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A ESCRITA MULTIMEIOS DE SAMUEL BECKETT: FILM<br />
(<strong>1963</strong>-<strong>64</strong>), ENTRE A IMAGEM E A PALAVRA.<br />
Mauro <strong>de</strong> Araújo Menine Jr *<br />
ABSTRACT: The writing of Samuel Beckett (1906-1989) is inter-media as it is articulated in<br />
the entr'acte of multiple means of expression - cinema, literature, theater, television and<br />
radio. The historical course of his artistic production reveals relationships intertextuality,<br />
transversality and trans-creativity in his work as writer, director, producer, screenwriter and<br />
adapter itself. From his only screenplay, Film (<strong>1963</strong>-<strong>64</strong>), are introduced the aesthetic<br />
elements dialogic between word and image that contaminate multimedia author's writing.<br />
KEYWORDS: comparative literature, Samuel Beckett, Film (<strong>1963</strong>-<strong>64</strong>).<br />
RESUMO: A <strong>escrita</strong> <strong>de</strong> Samuel Beckett (1906-1989) é inter-midiática, uma vez que se<br />
articula no entreato <strong>de</strong> múltiplos meios <strong>de</strong> expressão – cinema, literatura, teatro, televisão e<br />
rádio. O percurso histórico <strong>de</strong> sua produção artística <strong>de</strong>svela relações <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong>,<br />
transversalida<strong>de</strong> e trans-criativida<strong>de</strong> em sua atuação como escritor, diretor, encenador,<br />
roteirista e adaptador <strong>de</strong> si mesmo. A partir <strong>de</strong> seu único roteiro cinematográfico, Film<br />
(<strong>1963</strong>-<strong>64</strong>), introduzem-se os elementos estéticos dialógicos entre a palavra e a imagem que<br />
contaminarão a <strong>escrita</strong> multimídia do autor.<br />
PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada, Samuel Beckett, Film (<strong>1963</strong>-<strong>64</strong>).<br />
Introduzindo Beckett<br />
A <strong>escrita</strong> <strong>de</strong> Samuel Beckett (1906-1989) é multimídia, uma vez que se articula no<br />
entreato <strong>de</strong> múltiplos meios <strong>de</strong> expressão, como cinema, literatura, teatro, televisão e rádio. O<br />
percurso histórico <strong>de</strong> sua produção artística <strong>de</strong>svela relações <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong>,<br />
transversalida<strong>de</strong> e transcriativida<strong>de</strong> em sua atuação como critico literário, diretor, escritor,<br />
roteirista, tradutor e adaptador <strong>de</strong> si mesmo. Partindo <strong>de</strong> um formalismo abstrato e <strong>de</strong> uma<br />
cosmovisão nonsense, dá-se a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> uma taxonomia <strong>de</strong> elementos ético-estéticos e<br />
intertextuais, compreen<strong>de</strong>ndo-se a [in]formação <strong>de</strong> um imaginário idiossincrático e <strong>de</strong> uma<br />
* Doutorando em Literatura Comparada – Linha: Teorias Literárias e Intertextualida<strong>de</strong>s - Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em<br />
Letras da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS)
economia poética oblíquos a todos os <strong>multimeios</strong> em que se expressou, por exemplo,<br />
presentes tanto na inerente teatralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus textos em primeira pessoa quanto <strong>de</strong> suas<br />
audiovisualida<strong>de</strong>s experimentais. Assim, a representação <strong>beckett</strong>iana é equacionada em<br />
personagens solitários, prisioneiros em um espaço-tempo in<strong>de</strong>terminado, autores-narradores<br />
<strong>de</strong> suas próprias histórias e impressões, em permanente <strong>de</strong>vir à espera <strong>de</strong> algo que nunca se<br />
sabe o que realmente é. Logo, o elemento solipsista é recorrente e o monólogo interior é, por<br />
excelência, a sua técnica narrativa.<br />
O presente relato do projeto <strong>de</strong> tese <strong>de</strong> doutorado em Literatura Comparada (Linha <strong>de</strong><br />
