Do mito a..
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<strong>Do</strong> <strong>mito</strong> ao logos: Uma revisão Historiográfica<br />
“O pensamento racional tem um registro civil: conhece-se a sua data e seu<br />
lugar de nascimento. Foi no século VI antes da nossa era, nas cidades gregas da Ásia<br />
Menor que surgiu uma forma de reflexão nova, inteiramente positiva, sobre a<br />
natureza”. Assim inicia o artigo publicado por Jean-Pierre Vernant, na revista Annales,<br />
économies, sociétés civilisations de 1957 (In: VERNANT. 1990, 441). A problemática<br />
trazida pelo autor se faz em torno da passagem do <strong>mito</strong> ao logos, na Grécia do V século<br />
a.C.. E com este trabalho pretende-se aprofundar o tema através de um embate<br />
historiográfico sobre as interpretações que surgiram desde início do século XX.<br />
Segundo Vernant (1990, 441-444), na segunda década do século XX a afirmação<br />
era a de um “milagre grego”, que consistia numa súbita mudança na observação da<br />
natureza, retirando dos deuses as ações sobre a Phísis. Afirmativa esta, iniciada por<br />
Burnet, que de forma impositora coloca o surgimento da filosofia na Jônia, vendo na<br />
escola de Mileto o lugar onde o logos teria se libertado de uma vez por todas do <strong>mito</strong>,<br />
devido às capacidades excepcionais gregas de observação e raciocínio. Assim a filosofia<br />
teria nascido do espírito, tendo o pensamento racional se originado de si mesmo,<br />
demonizado da História e independente das conjunturas sócio-culturais que se<br />
desenvolveram na Grécia até o período em questão.<br />
Tal interpretação perdurou até a oposição de Conford, em 1952 (In: VERNANT.<br />
1990, 443-454), quando fora demonstrado que a física jônica teria correspondências em<br />
suas estruturas com a antiga <strong>mito</strong>logia. Conford indica a influência do <strong>mito</strong> na criação<br />
da filosofia e aponta a física jônica como algo longe do que chamamos de ciência, sem<br />
experimentação e nem tampouco produto da inteligência observando a natureza, presa a<br />
responder o mesmo questionamento cosmogônico de surgimento do universo e tendo a
sua única evolução na substituição dos deuses por potências naturais, mas ainda ativas,<br />
animadas e imperecíveis.<br />
Benjamim Farqninton (In: VERNANT. 1990, 454) afirmou que o surgimento da<br />
filosofia se devia aos avanços tecnológicos das cidades da Ásia Menor e, a interpretação<br />
mecanicista que substitui os antigos esquemas antropomórficos na filosofia jônica,<br />
refutando Conford e retornando ao “intelecto superior grego”, que trabalhou Burnet.<br />
Tomson (In: VERNANT. 1990, 454-455) viria a criticá-lo, informando que no campo<br />
da técnica a Grécia era tributaria ao Oriente e nada inventou, este por sua vez nunca se<br />
libertou do <strong>mito</strong> e que este fato se deu devido a ausência de uma monarquia do tipo<br />
Oriental, legítima pela vontade ou pelo grau de parentesco, da divindade em entronar o<br />
soberano. Thomson encontra a base da filosofia jônica na <strong>mito</strong>logia e, sua abstração<br />
teria raízes na elevação de uma classe de comerciantes (que ao iniciarem a utilização da<br />
moeda) levando aos objetos que tinham antes, apenas valor de uso, um valor de troca<br />
(abstrato e semelhante a todas as mercadorias), juntamente com uma nova forma de<br />
governo independente de um soberano aos moldes asiáticos ou de uma aristocracia<br />
guerreira.<br />
Basta apontar para as estruturas encontradas no período messiânico e<br />
acompanhar o valor da palavra cantada até o século VI para poder entender como este<br />
processo se deu. As estruturas encontradas no período micênico apontam para uma vida<br />
social centralizada no palácio, tendo no soberano, ánax, a administração econômico-<br />
política, e tendo ao seu lado o Chefe do Laos, como autoridade militar, contudo<br />
subordinada ao soberano (VERNANT, 15-25). Ostentando o poder de ser a maior<br />
