Os desassossegos do rei - Quintal dos Poetas

No mar as coisas correram como era possível naquelas
circunstâncias e a travessia do Atlântico evoluiu como era
esperado, que dizer, no maior desconforto e alguns sustos. Há
controvérsia quanto ao contingente de pessoas que arriscaram
a travessia, variando de quinhentas a dez mil criaturas, sendo
mais provavel que o grupo somasse umas cinco mil almas
assustadas, espalhadas por cerca de cinquenta embarcações de
tamanhos variados entre vasos de guerra e navios mercantes.
Seja como for, a travessia não foi propriamente um cruzeiro
tropical. A água doce era escassa, a comida mal conservada, o
mar excessivamente extenso e revolto. E, para completar, um
surto de nojentos piolhos tinha infestado as cabeças da
princesa Carlota e das infantas obrigando-as a raspá-las e
envolvê-las em véus miseravelmente enrolados para ocultar as
calvas reais. Houve choro e ranger de dentes na tormentosa
travessia, mas a tudo o príncipe regente amornou com sua
paciência e serenidade, sossegando a todos com o seu sossego
natural. Proibiu que se falasse em política e se clamasse
conforto pois, naquele instante, o desafio era vencer o mar e
era nele que todos deviam prestar atenção.
Dois meses durou a agonia até que no dia 22 de
janeiro de 1808 parte das embarcações chegou à cidade do
Salvador, debaixo de um inclemente verão. A capital da Bahia,
já naquele tempo exalando tropicalismos e cortesia, recebeu o
cortejo exultante, pensando mesmo em convencer o príncipe
regente de fixar ali a capital, restaurando sua antiga condição
de sede do governo, como era nos primeiros tempos da
colônia. Ele não se deixou convencer disso, mas ficou dois
meses na cidade curtindo a hospitalidade da boa terra. Outra
parte da frota tinha se extraviado e seguido direto para o Rio
de Janeiro.
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