Pesquisa: Teorias Literárias e Interdisciplinarida<strong>de</strong>), intitulado O Monólogo Multimídia <strong>de</strong><br />
Samuel Beckett, <strong>de</strong>senvolvida <strong>de</strong>ntro do PPGLetras/UFRGS, <strong>de</strong>stacando o recorte acerca da<br />
transcriação e as relações entre imagem e palavra, a partir <strong>de</strong> seu único roteiro e realização<br />
cinematográfica, Film 1 (<strong>1963</strong>-<strong>64</strong>). A pesquisa se constituiu a partir dos seguintes<br />
pressupostos: o monólogo como estrutura predominante; a transcriação literária em outro<br />
medium; e, obras em que Beckett atuou como escritor, diretor, encenador, roteirista, tradutor<br />
ou adaptador <strong>de</strong> si mesmo em qualquer estágio <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong> um meio a outro. Assim,<br />
<strong>de</strong>finiu-se o corpus: Krapp’s Last Tape (peça teatral, 1958), Embers (peça-radiofônica, 1959),<br />
Film (roteiro cinematográfico, <strong>1963</strong>-19<strong>64</strong>) e Not I (peça teatral adaptada como tele-peça,<br />
1972), a fim <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar sua ética-estética [in]formadora <strong>de</strong> uma poética própria.<br />
Inicialmente, apresentar-se-ão algumas das reflexões teóricas articuladoras dos<br />
fundamentos do estudo, por conseguinte, um recorte da produção artística e intelectual do<br />
autor, partido <strong>de</strong> uma abordagem mais ampla para se <strong>de</strong>ter na problemática específica do<br />
monólogo interior, indicadores <strong>de</strong> sua poética e objeto propriamente da futura tese.<br />
Posteriormente, situar-se-ão as relações <strong>de</strong> Beckett com as novas tecnologias <strong>de</strong> seu tempo,<br />
exemplificando-as em algumas <strong>de</strong> suas criações e traduções nas diferentes mídias e <strong>de</strong> como<br />
as mesmas influenciaram a solitária produção cinematográfica, comprovando sua estética<br />
trans-midiática e o qualificando como um dos pioneiros no contágio irreversível das<br />
linguagens.<br />
Segundo S.E.Gontarski, “muito da prosa curta <strong>de</strong> Beckett habita as margens entre<br />
prosa e poesia, entre narrativa e drama, e, finalmente, entre completu<strong>de</strong> e incompletu<strong>de</strong> 2 ”<br />
(GONTARSKI, 1995, p.xii), ou seja, por extensão a <strong>escrita</strong> <strong>beckett</strong>iana é um traçado híbrido<br />
entre as fronteiras dos gêneros literários, assim como <strong>de</strong>stes em relação as suas respectivas<br />
transliterações para outros meios. Originalmente, tal espaço entre que a obra [in]forma se<br />
encontra esboçado em sua produção crítica e epistolar, logo, tais completu<strong>de</strong>s e<br />
incompletu<strong>de</strong>s revelam ao pesquisador que explorar tal universo é um processo <strong>de</strong> leitura em
die cutting, camada por camada. Em sua “Carta Alemã” à Axel Kaun, <strong>de</strong> 1937, justifica-se<br />
por seu procedimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração da linguagem:<br />
Está se tornando mais e mais difícil, até sem sentido, para mim, escrever num inglês<br />
oficial. E, mais e mais, minha própria língua me parece como um véu que precisa<br />
ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás <strong>de</strong>le. [...] Uma máscara. [...]<br />
Como não po<strong>de</strong>mos eliminar a linguagem <strong>de</strong> uma vez por todas, <strong>de</strong>vemos pelo<br />
menos não <strong>de</strong>ixar por fazer nada que possa contribuir para sua <strong>de</strong>sgraça. Cavar nela<br />
um buraco atrás do outro, até que aquilo que está a espreita por trás – seja isto<br />
alguma coisa ou nada – comece atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais<br />
elevado para um escritor hoje 3 (BECKETT apud ANDRADE, 2001, p.169).<br />
Tal atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfiguração da realida<strong>de</strong> frente ao ato criativo visava, em primeiro<br />
lugar, combater as convenções literárias do real-naturalismo dominante à época, i<strong>de</strong>ntificada<br />