autoridade religiosa e ligação direta para com os deuses, o monarca detinha o poder<br />
sobre a verdade, a palavra mágico-religiosa. Não a verdade laica, mas a sagrada<br />
Alethéia, a verdade dos deuses (e não a antítese da mentira, mas a antítese da não-
verdade), ultrapassando o simples relato verdadeiro proveniente de um homem comum<br />
(DETIENNE. 1988, 15-24).<br />
Posteriormente nas teogonias encontramos a união da religião às façanhas<br />
militares, tendo como caso maior a vitoria de Zeus sobre Tifau, o que implica na junção<br />
da soberania aos feitos militares. Nesta conjuntura já encontramos a figura do Basileus,<br />
antigo líder regional do demos agrícola, que no período homérico ascende à soberania.<br />
Juntamente ao novo soberano encontramos a figura dos aedos, responsáveis por louvar<br />
aos deuses e narrar os grandes feitos. Inspirados pelas Musas, estes poetas<br />
reivindicavam a palavra mágico-religiosa, e todo o valor de verdade contida de sua<br />
natureza, já que os mesmo detinham das Musas o seu conhecimento, sendo estes uma<br />
importante forma de armazenamento de dados históricos em uma sociedade calcada na<br />
oralidade e sem escrita (idem).<br />
Ainda na estrutura micênica encontramos a classe privilegiada dos guerreiros<br />
(VERNANT, 15-25), onde a palavra dialogo detinha seu espaço. Diferentemente da<br />
palavra mágico-religiosa, a palavra diálogo não detinha o poder da eficácia, não era uma<br />
verdade absoluta e nem provinha das divindades, necessitava da argumentação para se<br />
manter. Era nas assembléias que os guerreiros discutiam as melhores formas de agir em<br />
combate e, independentemente do posto, era como iguais e através da<br />
argumentatividade que uma decisão era escolhida. O mesmo ocorrera na cidade a partir<br />
do V século quando os cidadãos passaram a se organizar como iguais tendo na formação<br />
de guerra hoplíta o seu pilar de sustentabilidade.<br />
É no quinto século que inúmeras mudanças ocorreram nas estruturais sócias dos<br />
gregos, mudanças causadas por uma nova forma de combater, pela utilização da moeda,<br />
o nascimento da tragédia. Fatores estes que proporcionaram o surgimento dos primeiros
pensadores na Jônia e na Magna Grécia, que a filosofia contemporânea denomina de<br />
filósofos pré-socráticos.<br />
Levando o campo de distorção da Ásia menor para a Magna Grécia, Rohde (In:<br />
VERNANT. 1990, 455-456) sublinha que homens como Pitágoras, seriam arquétipos de<br />
sábios, pertencentes à classe dos videntes estatísticos e dos magos purificadores, devido<br />
ao seu gênero de vida, sua investigação e sua superioridade. Essa questão foi retomada<br />
por Halliday (idem), que aprofundou mais trazendo a informação de que Aristeas,<br />
Abaris, Hermotimo, Epimenides e Fericides, teriam sido muito próximos aos sábios,<br />
poetas, adivinhos e outras funções básicas, que teriam o mesmo poder mântico. Tema<br />
revisto em Detienne, que encontrara no poeta os mesmos epítetos e a característica de<br />
ser o único possuidor da verdade, Aletheia, em períodos Homéricos, que viria a perder o<br />
seu espaço para os filósofos ainda no período arcaico.<br />
Divulgando o que se oculta nas profundezas do tempo, o poeta revela na própria<br />
forma do hino, da encantação e do oráculo, uma verdade essencial que em duplo caráter<br />
de um mistério religioso e de uma doutrina de sabedoria. Também o hino revela uma<br />
realidade dissimulada que escapa a sensibilidade vulgar. Vernant (1990. 456-457)<br />
afirma que o mesmo ocorre no poema de Parmênides, onde se exprime de maneira<br />
abstrarta uma doutrina que conserva um valor de mensagem religiosa. Indica-nos<br />
também o quanto era comum a união de pensamentos transcritos em um vocábulo<br />
religioso de seitas e confrarias nos discursos pré-socráticos, a reivindicação de uma<br />
diferenciação dos demais como um eleito, era ainda um traço forte dos filósofos do<br />
período, assim como uma katabase iniciatória para aquisição de uma sabedoria não<br />
permitida a todos.
