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Dissertação - Unicamp

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Perina teria gamas de rasgar a tela, de fazer brotarem<br />

as cores que estão no fundo. Ele sabe. Mas o opaco vem<br />

de dentro. Como a necessidade de reduzir à sua<br />

expressão mais simples ou mais complexos impulsos<br />

interiores. Como a necessidade de desaparecer.<br />

Veja bem: bastaria chegar em casa, apagar a luz da<br />

sala, deixar aceso só o abajur. Daí, chamar Helena com<br />

um pretexto qualquer. (Mostrar-lhe um poema, talvez)<br />

Dar-lhe um beijo. O polegar e o indicador apertariam<br />

de leve a sua nuca, a mão direita procuraria um seio. A<br />

mão esquerda poderia então descer para as costas, até a<br />

cintura, vencendo no caminho o que houvesse de fechos,<br />

zíperes e botões, A direita conquistaria a região do<br />

ventre.<br />

Ela reclamaria. Como sempre, estariam esperando<br />

visitas. Ou haveria alguma panela no fogo, ou o ferro<br />

estivesse ligado, ou fosse preciso varrer a sala, passar o<br />

aspirador no tapete, a louça estivesse esperando esponja<br />

e detergente. Que reclamasse. Era preciso rasgar a tela.<br />

Era preciso descobrir as cores que eles conheciam e<br />

fazer brotar naquela sala, sobre aquelas almofadas, a<br />

natureza que eles sabiam existir. A floresta densa e<br />

úmida que havia no vale daquele ventre, precisava ser<br />

devassada. O murmúrio dos riachos que ela sempre<br />

levou dentro de si precisava espalhar-se pela casa,<br />

ganhar a cozinha, alegrar o cenário, subir ao quarto e<br />

ali instalar usa fonte.<br />

Mas há em cima de tudo essa tonalidade pastel. Como<br />

Thomaz Perina e suas paisagens que ninguém quer<br />

comprar, suas telas que os críticos elogiam mas não<br />

entendem. “Preocupação ecológicas... Burros! Então<br />

eles não sabem do vulcão que explode dentro da gente?”<br />

– A vingança está na própria tela: o resultado é opaco.<br />

Nessa opacidade ninguém penetra, e lá de dentro ele vê<br />

com seu olho roxo. O cotidiano é um soco. Mas não é<br />

um soco seco, pum, no meio da cara. É um soco câmaralenta,<br />

em câmara eterna, que todo dia vai amassando o<br />

olho, devagar, primeiro uma olheira suave, depois a<br />

mancha, a sombra, a névoa, o tom pastel.<br />

O traço horizontal de suas vidas poderia sugerir a paz<br />

que proporcionam as naturezas tranqüilas. Mas não! No<br />

corpo de Helena não é possível excetuar-se um<br />

reconhecimento meramente topográfico. O simples<br />

caminhar sobre o chão de sua pele implicaria levantar<br />

tempestades, provocar terremotos. Então, porque o traço<br />

horizontal, as esferas, e nada?<br />

Por que então o cotidiano era um sonho em câmara<br />

lenta, e por que o tom pastel velando suas naturezas, se<br />

por baixo dessa tela – e ele sabia – Helena sufocava<br />

suas explosões?<br />

Haveria uma parede entro o toque de suas mãos e a<br />

expectativa de Helena. Nessa parede, um mural (uma<br />

natureza morta)> uma grossa camada de tinta que eles<br />

acumularam nos quatro anos de vida comum. No<br />

começo as batalhas voluptuosas na cama, no tapete da<br />

sala, embaixo do chuveiro, no carro (a viagem<br />

interrompida em plena via Anchieta). Depois, aos<br />

poucos, o cansaço, a tonalidade pastel.<br />

Thomaz Perina seria um poeta. A vida está ali, mas o<br />

poeta apenas sugere, através de vagas indicações. Passa<br />

de leve, quando poderia afundar e afundar. Você que<br />

descubra. E morra de alegria ao descobrir. E goze. E<br />

tinha mil orgasmos ininterruptos ao sentir que você é<br />

capaz de perceber todas as angústias e todos os sonhos<br />

do poeta, esmagados sob as cores opacas na tela. E<br />

chore também, porque essas angustias e esses sonhos<br />

são seus, e você não sabia. Ele saiu do Salão Portinari<br />

com a idéia fixa: como Thomaz Perina, vinham<br />

relegando o que sabiam de si próprios, reduzindo suas<br />

naturezas ao extremo de uma linguagem simbólica,<br />

comoventemente simples. E não podiam simplesmente<br />

rasgar a tela.<br />

Nessa noite, chegaria em casa aos tropeções.Esqueceria<br />

provavelmente a chave da porta, absorto naquela<br />

impressão de luz. Nessa noite, Helena e ele começariam<br />

a raspas a tela. E saberiam descobrir o que há por traz<br />

de um quadro que ninguém quer comprar. A partir de<br />

um traço horizontal e duas esferas, uma acima, outra<br />

abaixo.<br />

Folhetim, Foha de São Paulo, 26.7.1981.<br />

Anexo I – GALERIA DA ALIANÇA FRANCESA, CAMPINAS – 1985<br />

Apresentação de Dayz Peixoto Fonseca<br />

O mínimo de desenho, o mínimo de cor: o suficiente<br />

para Thomaz Perina compor as paisagens que<br />

seduzem nosso olhar e surpreendem nosso<br />

imaginário. Tornamo-nos , inicialmente, cúmplices<br />

da nostalgia das cores e da solidão dos<br />

personagens: uma linha e uma esfera (ou apenas<br />

um pouco mais) soltas no espaço e presas no<br />

universo monocórdio, indiscriminado, sem saídas<br />

perceptíveis.<br />

Descartando os elementos figurativos, Perina cria<br />

paisagens da alma, sob as quais não consegue<br />

disfarçar a coragem de enfrentar os riscos da

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