na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que na Recherche proustiana o autor “não terá liberda<strong>de</strong> absoluta para separar<br />
efeito e causa. [...] Pesaroso, ele aceita a régua e o compasso sagrados da geometria literária”<br />
(BECKETT, 2003, p.09-10). Isto é, a <strong>de</strong>scrição espacial ce<strong>de</strong> à <strong>de</strong>scrição temporal, às<br />
projeções imagéticas <strong>de</strong> um espaço-tempo in<strong>de</strong>terminados, introduzindo o vácuo narrativo<br />
como no conto Assumption (1929), <strong>de</strong> Beckett. Dessa forma, encontram-se diferenças<br />
estilísticas entre as obras em terceira pessoa como Murphy (1934-38) e Watt (1942-44), que<br />
não distanciam-se <strong>de</strong> uma mimese aristotélica, em relação à narrativas em primeira pessoa<br />
como a trilogia aberta por Molloy e a radicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Comment c’est (1958-60), obras anti-<br />
miméticas.<br />
Para a busca <strong>de</strong> uma linguagem própria, Beckett optou por ultrapassar a sedutora<br />
apoteose joyceana da palavra em busca <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sconfiança da mesma a fim <strong>de</strong> transformar a<br />
linguagem, ou melhor, renová-la através <strong>de</strong> um estilo transparente e <strong>de</strong>purado, além <strong>de</strong><br />
dissolver os mitos em personagens efêmeros, negando o subjetivismo ou a abstração em seu<br />
tratamento, enfim, <strong>de</strong> uma prosa eivada <strong>de</strong> “coincidência dos contrários” (BECKETT, 1992,<br />
324), isto é, lado a lado, a recusa à representação do mundo e a a<strong>de</strong>rência à<br />
hipersubjetivida<strong>de</strong>, o solipsismo como última fronteira, uma realida<strong>de</strong> que escapa ao logos<br />
porque incompleta.<br />
Em ensaios como Dante... Bruno, Vico... Joyce (1929), Le mon<strong>de</strong> et le pantalon<br />
(1945), Peintres <strong>de</strong> l’empêchement (1948), Bram van Veld (1948) e Henri Hay<strong>de</strong>n, homme-<br />
peintre (1952) extraem-se alguns dos traços vaticinadores <strong>de</strong>ssa ética-estética, contudo, é em<br />
Proust (1931) - crítica <strong>de</strong> À la recherche du temps perdu (1913-1927), <strong>de</strong> Marcel Proust - que<br />
se <strong>de</strong>svela preliminarmente a visão <strong>de</strong> mundo <strong>beckett</strong>iana: “estamos sós. Incapazes <strong>de</strong><br />
compreen<strong>de</strong>r e incapazes <strong>de</strong> sermos compreendidos. „O homem é a criatura que não consegue
sair <strong>de</strong> si, que só conhece os outros em si mesmo e que, quando afirma o contrário, mente”<br />
(BECKETT, 2003, p.70). Ou ainda, na narrativa curta The Calmative (1946): “todos os<br />
mortais que eu via estavam sós e como que afogados em si mesmos. Deve-se ver isso todos os<br />
dias, mas misturado com outra coisa, imagino” 4 . Ao contrário da “apoteose da palavra” do<br />
contemporâneo James Joyce, que, da negação do ser, nasça uma crença renovada no próprio<br />
ser, Samuel Beckett <strong>de</strong>scrê na expressão pela palavra ou mesmo na re<strong>de</strong>nção <strong>de</strong>sse mesmo<br />
ser.<br />
Para Beckett, “crítica literária não é contabilida<strong>de</strong> 5 ” (BECKETT, 1992, p.323), isto é,<br />
<strong>de</strong>vem-se comparar as semelhanças e dissemelhanças entre os textos originais e suas<br />
respectivas traduções para o inglês ou francês, e vice-versa, para sobrepô-los sobre a camada<br />
da adaptação ao medium em questão, exemplificando: Whoroscope 6 (1930), o primeiro poema<br />
publicado sob seu nome é acompanhado por notas explicativas que, <strong>de</strong> certa forma, são a<br />
extensão do mesmo; a edição bilíngue <strong>de</strong> Quatre Poèmes/Four Poems (1937, 1948) traduzida<br />
pelo próprio autor; por fim, o monólogo Not I (publicado originalmente em inglês, no ano <strong>de</strong><br />
1972) é sobreposto à Pas Moi (a tradução francesa <strong>de</strong> 1975) que, por sua vez, perpassam pela<br />
