D.Carolina não era mais a mesma <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a partida <strong>de</strong> Augusto que agora estava em<br />
<strong>de</strong>pressão. Seu pai, vendo que estava prestes a per<strong>de</strong>r seu filho, achou melhor que Augusto voltasse à ilha<br />
e pedisse a mão da Moreninha em casamento.<br />
Chegando próximo à ilha, viram a Moreninha cantando sobre a pedra, e ela ao vê-los ig<strong>no</strong>rou-os. D.Ana<br />
foi recebê-los e o pai <strong>de</strong> Augusto explicou a situação se seu filho. Eles foram até a sala e <strong>de</strong> repente a<br />
Moreninha apareceu com seu vestido branco chamando a atenção <strong>de</strong> todos, foi então que o pai <strong>de</strong><br />
Augusto fez o pedido diretamente a Moreninha, pois seu filho não tinha coragem o suficiente. A moça<br />
ficou assustada e disse que daria a resposta mais tar<strong>de</strong> na gruta mas D.Ana disse ao pai <strong>de</strong> Augusto que<br />
não se preocupasse, pois a resposta seria sim.<br />
Augusto, ansioso, foi até a gruta e chegando lá encontrou a Moreninha, os dois conversaram e ela<br />
perguntou se ele ainda amava a menina da praia. Ele disse que não pois seu amor pertencia somente a ela.<br />
Ela disse que não po<strong>de</strong>ria se casar pois ele já estava comprometido com outra pessoa. Irritado, ao sair da<br />
gruta foi surpreendido quando ela lhe mostrou o breve ver<strong>de</strong>. Augusto não agüentou a emoção e pegando<br />
o breve ajoelhou-se aos pés da Moreninha, começando a <strong>de</strong>senrolar o breve reconhecendo o seu camafeu.<br />
O pai <strong>de</strong> Augusto e D.Ana entraram na gruta e não enten<strong>de</strong>ram o que estava acontecendo, acharam que os<br />
dois estavam malucos e Augusto dizia que encontrara sua mulher e a Moreninha por sua vez dizia que<br />
eles eram velhos conhecidos. Logo após Filipe, Leopoldo e Fabrício viram a alegria do <strong>no</strong>vo casal, mas<br />
Filipe foi logo dizendo que já se passaram um mês, Augusto per<strong>de</strong>ra a aposta e <strong>de</strong>veria escrever um<br />
romance.<br />
Augusto surpreen<strong>de</strong> a todos dizendo que o romance já estava pronto e se intitulava A Moreninha.<br />
Helena, <strong>de</strong> <strong>Machado</strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong>
Personagens<br />
Helena - Protagonista. Era sensível, emotiva, romântica e muito forte, personagem esférica.<br />
Estácio - Suposto irmão <strong>de</strong> Helena.<br />
Conselheiro Vale - Pai adotivo <strong>de</strong> Helena (o qual <strong>de</strong>ixa-lhe a herança).<br />
D. Úrsula - Irmã <strong>de</strong> Conselheiro Vale.<br />
Eugênia - Queria se casar com Estácio.<br />
Dr. Camargo - Pai <strong>de</strong> Eugênia e amigo da família.<br />
Padre Melchior - Amigo e confessor <strong>de</strong> Estácio.<br />
Mendonça - Amigo <strong>de</strong> Estácio.<br />
Ângela - Mãe <strong>de</strong> Helena.<br />
Salvador - Legítimo pai <strong>de</strong> Helena.<br />
Enredo<br />
No espaço do Rio <strong>de</strong> Janeiro colonial, Conselheiro Vale, um homem importante e rico mantém caso<br />
amoroso com uma mulher que havia migrado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e se separara do marido, <strong>de</strong>vido a<br />
dificulda<strong>de</strong>s financeiras. A mulher já possuía uma filha, que, mais tar<strong>de</strong>, foi perfilhada pelo amante rico.<br />
Conselheiro Vale morre, e em seu testamento ele alegava que Helena era sua filha e que ela <strong>de</strong>via tomar<br />
seu lugar na família, todos acreditam nisso, porém Helena sabe que não é verda<strong>de</strong>iramente sua filha, mas<br />
na sua ânsia <strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>r socialmente acaba aceitando isso. À princípio, D. Úrsula reage com um certo<br />
preconceito à chegada <strong>de</strong> Helena, mas <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr da narrativa ela vai ganhando o amor <strong>de</strong> D. Úrsula,<br />
Estácio porém, era um bom filho, e faz a vonta<strong>de</strong> do pai sem indagar nada. Dr. Camargo acha aquilo um<br />
absurdo, pois ele queria casar sua filha, Eugênia, com Estácio para que eles se tornassem ricos às custas<br />
do dinheiro <strong>de</strong> Estácio, e mais um familiar só iria diminuir a parte da herança <strong>de</strong> Estácio.<br />
Helena toma seu lugar na família como uma mulher <strong>de</strong> fibra, uma verda<strong>de</strong>ira dona <strong>de</strong> casa, cuida muito<br />
bem <strong>de</strong> sua <strong>no</strong>va família, dirige a casa melhor do que D. Úrsula o fazia, e impressiona não só a família<br />
como toda a socieda<strong>de</strong> em geral, porque além <strong>de</strong> ser uma mulher equilibrada como poucas que existiam,<br />
era linda, sensível e rica.<br />
Ao <strong>de</strong>correr da narrativa, Helena vai impressionando mais e mais Estácio, e nisso acaba se apaixonando<br />
por ela, e ela por ele. Aí vem o dilema do livro, <strong>de</strong> um lado Estácio, se martirizando por se apaixonar por<br />
sua suposta irmã, o que era um pecado, e do outro Helena, também apaixonada por Estácio, esta sabia <strong>de</strong><br />
toda verda<strong>de</strong>, mas não podia jogar tudo para o alto e ficar com ele, afinal havia recebido uma fortuna <strong>de</strong><br />
herança. Neste ponto então surge Mendonça, que se apaixona por ela. Então pe<strong>de</strong> Eugênia em casamento<br />
também para tentar esquecer Helena.<br />
A família possuía uma chácara, e perto <strong>de</strong>ssa chácara tinha uma casa simples, pobre, e Helena costuma a<br />
visitar sempre essa chácara, um dia Estácio resolveu seguí-la, e lá conheceu Salvador, e foi tirar<br />
satisfações sobre as visitas <strong>de</strong> Helena, Salvador começou a lhe contar uma gran<strong>de</strong> história, e surpreen<strong>de</strong>u<br />
Estácio ao lhe revelar que Helena era sua filha, não <strong>de</strong> Conselheiro Vale, e toda a história da vida <strong>de</strong>
Helena até ali. Nesse mesmo dia Helena após uma forte chuva fica <strong>de</strong>bilitada, à beira da morte, Estácio,<br />
tomado por seu forte amor vai cuidar <strong>de</strong> Helena e lhe faz essa <strong>de</strong>claração. Helena morre.