Porém ao contrário do sábio, que detém um conhecimento restrito aos clãs<br />
sacerdotais ou às confrarias, o filósofo populariza o seu conhecimento. Isto ocorre,<br />
segundo Vernant (1990, 462-468), por conta das mudanças ocorridas na vida da cidade.<br />
A primeira grande mudança se dá por conta do aparecimento da isonomia. Em uma<br />
cidade governada por cidadãos que coexistem em nível de igualdade, sem a presença de<br />
uma aristocracia dominante ou de um soberano, os conhecimentos ocultos passam a<br />
servir a todo o corpo de cidadãos, se desprendendo de seus clãs e confrarias, Vernant<br />
aponta a linhagem de alguns pré-socráticos, como Tales para exemplificar a passagem<br />
deste conhecimento secreto para os cidadãos. Outro ponto importante a ser destacado é<br />
a importância deste filósofo (não Tales, somente, mas todos os seus semelhantes) para a<br />
ordenação desta nova formação política, e a sua arbitragem nas agressivas disputas pelo<br />
poder.<br />
Cabe a nós apontarmos que Vernant (1990, 462-474) acentua uma grande<br />
importância na criação da moeda cunhada, que ao contrário das barras de ferro orientais,<br />
não era simplesmente trocada por qualquer produto. A moeda cunhada é uma invenção<br />
grega do VII século a.C. que de forma abstrata atribuiu valor as mercadorias, de modo a<br />
substituir valores religiosos, ou políticos, por valores de praticidade passiveis de<br />
medição através deste novo artifício. Com a moeda cunha nasceu também o juros, a<br />
capacidade de enriquecimento através da abstração do tempo, com ela originou-se,<br />
também, uma nova classe de ricos, desprendidos ao enriquecimento pela terra e ligados<br />
ao novo mundo mercantil. A passagem do <strong>mito</strong> ao logos em muito e tributaria à esta<br />
necessidade de abstração trazida por este novo mundo mercantil materializado na<br />
cunhagem de moeda.<br />
No entanto o sagrado ainda se faz presente entre os filósofos, o Fédon de Platão<br />
é um claro exemplo disso, pois de forma filosófica o autor expõe um diálogo onde o
protagonista (Sócrates) expõe claramente idéias baseadas em princípios mistéricos.<br />
Encontramos na Antiguidade um conjunto de movimentos religiosos, com base<br />
teológica e doutrinaria voltadas para a crença na imortalidade da alma, assim como,<br />
uma escatologia e uma exegese ascética, que subsistiam da procura subjetiva de homens<br />
necessitados de uma promessa de melhor existência no pós-morte. Estas manifestações<br />
religiosas são denominadas mistérios, que segundo Rita Codá, tratava-se, geralmente,<br />
de um conjunto de doutrinas e práticas religiosas proibidas à não iniciados e que deram<br />
origem a confrarias secretas de neófitos. Elas pregavam a necessidade de purificação,<br />
penitência, abstinência, ritos iniciáticos, ensinamentos esotéricos, comensalidades<br />
festivas, fé mística e uma certa união de classes sociais, tendo como origem os cultos<br />
sírios e frígios da Grande Mãe (Codá: 2005, 19-20). Contudo o ponto chave entre a obra<br />
platônica e estes cultos se mostra na defesa da existência da metempsicose, ou seja, no<br />
ciclo de reencarnações, objetivando a elevação do ser a uma melhor condição em seu<br />
pós-morte, através de aprendizados e purgações.<br />
Concluímos que a filosofia é uma filha da cidade nascente e da necessidade de<br />
uma pólis submergida em um novo modelo político-econômico norteado pela isonomia<br />
e pelo comércio mercantil marítimo. Contudo assim como a pólis a filosofia tem as suas<br />
raízes em uma estrutura monárquica/oligárquica com sua argumentativa <strong>mito</strong>lógica,<br />
explicativa em relação à ordenação do cosmos e da existência do ser, detida por clãs<br />
sacerdotais, seitas e confrarias mistéricas. Porém ao contrário da estrutura anterior tanto<br />
a filosofia quanto a polis, se modificaram para atender as demandas provenientes da<br />
ascensão do cidadão a isonomia, exemplificada na formação de combate hoplítica e na<br />
divisão demográfica ateniense de Clístenes, assim como na emergência do comércio<br />
marítimo e sua nova classe de ricos.
Bibliografia:<br />
DETIENNE, Marcel. “A memória do poeta”. In: Os mestres da verdade na Grécia<br />
Arcaica. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.<br />
SANTOS, Rita de Cássia Codá dos. Epitáfios Gregos – A função conativa no epigrama<br />
fúnebre: o apelo à eternidade. Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, 2005.<br />
VERNANT, Jean-Pierre. “A formação do pensamento positivo na Grécia Arcaica”. In:<br />
Mito e Pensamento entre os Gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.<br />
VERNANT, Jean-Pierre. “A realeza micênica”. In: As origens do pensamento grego.<br />
São Paulo: DIFEL, s/ ano.