releitura da transcriação televisiva <strong>de</strong> Not I (produzida para a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> televisão inglesa BBC2,<br />
em 1977). A prática é <strong>beckett</strong>iana em si.<br />
No plano ficcional, o espaço entre permite que forma e conteúdo <strong>de</strong> Quoi oú (1982),<br />
drama em um ato, originalmente publicado e encenado no teatro, fosse transcrito<br />
posteriormente para a televisão; por outro lado, narrativas curtas como Premier amour (1946)<br />
e Enough (1960) são adaptadas ao palco por sua intrínseca teatralida<strong>de</strong>, do mesmo modo que<br />
a peça radiofônica All that Fall (1956); Krapp’s Last Tape (1958) foi dos palcos às<br />
transmissões <strong>de</strong> rádio; a trilogia <strong>de</strong> romances composta por Molloy (1951), Malone muert<br />
(1951) e L’Innommable (1953) e a peça teatral A Piece of Monologue (1979) são monólogos<br />
abertos tanto à literalida<strong>de</strong> da narrativa quanto à performance teatral e radiofônica. Para<br />
E.Grossman, trata-se <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> tecido que a quase tudo cobre com "sua beleza<br />
plástica e musical dos textos-quadros, esses textos-partituras" (GROSSMAN, 1998, p.9), que<br />
moldam-se aos diferentes meios expressivos da linguagem.<br />
O monólogo evoca as imagens e as sonorida<strong>de</strong>s, assim como alimenta a<br />
bidimensionalida<strong>de</strong> da tela ou do som e a tridimensionalida<strong>de</strong> da cena, tanto do presente-<br />
passado quanto do presente-presente do texto: po<strong>de</strong> ser imaginário e/ou imaginação, portanto,<br />
molda-se conforme a necessida<strong>de</strong> da linguagem do meio operado. Enfim, a voz em primeira<br />
pessoa dos autores-narradores becketianos constrói uma fronteira adaptável às diferentes<br />
linguagens.
A fusão da relação entre o Eu narrador e o Eu da ação, ou seja, a autonarração<br />
monologada como ativida<strong>de</strong> norteadora do discursivo, recai na representação evocativa <strong>de</strong><br />
memória, <strong>de</strong> retrospecção, <strong>de</strong> incursão ao escrutínio do passado. O discurso se apresenta ao<br />
mesmo tempo <strong>de</strong> forma dissonante ao privilegiar o Eu narrador frente ao Eu da ação, bem<br />
como <strong>de</strong> maneira consonante ao evi<strong>de</strong>nciar uma estrutura narrativa em que o passado é aceito<br />
como incongruente, onírico, mera impressão para o Eu presente da narr[ação]. O solipsismo é<br />
a própria realida<strong>de</strong>, a forma e o conteúdo da <strong>escrita</strong> ou, sob a perspectiva filosófica <strong>de</strong><br />
L.Wittgenstein - influência <strong>de</strong>cisiva na visão <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong> Beckett -, “que o mundo é meu<br />
mundo, mostra-se no fato <strong>de</strong> que os limites da [minha] linguagem significam os limites <strong>de</strong><br />
meu mundo” (WITTGENSTEIN, 1959, § 5.62).<br />
Concluindo, para ultrapassar o sentido literal da ilustração empírica do real ou o<br />
conteúdo abstrato e filosófico <strong>de</strong> qualquer camada textual 7 e aproximar o olhar e a leitura<br />
sobre a imagem produzida <strong>de</strong> forma literária, sonora ou visual, é imprescindível que tanto<br />
roteiro quanto <strong>film</strong>e sejam interpretados como uma única obra constituída por superfícies<br />
dialógicas e inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
Film: imagens e palavras <strong>beckett</strong>ianas<br />
A partir do anos 1950, o autor implo<strong>de</strong> com o naturalismo e o realismo teatral, ao<br />
escrever e encenar peças que rompiam com as regras do drama burguês, logo, com a<br />
representação paradigmática da mimese realista, elevando a palavra acima dos elementos<br />
integrantes da teatralida<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>puração da linguagem cênica tem início com En attendant<br />
Godot (1952-53) e Fin <strong>de</strong> Partie (1957), todavia a imobilida<strong>de</strong> da cena, do discurso e da ação<br />
tem em peças como Happy Days (1961), Not I (1972) e That Time (1975) seu ápice ao<br />
<strong>de</strong>compor o corpo, a voz e a ação, até o limite da [re]presentação: a dissolução entre o espaço<br />
e o tempo, entre o diálogo – monologado ou não – e a ação, entre o real e o imaginário dos<br />
personagens, instauram um estado <strong>de</strong> inércia, <strong>de</strong> opacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fantasmagoria.<br />
É inegável a reciprocida<strong>de</strong> ética-estética entre os meios eletrônicos – rádio, cinema e<br />
televisão – e o teatro <strong>de</strong> Beckett, uma vez que nos mesmos anos 1950, o autor inicia seu<br />
trabalho na Radio BBC. A obra do autor foi uma das precursoras no dialogismo entre<br />
literatura, teatralida<strong>de</strong> e as novas tecnologias <strong>de</strong> sua geração ao colaborar, a partir dos anos<br />
1950, com a Radio BBC 8 (Inglaterra) e a ORTF 9 (França), e nos anos 1960, com as emissoras<br />
BBC2 10 (Inglaterra) e SDR 11 (Alemanha). Para G.Borges, “os trabalhos <strong>de</strong> Beckett para o<br />
cinema e para a televisão [e, por que não, para o teatro] não po<strong>de</strong>m ser analisados se não for
consi<strong>de</strong>rada a sua experimentação no meio radiofônico. A sua fascinação pelo rádio foi<br />
marcante na exploração da voz, dos sons e na busca <strong>de</strong> ritmos diversos” (BORGES, 2009,<br />
p.29). O contato com a linguagem do rádio introduziu alguns dos futuros recursos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>puração da teatralida<strong>de</strong> <strong>beckett</strong>iana.<br />
Nas peças radiofônicas All That Fall 12 (1956) e Embers 13 (1957-59), a composição<br />
entre as vozes, os efeitos sonoros e os ruídos sublinhados pela música, criam para a primeira<br />
um efeito pitoresco, enquanto que, para a última, uma atmosfera <strong>de</strong> melancolia. O flerte com<br />
certo realismo na representação sonora se faz presente, contudo antece<strong>de</strong> o uso da música<br />
como personagem ao executar Der Tod und das Madchen (1824), <strong>de</strong> F.P. Schubert em All<br />
That Fall e um piano em Embers. O mesmo ocorre em Words and Music 14 (1962),<br />
Cascando 15 (<strong>1963</strong>) e Rough for Radio I e II 16 (1976), em que a música protagoniza com as<br />
vozes um estranho diálogo: o realismo ce<strong>de</strong> ao abstracionismo.<br />
Na televisão, estreia em 1966, na SDR, a tele-peça He Joe 17 , seguida por sua versão<br />
inglesa – Eh Joe 18 –, na BBC2, e francesa – Dis Joe 19 –, em 1968, tendo ainda outras duas<br />
versões, co-dirigidas por Beckett, respectivamente em 1979 e 1989. O roteiro retoma uma<br />
temática cara a Beckett, o olhar e a percepção do olhar - a câmera-olho e Voice, personagens<br />
que atormentam o personagem principal num diálogo entre imaginação e memória. Em Ghost<br />
trio 20 (1977), a abstração preenche o quadro com os fantasmas <strong>de</strong> Waiting for Godot. As<br />
imagens da memória e a intertextualida<strong>de</strong> com seu próprio universo, evocando a <strong>escrita</strong> <strong>de</strong><br />
Marcel Proust, sob a inspiração do poema The Tower, <strong>de</strong> W.B. Yeats, materializam ...but the<br />
clouds... 21 (1977). Em Quad 22 (1981), repetição e diferença no fluxo televisual do espaço-<br />
tempo incessantemente <strong>de</strong>senhado por bailarinos-personagens. Por fim, a última tele-peça<br />
<strong>escrita</strong> é Nacht und Träume 23 (1983), em que as imagens dissolvem a relação espaço-<br />
temporal, criando uma atmosfera onírica, sob a música <strong>de</strong> F.P. Schubert.<br />
As criações <strong>de</strong> Beckett para a televisão se caracterizam pelo seu não-naturalismo e<br />
anti-realismo, pela opacida<strong>de</strong> dos meios técnicos operados e pelo <strong>de</strong>sarranjo das noções <strong>de</strong><br />
espaço e tempo narrativos. Através <strong>de</strong> manipulações formais da linguagem audiovisual, como<br />
o uso da edição, criava efeitos <strong>de</strong> distanciamento crítico e <strong>de</strong> recusa ao espectador da cômoda<br />
transparência do cinema clássico, <strong>de</strong>ssa maneira o público se via obrigado a abandonar seus<br />
pré-conceitos narrativos e fílmicos, embarcando numa diegese que lhe exigia, antes <strong>de</strong> tudo,<br />
reflexão, nunca absorção.<br />
As transcriações <strong>beckett</strong>ianas, além dos jogos <strong>de</strong> linguagem nas traduções <strong>de</strong> seus<br />
próprios textos entre o inglês, francês e alemão e as transmutações do texto para a<br />
performance da cena, do som e da tela e/ou vice-versa comprovam o contágio da linguagem
na própria operação <strong>de</strong> se reescreverem em outros meios que não os seus <strong>de</strong> origem. O<br />
diálogo entre o cinema, o ensaio, a literatura, o rádio e a televisão se fazem presentes tanto<br />
nas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> adaptação <strong>de</strong> sua obra entre os meios, como, por exemplo, a peça teatral<br />
What Where 24 (1986) para televisão, além dos trabalhos supracitados, quanto nas<br />
incorporações <strong>de</strong> referências aos meios nas indicações <strong>de</strong> textos, como o gravador <strong>de</strong> voz em<br />
That Time (1974) e Rockaby (1980).<br />
Em <strong>1963</strong>, Beckett escreveu seu único roteiro cinematográfico, Film. Dirigido por Alan<br />
Schnei<strong>de</strong>r, no ano <strong>de</strong> 19<strong>64</strong>, em Nova York, com co-direção do próprio autor e protagonizado<br />
por Buster Keaton, é laureado com o Prêmio da Jovem Crítica, no Festival <strong>de</strong> Veneza, em<br />
1965, entre outras premiações posteriores. Durante sua realização, Beckett reescrevia o roteiro<br />
conforme as impossibilida<strong>de</strong>s técnicas apareciam na captação das imagens, assim como<br />
adaptava os enquadramentos conforme as indicações <strong>de</strong> seu texto.<br />
O roteiro inicia com o aforismo <strong>de</strong> Berkeley Esse est percipi (“existir é ser percebido”)<br />
na qual o <strong>film</strong>e é inspirado. O enredo se constitui a partir da cisão do protagonista O<br />
(personagem-objeto interpretado por Buster Keaton) em seu duplo E (personagem-câmera<br />
<strong>de</strong>rivado da palavra inglesa eye, olho em português), em que O escapa da percepção <strong>de</strong> E, mas<br />
não da percepção <strong>de</strong> si mesmo, o que se <strong>de</strong>scobre apenas no final da projeção. Tal processo é<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado pelo recurso técnico da câmera-olho ou câmera subjetiva que parte em dois o<br />
ponto <strong>de</strong> vista do espectador, negando-lhe os pontos <strong>de</strong> vista da própria câmera que captura a<br />
ação enquadrada a partir do jogo com o protagonista em perceber a si mesmo como ser<br />
observador e objeto observado. Para tanto, Beckett estabelece um ângulo <strong>de</strong> imunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 45<br />
graus, em que O está imune à percepção <strong>de</strong> E, todavia quando ultrapassado o protagonista<br />
entra na zona <strong>de</strong> agonia <strong>de</strong> percepção, tomando consciência do outro e <strong>de</strong> si. A história é<br />
dividida em três partes inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: nas duas primeiras, respectivamente, “A Rua” e “As<br />
Escadas”, on<strong>de</strong> a percepção predominante é a <strong>de</strong> E, para que na última parte, “O Quarto”, as<br />
percepções sejam intercaladas com O.<br />
Segundo C. Berrettinni, “introduz Beckett o tema do olhar e da percepção no centro<br />
<strong>de</strong> sua marcha criadora e esta, como bem aponta Alfred Simon, questiona „o próprio<br />
espetáculo‟, pois cada um „apenas existe na medida em que é visto pelo olhar das mídias”<br />
(BERRETTINNI, 2004, p. 197). Isto é, Beckett ao eleger a câmera ou E como antagonista do<br />
personagem O, o duplo frente ao real que o percebe e é percebido por ele, exerce a<br />
metalinguagem como ferramenta <strong>de</strong> reflexão do dispositivo cinematográfico e da própria<br />
condição humana: retoma-se a noção wittgensteiniana do meu mundo como o limite do<br />
próprio mundo, ou seja, o solipsismo como única visão <strong>de</strong> mundo. Film introduz os elementos
estéticos dialógicos entre a palavra e a imagem do autor que contaminarão o trabalho<br />
posterior em suas produções televisivas experimentais citadas anteriormente.<br />
A produção é um curta-metragem preto e branco, sem áudio, exceto por um sssh! na<br />
primeira parte do <strong>film</strong>e. A abertura, segundo o roteiro, seria realizada por um plano-sequência<br />
que situaria a diegese fílmica no tempo e no espaço, contudo fora substituída por um olho em<br />
close-up, revelando sua estrutura circular ao ser finalizado pelo mesmo enquadramento com o<br />
rosto <strong>de</strong> Buster Keaton e seu tapa-olho. Com uma atmosfera cômica e irreal, ambientado em<br />
1929, faz inúmeras referências estéticas aos <strong>film</strong>es dada-surrealistas da década <strong>de</strong> 1920 e ao<br />
cinema mudo, além <strong>de</strong> citações à Un chien andalou (1929), <strong>de</strong> Luiz Buñuel e Salvador Dali<br />
como o olho na sequencia <strong>de</strong> abertura. Apesar da interpretação <strong>de</strong> Buster Keaton, Film não<br />
segue as convenções <strong>de</strong> gênero das comédias mudas no estilo slapstick – humor saturado <strong>de</strong><br />
situações absurdas - e vau<strong>de</strong>ville – o primeiro cinema <strong>de</strong> atrações variadas -, pois prima por<br />
uma narrativa com enquadramentos em planos médios, em movimento, sem música ou<br />
letreiros, com uma economia nas gags visuais e no gestual do ator.<br />
As notas <strong>de</strong> produção reproduzidas no roteiro <strong>de</strong>monstram a preocupação do autor na<br />
transcriação do texto em <strong>film</strong>e <strong>de</strong> tal maneira que algumas indicações são <strong>de</strong>monstradas por<br />
<strong>de</strong>senhos como o ângulo <strong>de</strong> imunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 45 graus, o encontro com o casal na fuga pela rua, a<br />
subida das escadas, a circularida<strong>de</strong> do quarto e a gag com o gato. As <strong>de</strong>scrições são precisas,<br />
embora não totalmente realizadas na <strong>film</strong>agem.<br />
De forma implícita o aforismo <strong>de</strong> Berkeley existir é ser percebido é a referência para a<br />
construção do personagem que ao mesmo tempo é objeto e sujeito da percepção, isto é,<br />
perceber e ser percebido. Tanto objeto quanto sujeito existem nesta relação entre percepções,<br />
assim em nenhum <strong>de</strong>les está o domínio da mesma.<br />
Film [re]cria uma poética dialógica entre suas audiovisualida<strong>de</strong>s, sonorida<strong>de</strong>s e<br />
teatralida<strong>de</strong>s, através <strong>de</strong> um minimalismo, ou melhor, <strong>de</strong> uma economia estética<br />
<strong>de</strong>sagregadora da ficção, do real e do imaginário através da cisão do personagem e da negação<br />
ao espectador <strong>de</strong> uma percepção <strong>de</strong> autoria para o <strong>film</strong>e, pois o que é percebido é a visão <strong>de</strong><br />
mundo do personagem O/E. Instaura-se um estranhamento pelo <strong>de</strong>slocamento do olhar que<br />
impe<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ntificação com o que se está assistindo. Da mesma maneira que <strong>de</strong>compõe a<br />
própria linguagem do ser, tal <strong>escrita</strong> fílmica introduz um universo on<strong>de</strong> o visível e o invisível<br />
se revelam na circularida<strong>de</strong> da narrativa.<br />
A importância <strong>de</strong> Beckett na relação entre palavra e imagem não se encontra em seu<br />
pioneirismo na miscigenação das tecnologias no seu trabalho, mas no fato <strong>de</strong> que sua obra<br />
<strong>de</strong>scerra novas práticas estéticas para o que comumente [re]conhecemos como teatralida<strong>de</strong>,
audiovisualida<strong>de</strong> e sonorida<strong>de</strong>. Enfim, na transformação da própria noção <strong>de</strong> representação<br />
cênica, audiovisual e/ou sonora ao agregar aos textos, às vozes, às imagens, ao gestual e à<br />
ação do performer outras corporalida<strong>de</strong>s e técnicas que constroem outra ficção para o espaço-<br />
tempo da cena, do enquadramento e do som, em que todos são tridimensionais, seja no real ou<br />
no imaginário.<br />
1 Film (curta-metragem, mudo, p&b, 22‟, <strong>1963</strong>-<strong>64</strong>). Vencedor do Prêmio da Crítica do Festival <strong>de</strong> Veneza (1965), Prêmio<br />
Especial do Júri do Festival Internacional <strong>de</strong> Curtas <strong>de</strong> Tours (1966) e o Prêmio Especial do Festival <strong>de</strong> Oberhausen (1966).<br />
2 Todas as traduções são <strong>de</strong> minha responsabilida<strong>de</strong>.<br />
3 Cf. BECKETT, Samuel. “Carta <strong>de</strong> Samuel Beckett a Axel Kaun, a „Carta Alemã‟ <strong>de</strong> 1937” in ANDRADE, Fábio <strong>de</strong> Souza.<br />
Samuel Beckett: o silêncio possível. Cotia: Ateliê Editorial, 2001.<br />
4 Cf. “All the mortals I saw were alone and as if sunk in themselves. It must be a commom sight, but mixed with something<br />
else I imagine”. In: GONTARSKI, S.E. The Complete Short Prose, 1929-1989. New York, Groove Press, 1995, p.70.<br />
5 Cf.BECEKTT, Samuel. “Dante... Bruno. Vico... Joyce” in NESTROVSKI, Arthur (org). Riverun: ensaios sobre James<br />
Joyce. Tradução <strong>de</strong> Lya Luft. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1992, p.232-338. Publicado originalmente em: BECKETT et al., Our<br />
Examination Round His Factificarion for Incaminatio os Work in Progress (Paris, Shakespeare & Co., 1929).<br />
6 BECKETT, Samuel. Poems in english. London, Cal<strong>de</strong>r and Boyars, 1961. Originalmente publicado por Nancy Cunard, em<br />
The Hours Press, no ano <strong>de</strong> 1930. Existe uma tradução para o português realizada por Jorge Rosa e Armando da Silva<br />
Carvalho e publicada nos Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Poesia 10, pela Dom Quixote <strong>de</strong> Lisboa, em 1970.<br />
7 Cf. HALL, Stuart. Representation: Cultural Representations and Signifying Pratices. London, Sage, 1997.<br />
8 Cf. sigla para British Broadcasting Corporation, emissora pública <strong>de</strong> rádio e televisão britânica, fundada em 1922. (fonte:<br />
http://www.bbc.co.uk/ - acessado em 1º/06/2012)<br />
9 Cf. sigla para Office <strong>de</strong> Radiodiffusion-Télévision Française, emissora pública <strong>de</strong> radio e televisão francesa, fundada em<br />
19<strong>64</strong>, a partir da formação da Radiodiffusion Française (RDF), em 1945, posteriormente renomeada, em 1949, <strong>de</strong><br />
Radiodiffusion-Télévision Française (RTF). (fonte: http://www.rfi.fr/ - acessado em 1º/06/2012).<br />
10 Cf. nota 2.<br />
11 Cf. sigla para Süd<strong>de</strong>utscher Rundfunk, emissora pública <strong>de</strong> rádio e televisão alemã, localizada em Stuttgart e fundada em<br />
1924. Em 1998, é renomeada para SWR - Südwestrundfunk. (fonte: http://www.swr.<strong>de</strong>/ - acessado em 1º/06/2010)<br />
12 Dirigida por Donald McWhinnie, estreou em 1957 na Radio BBC.<br />
13 Dirigida por Donald McWhinnie, estreou em 1959 na Radio BBC, ganhando o prêmio da RAI (Radiotelevizione Italiana).<br />
14 Com música composta por John Beckett, estreou em 1962, na Radio BBC.<br />
15 Com música composta por Marcel Mihalovici, estreou em <strong>1963</strong>, na ORTF e em <strong>1963</strong>, na Radio BBC.<br />
16 Ambas as peças radiofônicas foram <strong>escrita</strong>s no início dos anos 1960, porém, publicas em livro e estreadas no rádio em<br />
1976, na BBC Radio 3.<br />
17 Dirigida por Samuel Beckett.<br />
18 Dirigida por Alan Gibson e Samuel Beckett.<br />
19 Dirigida por Pierre Bureau na ORTF.<br />
20 Dirigido por Samuel Beckett na SDR, e por Tristam Powell na BBC2.<br />
21 Dirigido por Tristam Powell na BBC2, e por Samuel Beckett na SDR com o título <strong>de</strong> ... nur noch Gewölk...<br />
22 Dirigido por Samuel Beckett para a BBC2 e na versão para a SDR, com o título <strong>de</strong> Quadrat 1 +2.<br />
23 Dirigido por Samuel Beckett na SDR.<br />
24 Dirigido por Samuel Beckett na SDR.<br />
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